sábado, 5 de abril de 2025

A CBF e as falcatrua de sempre

 “Coisas extravagantes”

Uma radiografia da gestão de Ednaldo Rodrigues na CBF
Allan de Abreu | Edição 223, Abril 2025

A Seleção Brasileira de Futebol caiu nas quartas de final na Copa do Mundo do Catar, em 2022, frustrando milhões de torcedores, mas um grupo de 49 brasileiros fez a festa. Usufruíram de mordomias durante as três semanas em que o Brasil esteve vivo na competição, com direito a hotel cinco estrelas e ingresso para assistir às partidas. Muitos tiveram atendimento vip na chegada ao Aeroporto Internacional de Doha, alguns voaram de primeira classe e pelo menos um ganhou cartão corporativo para gastar livremente até 500 dólares por dia (2,5 mil reais). Tudo à custa da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a mais alta entidade do futebol nacional, embora nenhum dos 49 tivesse relação direta com a confederação ou as federações estaduais.


O presidente da CBF, o baiano Ednaldo Rodrigues, também espetou na conta da confederação as despesas de sua família – a mulher, a filha, a cunhada, o genro e os dois netos. Todos voaram em primeira classe, usaram o atendimento vip no aeroporto de Doha, hospedaram-­se no Marriot Marquis City e só as despesas extras da mulher do presidente da CBF na hospedagem bateram em 37 mil reais. Não chega a ser uma exorbitância, sobretudo para uma entidade que fatura 1 bilhão de reais por ano, mas é o suficiente para macular a gestão de quem, meses antes, assumira prometendo “expurgar toda e qualquer imoralidade”.

Além da própria família, Rodrigues se lembrou dos amigos – amigos da política, do Judiciário, da imprensa, das artes. A CBF  pagou hospedagem, voo – desta vez, de classe executiva – e ingressos para três partidas ao deputado federal José Alves Rocha (União Brasil-BA), que viajou com a mulher Noelma. O gasto total da CBF com o casal Rocha chegou a 364 mil reais. Para o senador Ciro Nogueira (PP-­PI), que foi acompanhado da namorada Flávia Rosalen, a entidade ofereceu um pacote mais modesto, que saiu por 195 mil. Os dois – o deputado e o senador – integram a “bancada da bola” no Congresso. O senador Jaques Wagner (PT-BA) também foi convidado, mas ficou retido no Brasil em meio às negociações da transição de governo. Em seu lugar, foi o filho Mateus, de 47 anos.

Entre os 49 felizardos, estavam também o cantor Gilberto Gil e sua mulher Flora, a socialite Lilibeth Monteiro de Carvalho, o desembargador Julio Cezar Lemos Travessa, do Tribunal de Justiça da Bahia, o empresário pernambucano Diogo Monteiro Lima, o estilista Ricardo Almeida (que desenhou os ternos dos jogadores da Seleção para a Copa), o ex-­cinegrafista da TV Globo, José Carlos Cruz da Silva, o Mosca (a quem a CBF deu aquele cartão corporativo de 500 dólares diários) e outros três jornalistas da Bahia, todos amigos de Rodrigues. A conta total não inclui os presidentes das 27 federações estaduais, mas fecha em 49 contando com suas mulheres e filhos. A maioria ficou no City Centre Rotana, outro cinco estrelas de Doha.

Ninguém na imprensa, ou fora dela, deu muita atenção à farra dos 49. Afinal, não foi a primeira vez que a CBF bancou convidados sem conexão com o futebol em suas turnês no exterior. Na Copa de 1998, na França, por exemplo, o então capo da confederação, Ricardo Teixeira, levou cinco desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em cuja pauta havia matérias de interesse da entidade. Mas, desta vez, até funcionários da CBF com várias copas no currículo acharam que a farra foi longe demais. Estima-­se que tenha custado uns 3 milhões de reais aos cofres da confederação.

“Quem deveria fiscalizar essa farra, pelo estatuto da entidade, são as federações estaduais”, diz um dos oito vice-­presidentes da confederação, que pediu para não ser identificado. “O problema é que essas federações reproduzem o mesmíssimo comportamento. É um sistema viciado.” O vice-presidente apoiou Rodrigues na eleição de 2022, mas se diz um crítico da malversação dos recursos da entidade na atual gestão. “Ednaldo não é o primeiro presidente da CBF a desviar recurso da entidade para fins pessoais. Mas ele com certeza elevou essa prática a um nível preocupante”, diz.

E começou cedo. Embora ganhe cerca de 1 milhão de reais por mês – somando-se o salário na CBF com as comissões da Confederação Sul-Americana de Futebol e da Fifa –, Rodrigues morou por nove meses no hotel Grand Hyatt, na Barra da Tijuca, quando assumiu a entidade na condição de interino, em agosto de 2021. Depois, quando virou titular, mudou-se para um condomínio no mesmo bairro, mas passava temporadas com a família no hotel, com despesas sempre pagas pela CBF. Entre fevereiro e maio de 2023, por exemplo, a entidade bancou 422 mil reais com diárias para Rodrigues, a filha Rafaela e a cunhada Taíse.

Em sua gestão, a CBF costuma pagar os voos entre Rio de Janeiro e Salvador para sua família e agregados. Entre os passageiros, estão a mulher, a filha, o neto, o genro, a sogra, os cunhados, o sobrinho e até o cabeleireiro da família, Jorge Luiz Castro Gonçalves. De novo, não são despesas capazes de esvaziar os cofres de uma entidade bilionária, mas servem para ilustrar o que o vice-presidente chama de “nível preocupante”.

Os cartolas das federações estaduais, em vez de fiscalizar, também aproveitam a generosidade de Rodrigues. Até 2021, ca­da presidente de federação ganhava 50 mil reais por mês. Quando assumiu a CBF, Rodrigues deu belos reajustes nos contracheques da cartolagem, tanto que, hoje, um presidente de federação ganha 215 mil reais, com direito a décimo sexto salário.

Além de rechear o contracheque da cartolagem, Rodrigues distribui agrados. Entre os dias 21 e 29 de outubro de 2022, a CBF pagou 23,3 mil reais pela hospedagem de Roberto Góes, presidente da Federação Amapaense de Futebol e também vice-presidente da CBF, e de sua mulher, a advogada Gláucia Costa Oliveira. O casal ficou no Radisson Paulista, um hotel na região dos Jardins, em São Paulo. (Roberto Góes é ex-prefeito de Macapá e ficou preso por dois meses em 2010, acusado de desvio de verbas. Seis anos depois, foi condenado a 2 anos e 8 meses de prisão, pena convertida em prestação de serviços a entidade filantrópica. Quando a CBF bancou sua estada no hotel com a mulher, ele havia acabado de ser eleito deputado estadual pelo União Brasil.)

Um ano e meio depois, em março do ano passado, a Federação Amapaense de Futebol pediu que a CBF pagasse passagens aéreas para Góes, a mulher, a irmã, a filha de 4 anos e a babá, no trecho Macapá-São Paulo, bem como dois quartos duplos no InterContinental, um cinco estrelas nos Jardins. O motivo da viagem familiar não tinha relação com o futebol: a mulher de Góes passaria por cirurgia em um hospital em São Paulo. No pós-cirúrgico, o médico quis que a paciente ficasse na cidade por mais uma semana. Góes pediu a Rodrigues que esticasse a estadia em São Paulo e remarcasse as passagens de volta, tudo à custa da CBF.

Em mensagem de áudio via Whats­App, à qual a piauí teve acesso, Góes pede o favor: “Fala, amigo Ednaldo, tudo bem? Aqui é Roberto. Amigo, eu tô em São Paulo, a Gláucia passou por um novo procedimento… uma cirurgia, e o médico pediu pra gente ficar mais uma semana. Eu vou precisar que você me ajude aí a prorrogar a estadia do hotel e as passagens [de volta], remarcar. Grande abraço! No aguardo.” Rodrigues autorizou o gasto extra. A CBF arcou com, no mínimo, 114 mil reais.

Os exemplos do uso pessoal do dinheiro da entidade são vários. Em abril do ano passado, a CBF realizou uma assembleia geral no Rio de Janeiro, e o presidente da Federação de Futebol do Espírito Santo, Gustavo Vieira, aproveitou para levar a família para um passeio. A CBF bancou os bilhetes aéreos e hospedagem para sua mulher Priscila e seu filho de 10 anos. São pequenos favores que formam uma teia de apoio. Tanto o presidente da federação do Amapá quanto do Espírito Santo votaram em Rodrigues na eleição para presidente da CBF em 2022 e são seus fiéis aliados.

Enquanto isso, falta dinheiro para qualificar os juízes. Quando assumiu a comissão de arbitragem da CBF, em abril de 2022, Wilson Luiz Seneme apresentou o projeto de um centro de treinamento exclusivo para árbitros, nos moldes do que havia na sede da Conmebol, em Assunção, com refeitório, alojamento e campos de futebol, cercados por câmeras de vídeo para a simulação de lances. Seneme também sugeriu a criação de uma escola de arbitragem, para uniformizar a formação técnica dos juízes, cujo aprendizado se dá em cada federação, muitas vezes com metodologias distintas.

Rodrigues aprovou os dois projetos, com custo estimado em quase 60 milhões de reais, em valores de hoje. Enquanto cuidava da construção do centro de treinamento e da escola de arbitragem, Seneme determinou que todos os árbitros da Série A do Campeonato Brasileiro fizessem quinzenalmente um treinamento e avaliação física em um clube privado do Rio de Janeiro. Em agosto do ano passado, alegando restrições orçamentárias, Rodrigues suspendeu todas as viagens aéreas e hospedagens na CBF.

O treinamento dos árbitros então passou a ocorrer apenas por videoconferência. “É como se um clube contratasse um técnico europeu que ficasse treinando os jogadores lá da Europa. Não tem cabimento”, critica um árbitro, ouvido sob anonimato para evitar represálias. O resultado foi catastrófico. No campeonato do ano passado, 110 árbitros foram afastados por falhas técnicas. No ano anterior, foram quarenta. Seneme, que não quis dar entrevista, foi demitido em fevereiro. O centro de treinamento e a escola de arbitragem não saíram do papel.

Ednaldo Rodrigues Gomes, de 71 anos, é a maior autoridade do futebol brasileiro há quase quatro anos. Na década de 1970, ele arriscou uma carreira como lateral esquerdo em Vitória da Conquista, sua terra natal, mas não demorou a trocar os gramados pela cartolagem. Primeiro, entrou na Liga Conquistense de Desportos Terrestres. Depois, ascendeu para a Federação Bahiana de Futebol. Enfim, chegou ao comando da CBF cuja missão é “dirigir e controlar o futebol no território brasileiro”.

“Para uma pessoa negra como eu, de origem humilde, é uma honra ocupar esse espaço”, disse ele à piauí, pouco antes do Carnaval, na ampla sala que ocupa no terceiro andar da sede da CBF, na Barra da Tijuca. Rodrigues tem estatura mediana, está ligeiramente acima do peso e nunca mira o interlocutor nos olhos. Nas últimas semanas de fevereiro, andava aflito com a eleição que se avizinhava. Queria manter-se no comando da CBF por mais um mandato de quatro anos. Tudo o que vinha à tona naqueles dias pré-eleitorais era visto como perseguição da oposição. “Eu assumi para mudar a reputação da instituição, e isso gera ressentimentos do outro lado”, disse.

Segundo Rodrigues, o trem da alegria da última Copa do Mundo é uma dessas perseguições. “É praxe que entidades esportivas façam convites a pessoas relevantes e personalidades para acompanhar grandes eventos”, disse. Sobre os agrados aos cartolas estaduais, afirmou que “as despesas dos familiares dessas pessoas [presidentes de federações] são por elas pessoalmente bancadas”, em que pesem até evidências sonoras, como o áudio do WhatsApp, mostrando o contrário. Sobre suas despesas pessoais pagas pela CBF, garantiu que reembolsou tudo aos cofres da confederação. A piauí pediu comprovantes dos reembolsos. Até o fechamento desta edição, Rodrigues não havia fornecido nenhum documento.

Sua passagem pela CBF tem sido uma sucessão de tumultos. Em 2021, depois da saída do presidente da confederação – Rogério Caboclo, afastado por assediar moral e sexualmente uma funcionária –, Rodrigues foi um dos interinos a assumir o cargo. Ficou até março do ano seguinte, quando se elegeu presidente. Em dezembro de 2023, ele próprio foi afastado por irregularidades no processo eleitoral. Em janeiro de 2024, voltou ao posto por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

O jornalista Juca Kfouri, que acompanha os rolos da CBF há mais de cinco décadas, avalia que Rodrigues opera para obter o respaldo de que desfrutaram seus antecessores. “Antes, o poder estava consolidado nas mãos de Ricardo Teixeira e de Marco Polo Del Nero”, diz, referindo-se a dois dos mais notórios ex-presidentes da confederação, ambos banidos do futebol por corrupção. Rodrigues está chegando lá, embora nos bastidores da CBF haja uma constante disputa de poder – por cartolas, por políticos e até por membros do Judiciário.

E como.

