sexta-feira, 9 de maio de 2025

Santo Agostinho

O Papa Leão XIV é agostiniano. Providencial falar sobre Santo Agostinho.

PERFIL  BIOGRÁFICO DE SANTO AGOSTINHO (354-430) 

In CONFISSÕES, Santo Agostinho

“Ó Senhor, cumpre em mim Tua obra e revela-me essas páginas!”  

Com estas palavras, o Bispo Agostinho de Hipona, aos 43 anos de idade, abre o seu coração. Não fora fácil o caminho de sacerdote, que, dentro do silêncio das noites africanas, invocava o auxílio divino. Agostinho conhecera os prazeres do mundo, a sensualidade das festas pagãs, o aplauso das multidões deslumbradas por sua oratória. E quando, finalmente, se voltou para dentro de si, já era bispo há pelo menos dois anos, venerado em toda a África.  

Reconstruindo sua existência desde o princípio, ele visa a expurga-la de toda culpa, para entregá-la novamente a Deus. Ao escrever as Confissões, numa exposição por vezes ingênua de todos os seus sentimentos e conflitos até a reconquista da fé, Agostinho dirige-se principalmente a Deus. Mas não esquece o rebanho que lhe foi confiado: “Quem eu sou nesse exato momento é o que desejam saber muitos. Mas para que desejam saber isso? Para congratular-se contigo, ó Senhor, ouvindo como eu avancei por obra Tua pelo Teu caminho, e para rezar por mim, sentindo quanto meu peso me faz retardar o passo. Se assim for, é para esses que falo”. 

A perdição da alma reside em algumas peras

Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, em Tagaste, pequena cidade da Numídia, atual Argélia. Sua infância e adolescência transcorreram principalmente em sua cidade natal, no ambiente limitado de um povoado perdido entre montanhas. Mais tarde, descreveria em cores carregadas este período. “Cometia pequenos furtos na despensa da casa ou na mesa, por gulodice ou para ter algo a dar a meus camarada. Mesmo nos jogos, muitas vezes conseguia, levado pela ânsia de superioridade, vitórias fraudulentas”. Um furto de peras ficou-lhe sobretudo na memória. “Fi-lo não premido pela necessidade, mas por desprezo à justiça e excesso de maldade”. 

Suas observações sobre a severidade do ensino da época são bem mais equilibradas, encerrando um protesto ainda hoje válido: “Para aprender tem mais valor uma curiosidade livre do que a coerção baseada no medo”. 

“Quantas misérias e enganos experimentei naquela época, quando era rapazinho e me propunham, para viver direito, a obediência àqueles que me instruíam, para que nesse mundo construísse minha imagem...” 

De Tagaste, Agostinho vai para Madaura, onde inicia os estudos de retórica. O rapaz parece talhado para a oratória. Lê e decora trechos de poetas e prosadores latinos, dentre os quais Virgílio e Terêncio. Adquire, com Varrão, noções de caráter enciclopédico. Aprende regras elementares de música, física e matemática. Recebe tinturas de filosofia, o suficiente para compreender certos poetas. Em compensação, jamais dominará o grego. 

Agostinho fará os estudos superiores em Madaura e Cartago. Depois de longos anos receberá, finalmente, de acordo com os programas da época, o título de vir eloquentissimus atque doctissimus.

Onde está a felicidade?

“Vim a Cartago, e uma multidão de torpes amores rodeou-me de todo lado. (...) Amar e ser
amado era para mim uma coisa deliciosa, tanto mais quanto podia também possuir o corpo da pessoa amada”. Na realidade, porém, Agostinho não era o pecador que ele descreve nas suas Confissões. Segundo o testemunho de um adversário, o bispo donatista (herético) Vicente de Cartena, o estudante Agostinho era um jovem ponderado, dedicado aos livros. 

Não que lhe faltassem oportunidades mundanas. Cartago, a maior cidade do Ocidente latino depois de Roma, era um dos grandes centros do paganismo, que dois séculos de doutrina cristã ainda não haviam conseguido derrubar. A procissão anual à deusa do céu (a antiga Tanit dos fenícios) atraía multidões ávidas de prazer, vindas de todas as partes da África. Na grande metrópole realizavam-se os espetáculos sensuais, comedias e pantomimas que contavam as aventuras eróticas de deuses e homens. Agostinho, um rapaz de apenas dezessete anos, deixouse cativar pela alegria e esplendor das cerimônias em honra dos milenares deuses protetores do império.  

Em Cartago permanece durante três anos, unindo-se a uma mulher em concubinato – o que as leis e costumes da época consideravam perfeitamente normal. “Tinha só a ela e era-lhe fiel, como um marido”, escreve mais tarde. “Tive de experimentar com ela, às minhas custas, a diferença entre um compromisso conjugal criado para procriar filhos e o acordo de um coração apaixonado, do qual a prole nasce ainda que não desejada, mesmo que depois se seja levado a amá-la”. Referia-se a seu filho Adeodato, nascido em 373.  

