- Tenho calças, sim! Porque sei tecer. Azuis, porque sei tingir! Tá ouvindo?
Inácia era assim. Despachada. E ninguém pelas bandas de Barretos e Jabuticabal preparava tão bem o anil e outros corantes para tingir um pano. Ela viveu durante a segunda metade do século XIX. Tinha a alcunha de Inácia Homem. Imaginem uma mulher nesta época vestida com calça comprida. Mas o Homem do apelido não era apenas pela calça. Era uma librina, filha de Simão Antônio, de estatura fora do comum. Segundo Osório Rocha em seu livro Barretos de outrora de 1954, Inácia tinha "seu rosto tisnado pelo sol, e principalmente às suas maneiras decididas e masculinizadas, que pediam meças às mais vivas manifestações de atividades dos varões da época e da região. Tinha os olhos brilhantes, que nada deixavam passar. Dirigia serviços da roça, corria pastos em busca das vacas paridas e da tropa, e ninguém lhe disputava as lampas em desabaladas correrias atrás de antas e outras vítimas de suas façanhas venatórias. Mas possuía um coração de ouro."
Era comum ver Inácia trajando calças de algodão azul e sobre elas uma saia aberta. Na cabeça um chapéu da palha trançada, preso por uma alça de couro de boi. Nos pés coturnos com cordinhas entrelaçadas. A mulher começou a usar calça comprida na década de 1960. Inácia, um século antes, era fashion, com sua calça e coturno. Era devota do Divino Espírito Santo, mas se rebelava com o que está na Bíblia: A mulher não deverá usar artigo masculino, nem o homem se vestirá com roupa de mulher, pois quem assim age é abominável para Javé seu Deus (Deuteronômio, 22).
Inácia Bernarda Cândida da Conceição recebeu o mesmo nome de sua avó materna Inácia Bernarda, mulher do capitão Valentim José Maria. Era filha de Simão Antônio Marques. Em 1850 estava casada com Generoso Alves de Golveia de quem se separou por motivos de maus tratos (Generoso, apesar do nome, era um truculento). Era irmã de Mariana Cândida de Jesus, a Mariana Librina de quem já escrevi neste Blog (24/05/2011). Inácia, portanto, foi minha tia-tetravó. Sou tetraneto de Joaquim Simão Marques. No final deste texto apresento um mapa genealógico do Simão Antônio Marques.
Vale a pena citar uma passagem do livro de Osório Rocha sobre Inácia Bernarda.
Caçava em certa ocasião com Inocêncio nos cerradões da Fortaleza e do Monte Alegre. Um veadinho, perseguido pela mantilha e a fogosa cavalgada, surgiu na clareira do S. Domingos e afinal veio cair exausto mesmo à porta da primitiva capelinha do arraial de Barretos. Arquejante, os olhos em desesperados volveres de terror pareciam chorar e implorar misericórdia, no limiar da casa de Deus. Inácia sentiu então a ternura da sua alma sertaneja, e gritou ao irmão, que já levava a espingarda à pontaria certeira.
- Não atire compadre Nocêncio! Coitadinho! Ele veio pedir piedade a N. Senhora e ao Divino! Não atire!
Porem Inocêncio foi inexorável, o tiro partiu, o animalzinho se agitou convulsivo em rápida agonia. A própria Inácia contava que depois desse dia foi como se todos os fados viessem à porfia contra o seu irmão. Primeiro, teve o desgosto da viuvez, depois os maus negócios, a doença, o desassossego na quadra cor de cinza do fim da vida. E então ela dizia:
- Eu bem lhe pedi compadre, para não matar o coitado do veadinho na porta da Igreja! O Divino Espírito Santo castigou!
Das filhas de Simão Antônio, Mariana Librina era fogo puro. Teve três maridos e foi mãe onze vezes, cinco filhos e seis filhas. Inácia era um pé de cabra que agitava a região com suas transgressões. Não levava desaforo pra casa de homem algum. Trabalhava muito e tinha um coração de ouro.
Edson Cardoso, agosto de 2011.
Mapa de Simão Antônio Marques (cmap.ihmc.us)
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