Em janeiro de 2022, Ednaldo Rodrigues obteve uma vitória significativa em Brasília. O Tribunal de Justiça do Rio mandara bloquear 52 milhões de reais das contas da CBF para garantir que a confederação pagasse uma indenização de 21 milhões de reais ao Icasa, clube de Juazeiro do Norte, no Ceará. Assim que soube do bloqueio, Rodrigues tomou duas providências: decidiu recorrer ao STJ e contratou o advogado maranhense Gabriel Soares Amorim de Sousa por 5,7 milhões de reais. Pagou à vista, e nem incluiu no contrato a “cláusula de sucesso”, uma praxe do mercado, que remunera o profissional segundo o resultado da ação.

O advogado teve sucesso fulminante. No dia 9 de janeiro, recorreu ao STJ, anexou o processo de 3,3 mil páginas e, no dia seguinte, o ministro Humberto Martins, então presidente da corte, deu uma liminar suspendendo a execução da dívida da CBF. Foi um caso incomum de rapidez, já que, naquele ano de 2022, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, o tempo médio para julgamento de pedidos de liminar no STJ era de 55 dias. Desde a concessão da liminar, o recurso do caso está parado.

Gabriel de Sousa, o advogado, defende os termos do seu contrato. “Não só está dentro das práticas de mercado de Brasília como estou avaliando pedir aditivo contratual para reajustar/recompor meus honorários haja vista a complexidade da matéria.” O STJ também defende sua rapidez. Em nota da assessoria, disse: “Todos os pedidos de tutela provisória distribuídos à presidência [da corte], independentemente do seu volume ou quantidade de páginas, foram examinados e decididos com a máxima urgência para evitar qualquer prejuízo, perecimento do direito e/ou preservar o patrimônio das partes.”

Dois anos mais tarde, Rodrigues conseguiu uma vitória ainda mais significativa em Brasília. No dia 7 de dezembro de 2023, o Tribunal de Justiça do Rio, de novo ele, havia destituído Rodrigues do cargo por considerar que sua eleição havia sido irregular. Mais uma vez, o dirigente tomou duas providências: recorreu aos tribunais superiores em Brasília e pagou 6,5 milhões de reais dos cofres da CBF para seu braço direito, o advogado Pedro Trengrouse.

As duas notas fiscais emitidas pelo escritório de Trengrouse, às quais a piauí teve acesso, informam que o pagamento se referia a contratos assinados em 10 de julho e 4 de dezembro daquele ano. Ocorre que, em 4 de dezembro, de acordo com o levantamento feito pela piauí, Trengrouse já não defendia a CBF em nenhum processo, razão pela qual não faz sentido que tenha assinado um contrato nesta data. Na verdade, ele já tinha sido substituído por escritórios de advocacia de Brasília. (Indagado sobre a estranheza, Trengrouse respondeu que “todos os pagamentos recebidos pelo escritório são referentes a honorários advocatícios” e não deu detalhes em razão do sigilo profissional.)

Duas semanas depois de receber a bolada, Trengrouse desembarcou em Brasília para ajudar Rodrigues a voltar para o cargo. A situação estava complicada para o cartola. Os escritórios de Brasília – entre os quais, o de Rafael Barroso Fontelles, sobrinho do ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF – já haviam perdido no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no próprio Supremo. Então, no dia 22 de dezembro, quando Trengrouse chegou à capital, Rodrigues depositava suas esperanças numa nova ação interposta no Supremo, desta vez por iniciativa do PCdoB, partido do secretário-­geral da CBF, Alcino Reis Rocha.

­Nestes casos, o regimento interno do Supremo prevê que o presidente da corte encaminhe o novo recurso ao mesmo magistrado que vinha lidando com o assunto – no caso, o ministro André Mendonça. No entanto, Barroso decidiu distribuir o recurso do PCdoB por sorteio. (Procurado para explicar a decisão, Barroso não se manifestou.) O julgamento do recurso do PCdoB caiu nas mãos do ministro Gilmar Mendes. Foi uma dádiva.

Desde agosto de 2023, o ministro tem relação direta com a CBF, por meio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), do qual é sócio e fundador. Na época, a CBF Academy Brasil, braço da entidade que oferece cursos para treinadores, preparadores físicos e gestores esportivos, buscava um parceiro para ajudá-la na administração dos seus cursos. Já havia batido na porta de algumas instituições de ensino até que o advogado Trengrouse reuniu-se com Francisco Schertel  Mendes, diretor geral do IDP e filho do ministro. Entenderam-se bem. Em agosto, o contrato estava assinado. O IDP passava a gerir os cursos e ficava com 84% da receita da CBF Academy, estimada, naquele ano, em 9,2 milhões de reais. O restante, 16%, ficava com a CBF.

Considerando a agitada vida jurídica da CBF, a gestão de Ednaldo Rodrigues, que entrava no seu segundo ano de titularidade, gostou da ideia de ter uma sociedade com um magistrado influente como Gilmar. Naquela altura, além da ação no Tribunal de Justiça do Rio, que meses depois ceifaria Rodrigues do cargo, a CBF vinha sendo bombardeada pela CPI sobre Manipulação de Resultado em Partidas de Futebol, que corria na Câmara, então presidida pelo deputado Arthur Lira.

Gilmar poderia ter se declarado impedido de analisar o recurso do PCdoB, dada sua parceria com a CBF, mas seguiu em frente. No dia 4 de janeiro de 2024, temendo que o Brasil fosse prejudicado na inscrição para as Olimpíadas de Paris em razão do afastamento do presidente da confederação, concedeu uma liminar a favor de Rodrigues, que então voltou à cadeira. Em outubro do ano passado, Gilmar levou sua liminar ao plenário do STF, quando se deu uma troca de chispas cujo subtexto era a suspeita de que falta idoneidade tanto ao Tribunal de Justiça do Rio quanto à CBF.

Ao ler seu voto, Gilmar criticou a decisão do tribunal do Rio em termos mais ou menos enigmáticos: “São coisas extravagantes que acontecem nos processos e que precisam ser anotadas.” Seu colega André Mendonça, que antes tomara uma decisão contrária aos interesses da CBF, tomou a palavra e também criticou as extravagâncias judiciais do Rio, mas Gilmar interveio: “Vossa Excelência entende mais de extravagâncias do que eu.” Aparentemente, era um comentário em tom de camaradagem, mas Mendonça não gostou, fechou a cara e colocou em dúvida a idoneidade da gestão atual da CBF. “Pode ter certeza que não [entendo mais de extravagâncias], ministro Gilmar, porque, quando eu me deparei com esses fatos, a impressão que dá é se a CBF resistiria a uma investigação.”

Gilmar fez ouvidos moucos e continuou lendo o seu voto. Horas depois, a votação foi interrompida por um pedido de vista do ministro Flávio Dino. Em fevereiro passado, no entanto, mesmo com o caso sob análise de Dino, Gilmar aceitou um pedido do PCdoB e homologou um acordo validando a eleição de Rodrigues em 2022. E deu prazo de três dias para que o tribunal do Rio “dê integralmente cumprimento à presente decisão, extinguindo todos os processos pertinentes”. O tribunal assentiu.

A parceria entre o IDP de Gilmar Mendes e a CBF de Ednaldo Rodrigues vai de vento em popa. Até agora, pelo menos seis nomes – vinculados ou indicados pelo instituto – ganharam postos na confederação. Entre eles, estão o chefe de gabinete (Hugo Teixeira), o diretor jurídico (André Mattos) e o diretor financeiro (Valdecir de Souza). A CBF também ganhou uma filial em Brasília, em uma casa no Lago Sul.

Coisas extravagantes aconteceram naqueles 28 dias em que Ednaldo Rodrigues esteve destituído da presidência da CBF. A vacância no cargo deflagrou uma disputa renhida pela sua sucessão. Um dos primeiros a lançar candidatura foi o cartola Flavio Zveiter, que, por essas coincidências que se esparramam pelo mundo do futebol, é filho do desembargador Luiz Zveiter, então o mais influente no conflagrado Tribunal de Justiça do Rio. Zveiter, o filho, escalou Gustavo Feijó, cartola de Alagoas e inimigo de Rodrigues, para seu vice. Assim, passou a contar com o apoio de um aliado de primeira hora de Feijó: o também alagoano Arthur Lira, o presidente da Câmara, onde, lembre-se, aconteceu a CPI da Manipulação do Futebol, que fustigou a gestão de Rodrigues.

No dia 21 de dezembro, com Rodrigues fora do cargo havia treze dias, Feijó convocou uma reunião em Brasília com todos os envolvidos – incluindo o próprio Rodrigues – para discutir a sucessão. A reunião ocorreu no escritório da advogada Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que vem a ser advogada de Arthur Lira. Pois Lira, que não tem nada a ver com a CBF, estava presente à reunião e tentou forjar um acordo. Queria colocar seu candidato, Gustavo Feijó, como cabeça de chapa. Zveiter insistiu na sua posição de titular. O presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, que também fora chamado para a reunião, tampouco aceitou retirar sua candidatura. E, assim, como ninguém cedeu terreno, o acerto “flopou”.

Flopou, mas não por muito tempo. Depois que voltou ao cargo por decisão judicial, Rodrigues recorreu mais uma vez aos cofres da CBF e contratou uma nova advogada para três causas da confederação no STJ. Ela mesma: Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que hoje é ministra do Tribunal Superior Eleitoral. O acerto deu-se com rapidez. Em 12 de janeiro, apenas oito dias depois da volta de Rodrigues à presidência, o contrato já estava assinado. A CBF pagou 10 milhões de reais, dos quais 5 milhões à vista e o restante em dez parcelas, sem a previsão da cláusula de sucesso. Desde então, ninguém – nem Feijó, nem Lira – se manifestaram contra Rodrigues.

Em ritmo paulatino, os adversários de Rodrigues foram desistindo da batalha jurídica contra sua presidência. Em 8 de maio, Feijó caiu fora. Num comunicado de apenas um parágrafo, anunciou, sem explicar o motivo, que estava renunciando à ação. No mesmo dia – o mundo do futebol tem coincidências sem fim –, Feijó recebeu 2,5 milhões de reais da CBF em sua conta. Segundo eles, o pagamento decorre de um acordo no âmbito de ações movidas por Feijó contra a CBF na Justiça de Alagoas. A piauí pediu um comprovante do acordo judicial, pois no processo não há nada que o confirme. Até o fechamento desta edição, não recebeu nenhum documento.

Do ponto de vista jurídico, a CBF é uma associação privada sem fins lucrativos. Como não é uma empresa privada convencional, não presta contas para acionistas ou sócios. Como também não é um órgão público e tampouco recebe verba pública, não está sob fiscalização constante do Ministério Público ou do Tribunal de Contas da União. No caso da CBF, a fiscalização desses órgãos é reativa. Ou seja: só entra em campo quando alguém apresenta alguma denúncia.

“É uma grande contradição”, diz Vitor Rhein Schirato, professor de direito administrativo da Universidade de São Paulo (USP). “Porque, ao mesmo tempo em que é autogerida e não presta contas a ninguém, a CBF controla uma atividade de notório interesse social.” Para ele, o Ministério Público poderia ser mais proativo. Em tese, desvios de dinheiro para fins pessoais e pagamentos superfaturados podem caracterizar apropriação indébita ou mesmo estelionato.

Além de tudo, a CBF é bilionária. Em 2023, último ano de balanço disponível, sua receita líquida passou de 1 bilhão de reais. E vai aumentar substancialmente em 2027, quando entrará em vigor o novo contrato de patrocínio da Nike, de 100 milhões de dólares fixos por ano, ante 35 milhões do acordo atual. Outra grande fonte de renda, tão volumosa quanto os patrocínios, vem dos direitos de transmissão dos jogos. Assim, sem vigilância constante dos órgãos públicos, nem de investidores privados, e com uma montanha de dinheiro em caixa, a CBF tem sido um alvo cobiçado por interessados e interesseiros.

Nem sempre foi assim. Na década de 1980, a maior parte da receita da CBF era verba pública, proveniente das loterias da Caixa. Mas faltava dinheiro para quase tudo, até para organizar o Campeonato Brasileiro. (Em 1987, na penúria, a entidade inventou uma tal de Copa União.) Em 1989, porém, Ricardo Teixeira assumiu o comando da CBF – e mudou tudo. Seguindo a cartilha do seu sogro, João Havelange, então presidente da Fifa, Teixeira turbinou as receitas da confederação com o dinheiro do emergente marketing esportivo, em parceria com a empresa Traffic, do empresário J. Hawilla. Também abriu mão dos recursos públicos e, assim, a CBF deixou de ser fiscalizada pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas.

Foi o começo da farra. A CBF tornou-se uma entidade rica e corrupta. Em 2012, depois de um longo reinado, Teixeira deixou a presidência, a bordo de sucessivas denúncias de malversação de recursos em conluio com a Traffic. Em seu lugar, entraram José Maria Marin e, em seguida, Marco Polo Del Nero. A turma toda – Teixeira, Hawilla, Marin e Del Nero – logo se tornou alvo de uma investigação internacional do FBI sobre corrupção no futebol. Dançaram todos. Hawilla virou delator para escapar da cadeia e morreu em 2018. Marin pegou cinco anos. Teixeira e Del Nero escaparam da cana, mas foram banidos – para sempre – do futebol.