“Naquele período tão incerto, estudava os livros de eloquência, na qual desejava destacarme com um fim reprovável, por orgulho, pelo prazer da vaidade humana. Seguindo, portanto, a ordem tradicional do ensino, chegara a um livro, de Cícero...” Continha ele uma discussão imaginária entre Cícero e Hortênsio, outro grande orador romano, em torno do valor da filosofia.
Cícero demonstrava que a verdadeira felicidade reside na busca da sabedoria.  

Agostinho sentiu-se fascinado. Os dezenove anos de sua vida pareceram-lhe completamente desperdiçados. A busca e a investigação tornaram-se, daquele momento em diante, seu objetivo primordial. 

De início, decidiu dedicar-se ao estudo das Escrituras, mas logo se cansou: o admirador de Virgilio, Terêncio e Cícero ficou desiludido diante do estilo simples da Bíblia.  

O mestre da eloquência e um bêbado trilham caminhos iguais

 
De volta à cidade natal, Agostinho abre uma escola particular, onde ensina gramática e retórica. Gosta de ensinar; durante treze anos esta será sua profissão. Seus múltiplos interesses intelectuais, entre os quais o ocultismo e a astrologia, não o impedem de tornar-se excelente professor, capaz de despertar a curiosidade dos alunos. 

No outono de 374 deixa Tagaste, transferindo-se para Cartago. Mais uma vez dedica-se ao ensino da retórica. “Os estudantes receberam minha ordem de aprender, além de literatura, a refletir e a habituar seu espírito na concentração sobre si mesmos”. Os cartagineses, porém, são demasiado turbulentos. Agostinho segue para Roma, em 383. Pouco tempo depois verificaria que os jovens romanos, embora mais quietos e gentis, têm o hábito de abandonar as aulas na ocasião em que devem pagar os honorários aos mestres. A luta contra os maus pagadores dura um ano, até que um concurso lhe dá a cátedra de eloquência em Milão. 

Igrejas majestosas ao lado de templos pagãos; teatros e circos que nada ficavam a dever aos romanos; assim era Milão, na época a capital administrativa da parte ocidental do império, a residência do imperador. Era, sobretudo, uma cidade onde havia a possibilidade de fazer carreira.
Agostinho consagrava as manhãs aos cursos de eloqüência, passando as tardes nas antecâmaras dos ministérios. Esperava obter a presidência de um tribunal ou posto de governador de uma província. Era, à primeira vista, um homem feliz: pago pelo Estado, personagem quase oficial, respeitado como professor. No entanto, dominava-o uma profunda inquietude quanto aos rumos da sua existência.  

Por volta dos fins de 385, o mestre de eloqüência é escolhido para recitar a saudação anual do imperador. Agostinho sai de casa com alguns amigos, dirigindo-se ao palácio imperial. “Ia para mentir”, escreverá ao lembrar a oração de louvor em honra de Valentiniano II, então com catorze anos. No caminho encontra um “pobre mendigo bêbado, que ria e fazia arruaça”. A cena, embora o aborreça, revela-lhe um aspecto da verdade que procurava. O bêbado, com um pouco de dinheiro, alcançara a felicidade. “È claro que essa não era autentica alegria, eu sei disso. Mas por acaso era autentica a alegria que eu procurava com as minhas ambições e enredos tortuosos? Numa noite ele digeriria o vinho e sua bebedeira passaria; eu, ao contrário, iria dormir e acordaria com meu tormento, hoje, amanhã, quem sabe até quando...” 

A inquietude é tema tipicamente agostiniano, um aspecto permanente de seu desenvolvimento. O despertar de seu espírito crítico levou-o a abandonar o cristianismo que sua família professava. Agostinho adotou o maniqueísmo de Mani, profeta persa que pregava uma doutrina na qual se misturavam Evangelho, ocultismo e astrologia. Segundo Mani, o bem e o mal constituíam princípios opostos e eternos, presentes em todas as coisas. Era uma religião teoricamente severa, mas cômoda na prática: o homem não era culpado por seus pecados, pois já trazia o mal dentro de si. Ninguém era obrigado a aceitar a fé sem antes discuti-la e compreendê-la. A doutrina seduziu, como ele mesmo diria: “um jovem amante da verdade, já orgulhoso e loquaz devido às disputas mantidas na escola dos homens doutos”. O abandono do maniqueísmo viria mais tarde, ocasionado pela insatisfação das respostas que a doutrina oferecia. Seu lugar seria temporariamente preenchido por um profundo ceticismo.  

Uma canção de criança pode mudar uma vida

Entre os dignitários procurados por Agostinho figurava Ambrósio, bispo de Milão, um dos homens mais poderosos do império. O jovem professor buscava com ele uma colocação oficial. Em vez disso, encontrou respostas para algumas de suas dúvidas. “Esse homem de Deus acolheu-me como um pai. Eu imediatamente o amei’. Passa a assistir, todos os domingos, aos sermões de Ambrósio. Recomeça a ler os Evangelhos. Procura discutir com o sacerdote, que, entretanto, se nega ao debate. Ambrósio sabe que, para o antigo maniqueu, disputas filosóficas têm menos valor do que a aceitação da crença cristã por intermédio da fé.  

