terça-feira, 22 de maio de 2012

Meias


Ela tinha uma sensualidade especial, era reservada de um jeito que a fazia diferente das demais mulheres, e o segredo de sua atratividade era uma mistura de passividade e distinção. Parecia que escondia em seu interior uma misteriosa qualidade, que a fazia permanecer como alguém distanciada, sempre com seu tranquilo sorriso, inclusive quando se entregava ao desejo febril de seu esposo. Ele gostava daquele olhar distante, daqueles olhos claros que sorriam e da maneira tão peculiar de abandonar-se a si mesmo. (1)

Samantha é uma mulher singular. Vivia, com Arthur, um casamento de 20 anos. Em harmonia, sem muita surpresa. Ela considerava o marido um líder. Fazia o que ele pedia. Todo santo dia, antes de ir para o trabalho, Arthur pedia para Samantha colocar em seus pés as suas meias e depois o sapato. Quem fazia o prato de comida para ele no almoço? Samantha, claro. E sem misturar o arroz com o feijão!

Samantha, apesar das meias, tem boas lembranças de seu casamento. Ela nasceu em Indaiatuba, cidade do interior de São Paulo, de família tradicional. Estudou em colégio de freiras e teve a formação clássica de que mulher para ser mulher tem que ser uma boa esposa e uma boa mãe. Aos 21 anos casou-se com Arthur e desta relação apareceram dois filhos que foram criados em Campinas onde o casal passou a residir.

Samantha sempre foi do lar. Cuidava dos filhos, da casa e do marido com esmero e dedicação.

Boa cozinheira servia os seus com a competência de uma Roberta Sudbrack. Samantha tem um livro com recortes de receitas muito bem organizado. Arthur e filhos consideravam imbatíveis a torta de limão e o rosbife com nhoque ao sugo feitos por Samantha.

Nossa personagem é uma libertina na cama. E o Arthur? Às vezes era líder na cama. Às vezes não. Nestas horas ela não gostava. Ela gosta de homens com liderança agressiva. Ela esperava o prazer de Arthur. Quando isto não acontecia, o Arthur passivo, Samantha se frustrava.

É como escreveu Anais Nim em seus diários: A vontade dele, o prazer dele, o desejo dele, a vida dele, o trabalho dele, a sexualidade dele como medida, comando – como centro da minha órbita. Não me importa trabalhar, ter meu espaço intelectual como artista; mas como mulher, ah, Deus, como mulher eu quero ser dominada. Não me importa se me disserem que tenho de andar com minhas próprias pernas, ser independente – eu posso fazer isso – mas eu serei caçada, penetrada, possuída pela vontade de um homem na hora que ele quiser, ao seu comando.

Anais Nin foi uma mulher plural. Escritora viveu na primeira metade do século XX, uma vida agitada. Na época em que escreveu o que citei acima vivia (em Paris) numa dúvida entre três homens e uma mulher com os quais tinha uma intensa relação amorosa. Anais, além de uma intelectual incrível, foi uma libertária e uma libertina. Como o diabo gosta.

Numa época da vida Samantha como dona-de-casa teve uma decisão sui generis: se embrenhar pela literatura de Clarice Lispector. Até hoje seu livro de cabeceira é Perto do coração selvagem. Os dilemas de Clarice passaram a serem os de Samantha: a mulher, o casamento, o desassossego, o humano e outras questões sempre não lineares da autora. Mais tarde veio a conhecer Virgínia Wolf e Anais Nim.

Cá pra nós, ninguém passa impune por essas mulheres.

Recentemente Arthur teve problemas graves de saúde. Câncer no cérebro descoberto tardiamente. Faleceu seis meses após a descoberta da doença. Samantha sentiu muito a perda do marido. Afinal foi um casamento bem vivido de mais de vinte anos.

Para ela uma situação contraditória como se fosse uma mistura da dor de perder com a sensação de liberdade de deixar alguém partir (Elizabeth Bishop).

Passado o período de luto Samantha encontrou-se com uma amiga. E esta curiosa perguntou sobre como a amiga conviveu tanto tempo com Arthur na situação de submissão. Citou a estória das meias. Respondeu Samantha:

- Sabe o que é amiga, fazemos isso para que os homens pensem que mandam e que são superiores. E soltou um tímido sorriso maroto.

Epílogo

Cinco anos antes de Arthur morrer Samantha conheceu um homem. Passaram a se encontrar com frequência. Tornaram-se amantes. Sim, ela traia o marido.

Até hoje este homem tem sobre ela uma liderança amorosa e libidinosa. Ela continua com sua sensualidade especial misturando atratividade e distinção.

Mas calçar meias e fazer o prato no almoço para ele nunca mais.


Citação:

(1) Javier Moro, sobre Dona Leopoldina e Dom Pedro I em O Império é você, p. 96, Planeta, 2012.


NB: a ideia inicial deste texto veio da crônica Essas mulheres e suas histórias, de Joaquim Ferreira dos Santos em O Globo de 7 de novembro de 2011.

De Isabela Guerreiro: “O marido de uma amiga minha chega a pedir que ela lhe coloque as meias. Num dia, ela desabafou: ‘Se um dia fosses pra guerra, criatura, quem iria colocar as balas no teu revólver?’ Felizmente esse tipo de relação está cada vez mais raro hoje em dia, ou eu estou sendo ingênua?” Isabela, marido é gente folgada e assim continuará sendo, por definição e índole, até o fim dos tempos, cada vez mais próximo, dessa bizarrice que é o casamento. Conheço homem que não passa manteiga no pão porque considera isso uma prenda do lar e diz que o faz por respeito, por não querer invadir o espaço da patroa. Ô raça.

Essasmulheres-2 


 








 

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