Ednaldo Rodrigues chegou nesse ambiente, depois de duas gestões sem brilho. Primeiro, a de Antônio Carlos Nunes de Lima, conhecido como “coronel Nunes”, um militar que conseguiu a proeza de apoiar a ditadura e, na democracia, obter uma indenização como “vítima de ato de exceção” dessa mesma ditadura. Segundo, a de Rogério Caboclo, o ceifado pela denúncia de assédio. Em 2021, quando assumiu como interino, Rodrigues ganhou o voto unânime dos oito vice-presidentes da CBF. Em 2022, foi eleito titular com 65 dos 67 votos válidos.

Com sua vitória, prometeu integridade. “Quando nós assumimos interinamente, a entidade era uma embarcação numa tempestade. Tive que segurar no leme. Agora, a partir da democracia aqui, quero corrigir o rumo”, disse. Em seguida, explicou o que queria dizer por novo rumo. “É fazer o melhor, o que é legal, e expurgar toda e qualquer imoralidade que já aconteceu.” A promessa se pôs à prova logo nos primeiros dias.

Nem bem assumiu, entregou o setor de transportes da CBF ao motorista Anderson Castro de Souza, que lhe prestava serviços particulares desde a época em que era um dos oito vice-presidentes da confederação. A empresa de Anderson Souza tinha capital social de 1 real e sede numa casa modesta no bairro de Brás de Pina, na Zona Norte do Rio. Em um único dia de março de 2022, o motorista transportou 36 cartolas dos aeroportos – uns do Galeão, outros do Santos Dumont – até a sede da CBF, na Barra da Tijuca. Cobrou 158 mil reais. (Se, no trajeto mais longo, do Galeão à Barra, a CBF tivesse colocado cada cartola num Uber Black individual, o modelo mais caro, teria desembolsado 11 mil reais, ida e volta.)

Três meses depois, o motorista tratou de levar um amigo para a CBF, o inspetor Carlos Eduardo Chazan, da Polícia Civil, cuja empresa – criada havia quatro meses – passou a prestar “serviços de suporte e consultoria em proteção pessoal” para a entidade. Pelo contrato, Chazan cuida da segurança dos funcionários e do prédio da CBF, um edifício de seis pisos. Em apenas três meses de 2023 – maio, julho e setembro, de acordo com planilhas acessadas pela piauí –, Chazan recebeu mais de 200 mil reais por mês. (No mercado, um serviço semelhante para um cliente de dimensões parecidas sai por 80 mil reais.)

Além da sangria de recursos, os 22 funcionários e ex-funcionários da CBF ouvidos pela piauí contam que Rodrigues centraliza todas as decisões, sem dar autonomia às diretorias. A área financeira já teve dificuldades de fazer os pagamentos mais comezinhos, como o conserto do controle remoto da tevê em que o técnico da Seleção, Dorival Júnior, assiste às partidas de futebol. No ano passado, o pessoal do financeiro atrasou o pagamento do serviço por quase duas semanas até receber autorização de Rodrigues. O melhor controle do mercado, novo em folha, não custa 150 reais.

O atraso poderia até ser resultado de um excesso de zelo, mas uma ex-funcionária, contratada na gestão de Rodrigues, conta que se deparava com uma baderna administrativa: contratos espalhados pelas gavetas de várias diretorias e ordens de pagamento sem registros formais. “Fiquei com a impressão de que a desorganização era proposital”, disse. Outro dado da desordem: apesar da receita bilionária, a CBF responde a 43 protestos em cartório por dívidas, que somam 2,6 milhões de reais. Rodrigues é formado em ciências contábeis.

A arquiteta Luísa Xavier da Silveira Rosa ficou entusiasmada ao receber o convite da CBF, ainda na gestão de Rogério Caboclo, em 2020, para cuidar da construção de catorze centros de treinamento pelo Brasil, obras que faziam parte do projeto da Copa do Mundo de 2014. Especializada em arenas esportivas, Rosa participou da equipe que projetara os estádios no Brasil naquela Copa. Aceitou o desafio e, com parte da verba de 100 milhões de dólares enviada pela Fifa, comprou os terrenos e iniciou as obras.

Quando Rosa recebeu um convite da Fifa para trabalhar na Copa do Catar, Rodrigues, que já estava empossado, não aceitou seu pedido de demissão. Nomeou-a como diretora de patrimônio da CBF, com salário de 30 mil reais. (O diretor anterior, segundo ela, recebia 92 mil.) Além das obras dos centros de treinamento, a arquiteta passava a ser responsável também pela sede da CBF e pela Granja Comary, em Teresópolis, onde a Seleção treina. Rosa era a primeira mulher a assumir uma diretoria da CBF. “É muito importante para todos verem que não interessa o sexo, o que importa é o trabalho que você executa”, disse ela ao GE, portal do Grupo Globo.

Foi o começo do seu calvário. Da porta para dentro, a cbf mostrou-se um ambiente hostil às mulheres. Rosa testemunhou a contratação de prostitutas para atender convidados em eventos da cbf e ouvia “todo tipo de comentário misógino”. Em mensagens de WhatsApp, recebia elogios insinuantes de Arnoldo de Oliveira Nazareth Filho, ligado à Federação Amazonense de Futebol e uma das tantas eminências pardas da cbf, e de Rodrigo Paiva, então diretor de comunicação da entidade. Além disso, ela vivia recebendo “convites indesejados” para almoços e jantares.

As descrições do parágrafo acima constam da ação trabalhista que Rosa moveu contra a CBF, de onde saiu em julho de 2023. Em nota à imprensa divulgada no fim do ano passado, Paiva rebateu a acusação. “Minha trajetória profissional sempre foi marcada por incentivos à desconstrução da cultura do assédio presente no país, a fim de que as mulheres possam desfrutar de um ambiente de trabalho digno, igualitário e livre de discriminações.” Nazareth Filho não se manifestou publicamente. A piauí não conseguiu localizá-lo.

A advogada Cyntia Sussekind Rocha, que assina a ação trabalhista de Rosa, diz que sua cliente não demorou a “perceber que a diretoria que lhe foi dada, em verdade, era apenas uma grande jogada de marketing, pois passou a sofrer várias retaliações, esvaziamento de atribuições e todo tipo de humilhação”. O primeiro esvaziamento aconteceu quando a arquiteta começou a se inteirar dos contratos de manutenção da Granja Comary. Rodrigues logo decidiu que só Nazareth Filho tomaria conta do assunto. Em seguida, o cartola parou de liberar os pagamentos para as obras sob supervisão de Rosa e começou a demitir funcionários sem comunicá-la. (Até hoje, nenhum dos catorze centros de treinamento foi concluído.)

No fim de 2022, Rosa abriu uma concorrência para reformar o telhado e as varandas do quarto andar da CBF, que estavam com infiltração. Nem isso conseguiu. Cinco empresas fizeram proposta, mas Rodrigues achou que todas cobravam preços excessivos. Contratou outra empresa, a MS Engenharia e Manutenção Predial, que cobrava um valor muito inferior. Deu tudo errado. A MS não fez o projeto executivo da obra, não especificou os preços dos materiais e, depois do Carnaval de 2023, sua primeira intervenção – o teto do auditório – veio abaixo devido a falhas na obra. Rosa queria cancelar o contrato com a MS. Rodrigues não lhe deu ouvidos.

Ainda no início de 2023, ao contratar uma vistoria no sistema anti-incêndio do prédio da CBF, a arquiteta fez uma descoberta alarmante: achou uma câmera com captação de áudio escondida sob um detector de fumaça no restaurante do edifício. Ao investigar o caso, Rosa soube que as imagens e áudios eram armazenados em uma central situada em uma saleta contígua ao gabinete de Rodrigues, à qual somente ele tinha acesso.

A arquiteta também descobriu uma conversa de WhatsApp entre Ricardo Lima, cunhado de Rodrigues e atual presidente da Federação Bahiana de Futebol, e um funcionário do setor de tecnologia da informação da CBF. Na conversa, o funcionário pergunta:

– Câmeras escondidas no restaurante. Envia para o setor de compras? Boa tarde!

– Boa tarde! Perfeito. Envia, sim – respondeu Ricardo Lima.

A notícia de que os funcionários estavam sendo espionados caiu como uma bomba. Diretores passaram a se reunir com tevês em volume alto com receio de estarem sendo ouvidos. Um funcionário contratado na época (que continua no emprego até hoje) disse à piauí que, ao receber as boas-vindas, um dos novos colegas de trabalho lhe entregou um bilhete. Dizia: “Cuidado com o que você fala, tem grampo por toda a parte aqui.” Desde então, os funcionários evitam almoçar no restaurante da CBF. “Chamamos aquilo de Coreia do Norte”, resume um funcionário, que falou à piauí sob anonimato para evitar represálias funcionais. Procurado, Ricardo Lima não se manifestou.

No dia 24 de maio, já em tratamento psicológico e com sintoma da síndrome de burnout, Rosa chegou ao limite e denunciou o que se passava à Comissão de Ética da CBF. Em 4 de julho, foi chamada para uma reunião com o então diretor jurídico (Gamil Föppel), o diretor de compliance (Hélio Menezes Júnior) e o secretário-geral (Alcino Reis Rocha). Saiu da reunião demitida, sob a acusação de ter vazado para a imprensa o conteúdo da denúncia que fez à Comissão de Ética.

Na ação judicial contra a CBF, Rosa negou qualquer vazamento, acusou Rodrigo Paiva e Nazareth Filho de assédio sexual, e Rodrigues, de assédio moral. Em agosto passado, a Justiça lhe deu ganho de causa e condenou a entidade a indenizá-la em 60 mil reais. A CBF está recorrendo. Em retaliação, Rodrigues fez uma queixa-crime contra a arquiteta e a advogada, acusando-as de difamá-lo. As duas foram absolvidas. Gamil Föppel, o diretor jurídico, também acusou Rosa de difamação. O processo está em curso.

O caso de Rosa teve impacto no ambiente de trabalho da CBF, que emprega cerca de quatrocentos funcionários, dos quais, estima-se, em torno de 50% são mulheres. Uma pesquisa interna, realizada no fim de 2023, apontou que mais da metade dos funcionários entende que “o ambiente não é seguro e livre, existindo medo por parte das pessoas de falar mais sobre situações, inclusive medo de retaliação ou descrença no sistema” e que “não faria reclamação ou denúncia sobre essas situações nos canais atualmente existentes na entidade”.

Além disso, 30% dos entrevistados disseram já terem sido vítimas de discriminação, assédio ou violência psicológica. Outro dado que reforça o ambiente conflagrado é o aumento de ações trabalhistas. Na gestão de Rodrigues, a CBF foi acionada 104 vezes na Justiça do Trabalho, sem contar as ações que tramitam em sigilo. Nos quatro anos anteriores, também excluindo os processos sigilosos, foram 84 ações, ou 24% a menos. Na estimativa de funcionários da CBF, a gestão de Rodrigues já demitiu cerca de duzentos trabalhadores – em torno de metade da equipe.

Em dezembro do ano passado, o ex-atacante Ronaldo Nazário, o Fenômeno, anunciou sua candidatura à presidência da CBF. Em entrevista ao Jornal Nacional, da Globo, disse: “Meu objetivo é fazer com que a CBF seja a empresa mais amada do Brasil.” Não fez críticas explícitas à gestão de Rodrigues, mas disse que sua missão, caso fosse eleito, seria “resgatar o prestígio do futebol brasileiro”. (Na Copa de 2026, o Brasil completará 24 anos sem conquistar um título mundial.)

Naquele mesmo mês, Ronaldo partiu em busca de apoio. Em conversa com o deputado Aécio Neves, torcedor do Cruzeiro, pediu ajuda para encontrar-se com o ministro Gilmar Mendes. Deu certo. Gilmar e sua mulher, a advogada Guiomar Feitosa Mendes, ofereceram um jantar em sua casa em Brasília. Além de Ronaldo e seu assessor Victor Rios, estavam o próprio Aécio e o filho do casal anfitrião, Francisco Schertel Mendes, que selou a parceria entre o IDP e a CBF Academy.

Ronaldo queria a bênção da família Mendes para concorrer ao cargo, mas saiu do jantar decepcionado. O clã deu sinais de estar contente com a gestão de Rodrigues. Segundo um dos presentes no jantar, que falou com a piauí em reserva, Francisco Mendes fez um comentário positivo sobre Rodrigues em dado momento: “Ele é ponta firme”, disse.

A candidatura de Ronaldo não resistiu nem quatro meses. No dia 12 de março, sem o apoio dos Mendes e sem respaldo dos cartolas das federações estaduais, o jogador anunciou sua desistência de concorrer. “As federações se recusaram a me receber em suas casas, sob o argumento de satisfação com a atual gestão e apoio à reeleição. Não pude apresentar meu projeto, levar minhas ideias e ouvi-­las como gostaria. Não houve qualquer abertura para o diálogo”, disse ele, em nota nas redes sociais.

Faz sentido. Rodrigues nunca deixou de cortejar as federações, que desde 2017 ganharam um peso eleitoral extraordinário. Na eleição para o comando da confederação, o voto de um cartola estadual tem peso três. Já o voto de um clube da Série A tem peso dois, e da Série B, peso um. Como são 27 federações (81 votos no total), vinte equipes da Série A (40 votos) e vinte da Série B (20 votos), um candidato pode chegar à presidência da CBF sem ter o apoio de nenhum clube das duas séries – e ainda dar-se ao luxo de dispensar o apoio de seis federações.