Por esta época volta para a África a mulher com quem vivera durante catorze anos. A separação foi provocada pela mãe de Agostinho, Mônica, que desejava para o filho uma união cristã, e que chegou ao ponto de lhe arranjar uma noiva. Agostinho, em seus escritos, jamais procurou justificar a sua fraqueza e o excesso de zelo materno. Ao contrário, falará com remorso de sua união ilegítima e da concubina cujo nome jamais ousará dizer em suas Confissões. 

As dúvidas espirituais de Agostinho eram partilhadas por dois amigos, Alípio e Nebrídio. Tinham, os três, abandonado a família para viver juntos uma nova experiência. “Éramos três bocas de pobres famintos, que desabafávamos entre nós nossa miséria e esperávamos que nos outorgassem alimento no momento justo”. Ao lado de seus companheiros, decidiram juntar seus bens e dedicar-se à filosofia. Mas havia uma dificuldade: como suas noivas e esposas acolheriam o projeto? Alípio aconselhava Agostinho a permanecer solteiro, para entregar-se totalmente aos estudos e meditações. Este, porém, como disse nas Confissões, “estava bem longe da grandeza de alma desses sábios. A mim, acariciava-me a morbidez da carne e com mortífera suavidade arrastava a minha cadeia, temendo livrar-me dela e rejeitando essas palavras de incitação ao bem e essa mão libertadora como quem sente remexer uma ferida”.  

Em 386 chega à resposta definitiva. Enquanto Alípio e Agostinho meditam, uma voz infantil, vinda da casa da vizinha, repetia: “Toma, lê”. Era o refrão de uma canção infantil que a criança entoava. “Refreando o ímpeto das lágrimas, levantei-me, interpretando essa voz como uma ordem divina’. O livro está lá: São Paulo. Toma-o, abre-o ao acaso e lê: “Não nas orgias e nas bebedeiras, não nos deslizes e nas impudências, não nas discórdias e na inveja, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não deis à carne concupiscências”.

A meditação se inspira no murmúrio da água

Na pequena vila de Cassiciaco, Agostinho encontra o lugar ideal para seus estudos e meditações. As frias manhãs de outono e inverno transcorrem durante discussões. As noites são dedicadas ás preces. Em Cassiciaco ele escreve suas primeiras obras: De Vita Beata, acirrada polêmica contra os descrentes; Contra Acadêmicos; De Ordine, motivada pelo murmúrio da água que corria junto às termas – um estudo sobre a ordem e a harmonia da natureza governada por Deus. Ali são também escritos os Solilóquios, uma invocação quase contínua a Deus. Terminadas as férias, Agostinho escreve a Milão, dizendo que arranjassem “outro vendedor de palavras para os estudantes”. Permanece em Cassiciaco até março de 387. depois volta à cidade para assistir às aulas de catecismo. Na noite de vigília da Páscoa, juntamente com Alípio e seu filho Adeodato, Agostinho recebe o batismo das mãos de Ambrósio. Era o amanhecer de 25 de abril de 387, dia da Ressurreição. 

Agostinho resolveu retornar à África, para realizar, na terra natal, seu ideal de vida monástica. A viagem, porém, foi retardada pela doença de sua mãe, vítima de uma febre maligna, que a levaria à morte em poucos dias. “Com apenas 56 anos incompletos, tendo eu 33, essa alma religiosa e devota libertou-se do corpo”. O grande sonho de Mônica se realizara: o filho entregara-se de corpo e alma ao cristianismo. 

Agostinho chega à África em 388. Cinco anos haviam passado desde que, desgostoso com a inquietude dos estudantes cartagineses, partira para Roma. Volta à Tagaste, onde vende a propriedade deixada pelo pai e distribui o dinheiro entre os pobres. Conserva apenas uma pequena porção de terra, onde, ao lado dos amigos Alípio e Ovídio, funda o primeiro mosteiro agostiniano. São poucos os discípulos, e a regra que os une não é a das ordens monásticas orientais. Seu ideal é a contemplação, o otium deificante.Mas ao misticismo junta-se a necessidade de aprofundar definitivamente os problemas do espírito. Prova disso é o De Diversis Quaestionibus, nascido das discussões no interior do mosteiro. 

Nos dois anos de permanência em Tagaste, Agostinho escreve outros livros. De Música, iniciado em Milão, De Genesi (contra os maniqueus). De Vera Religione, considerado uma de suas primeiras obras-primas. Neste livro seu interlocutor é Adeodato, que, com apenas dezesseis anos, revela uma maturidade e perspicácia que assombram o pai. O rapaz consegue acompanhar Agostinho em seus difíceis argumentos sobre o valor das palavras. Somente em raros momentos confessa hesitações: “Até aqui minha inteligência não chega...” Então o raciocínio de Agostinho torna-se mais simples, mais discursivo. 

Adeodato morreria no ano seguinte, com apenas dezessete anos. Muitos, porém, o substituíram, continuariam o ideal que animava os habitantes do mosteiro de Tagaste, dividindo-se entre a ação e a vida contemplativa.  