Na sua campanha reeleitoral, Rodrigues aplicou o truque das velhas raposas da política. Prometeu as oito vagas de vice-presidente para duas dezenas de cartolas estaduais. Depois, comunicou quem teria de ficar fora da chapa, mas só o fez na última hora, evitando que tivessem tempo de articular uma chapa de oposição. Sozinho no páreo, convocou eleição para o dia 24 de março, uma segunda-feira. Sempre receosos da pressão de suas federações, os clubes, a essa altura, não tinham motivo para votar em branco. Só provocariam a animosidade de Rodrigues. Até o americano John Textor, dono do Botafogo, que em 2023 pediu a cabeça do presidente da CBF insinuando suspeitas de corrupção, agora lhe ofereceu apoio.

Resultado: Ednaldo Rodrigues Gomes ganhou de lavada. Levou o voto de todas as federações e de todos os clubes. “O nosso legado é sempre primar pela cidadania, pela transparência, pela lisura e, acima de tudo, fazer com que o futebol brasileiro seja cada vez mais forte”, disse num discurso breve. Foi aplaudidíssimo. No dia seguinte, estava em Buenos Aires, onde viu o Brasil sofrer uma goleada histórica da Argentina: 4 a 1.

Allan de Abreu
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Breque nacional


Entregadores convocam breque nacional e têm iFood como alvo principal: ‘Sem reajuste, sem entrega’
A paralisação será nos dias 31 de março e 1º de abril; segundo organizadores, movimento acontece em 18 estados
Gabriela Moncau, Brasil de Fato 24 mar 2025

Um breque nacional está sendo convocado por entregadores de todas as regiões do país para os dias 31 de março e 1º de abril. A greve pretende atingir os principais aplicativos de delivery, como Uber Flash e 99 Entrega, mas tem como alvo central o iFood, hegemônico no mercado.

A mobilização é organizada em grupos de Whatsapp e divulgada por uma campanha nas redes sociais, em páginas como @brequenacionaldosapps. De acordo com os organizadores, ações estão confirmadas em 40 cidades de 18 estados. Entre elas estão Maceió (AL), Manaus (AM), Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), João Pessoa (PB), Natal (RN), Recife (PE), Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC), Cuiabá (MT), São Luís (MA), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP).

 
Trabalhadores reivindicam que a taxa mínima por entrega seja de R$ 10 - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
 

Trabalhadores de apps como iFood aumentaram quase 50% no Brasil 

A paralisação tem quatro demandas centrais: a taxa mínima de R$ 10 por corrida; o aumento da remuneração de R$ 1,50 para R$ 2,50 a cada quilômetro rodado; o limite de um raio de 3 quilômetros para entregas feitas em bicicleta; e o pagamento integral por corrida mesmo quando pedidos são agrupados na mesma rota.

ENTREGADORES SE ORGANIZAM E FAZEM GREVE CONTRA APLICATIVOS- vídeo

Em vídeo de convocação que circula pelas redes sociais, imagens de trabalhadores e fotos de mobilizações são acompanhadas de uma narração com voz feminina e a identidade visual do breque, que inverte o logo do iFood para fazer uma cara triste.  “Três anos sem reajuste na taxa mínima. Enquanto isso, o combustível disparou, a manutenção da moto está um absurdo, peça de bicicleta está cada vez mais cara e até quem entrega de carro sente no bolso. Como mantém o veículo rodando? Como bota comida na mesa? A gente exige o mínimo de dignidade”, diz o vídeo, ao afirmar que a remuneração de R$ 10 por entrega não seria um “aumento”, mas a “reposição do que a inflação comeu”.
“Sem isso, não tem como seguir. Não dá para pedalar, rodar ou dirigir de graça enquanto empresas lucram bilhões”, segue o vídeo de divulgação. “E a pergunta que não quer calar: se fomos essenciais na pandemia, por que seguimos invisíveis? Se carregamos comida, remédios, mercado, se facilitamos a vida de milhões de pessoas, por que somos explorados dessa forma?”, questiona a narração: “Mas agora chega, o breque está marcado”. 

Jr. Freitas, um dos fundadores da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (Anea), participa da organização do breque na capital paulista, onde um ato está sendo convocado no dia 31 de março às 10h em frente ao estádio do Pacaembu. A ideia é que, em motociata, os trabalhadores se desloquem até a sede do iFood, em Osasco (SP).  “O nosso objetivo é, primeiramente, mostrar a nossa indignação com a exploração feita pelos aplicativos. E por que o iFood? A gente entende que a empresa tem mais de 80% do monopólio do mercado”, explica Freitas. 

“Parar um ou dois dias, a gente não consegue dar um prejuízo enorme para a empresa, mas é importante alertar a sociedade que somos uma classe que já vem sofrendo há muito tempo”, defende o entregador.
Mortes decorrentes da precarização.

Apenas na capital paulista, segundo a prefeitura, as mortes de motociclistas aumentaram 20% entre 2023 e 2024. Só no ano passado foram 483 óbitos. Para Jr. Freitas, a estatística é “fruto da precarização”. A baixa remuneração, contra a qual o breque se organiza, acarreta, por exemplo, na necessidade de correr e de trabalhar sob exaustão, pontua.
“A gente tem que trabalhar 14 horas para atingir o objetivo que tem. E quanto mais precária fica a taxa, mais a gente tem que trabalhar, mais exposto e em vulnerabilidade a gente fica”, argumenta Freitas.
Na avaliação do entregador, essa será “uma das maiores paralisações” que a categoria já conseguiu organizar. “Desta vez a gente vai firme mostrar pra sociedade, para o poder público, que vem ignorando a nossa situação. Eles sabem do problema, mas não têm interesse em solucionar o problema”, diz Jr. Freitas.

A reportagem entrou em contato com iFood, que afirmou se manifestar apenas por meio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Abomitec), entidade que reúne empresas de tecnologia. Esta, por sua vez, informou que  a renda média dos entregadores “cresceu 5% acima da inflação entre 2023 e 2024”.
“As empresas associadas da Amobitec apoiam a regulação do trabalho intermediado por plataformas digitais, visando a garantia de proteção social dos trabalhadores e segurança jurídica das atividades”, declarou a Associação.
No vídeo de convocatória, os organizadores da greve afirmam que a data não foi escolhida ao acaso: “Primeiro de abril, o dia da mentira, vai ser o dia de desmascarar as mentiras dos aplicativos. Se não tem reajuste, não tem entrega. Agora é luta”.

Editado por: Thalita Pires

terça-feira, 1 de abril de 2025

Filmes parte 50

Jane Eyre, 1943, Robert Stevenson

O Carteiro e o Poeta, Il postino, 1994, Michael Radford&Massimo Troisi

Le plaisir, 1952, Max Ophüls

Sem chão, No other land, 2024, Yuval Abraham&Basel Adra&Hamdan Ballal&Rachel Szor

Araya, 1959, Margot Benacerraf

O fugitivo de Santa Marta, The Lawless, 1950, Joseph Losey

A festa de Babette, Babettes gæstebud, 1987, Gabriel Axel

Festim Diabólico, Rope, 1948, Alfred Hitchcock

Adolescência, Adolescence, Minissérie TV, 2025, Stephen Graham & Jack Thorne

A Thousand Blows, Série de TV, 2024, Steven Knight

The White Lotus, S03, Série de TV, 2021–, Mike White

O segredo da porta fechada, Secret Beyond the Door, 1947, Fritz Lang

No turbilhão da metrópole, Street Scene, 1931, King Vidor

DNA do Crime, Série de TV 2023, Criação: Heitor Dhalia & Leonardo Levis


02/03/25

Jane Eyre, 1943, Robert Stevenson

No iutubi aqui 

Todas las adaptaciones de Jane Eyre a la pantalla grande, por Paola R. Morlote / marzo 22, 2022

Review by Catherine Stebbins ★ 6 (tradução livre)

Em um determinado momento, assistir à adaptação de Jane Eyre, de 1943, torna-se algo quase doloroso. Essa certamente deve ser uma das piores adaptações de um romance clássico no vasto mundo da interpretação cinematográfica. Passa de um evento para outro, pulando imperdoavelmente alguns (veja o incidente formativo da Sala Vermelha), estragando outros (nem chegamos a ver Bertha? Sério?) e falhando grosseiramente em transmitir ou entender o material de qualquer forma que serviria até mesmo para um filme medíocre. Joan Fontaine traz seu olhar permanentemente doloroso para Jane, onde a caracterização teme pisar. Orson Welles parece estar falando sozinho o tempo todo. Ele age para si mesmo, como se não soubesse que talvez, apenas talvez, ele queira considerar a possibilidade de fazer uma cena com as outras pessoas na sala. Assim, o romance central, o arco de Jane e a conexão entre a idade adulta emergente dela e as experiências da infância não são registrados. A reestruturação do propósito e do papel de Rivers faz pouco sentido sob praticamente todos os ângulos. Os cenários e a fotografia nos ajudam, evocando uma sensibilidade gótica efetivamente desconhecida. A última cena é um tour de force de hilaridade não intencional. Welles, sempre tropeçando em suas próprias ruínas, transforma-se momentaneamente em Ron Burgundy, apenas para depois dar o beijo mais agressivamente constrangedor da era do estúdio. Letterboxd 

O6/03/25

O Carteiro e o Poeta, Il postino, 1994, Michael Radford&Massimo Troisi

No iutubi aqui

“O Carteiro e o Poeta”, de Michael Radford, por Octavio Caruso -25 de maio de 2015

A emoção em “O Carteiro e o Poeta” (Il Postino– 1994), dirigido por Michael Radford, já nasce nos primeiros segundos, com a linda trilha sonora de Luis Bacalov, que consegue transmitir um profundo sentimento de nostalgia, como que a sociedade gritando por ajuda, a necessidade do retorno de valores já tidos como antiquados e dispensáveis.

O homem humilde, vivido por Massimo Troisi, emocionalmente inseguro, que, por hábito, aprendeu a se minimizar, observando ternamente a foto amarelada, enquanto o dia lentamente desperta.

Ele tenta estabelecer contato com o pai, um pescador embrutecido pela vida, porém, o velho não escuta suas desajeitadas palavras, preocupado mais com o mecânico saciar de sua fome. Ao conhecer o poeta Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, em um cinejornal, o homem toca brevemente aquele mundo desconhecido, totalmente diferente de sua simples comunidade pesqueira.

A escuridão da sala de cinema potencializa a mágica desse primeiro encontro, posicionando o homem, em sua pequenez, diante do gigante visitante estrangeiro na tela.

Ele tenta conseguir um emprego como carteiro, porém, num toque sutil, a câmera se foca na exigência de uma bicicleta. A sua insegurança é tanta, que, sem pensar duas vezes, ele adentra o local com a bicicleta, como que tentando garantir sua contratação, antes de precisar abrir a boca.

Vale notar a postura dele ao avisar ao empregador sua fragilidade intelectual, afirmando que sabe, de forma lenta, ler e escrever, uma mentira que ele é incapaz de disfarçar, quando reage de forma defensiva ao escutar que irá trabalhar apenas para uma pessoa, já que todos na região são analfabetos.

Em sua visão, Neruda é o poeta amado pelas mulheres, aquele ser superior idealizado na sala escura. A remuneração é pouca, o trabalho é cansativo, devido ao número expressivo de cartas que ele carregará, ele descobre até que o poeta é um comunista, conotação política que não entende, mas nada disso importa para o carteiro, que, com um emprego, passa a existir novamente para seu pai. Ele é aconselhado a trocar o mínimo de palavras possível com o estrangeiro, sendo submisso e prestativo, evitando incomodar.

No primeiro encontro, ele se encanta com o carinho do poeta com sua esposa, gesto que corrobora sua imagem idealizada. Ele sorri como uma criança que flagra o beijo dos pais. A gorjeta era desnecessária, ele já tinha tido satisfeito o necessário, a confirmação de sua crença. Em sua mente, como todos que idealizam, ele cria até a ilusão de uma conversação, já que afirma ao empregador que o poeta fala de forma diferente, quando, na realidade, ele havia apenas agradecido pela entrega das cartas.

No segundo encontro, após efetivamente flagrar o beijo do casal, ele toma um pouco de coragem e tenta, de forma desajeitada, estreitar a relação, colocando-se à disposição dele para qualquer trabalho extra.

O carteiro precisa aprender aquele truque de mágica, aquela facilidade de encantar tantas mulheres. Com mais uma frase trocada, ele já expande sua ilusão, afirmando que o poeta também é um exímio contador de piadas. Sem cartas, ele vai até o poeta para conseguir uma dedicatória em um livro, uma prova de que ele é seu amigo, um tesouro que ele pretende utilizar com as mulheres, porém, para sua tristeza, seu nome não consta na breve dedicatória.

O carteiro se esforça, tentando compreender o poder sedutor por trás daquelas linhas, letras pequeninas, exercitando timidamente metáforas com o poeta, ainda que não saiba o que significa a palavra, como que mostrando a ele que poderiam ser amigos.

Ele não compreende a razão de algo tão simples possuir um nome tão complicado. E, numa cena bonita em simbolismo, pela primeira vez, o enquadramento mostra o poeta se colocando em posição de submissão, sentado, diante do simples carteiro, que, de pé, tenta impressioná-lo com o resultado de seu estudo dedicado. A poesia explicada torna-se banal, ele aprende que a mágica perde o fascínio quando o truque é revelado.