O apelo da multidão: um pastor para enfrentar os leões vorazes

No início de 391, a chamado de um funcionário imperial, Agostinho segue para Hipona. A cidade, com cerca de 30 mil habitantes, funcionava com grande centro comercial: no seu porto era embarcado o trigo enviado a Roma. Encostada nas montanhas cobertas de pinheiros, a segunda metrópole africana em importância gozava de posição privilegiada, sendo até mesmo bem protegida por fortificações. 

Certo dia Agostinho assistia à missa quando o velho bispo da cidade, Valério, começou a explicar ao povo as necessidades da diocese, acentuando a urgência de ter um sacerdote que o ajudasse. Da multidão elevou-se, cada vez mais distinto, o pedido: “Agostinho padre”. Agostinho procurou resistir, defendendo a tranqüilidade de sua vida monástica, mas a insistência da população triunfou: com os olhos cheios de lágrimas, ajoelha-se frente a Valério e é ordenado sacerdote. Tem 37 anos e sabe que pesadas tarefas o esperam; terá de lidar com necessidades objetivas do povo, ao lado de suas preocupações espirituais. Seu temperamento contemplativo, porém, permanecerá sempre fiel aos ideais de Cassiciaco e Tagaste. Funda, com Alípio, um segundo mosteiro. Seus discípulos serão, mais tarde, bispos em várias cidades da África – o catolicismo deste continente será marcadamente agostiniano. 

Em 396, atendendo ao pedido de Valério, Agostinho é sagrado bispo auxiliar. Conserva o hábito de penitente, recusando-se a usar anel e mitra. Desde os primeiros dias de sua sagração, teve de se defrontar com “leões vorazes”, os heréticos que estavam por toda parte. Ele mesmo, em seu livro sobre heresias, chegaria a contar 88. A principal delas era a seita dos donatistas, que, em fins de 312, se havia separado da Igreja, alegando que os católicos mostraram-se demasiado servis ao poder imperial por ocasião das perseguições de Diocleciano. Na época, os donatistas lutavam violentamente, e não só com discussões. O próprio Agostinho salvara-se por milagre de uma emboscada. Um outro bispo fora ferido de morte diante altar.  

Ainda quando simples padre, Agostinho havia percebido a gravidade do cisma que se desencadeava sobretudo nas regiões berberes menos romanizadas, entre os pobres do campo oprimidos pelos proprietários rurais. Na agitação donatista havia um amplo aspecto de revolta social. Camponeses, escravos e desertores incendiavam e saqueavam os grandes domínios. Sessenta cristãos já haviam sido trucidados. Era tempo, como escrevia Possídio, de que a Igreja “longamente humilhada reerguesse a cabeça”. Agostinho iniciou a luta convidando os chefes donatistas para discussões públicas. Escreve contra eles mais de uma dúzia de livros e opúsculos, nos quais procura demonstrar que a santidade da Igreja universal não pode ser negada ou destruída pelas culpas de alguns de seus membros. 

É preciso paciência diante de olhos em chamas

No início do século V, caracterizado por perseguições e heresias, Agostinho é um dos personagens mais destacados. As desordens desencadeadas pelos donatistas levam o poder oficial a intervir. Em 411 é organizada uma grande conferência em Cartago; 279 donatistas, enfrentam 264 bispos católicos – entre os quais Agostinho – numa discussão pública. Agostinho, “o lobo mortífero que ameaça destruir nosso rebanho”, como diziam os donatistas, domina a reunião. A 26 de junho de 411, o cisma era suprimido legalmente. 

Grande parte da doutrina agostiniana se desenvolve neste período, nascida nos choques em que o bispo de Hipona intervém não só como representante oficial da Igreja, mas também a título pessoal, por uma profunda necessidade de sua inteligência. Por isso, as batalhas que trava têm um toque particular, tornam-se verificações e pesquisas que contribuem para desenvolver suas opiniões. Multiplicam-se encontros, discussões públicas, sínodos e concílios, mais numerosos que os de Roma. Mas em nenhuma ocasião Agostinho – sempre orador oficial – esquece o fato de que mais valioso que a palavra é o amor, de que os heréticos se persuadem com exemplos de amor fraterno, não com argumentações sutis. “Os olhos dos doentes queimam, por isso são tratados com delicadeza... Os médicos são delicados até com os doentes mais intolerantes: suportam o insulto, dão o remédio, não revidam as ofensas. Fique bem claro que não somos (católicos e donatistas) adversários: há um que cura e outro que é curado”.  

A espada dos bárbaros é a cólera dos antigos deuses


24 de agosto de 410. Uma terrível notícia abala o mundo: Roma, a capital do império, a cidade sagrada que desde a ocupação gaulesa de 387 a.C. nunca mais enfrentara a desonra da invasão, fora tomada por visigodos de Alarico. Forçando os muros aurelianos da Porta Salária, os bárbaros dedicam-se ao saque, incendiando e causando depredações. Mensageiros apressados trazem notícias trágicas, dizem que os cadáveres são tantos que não é possível enterrá-los. E agora, seguido por uma longa fileira de carros com os tesouros roubados dos  templos, Alarico dirige-se para o sul, para empreender a conquista da África.  