Os dois homens, tão diferentes em teoria, acabam se descobrindo, na prática, iguais. Não há mestre e aprendiz, ambos aprendem. O efeito deste encontro, um evento transformador na vida dos dois, uma amizade nascida da improbabilidade, fortalecida com o amor pela palavra escrita.

O carteiro deseja contar para o pai sua felicidade, mas, com sua sensibilidade que está sendo apurada, percebe que o velho bronco não irá compreender sua conquista, ou compartilhar seu orgulho, então, triste, ele silencia. A cultura, único elemento que verdadeiramente modifica o homem, já havia começado a libertá-lo daquela realidade simplória.

O emocionante terceiro ato, as circunstâncias de bastidores, com Troisi cada vez mais fragilizado, o adiamento de uma cirurgia cardíaca que poderia ter garantido mais alguns anos de vida, uma escolha apaixonada pela finalização da obra, decisão que evidencia a importância do filme na vida do querido ator italiano.

O seu falecimento, por ataque cardíaco fulminante, no dia seguinte ao término, trouxe lágrimas aos rostos de cinéfilos do mundo todo. O seu legado é eterno, assim como a influência do poeta na vida do personagem. O filho, que ele não chega a conhecer, carrega o nome do estrangeiro, que, a despeito de todos os avisos do empregador, acabou se encantando pela amizade pura e sincera do tímido carteiro.

O seu poema, criação que o ídolo nunca irá conhecer, perdido na revolta dos manifestantes, foi o atestado de independência e segurança emocional. A beleza da gratidão.

Massimo Troisi (1953-1994)

Troisi literalmente deu sua vida para fazer Il Postino. Ele estava ciente de sua condição cardíaca e foi informado de que precisava de tratamento, mas acreditava que a realização deste filme era mais importante. Ele morreu 12 horas depois que a câmera parou de rodar ...  

Pablo Neruda 

07/03/25

Le plaisir, 1952, Max Ophüls

Roteiro:  &  & 

Guy de Maupassant (1850-1893) - (303 créditos)  

Review by theriverjordan ★★★★½ 11 (tradução livre)

“Le Plaisir” é um filme tão belo que parece deslizar num caminho de elegância através de um salão de baile - deixando um rasto de jóias no seu caminho. 

A primeira entrada do realizador Max Ophüls no campo do filme de antologia está dividida em três partes. Cada uma delas centra-se em mulheres que exercem o seu charme para o prazer dos homens. A maior parte do filme é dedicada à história do meio, em que as senhoras de um bordel parisiense viajam para o campo para assistir a uma primeira comunhão. 

Ophüls passa grande parte de “Le Plaisir” a misturar o sagrado e o profano. Longe de ser uma combinação explosiva, os dois opostos entorpecem-se mutuamente até ao ponto de se tornarem vivíveis. Não há verdade na beleza pura e não há felicidade na santidade pura. O ponto onde se encontram pode estar longe do êxtase, mas é o mais próximo da satisfação terrena a que podemos aspirar. 

A eloquência de Ophüls com as suas gruas flutuantes e planos em dolly é agora lendária. “Le Plaisir” tem vários movimentos da sua elegante ótica que são agora matéria de mito, incluindo um plano do segundo ato que percorre as várias salas e histórias de um bordel sem nunca entrar lá dentro. 

Entre os muitos realizadores que consideram Ophüls como uma grande influência está Stanley Kubrick, que uma vez citou “Le Plaisir” como o seu filme favorito. A linhagem técnica entre os cineastas é clara, mas mais importante é a forma como se traduz numa transferência emocional partilhada, particularmente em “Barry Lyndon” de Kubrick. A delicadeza calculada das câmaras de ambos os homens ao olharem para o amor e a beleza - sem nunca se aproximarem deles - impede o espetador de agarrar uma joia que só se desfaria em pó se alguma vez fosse tocada. Letterboxd

08/03/25

Sem chão, No other land, 2024, Yuval Abraham&Basel Adra&Hamdan Ballal&Rachel Szor

Sem Chão', documentário vencedor do Oscar 2025, estreia em 13 de março no Brasil

Filme acompanha situação de Masafer Yatta, um conjunto de vilas localizado na região sul da Cisjordânia ocupado pelo exército de Israel

Da Redação, UOL,  07/03/2025 

Na noite em que o Oscar celebrou o cinema independente, os diretores Basel Adra e Yuval Abraham realizaram um dos discursos mais potentes da premiação. Denunciaram as ações de Israel na Cisjordânia. “Minha esperança para minha filha é que ela não precise viver a mesma vida que vivo agora, sempre temendo a violência dos colonos, as demolições de casas e os deslocamentos forçados que minha comunidade, Masafer Yatta, enfrenta todos os dias sob a ocupação israelense”, contou Adra, que também fez um apelo pelo fim do genocídio do povo palestino. (...)

Yuval também foi contundente em sua fala, pediu o fim da destruição de Gaza, a libertação de reféns israelenses e ressaltou as desigualdades nas condições de vida de cidadãos de Israel e moradores palestinos de regiões ocupadas. “Quando olho para o Basel [Adra], vejo meu irmão, mas somos desiguais. Vivemos em um regime em que eu sou livre sob a lei civil, e Basel está sob leis militares que destroem sua vida e ele não pode controlar”. E ainda propôs um novo caminho para a solução dos conflitos: “Há um caminho diferente, uma solução política sem supremacia étnica, com direitos nacionais para ambos os nossos povos”.

‘Sem Chão’ (‘No Other Land’) vence Oscar de melhor documentário e diretores denunciam genocídio palestino 

Discurso durante a cerimônia do Oscar – Mídia NINJA

‘Sem Chão’ (‘No Other Land’) vence Oscar de melhor documentário e diretores denunciam genocídio palestino

‘Tática de guerrilha’ permitiu que filme sobre limpeza étnica na Cisjordânia, rejeitado por distribuidores nos EUA, disputasse premiação

Por Haroldo Ceravolo Sereza, Opera Mundi, 2 de março de 2025

O documentário Sem Chão (No Other Land) venceu o Oscar 2025 na categoria de Melhor Documentário, levando a questão do genocídio palestino a uma posição de destaque na principal premiação estadunidense de cinema. Dois dos diretores do filme, o palestino Basel Adra e o israelense Yuval Abraham (os outros dois são Rachel Szor e Hamdan Ballal), na entrega do prêmio, discursaram e fizeram uma forte denúncia das ações militares israelenses em Gaza e na Cisjordânia.

“Há cerca de dois meses, me tornei pai, e minha esperança para minha filha é que ela não precise viver a mesma vida que vivo agora — sempre temendo a violência dos colonos, as demolições de casas e os deslocamentos forçados que minha comunidade, Masafer Yatta, enfrenta todos os dias sob a ocupação israelense”, disse Adra.

No Olher Land conta, justamente, a história das dificuldades que Adra enfrenta enquanto documenta a destruição de Masafer Yatta na Cisjordânia ocupada. A história também mostra sua amizade crescente com um segundo diretor do filme, o jornalista israelense Yuval Abraham, que passa, neste processo, a compreender as restrições, a discriminação que Adra enfrenta e a importância da resistência palestina.

O filme já havia conquistado outros importantes prêmios. Foi escolhido o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2024, e Melhor Filme Não-Ficcional do Círculo de Críticos de Cinema de Nova York.

Tática de guerrilha para disputar o Oscar

Para disputar o Oscar, os cineastas tiveram de adotar uma “tática de guerrilha”. Não houve nenhum distribuidor que aceitasse distribuir o filme nos Estados Unidos. Como o Oscar exige que a obra estreie no país para disputar a premiação, os cineastas organizaram uma exibição de uma semana no Lincoln Center, em novembro.

“Sem Chão reflete a dura realidade que temos suportado por décadas”, disse também Adra. “Pedimos ao mundo que tome ações concretas para acabar com essa injustiça e interromper a limpeza étnica do povo palestino”, completou o cineasta palestino.

Yuval Abraham também se manifestou na entrega do prêmio e aludiu a sua relação com Abraham. “Fizemos este filme, palestinos e israelenses, porque juntos nossas vozes são mais fortes. Vemos uns e outros a destruição atroz de Gaza e de seu povo, que deve acabar”. Abraham também pediu a liberação dos israelenses feitos prisioneiros pelas ações da resistência palestina em 7 de outubro de 2023.

Abraham ainda teve tempo de criticar o apoio dos Estados Unidos a Israel. “A política externa deste país está ajudando a bloquear esse caminho [da paz]”, disse, entre aplausos. “Vocês não percebem que estamos interligados? Meu povo só estará verdadeiramente seguro se o povo de Basel for verdadeiramente livre e seguro”, disse, antes de completar: “Não há outro caminho.”

Sem chão, 24/02/2025, Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o documentário, em exibição nos cinemas, dirigido por Basel Adra & Yuval Abraham

Sem chão é um documentário dirigido a quatro mãos sobre a tragédia que se arrasta na Cisjordânia, território ocupado por Israel desde 1967, após a Guerra dos Seis Dias – um palestino ativista, Basel Adra, e um jornalista israelense, Yuval Abraham, foram os realizadores. Também integraram essa corajosa equipe Hamdan Ballal e Rachel Szor, ele palestino e ela israelense. O adjetivo “corajosa” não é força de expressão – é um dado concreto da realidade.

Sem chão foi feito para furar o bloqueio midiático sobre o que se passa com os palestinos na Cisjordânia. O violento ataque do Hamas em outubro de 2023 – e a resposta totalmente desproporcional israelense que se seguiu – catapultaram o conflito na região para um novo e inédito patamar. Entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, entretanto, a distância é maior do que os poucos quilômetros que os separam, em território israelense. Gaza é governada pelo Hamas, Cisjordânia pela Autoridade Palestina.

À luz do controle governamental da coalizão de direita em Israel, que abriga partidos extremistas favoráveis à expulsão e/ou aniquilamento de todos os palestinos nos territórios ocupados por Israel, ninguém sabe o que pode acontecer. A ascensão de Donald Trump, imprevisível e impulsivo, só piora o quadro.

Masafer Yatta – onde foram filmadas a maioria das imagens do filme – é uma região com 19 aldeias no sul da Cisjordânia, perto de Hebron. Em 1980 a área foi denominada “Zona de Tiro 918”, a ser usada pelo exército para treinamento militar – apesar do então Primeiro-Ministro, Ariel Sharon, ter declarado explicitamente que o objetivo seria viabilizar a expulsão dos residentes locais.

Em 2022, depois de longo processo judicial e intimidações de toda ordem, a Suprema Corte israelense autorizou a expulsão dos habitantes de pelo menos 8 aldeias, mas de mil pessoas. O poder judiciário, sob ataque do governo Netanyahu – tal como ocorre em outros regimes autoritários, direita ou esquerda – acabou cedendo às pressões dos colonos e respectivos partidos políticos.

Basel Adra nasceu em 1996: sua primeira lembrança é de soldados israelenses invadindo sua casa e prendendo seu pai. Basel Adra tinha apenas cinco anos – e a partir desse momento todos os episódios violentos que testemunhou foram documentados, fotos e vídeo, para sua, e dos demais, proteção. “Comecei a filmar quando começamos a acabar”, afirma, repetindo as palavras do pai.

Tratores demolindo casas, famílias vivendo em cavernas, manifestações duramente reprimidas e ataques de colonos milicianos – tudo é filmado. Na concepção de Sem chão está presente o impulso do registro como mobilização permanente, da preservação da memória como condição de sobrevivência, literalmente.

Yuval Abraham cruzou com Basel em 2019, quando surgiu a ideia do projeto. Fluente em árabe – que aprendeu com seu avô judeu iemenita – Yuval Abraham tornou-se crítico ferrenho da ocupação à medida em que investigava casos como o de Masafer Yatta. Mas é voz minoritária em Israel, que já foi um país governado por um forte partido de centro-esquerda, o histórico Mapai – hoje Partido Trabalhista, que ocupa apenas quatro das 120 cadeiras do Parlamento.

A solução dos dois Estados para Israel e Palestina, projeto engendrado pela centro-esquerda trabalhista em diálogo com palestinos da OLP – e que era (ou foi) uma possibilidade factível – colapsou com o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, por um fanático religioso.

Basel Adra e Yuval Abraham mais do que dirigem o filme, eles próprios são personagens e partícipes dos eventos que se sucedem. No limite da violência institucionalizada, se estabelece um diálogo entre Yuval e interlocutores palestinos, sobretudo Basel – raio de luz efêmero na paisagem destruída dos vilarejos.

Para se ter uma ideia do clima, a casa da família de Yuval Abraham em Israel foi ameaçada por uma multidão após ele pedir “cessar fogo em Gaza e fim do apartheid e desigualdade na Cisjordânia”, ao receber prêmio no Festival de Berlim, em 2024. Foi acusado de “antissemitismo” por políticos da direita alemã.

A indicação de Sem chão ao Oscar para documentário deve acirrar ainda mais os ânimos. Embora ainda exista percentual significativo da população em Israel contrária às práticas de ocupação – apesar de não se traduzir em peso político efetivo – a polarização, a exemplo de outras paragens, tende a radicalizar-se.

A proposta de Donald Trump de transformar Gaza em uma “Riviera” traz embutida uma noção asséptica de visualidade, que vê o mundo através da Fox News – o “pietismo” do presidente sugere que os palestinos serão “realojados” e vão ter condições melhores de moradia. Gaza, ou a imagem da Faixa de Gaza no imaginário trumpista, ficará limpa, etnicamente limpa.

Do lado palestino, o sofrimento é perene – Basel Adra esforça-se para manter a clarividência. Em entrevista, afirmou: “Espero que este filme seja visto, realmente visto, por muitas pessoas. Isso significaria muito para nós, e esperamos influenciar as pessoas: não apenas para mudar suas mentes, mas para movê-las a agir e nos manter, em suas mentes, vivos”.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência

Sem chão [No other land]

Noruega, 2024, documentário, 95 minutos.

Direção: Basel Adra & Yuval Abraham, Roteiro: Rachel Szor, Elenco: Basel Adra, Yuval Abraham, Hamdan Ballal, Rachel Szor,

13/03/25

Araya, 1959, Margot Benacerraf

Filme disponível aqui 


Análise do filme aqui

O melhor filme já realizado na Venezuela. Conta, num tom ao mesmo tempo documental e lírico, a vida cotidiana em salinas feudais. Foi consagrado pela Fipresci, em Cannes. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, p.36, L&PM, 1993) 

"Araya" (1959). Margot Benacerraf. Poema visual de la sal. Por Francisco Huertas Hernández 

Araya (película) wiki 

14/03/25

O fugitivo de Santa Marta, The Lawless, 1950, Joseph Losey

NOTA SOBRE O FUGITIVO DE SANTA MARTA (Joseph Losey, 1950) por Marc C. Bernard

Se O Fugitivo de Santa Marta é o mais belo dos filmes é porque não há outro que nos sugere um sentimento mais justo da natureza.

Não há, para a mão que desenha, e para o cineasta que olha, outra razão que a de precisar a ordem e a beleza natural das coisas.

Assim, a beleza deve ser radiante. (Vitória! exclamei cheio de admiração.) O fervor que me toma a cada visão de O Fugitivo de Santa Marta é como o sentimento de uma respiração mais confortável, a segurança de um sangue mais puro.

Era como a própria primavera!

A beleza da mise en scène é o desenho mais nítido possível da beleza do modelo. (Sucede que nos outros filmes permaneça apenas a nitidez do desenho enquanto o que nos é mostrado é feio ou falso: é o caso de O Tigre de Bengala, de Fritz Lang.)

Como o amor, a beleza só pode nascer da admiração. Pensando na temeridade de seu discurso, a mente encontra sua força no entusiasmo.

Não existe outro tema que a aquiescência à felicidade. O brio de O Fugitivo de Santa Marta, o calor e a impaciência de sua mise en scène são a graça reservada a essa concretização. Esse tom é o da juventude, irresistível, portanto, semelhante ao ardor de um mergulho matinal.

Uma tal felicidade exige as cores e a luz mais francas. A vibração do ar, a clareza da decupagem darão um brilho encantador às formas de um corpo livre e vivaz. Exemplo: uma árvore é uma árvore, uma garota é uma garota, a garota sobe na árvore (e machuca o joelho).

A proposta de O Fugitivo de Santa Marta é a mais grave, pois trata de estabelecer as relações mais nobres possíveis entre um homem e uma jovem mulher, e se o filme consagra alguns capítulos à violência, ele nos proporciona sobretudo o prazer, a arte de viver e a cortesia.

(Cahiers du Cinéma n° 111, setembro 1960, p. 33. Traduzido por Bruno Andrade)

Review by Bruno Andrade ★★★★½ 2

Entre outubro e novembro de 1999 uma revolução foi iniciada na programação dos canais Telecine, uma revolução que transformou o Telecine 5 (mais tarde Telecine Classic) no canal obrigatório de qualquer rato cinéfilo compulsivo digno do título, uma revolução cujo impacto chega a nós até hoje (o MKO é a descendência direta das programações heroicas do Paulo Perdigão). Em menos de dois meses Perdigão nos bombardeou com exibições de um Losey extremamente (naquela época) raro, semanas Douglas Sirk, Samuel Fuller, Anthony Mann, Max Ophüls, Jacques Becker, Jean Renoir (obras de que apenas havíamos ouvido falar, como os faroestes de Mann para a Universal, os filmes de Sirk produzidos por Albert Zugsmith e Ross Hunter, todo o cinema do Becker, os primeiros filmes coloridos de Renoir, Madame de... e Lola Montès...) e o melhor de tudo, a cereja no bolo, a novidade extraordinária que era naquele momento a exibição dos filmes em Scope no formato letterbox (felizes os que não sabem o que era ver Love is a Many Splendored Thing numa cópia cuja telecinagem mantinha apenas 50% do enquadramento CinemaScope, com as laterais escaneadas de um lado ao outro de maneira tão arbitrária quanto absurda). Mas não vou ficar falando do passado, hoje é do presente que chegam algumas notícias - não que isso importe muito, visto que os dois são a mesma coisa.

Após a exibição de Mr. Klein há poucos dias pelo cineclube Contactos começaram a aparecer nos arredores da Calle Alcalá, próxima do Círculo de Bellas Artes em Madrid, estranhos grafites loseyanos

Me disseram inclusive que Godard, ele mesmo, escreveu uns pequenos versos sobre o ocorrido. Independente de terem sido ou não escritas em função do grafite, essas linhas do Godard são dignas do poema em prosa que o Marc C. Bernard dedicou ao filme do alto do fervor mac-mahoniano com o cinema do Losey (Cahiers nº 111, setembro de 1960, edição obrigatória).

(breve parêntese. Essa cena do filme, uma série de movimentos sinuosos e entrelaçantes em que as personagens de Gail Russell e Macdonald Carey se cruzam algumas vezes sem realmente se encontrarem, um dos momentos mais sensuais, mais bonitos e mais impecavelmente bem filmados do cinema: alguém do nível do Hou levou quase duas décadas para aprender a filmar um composto de matéria visual e sonora tão denso, vibrante e compacto, só obtendo resultados comparáveis à altura de Nan guo zai jian, nan guo e Hai shang hua, enquanto Losey logra essa façanha, e várias outras, no seu segundo longa). E não se esqueçam de comprar o próximo livro do Michel Mourlet assim que sair, fiquem de olho desde já. Letterboxd 

Joseph Losey (wik) 

Joseph Losey (1909-1984) - imdb 

15/03/25

A festa de Babette, Babettes gæstebud, 1987, Gabriel Axel

Review by Jonathan White ★★★★★  10 (tradução livre)

Esta é a terceira ou quarta vez que me sento à mesa com Babette, e cada degustação é mais suntuosa e gratificante. Depois dessa exibição, percebi que Babette merece uma pontuação perfeita.

A história é simples, adorável e gentil. Ela leva seu tempo. É essa falta de pressa que faz você se apaixonar, gradual e naturalmente. O primeiro ato é dedicado exclusivamente à história de fundo, onde somos apresentados aos habitantes de um pequeno e pitoresco vilarejo dinamarquês. A comunidade unida gira em torno de uma pequena seita liderada por um pregador moral e justo. Suas duas filhas, Martine e Filippa, foram batizadas em homenagem a Martinho Lutero e seu amigo Philipp Melanchton, fundadores do protestantismo. A ruptura com o catolicismo é a noção de que as boas ações não compram sua entrada no céu, a graça de Deus é um dom que é dado gratuitamente. Essa noção desvincula os atos de bondade e caridade da recompensa e eleva esses atos porque são dados gratuitamente. Essa piedade também se estende a atos de autossacrifício e à fuga dos prazeres terrenos na busca de um caminho mais elevado.

Martine e Filippa estão encantadoras e atraem os olhares de dois homens que estão visitando a cidade. Um deles é um jovem oficial, Lorens, que está sendo punido com o exílio por causa de jogos de azar e comportamento impróprio; o outro é um astro da ópera no final de sua carreira, Papin, que está desanimado com seu futuro. Ambos se apaixonam, ambos são rejeitados e ambos prometem melhorar a si mesmos.

No segundo ato, os anos se passaram, assim como o pregador. Vemos as solteironas Filippa e Martine realizando ações boas e de caridade e, em geral, cuidando de sua comunidade. Elas dão exemplos, levam uma vida extremamente modesta e preparam alimentos sem sabor. Entra Babette, uma refugiada da Paris contrarrevolucionária. Com uma carta de apresentação de Papin, ela implora às irmãs que lhe deem refúgio, oferecendo-se para ser sua empregada doméstica sem remuneração. É aí que começam as questões interessantes. Martine e Filippa estão divididas. A ideia de uma criada é um prazer terreno que elas não conseguem conciliar, mas seu cristianismo não pode abandonar uma pessoa necessitada. No final, eles acham que a caridade supera seu desconforto com a ideia de uma empregada e acolhem Babette.

O enredo e a história são muito mais extensos do que eu costumo abordar em uma resenha, mas são apenas a configuração da história real e as perguntas e observações reais. A "festa" do título é quando a cidade comemora o 100º aniversário do nascimento de seu pastor. Por um golpe do destino, Babette pode e deseja preparar um jantar para a reunião. Mais uma vez as irmãs ficam divididas. Elas não conseguem se imaginar aceitando tal luxo, mas, ao mesmo tempo, nos quatorze anos em que Babette as serviu, ela não pediu nada. A graciosidade prevalece, mas não sem consternação.

Um aspecto que deixei de mencionar até agora foi o humor. Ele é sutil, como no filme, mas sempre presente, especialmente no último ato, o banquete.

Todos têm atuações fantásticas, tocantes e discretas, especialmente Stephane Audran como Babette, Dodil Kjer como Filippa e Birgitte Federspiel como Martine. A fotografia é austera, bonita e nunca distrai. Se há uma trilha sonora, ela é tão invisível que não a notei. Vejo um crédito de música, mas não consigo me lembrar de tê-la ouvido. Não é preciso dizer que Babette não o manipula emocionalmente com uma partitura, se ela estiver lá.

A mensagem de Babette é simples. Uma vida completa e feliz é abraçar tanto a piedade quanto o prazer.

"A misericórdia e a verdade se encontraram. A justiça e a felicidade se beijarão. O homem, em sua fraqueza e miopia, acredita que precisa fazer escolhas nesta vida. Ele treme diante dos riscos que corre. Nós conhecemos o medo. Mas não. Nossa escolha não tem importância. Chega um momento em que nossos olhos se abrem e percebemos que a misericórdia é infinita. Precisamos apenas aguardá-la com confiança e recebê-la com gratidão. A misericórdia não impõe condições. E eis que tudo o que escolhemos nos foi concedido. E tudo o que rejeitamos também nos foi concedido. Sim, até recebemos de volta o que rejeitamos. Pois a misericórdia e a verdade se encontraram, e a justiça e a bem-aventurança se beijarão".

Uma verdadeira joia que merece completamente sua pequena estátua de ouro. Letterboxd

15/03/25

Festim Diabólico, Rope, 1948, Alfred Hitchcock

Crítica | Festim Diabólico, por Ritter Fan 31 de março de 2020 

Antes que alguém venha ler essa crítica aqui todo pimpão já dizendo que Festim Diabólico é o filme que Alfred Hitchcock filmou em uma plano-sequência só, já vou logo dizendo: não é nada disso. Eu mesmo, quando vi essa obra pela primeira vez há anos, cheguei a achar isso, mas repetidas conferidas e um pouco de estudo revelaram que, apesar de Hitchcock ter procurado nos passar esse efeito (e ele conseguiu, diga-se de passagem), o filme, até por questões técnicas incontornáveis à época, é composto de uma série de planos-sequência longos costurados como se fossem um só. São exatamente 10 desses planos, o maior deles de 9’57” e o mais curto de 4’37”.

E, nesse sentido, é perfeitamente possível afirmar que Festim Diabólico é um laboratório em que Hitchcock resolveu fazer experimentações. Anos depois, o próprio diretor chegou a afirmar que sua experiência “não havia dado certo”, mas, nesse ponto, discordo veementemente do Mestre do Suspense. Ainda que ele tenha que ter sacrificado um pouco da profundidade da narrativa em vista das limitações técnicas que ele se auto-impôs, o resultado é um pequeno, mas eficiente thriller que consegue ter muito mais recheio do que talvez o próprio Hitchcock tenha se dado crédito.

A história, baseada em peça de teatro de 1929 escrita pelo dramaturgo e romancista britânico Patrick Hamilton, é simples, mas macabra: dois amigos matam um terceiro e colocam o corpo em um baú na sala de seu apartamento, que serve de mesa para um jantar ao qual convidam seu professor. O objetivo é provar que é sim possível cometer o “crime perfeito”.