Um mito apagou-se. Durante séculos, pareceu que Roma era a predileta dos céus. Primeiro, protegida pelos deuses que Enéias trouxera de Tróia, depois pelo Deus que Pedro trouxera de Jerusalém. Agora não se podia mais crer nisso. A fraqueza do império – que precisou consentir na entrada pacífica dos bárbaros em seu território, que tivera de recrutar corpos militares inteiros entre os recém-chegados, que vira seus recursos desperdiçados nas lutas entre pretendentes a imperador – tornava-se patente. No Ocidente empobrecido, afastado das importantes rotas comerciais que asseguravam a riqueza de Constantinopla, a autoridade imperial diluiu-se, substituída pela concentração do poder em mãos dos grandes proprietários de terras. Somente a Igreja sobreviveria, conservando, em sua estrutura baseada na divisão administrativa do império, os vestígios da civilização romana. Somente a Igreja dispunha de elementos intelectualmente capazes, submetidos a uma rígida organização, de modo a conservar a centralização que caracterizara o mundo romano. A vontade única do imperador foi aos poucos substituída pela vontade única do bispo de Roma.  

Diante dos refugiados que fugiam à aproximação dos visigodos, diante daqueles que diziam que na ruína de uma cidade perecera todo o império, eleva-se a voz de Agostinho: “Vamos, cristãos, germes celestes, peregrinos na Terra, que andais à procura da cidade celeste nos céus, que desejais juntar-vos aos anjos, compreendei bem que estais aqui de passagem...” São palavras que dão a entender que nesse mundo tudo passa, e que as civilizações são mortais como os indivíduos. Mas os pagãos – e mesmo muitos cristãos amedrontados – parecem surdos às suas palavras. Roma caiu porque os antigos deuses foram ultrajados. Alarico não passa da mão vingadora de Júpiter. 

Para Agostinho, inicia-se outra batalha, uma das mais decisivas na história do cristianismo.  

Entre vários é preciso escolher

“A galinha come o escorpião e, digerindo-o, transforma-o em ovo. E como não falar de Roma? Não temos lá muitos irmãos? Não está lá uma grande parte da Jerusalém terrestre? É o que digo, quando não me calo a respeito dela, a não ser que não seja verdade o que dizem de nosso Cristo, que Ele seria culpado pela queda de Roma, protegida por divindades de pedra e de madeira... Deuses que têm olhos e não vêem, orelhas e não ouvem. Eis a que guardiões foi confiada Roma por homens doutos: a guardiões que não enxergam. Se tais deuses podiam proteger Roma, por que razão morreram antes dela? Sei que respondem – Roma morreu – É verdade, mas eles (os deuses) também morreram”. 

O trabalho em que Agostinho apresenta a defesa do cristianismo e convida seus contemporâneos a compreender o sentido profundo da história é a sua obra-prima, A Cidade de Deus. Já não se trata de um reino de Deus que sucede à vida terrena. A cidade de Deus e a dos homens coexistem: a primeira, antes simbolizada por Jerusalém, é agora a comunidade dos cristãos. A cidade dos homens tem poderes políticos, moral e exigências próprias. As duas cidades permanecerão lado a lado até o fim dos tempos, mas depois a divina triunfará para participar da eternidade. 

Agostinho levou 13 anos para escrever os 22 livros da obra que teria enorme influência em toda a Idade Média. Para ele, Deus legitima a própria existência do poder, sem garantir o exercício concreto deste. A providência divina não confere a um ato o caráter de ato moralmente cristão. Desta forma, um católico pode afirmar que nada se faz sem Deus, do qual procedem o princípio de autoridade e a orientação misteriosa dos fatos. E ao mesmo tempo, pode evitar que o cristianismo seja responsabilizado por este ou aquele acontecimento particular. O cristão pode, simultaneamente, ver a mão da providência na queda de Roma, e lutar contra o perigo bárbaro com todo o coração e todas as suas forças. A filosofia política de Agostinho é uma filosofia de tempos difíceis, e serviu admiravelmente aos objetivos de seu autor, destruindo a argumentação dos polemistas pagãos. “Roma não é eterna, porque só Deus é eterno”.  
O perigo imediato passara, a morte havia paralisado, em Consenza, a marcha de Alarico. O chefe bárbaro jazia, com seu cavalo e seus tesouros, no leito do rio Busento. Agostinho, porém, não encontrava descanso. Novas heresias, como a dos pelagianos, pretendiam afastar do cristianismo todo o elemento sobrenatural, ameaçavam a comunidade dos fiéis. O bispo prossegue em sua luta, procurando sempre antepor os argumentos do coração aos da razão. As palavras que mais frequentemente aparecem em seus escritos são amor e caridade. Amor, para ele, significa o conjunto de forças que leva o homem a um determinado caminho, escolhido pela consciência. “Há amores que devem ser amados, e amores que não devem ser amados”. Para Agostinho, o conhecimento abrange o homem inteiro, mente e coração. A alma é uma substância dotada de razão e apta para governar o corpo. A fé serve de ponto de partida para colocar a mente na direção certa, marca os limites do campo que a razão deverá preencher. A realização vem quando se compreende aquilo em que se acredita.  

Sua doutrina nasce nos estudos que se originaram da necessidade de responder aos heréticos. Agostinho procura uma filosofia – que ele entende como sendo o caminho para a felicidade – capaz de englobar o cristianismo e a salvação. Adota algumas posições dos seguidores de Platão, como a concepção de dois níveis de conhecimento – um através dos sentidos, e outro percebido unicamente pela razão. E junta-lhes a figura de Cristo. Com esses elementos iniciais ergue um edifício filosófico que muito influenciaria o pensamento ocidental e que, em alguns aspectos, conserva ainda hoje toda a sua força polêmica.  

Muitas vezes, porém, ao desenvolver uma idéia, interrompe o raciocínio para deixar fugir um grito de amor a Deus: “Ó Senhor, amo-Te. Tu me estremeceste meu coração com a palavra e fizeste nascer o amor por Ti. Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei... Tocaste-me, e ardo de desejo de alcançar Tua paz”. Mesclavam-se nele o polemista inimigo das heresias, o administrador dos recursos da Igreja e o místico, que escolhera, tantos anos atrás, uma vida de recolhimento.

Uma árvore tem folhas verdes. Como serão os frutos?

“Agostinho, vida”, é o grito que ressoa na Basílica da Paz de Hipona, a 26 de setembro de 426. É um dia de grande emoção para os fiéis: o bispo Agostinho designa o seu sucessor na pessoa do Padre Heráclio. Repete-se, depois de trinta anos, uma cena que os habitantes da cidade não esqueceram – a escolha de Agostinho por Valério. Como aquele que o nomeara, Agostinho é agora um velho. Tem 72 anos. Relembra aos fiéis que uma vez exprimira o desejo de ter cinco dias livres por semana para poder escrever e rever as obras que de todos os lugares lhe solicitavam. 

Nascem, depois de um ano de trabalho, os dois volumes de Retratações, que comentam dezenas de obras. Sua “especialização” como escritor não o impede, porém, de continuar a se dirigir ao povo.  

Durante quarenta anos, desde que reencontrou a fé, Agostinho teve sua vida sobrecarregada. Primeiro constrói seu mosteiro. Torna-se depois sacerdote e bispo, encarregado até mesmo de distribuir justiça em nome do império. Conseguiu, entretanto, permanecer fiel à sua vocação de contemplativo e arranjou tempo para realizar uma obra literária gigantesca – 113 trabalhos, 224 cartas e mais de quinhentos sermões. Excetuadas as Confissões, escritas entre 397 e 398, foram precisos vinte anos para completar os 15 livros sobre a Trindade. O De Doutrina Christiana, depois de parcialmente escrito, teve de aguardar quase trinta anos até que Agostinho pudesse cuidar da terça parte restante.  

Poucos escritores do passado são conhecidos tão detalhadamente quanto ele. Se as Confissões revelam até mesmo os recantos de sua alma, os discursos que pronunciou em quarenta anos mostram-no sob outros aspectos. É fácil imaginá-lo com sua voz, que a idade tornava apagada, usando uma linguagem direta e fácil, muito diferente das sutilezas de seus escritos. O antigo mestre de eloquência consegue transmitir e adaptar os conceitos mais abstratos às exigências e à capacidade do auditório. 

Falava duas vezes por semana na Igreja da Paz. Em certa ocasião, explicando São João aos fiéis, ficou tão entusiasmado que pregou durante cinco dias consecutivos, constantemente aplaudido. Mas o bispo não alimentava ilusões: ”Vossos louvores são folhas de árvore ; gostaria de ver os frutos”. Muitas vezes lamentou a distância entre o seu pensamento, sua fé e amor a Deus, e as palavras que proferia. “...Entretanto, a atenção dos que me escutam prova-me que meu modo de falar não é tão frio quanto possa parecer-me; pelo seu interesse compreendo que tiram dele algum proveito...”  

O lugar do pastor é à frente do rebanho

Na primavera de 429, a África é dominada pelo terror. Chamados por Bonifácio, comandante do exército imperial, os vândalos atravessam o Mediterrâneo. Vêm como amigos. No entanto, passados poucos meses, o general é obrigado a empunhar as armas contra os soldados de Genserico. O Bispo de Hipona dirige palavras severas a Bonifácio: “Olha a África, olha como está devastada.. Ninguém teria pensado ou suposto que o célebre Bonifácio, aquele que de simples tribuno, com poucos soldados, vencendo e destruindo toda resistência, conseguiu pacificar todas estas populações, teria se sujeitados aos bárbaros, que com tamanha audácia devastam e saqueiam tantas regiões outrora povoadas... Eu, que estou atento às últimas causas, sei quantos males a África sofre por causa dos pecados de seus habitantes; mas não quisera que tu estivesses entre os malvados e iníquos; por causa dos quais Deus flagela os que escolhe com penas temporais...” 