Hitchcock decidiu manter a estrutura de peça de teatro, mas sem fazer teatro filmado, o que potencialmente teria tornado o filme extremamente enfadonho, apesar dos curtos 80 minutos de duração. Com toda a ação se passando quase em tempo real e apenas uma sequência – a de abertura, quando vemos o diretor em uma de suas famosas pontas – passada fora do apartamento de Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger), Hitchcock trabalhou com enorme engenhosidade e com uma câmera inacreditavelmente fluida e movimentada, com close-ups (como no estrangulamento), planos americanos e planos médios, além de travellings quase que exclusivamente de um lado para o outro do apartamento em linha reta. Para conseguir esse feito, Hitchcock trabalhou em sincronia extrema com a equipe técnica para criar um cenário que pudesse ser movimentado durante as filmagens. As paredes, assim, foram montadas em cima de trilhos e era abertas e fechadas na medida do necessário, com ensaios que envolveram não só os atores, mas também os técnicos responsáveis por mexer em toda a estrutura. Além disso, o ciclorama (cenário de fundo) usado em Festim Diabólico foi o maior usado até 1948, além de um dos mais complexos, pois não só envolvia imagens de Nova York, como nuvens, fumaça de chaminé, luzes e iluminação que se modificavam na medida em que o tempo passava. É um divertimento esquecer o resto do filme e só focar nesses aspectos técnicos que, muitas vezes, passam despercebidos.

E Festim Diabólico ainda foi o primeiro filme do diretor em Technicolor, o que, à época, significava câmeras ainda maiores, que tiveram que ser montadas em estruturas móveis silenciosas especiais, só para complicar a vida dos técnicos. Mas o resultado valeu a pena, apesar dos comentários negativos do próprio diretor. É absolutamente fascinante ver a história se desenrolar ao longo dos 80 minutos de projeção como se literalmente fôssemos o observador onipresente e onisciente.

James Stewart faz o papel do professor Rupert Cadell, convidado de honra para o jantar e quem os estudantes desafiam para descobrir o crime que cometeram. É a primeira da prolífica parceria de Stewart, que já tinha uma bagagem considerável, com Hitchcock e que geraria clássicos inesquecíveis como Janela Indiscreta, a segunda versão de O Homem que Sabia Demais e Um Corpo que Cai. Stewart demonstra muita tranquilidade em seu papel, atuando com sempre atua: passando uma naturalidade quase sobre-humana que poucos atores eram (ou são) capazes de passar. Contracenando com um elenco menos conhecido, mas mesmo assim muito bom, ele acaba dominando toda a fita a partir do momento em que aparece.

É interessante, também, notar um subtexto que, em 1948, era um tabu quase intransponível: a homossexualidade. O filme é todo permeado do assunto e o restritivo – e absurdo – Código de Produção em vigor não pegou “o problema” em razão de um roteiro inteligente que foge da obviedade, de atuações contidas (os atores que fazem os dois assassinos eram gays) e de uma direção sábia de Hitchcock que escancara a situação, mas só para quem souber ler nas entrelinhas. E o mais interessante é que esse aspecto da vida sexual dos personagens nem era essencial à narrativa, mas ele é deixado lá por um diretor bem a frente de seu tempo.

Festim Diabólico marca talvez o verdadeiro início de Hitchcock como o Mestre do Suspense, considerando-se seus filmes seguintes, e é uma pequena joia que só melhora ao longo do tempo e do quanto mais nós sabemos sobre sua interessantíssima produção. Se essa definição fez sentido alguma vez, trata-se de um pequeno grande filme absolutamente imperdível à frente e atrás das câmeras.

Crítica originalmente publicada em 02 de abril de 2014. Revisada para republicação em 31/03/2020, como parte da versão definitiva do Especial Alfred Hitchcock aqui no Plano Crítico.

22/03/25

Adolescência, Adolescence, Minissérie TV, 2025, Stephen Graham & Jack Thorne

Crítica de Adolescence - a coisa mais próxima da perfeição televisiva em décadas

O drama de Jack Thorne e Stephen Graham sobre um adolescente acusado de homicídio é espantoso. O drama de Jack Thorne e Stephen Graham sobre um adolescente acusado de homicídio é impressionante.

Lucy Mangan, The Guardian, Qui 13 Mar 2025

No final dos anos 80, houve uma trilogia de dramas de Malcolm McKay chamada A Wanted Man. Era protagonizada por Denis Quilley e Bill Paterson e tinha no centro a atuação fenomenal de Michael Fitzgerald como Billy, um homem preso por indecência grosseira que passa a ser suspeito do homicídio de uma criança. A primeira parte seguiu o seu interrogatório por um detetive (Quilley), a segunda o seu julgamento e a terceira as suas consequências. Foi, e continua a ser, a série mais devastadora e imaculadamente guiada e interpretada a que alguma vez assisti - o mais próximo da perfeição televisiva que se pode chegar.

Ao longo dos anos, houve alguns candidatos à coroa, mas nenhum se aproximou tanto como a surpreendente série de quatro episódios Adolescence, de Jack Thorne e Stephen Graham, cujos feitos técnicos - cada episódio é feito num único take - são acompanhados por um conjunto de interpretações dignas de prêmio e um roteiro que consegue ser intensamente naturalista e extremamente evocativo ao mesmo tempo. Adolescence é uma experiência profundamente comovente e angustiante.

Começa com a polícia a entrar de rompante na casa da família de Jamie Miller, de 14 anos, e a prendê-lo por suspeita de ter assassinado a sua colega de turma Katie na noite anterior. Os dois primeiros episódios mergulham-nos no mundo da polícia, nos pormenores processuais e na construção do caso pelos detectives contra Jamie (Owen Cooper), embora este negue o seu envolvimento.

Ele escolhe o pai, Eddie (Stephen Graham), como o adulto adequado. Veremos a descrença deste homem transformar-se, ao longo dos 13 meses da história, numa dor insondável. Não é um spoiler dizer que Jamie matou Katie - a prova é-nos dada cedo e de forma incontestável. A preocupação do drama é saber porquê. Somos conduzidos a um mundo adolescente que é vivido principalmente online e que os adultos, independentemente do que possam pensar, são incapazes de monitorar ou compreender devidamente.

O inspetor-geral Luke Bascombe (Ashley Walters, extremamente bem, sobretudo a captar a tristeza essencial de um trabalho que pode ou não trazer justiça, mas que nunca devolverá uma criança morta aos pais) só começa realmente a compreender o possível “porquê” quando o seu próprio filho adolescente traduz os emojis utilizados nos comentários de Katie em alguns dos posts de Jamie no Instagram. O mundo da cultura “incel”, a mensagem difundida entre rapazes e homens jovens sobre o que têm direito a esperar e a tirar das moças e das mulheres, ganha vida. O nome de Andrew Tate é mencionado pelos adultos quando tentam compreender o que estão a aprender, mas as crianças não se incomodam - é apenas a água em que nadam.

O episódio mais surpreendente - de um quarteto deslumbrante - é o penúltimo, que consiste quase inteiramente numa sessão entre Jamie e uma psicóloga infantil, Briony (Erin Doherty), que foi enviada para fazer a avaliação independente necessária antes do processo em tribunal. A inteligência fria e rápida (caraterística de Doherty) é perfeitamente utilizada aqui, enquanto Briony empurra e encurrala o rapaz, aproximando-o cada vez mais de verdades que ele não quer reconhecer e da articulação de crenças que ele mal sabe que tem. Por vezes, ela prende-o como uma borboleta num cartão.

E é aqui que devemos fazer uma pausa, enquanto ele enfrenta uma mulher que está seguramente a emergir como um dos melhores atores da sua geração, para notar que este é o primeiro papel de Cooper, de 15 anos, conquistado através do envio de uma cassete à diretora de casting, Shaheen Baig, que analisou 500 rapazes para o papel. É um desempenho espantoso que nos deixa ver o misógino radicalizado que Jamie é ou pode vir a ser. Mas fazê-lo sem qualquer experiência anterior é um testemunho do talento inato e da promoção criativa que deve ter estado presente em toda a rodagem.

Se o episódio final, que se concentra nas tentativas desesperadas da família para se manter unida, parece um pouco mais fraco, é apenas no contexto do que se passou antes. A sua recusa em oferecer saídas fáceis (sem pais abusivos, sem segredos familiares obscuros), sem uma explicação clara sobre o que leva um rapaz a matar e outros não, é corajosa e real. Adolescence questiona quem e o que estamos a ensinar aos rapazes e como esperamos que eles naveguem neste mundo cada vez mais tóxico e impossível, quando o nosso conceito de masculinidade ainda parece depender do fato de os rapazes e os homens o fazerem sozinhos. E mantém a vítima suficientemente presente para que, a questão de quantas moças e mulheres morrerão enquanto tentamos resolver tudo isto também, fique conosco.

ADOLESCÊNCIA - Incrível em técnica e conteúdo | Crítica - PH

Adolescência (Netflix): perfeita, minissérie é das coisas ótimas que nunca mais veremos novamente 

23/03/25

A Thousand Blows, Série de TV, 2024, Steven Knight

‘Mil Golpes’ vai muito além de um simples drama esportivo

Wilson Spiler, Fixlandia,  23/02/2025

A série “Mil Golpes” chega com a força e a audácia características de Steven Knight, o mesmo criador que nos brindou com “Peaky Blinders”.

Ambientada na Londres dos anos 1880, a produção mergulha no submundo do crime e do boxe de rua, trazendo à tona personagens intensos e histórias marcadas pela violência, ambição e uma dose de anarquia que desafia as convenções da época.

O resultado é um drama que não só entretém, mas também provoca reflexões sobre racismo, exclusão social e a luta por poder num cenário implacável.

Sinopse da série Mil Golpes (2025)

Na trama de “Mil Golpes”, acompanhamos a chegada de Hezekiah Moscow e Alec Munroe, jovens imigrantes jamaicanos que desembarcam em uma Londres hostil e repleta de desafios. Confrontados com o preconceito e as barreiras impostas pela sociedade vitoriana, eles acabam se envolvendo no mundo brutal do boxe ilegal, comandado pelo temido Sugar Goodson.

Paralelamente, a narrativa ganha força com a entrada de Mary Carr, uma líder carismática e implacável que comanda a lendária gangue feminina conhecida como os Quarenta Elefantes. Em meio a duelos, traições e reviravoltas, cada personagem se vê obrigado a lutar não apenas por sobrevivência, mas também por um espaço de respeito em um mundo marcado pela exclusão.

Crítica de Mil Golpes, do Disney+

O grande trunfo de “Mil Golpes” é, sem dúvida, o elenco. Erin Doherty, no papel de Mary Carr, transforma a figura da “rainha dos quarenta elefantes” em um ícone moderno de força e vulnerabilidade. Sua atuação, carregada de intensidade, é acompanhada por Malachi Kirby, que, como Hezekiah, entrega uma atuação sutil, porém poderosa, evidenciando o peso de um passado doloroso e as dificuldades enfrentadas em um novo mundo.

Stephen Graham, interpretando Sugar Goodson, rouba a cena com uma presença imponente, mesclando brutalidade e uma humanidade complexa que torna seu personagem memorável.

Roteiro e enredo ágeis

O roteiro se destaca por seu ritmo dinâmico e diálogos afiados, que conseguem, com inteligência, misturar humor ácido e momentos de extrema tensão. A narrativa, embora por vezes sobre-expositiva nos episódios iniciais, mantém o espectador grudado à tela, desvelando aos poucos as camadas dos personagens e os meandros do submundo londrino.

A utilização do boxe como metáfora para os conflitos internos e as lutas contra opressões sociais agrega uma profundidade que vai além da ação física, transformando cada soco em uma expressão de resistência.

Ambientação e direção

A ambientação é outro ponto alto da série. Com cenários que evocam a Londres decadente e sanguinária do século XIX, “Mil Golpes” impressiona pelo cuidado nos detalhes, desde os becos sombrios do East End até os pubs e arenas de boxe que parecem ter saído de um romance noir.

A direção, ao equilibrar cenas de ação com momentos de reflexão, cria uma atmosfera quase palpável, onde o espectador se sente imerso num ambiente repleto de contrastes – da opulência dos ricos à miséria dos marginalizados.

Personagens e temáticas que rompem paradigmas

Um aspecto marcante da série é a forma como ela reconstrói o cenário criminal histórico, dando voz e protagonismo a personagens que habitualmente ficam à margem das narrativas tradicionais. Mary Carr e sua gangue feminina, por exemplo, não apenas desafiam os papéis impostos pela sociedade vitoriana, mas também ressaltam a importância da representatividade e da luta contra o sexismo.

Simultaneamente, a trajetória dos imigrantes jamaicanos evidencia as dores e a resiliência de quem precisa enfrentar barreiras impostas pelo racismo, reforçando que a diversidade sempre foi parte intrínseca da história britânica.

Acompanhe o Flixlândia no Google Notícias e fique por dentro do mundo dos filmes e séries do streaming

Conclusão

“Mil Golpes” é uma obra que vai muito além de um simples drama esportivo. Com uma narrativa repleta de ação, personagens complexos e uma ambientação de tirar o fôlego, a série se estabelece como uma produção imperdível para os amantes de histórias intensas e carregadas de crítica social.

Apesar de alguns momentos narrativos que poderiam ter sido mais concisos, os pontos positivos – sobretudo as atuações e o design de produção – garantem uma experiência única e envolvente. Se você busca um drama que une o peso da história com a energia crua do submundo, “Mil Golpes” é, sem dúvida, uma aposta certeira.

24/03/25

The White Lotus, S03, Série de TV, 2021–, Mike White

White Lotus: minha meditação é juntar humor, cenário paradisíaco e crítica

Maria Ribeiro, Universa, 26/03/2025

Eu estou viciada na série "White Lotus". Acordo aos domingos com aquela alegria totalmente específica, sabe? Das esperas garantidas, sem chance alguma de desapontamentos.