Tarde demais. Os vândalos eram piores inimigos que os visigodos de Alarico. Seu nome tornou-se sinônimo de destruição e morte. Em poucos dias devastaram a Mauritânia, e em seguida a Numídia. Apesar dos esforços de Bonifácio, os bárbaros tornaram-se donos de todo o país. As legiões romanas dominavam apenas três cidades: Cartago, Cirta e Hipona. Nesta última, mais bem fortificada, Bonifácio prepara a derradeira defesa. Agostinho, aos 75 anos, vê que não há mais salvação para os hiponenses. Embora, nas amargas horas de desânimo, peça a Deus que o tire deste mundo, torna-se, como fizera vinte anos antes em relação aos refugiados de Roma, o organizados do auxílio aos fugitivos. Torna-se a voz da África, a testemunha mais categorizada do fim da latinidade no continente.

  Data desses dias uma das últimas cartas escritas a Honorato, bispo de Thiabe, para lembrar que ao pastor de almas não é permitido fugir ante os perigos, e que o lugar dos bispos é à frente dos fiéis, até o fim: “...não devemos, por causa desses males incertos, cometer a culpa certa de abandonar nosso povo. Daí, adviria a ele grande mal, não quanto às coisas desta vida, mas da outra, que merece ser procurada com maior diligência e solicitude... Temamos que se extingam, abandonadas por nós, as pedras vivas, mais que a obra do incêndio que queima a estrutura de nossos edifícios terrenos. Temamos a morte dos membros do Corpo de Cristo, privados do alimento espiritual, mais que as torturas a que a ferocidade dos inimigos poderia submeter os membros do nosso corpo...”

Todo conhecimento reside em Deus e na alma

Catorze longos meses resistiria Hipona ao assédio dos vândalos. A cidade estava repleta de refugiados, a quem era preciso alimentar e vestir. Ao inimigo externo juntavam-se a carestia, a fome e as epidemias. Agostinho só podia oferecer a toda essa gente as suas preces. “Vós dizeis – Desgraçados de nós, o mundo morrerá. Mas ouvi a palavra: Céu e Terra passarão, mas a palavra de Deus não passará”. 

Muitos começaram a julgá-lo capaz de milagres. Certo dia trouxeram-lhe uma pessoa doente, para que ele a curasse com sua benção. Agostinho respondeu: “Meu filho, se tivesse tais poderes, começaria por curar a mim mesmo”. Sua doença durou poucos dias. Quando percebeu que a morte se avizinhava, pediu que o deixassem só, para que pudesse rezar. Nas paredes do quarto mandara afixar pergaminhos nos quais fizera escrever os salmos penitenciais de Davi. 

Agostinho morreu na noite de 28 para 29 de agosto de 430. “Não fez testamento”, escreveu Possídio, “porque, pobre para servir a Deus, não tinha bens a deixar... Mas deixou à Igreja um clero numeroso e mosteiros cheios de homens e mulheres sob voto de continência e obedientes a seus superiores”.  
De livro na mão e coração em chamas – assim os pintores medievais viram o bispo de Hipona. O livro simboliza a ciência; o coração inflamado, o amor. Sabedoria e amor foram os seus dons inseparáveis, que muito contribuíram para que o Papa João II declarasse, em 534, que “a Igreja de Roma segue e conserva as doutrinas de Agostinho”. 

Ao construir sua filosofia como uma arma de defesa da fé, Agostinho forjou uma visão do mundo que influenciaria, por muitos séculos, todos os líderes espirituais do ocidente. A Cidade de Deus, síntese de filosofia, teologia, estudo das relações entre o Estado e a liberdade de consciência, marcou profundamente o pensamento político da Idade Média. Carlos Magno, considerava-o o seu livro preferido. 

Agostinho foi o autor mais citado no último Concilio do Vaticano, destinado a abrir novos rumos para o cristianismo dos tempos atuais. O fato talvez tivesse surpreendido aquele que, nos Solilóquios escritos ao pé da água que corria pelas termas de Cassiciaco, declarava que sua única finalidade era conhecer Deus e sua própria alma.  
 
 
 
 O pensamento político de Santo Agostinho vídeo
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Fernando Pessoa

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

Fernando Pessoa ganha biografia que quer dar conta de suas inúmeras pessoas

Catatau de Richard Zenith, finalista do Pulitzer, apresenta o homem que foi os quatro maiores poetas portugueses do século

Walter Porto, fsp, 13 jan. 2023

Fernando Pessoa viveu seus 47 anos numa existência que poderia, sem muito risco de injustiça, ser chamada de tediosa. Passava boa parte do tempo escrevendo sozinho, nunca foi afeito a grandes aventuras e, ao que tudo indica, morreu virgem.

 
Retrato do escritor Fernando Pessoa feito pelo artista plástico Daniel Lannes Filipe Berndt/Reprodução

Sua vida dificilmente renderia uma boa biografia. Mas a questão é que, dentro dele, havia muito mais gente.