Reconfortada por pensar que, mesmo não tendo nenhum controle sobre minhas células ou sobre o futuro da água da planeta, que independentemente dos rumos de Brasília ou da reunião de condomínio do prédio, uma hora o relógio vai marcar vinte e duas horas. Quando nada do mundo irá me importar. Nem filhos, nem filmes, nem prazos, nem as falas misóginas contra a Marina Silva, nem os assédios que ainda vivemos, e nem a Solange sem a Lídia Brondi.

Eu respiro por histórias. É por elas - e com elas - que olho para frente, para trás, e para lugares onde nunca estive, com pessoas com quem jamais estarei. Essa alienação programada - programada mesmo, não me convidem nem para casamentos que, aos domingos, não vou nem que eu seja a noiva -, tem, no caso da série da HBO, pouco mais de um mês.

Mas como eu tava precisando. Porque sou obcecada por documentários, não abro mão da experiência coletiva do cinema, vou atrás de todas as obras que me pareçam relevantes do ponto de vista de ler o tempo - como a recente "Adolescência" -, mas não há nada que me de mais colo do que acompanhar, por algum tempo, personagens contraditórios e bem construídos.

Eu sei, a temporada não é tão boa quanto as duas anteriores. É o que se diz por aí. Ainda assim, a possibilidade de vislumbrar semanalmente sessenta minutos de um roteiro que junta humor, luta de classes, cenários paradisíacos, trilha de primeira, crítica social e, principalmente, figuras humanas a ponto de nos gerar empatia a despeito de suas atitudes absolutamente condenáveis, nossa...essa é a minha ideia de meditação.

No episódio da última semana, um beijo causou alvoroço na internet. Não vou desenvolver o tema - que é de fato delicado e complexo - para não dar spoiler, mas preciso dizer que a angústia dos personagens depois do ocorrido conseguiu a proeza de me fazer olhar com compaixão para uma das figuras que mais abomino na série.

E é esse um dos grandes sentidos do audiovisual, e também da literatura e do teatro. Nos ensinar, através de supostos vilões, anti-heróis, ou de situações das quais não temos intimidade. A amar ou compreender pessoas que cancelaríamos na segunda ou na terceira frase.

Ampliar nossa capacidade de não julgar livros pela capa, aumentar nosso repertório de tolerância, vivenciar historias que nos deem material para caso um dia precisemos, multiplicar um dos grandes super poderes dessa viagem: fazer doutorado em afetos, mesmo em afetos difíceis.

Escrevo essa coluna do deserto do Atacama, para onde vim fazer umas fotos de moda. Hospedada em um hotel desses de tirar o fôlego e diante de uma paisagem arrebatadora, me vi observando, como nunca tinha feito, o modus operandi de tudo o que acontece nos bastidores de uma atmosfera onde tudo é feito para ser perfeito. Mas que, como vemos na série, nada é feito com a ausência de nomes próprios. Foi bonito.

Conheci o vale do arco-íris, o céu mais impressionante que já vi, lagunas e cânions inacreditáveis, mas isso não foi tudo. Conheci pessoas. Com passado, projetos, gostos, personalidades. Leo, Silvia, Jucelia, Gabriel. Isso, sim, é conhecer o mundo.

27/03/25

O segredo da porta fechada, Secret Beyond the Door, 1947, Fritz Lang

No iutubi aqui 

Crítica | O Segredo da Porta Fechada por Iann Jeliel - 8 de maio de 2021 

Acho interessante que o noir presente em O Segredo da Porta Fechada… se submete ao inverso do que costuma ser estruturalmente o gênero, onde geralmente é a figura masculina que uma feminina misteriosa que o colocará em uma situação de investigação. Não que seja intencional do diretor Fritz Lang fazer uma inversão completa de funcionabilidades dos princípios do gênero que ele adotou para si quando chegou em território americano, de acordo a sexualidade dos personagens – a troca da femme fatale para um “male fatale” –, até porque a construção atmosférica neste em específico remete muito mais aos thrillers Hitckcocianos de gênero, do que os que o próprio Lang dirigiu anteriormente, onde uma questão moral carcerária sempre estava muito presente, promovendo o suspense através da perseguição do casal protagonista e uma barreira ao próprio romance que tomava a tela em boa parte da narrativa.

Aqui, existe uma ambiguidade no suspense, que deixa sua questão moral em pano de fundo e se concentra num mistério ambíguo e devidamente intrigante pelas condições da premissa. Se o filme já começa estranho por instaurar um casamento precoce quase sem desenvolvimento, ele fica progressivamente mais difuso quando essa precocidade se ver ameaçada de estar pautada em uma justificativa conspiratória. Meio que essa premissa do romance rápido faz parte da tensão, pois pode ser um motivo conectado ao fato do Mark (Michael Redgrave) ser tão desconfiado, a ponto de esconder o quarto 7 para todo mundo, mais um mote para o suspense, uma vez que perguntamos, o que terá naquele espaço que não pode ser compartilhado? A roteirista Silvia Richards ajuda muito a reduzir a estranheza na perspectiva feminina, pensando na irracionalidade de atitudes que a levaram até essa situação.

A narração em off, por mais que seja um recurso básico, é fundamental para entendermos a coerência das motivações de cada passo de Claire (Joan Bennett, ótima como sempre), além de termos o raciocínio da sua paranoia em crescente com a história. O texto feminino também possui um discernimento ideal dos papeis facultativos das demais personagens femininas em estabelecer um círculo de históricos possíveis nas quais a história pode encaminhar para explorar a personalidade dúbia do marido. Veja bem o quanto ele reforça sobre a independência dessas figuras, mas ao mesmo tempo não consegue se desprender de novas. As cenas que ele vai apresentando os quartos em festa a novas mulheres reforça a dúvida sobre sua iminente periculosidade, que a protagonista passará a desconfiar cada vez mais conforme a atmosfera vai ganhando um novo peso dramatúrgico.

Talvez, Lang nem precisasse transacionar o tom como fica aparente. Do carisma de um romance a total desconfiança de um assassino à espreita. Até porque as elipses iniciais impedem bastante a que a construção clássica do casal seja crível e o filme demora um pouco para desapegar da ideia de que o inesperado amor seja plausível – considerando que as narrações em off cumpriram esse papel, sendo que não exatamente esse era um de seus intuitos. Portanto, a história só pega a partir da meiuca, em que realmente funciona como esse noir sexualmente invertido, onde Claire decide investigar suas desconfianças de Mark entrevistando as outras personagens ao seu redor. É um processo que leva a história para vários caminhos interessantes, barrados por um clímax antecipado tão interessante quanto – chega a ser quase um Psicose de inesperado – ao seguir uma linha de consequências muito diretas da investigação.

Acontece, que o terço final adentra num caráter mais metafórico que honestamente não parecia caber durante a história. Por mais que Freud fosse citado e a dubiedade do personagem se sustente no drama psicanalítico de uma experiência traumática maturada, houve muito pouco desenvolvimento do casal enquanto casal e dos indivíduos em separado para que seja crível a última virada. Não só descarta os caminhos interessantes levantados, quanto utiliza alguns de forma preguiçosa a forjar um novo clímax que reintegra um romance que na prática nunca aconteceu de fato e nem foi levado durante o filme pela teoria. Sem dúvidas, é uma conclusão bem aquém da construção até ela – ótimista demais? –, mas que não chega a decepcionar mais do que o ótimo sentimento de envolvimento do caminho, tornando O Segredo da Porta Fechada um filme ainda bem notável na carreira do diretor alemão.

28/03/25

No turbilhão da metrópole, Street Scene, 1931, King Vidor

No iutubi aqui 


Review by Jack Often ★★★★ (Tradução livre)

A primeira metade da peça de Elmer Rice, vencedora do Pulitzer, sobre os habitantes de um prédio de apartamentos em Manhattan, traz à mente o tipo de obra socialista rude sobre a vida, parodiada por Rob Reiner em Bullets Over Broadway ou Barton Fink, dos Coen, com sabor de Odets. Uma tradição de Nova York que se estende até Do the Right Thing e além.

Aqui, o trapeiro substitui o peixeiro em frente a uma varanda repleta de estereótipos de imigrantes, com Beulah Bondi, em sua estreia no cinema, liderando o coro de fofocas sobre a esposa do quarto andar (a glamourosa silenciosa Estelle Taylor), que está comendo descaradamente o leiteiro pelas costas do marido.

O filme começa a estagnar em seu único cenário majestoso até a chegada de nossa estrela Sylvia Sidney, quase meia hora depois do início da sessão. À medida que Vidor tece habilmente o clímax da história em torno dela, o filme explode em escopo e palpita com pathos, devido tanto ao rosto lamentável de Sidney quanto à escrita de Rice.

A aposta cara de Samuel Goldwyn na peça de Rice valeu a pena, com boa bilheteria e boas críticas, e ela ainda se mantém mais de 90 anos depois, desde a trilha sonora bem reciclada de Alfred Newman até a câmera arrebatadora de George Barnes, usada somente onde é importante.

Rice, um dramaturgo socialista e ateu, cujo outro grande sucesso, The Adding Machine, ainda é apresentado hoje em dia, manteve-se longe da lista negra, permanecendo em Nova York, mas foi muito franco durante toda a sua vida. É interessante vê-lo incluir a rica herança do socialismo judaico de forma tão clara nessa peça, e é igualmente interessante ver o personagem de Abe Kaplan realmente chegar à tela com a maioria de suas falas intactas. Sem mencionar as de seu filho, interpretado por William Collier Jr., que dialoga rejeitando abertamente qualquer religião. Impensável apenas alguns anos depois para qualquer pessoa que não fosse um vilão. As cópias do filme disponíveis atualmente são aprovadas após o relançamento da Hayes, mas esses elementos controversos permanecem e são possivelmente o que mais marca o filme como pré-código.

Também é um prazer ver os rostos familiares de lendas do personagem, como John Qualen, George Humbert e Matt McHugh, que, assim como Bondi, estavam estreando nas telas a partir do espetáculo de palco. Letterboxd 

29/03/25

DNA do Crime, Série de TV 2023, Criação: Heitor Dhalia & Leonardo Levis

DNA do Crime: conheça a 1ª série brasileira de ação policial da Netflix

Primeira temporada está disponível no catálogo do streaming em oito episódios

Bárbara Carvalho, colaboração para a CNN , São Paulo, 14/11/2023

A série “DNA do Crime” chegou ao catálogo da Netflix nesta terça-feira (14). Idealizada por Heitor Dhalia e Leonardo Levis, e baseada em eventos criminais reais, a narrativa acompanha um conjunto de agentes federais enquanto desvendam um monumental assalto na fronteira brasileira. Os protagonistas deste projeto são interpretados pelos atores Maeve Jinkings e Rômulo Braga.

Primeira série policial brasileira na plataforma de streaming, a trama apresenta uma intensa dose de ação e efeitos especiais, explorando os patamares mais refinados do crime e da aplicação da lei no Brasil.

De um lado, uma força policial altamente técnica que emprega a ciência forense para enfrentar investigações extremamente desafiadoras. Do outro, criminosos com métodos sofisticados para planejar assaltos, controlar cidades e conduzir operações que demandam anos de planejamento e investimentos na ordem de milhões de dólares.

“A série mostra outro lado do crime no Brasil, um crime de fronteira que é muito pouco explorado em histórias audiovisuais de ficção. Usamos um assalto transnacional, que se passa no Paraguai, como nossa referência e inspiração para o início da série, que vai se desenrolando na disputa de duas forças antagônicas, altamente sofisticadas, em um tabuleiro sul-americano com desdobramentos em outros crimes organizados”, conta Heitor Dhalia, criador e diretor-geral da série, em um comunicado.

História

Com oito episódios, a produção brasileira se desenrola após um assalto de enormes proporções atingir a instalação de uma seguradora de valores em Ciudad del Este.

Com os responsáveis pelo crime ainda em liberdade, os policiais federais da delegacia de Foz do Iguaçu iniciam uma investigação complexa, seguindo pistas que conectam criminosos de ambos os países não apenas nesse roubo, mas também em outros atos criminosos.

Caso Real

Em abril de 2017, ocorreu um crime em Ciudad del Este, cidade fronteiriça com Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, na Argentina. Um grupo composto por 50 indivíduos invadiu a sede de uma empresa de transporte de valores, detonou um cofre e subtraiu aproximadamente R$ 125 milhões.

A abertura do cofre foi realizada pelo grupo utilizando explosivos e fuzis antiaéreos, sendo os perpetradores afiliados ao Primeiro Comando da Capital (PCC). O assalto estendeu-se por mais de três horas, sendo parte da ação registrada em vídeos amadores.

Elenco

Com Maeve Jinkings (O Som ao Redor) como a protagonista Suellen e Rômulo Braga (O Rio do Desejo) no papel de Benício, o elenco de DNA do Crime também apresenta renomados talentos do cinema nacional, incluindo Thomás Aquino (Os Outros) como Sem Alma e Guilherme Faria (Irmandade) interpretando Toreto. Além disso, integram o elenco Miguel Nader (Impuros) e Pedro Caetano (O Diabo Mora Aqui).