Quem são Fernando Pessoa - fotos 

"Há autores tão grandes quanto Pessoa, mas é difícil encontrar um autor tão vasto", diz Richard Zenith, seu biógrafo, que se valeu dessa vastidão para criar um livro de mais de 1.100 páginas — que, publicado primeiro em inglês há dois anos, acabou finalista do Pulitzer.

Apesar de ter nascido a um oceano de distância, o americano se tornou um dos maiores especialistas no autor português que estuda há mais de 30 anos. Nas páginas de sua biografia, mergulha no universo composto de tinta e papel no qual, segundo ele, Pessoa viveu sua sexualidade, sua espiritualidade e sua política.

O pesquisador e tradutor, que pontua diversos "well" em meio ao característico "S" do sotaque lusitano, vasculhou como poucos o acervo de mais de 25 mil papéis que Pessoa deixou anotados em seu apartamento e foi responsável por estabelecer uma versão respeitada do caudaloso "Livro do Desassossego", publicada aqui pela Companhia das Letras.

 
O pesquisador americano Richard Zenith, autor da biografia de Fernando Pessoa que sai pela Companhia das Letras - Hanmin Kim/Divulgação

A Todavia lança outra versão este mês, organizada por Jerónimo Teixeira, num resgate amplo de Pessoa que também tem trazido às livrarias edições frescas do clássico "Mensagem", seu único livro publicado em vida no idioma natal, e de coletâneas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis —que também são Pessoa, apesar de não serem.

Esses heterônimos, afinal, são personalidades próprias criadas com esmero pelo escritor, num dos traços mais distintivos de seu projeto literário. Não se trata da simples assinatura de textos com pseudônimo: aqui há o gesto de elaborar de fato novos autores, com biografias, visões de mundo e trejeitos particulares.

"Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do século 20 foram Fernando Pessoa", escreve Zenith no prefácio de seu livro —mais que um subterfúgio literário, segundo ele, esse era um exercício voraz de expansão de si mesmo.

"Pessoa queria sentir tudo de todas as maneiras", afirma. "Quando ele escreve sob outro eu, há muita autobiografia também, ainda que um pouco distorcida. São aspectos do que ele era ou sonhava ser."

Álvaro de Campos, por exemplo, parecia ser o oposto de Pessoa. Enquanto este era um homem cerebral e tímido, o heterônimo era um dândi espalhafatoso, viajante contumaz, com vida sexual ativa com homens e mulheres.

A lista de assinaturas é tão ampla —Caeiro, Reis e Campos são só as mais bem delineadas— que tornam um desafio separar o que era opinião real e o que era performance do escritor. Mas talvez este seja um esforço fútil —afinal, como diz um de seus textos mais célebres, o poeta é um fingidor.
Zenith, um dos especialistas mais capacitados para fazer essa depuração, lembra o agravante de que Pessoa não era alguém de ideias fixas. "Em 1915, ele publicou um texto dizendo que o intelectual moderno tinha a obrigação cerebral de mudar de opinião várias vezes no mesmo dia. E ele mudava, porque tinha uma mentalidade flexível, estava sempre a reconsiderar."

Isso vale para suas posições políticas. Libertário, foi de um republicanismo feroz no período final da monarquia portuguesa, mas depois se desiludiu com a política partidária e passou a condenar sua instabilidade. "Houve um período, por volta de 1920, em que sua política era bastante reacionária."

Com a ascensão do fascismo pela Europa, Pessoa teve amigos que defendiam Benito Mussolini, ao qual ele jamais aderiu. Quando a ditadura que descambaria no salazarismo começou a se instalar, em 1926, ele deu a ela "o benefício da dúvida" num primeiro momento, segundo Zenith.

"Mas quando viu a repressão da palavra, a censura, a interferência na vida pessoal, ele se tornou completamente contrário ao governo. Aquelas ideias reacionárias de antes, quando ele desconfiava da democracia, foram mudando. Era crítico ao humanitarismo, mas se tornou bastante humanitário ao fim da vida."

"Mensagem", por exemplo, evidencia "ideias fantasistas" de Pessoa em prol do domínio cultural do império português sobre o mundo. "Mas depois, com os pés na terra, ele reagiu a isso."

A ditadura em Portugal - fotos 

Essa fluidez de opiniões —no limite, de identidades— é algo que faz com que o escritor fale mais com os leitores de hoje do que com os de sua própria época, segundo o biógrafo. É bom lembrar, aliás, que o grosso de sua obra foi publicado depois de sua morte em 1935 —a primeira edição do "Livro do Desassossego" só viu a luz do dia em 1982.

Se na primeira metade do século os críticos costumavam enxergar seus heterônimos como uma "brincadeira curiosa", o leitorado de hoje é mais aberto a abraçar a literatura de "um ser que é muitos seres", a aceitar a falta de um eu sólido e coeso.

"Os críticos de antigamente tinham mais interesse nos textos assinados pelo próprio Pessoa, porque viam nos outros falta de sinceridade", afirma Zenith.

Hoje em dia, assumir outras personalidades para se expressar artisticamente não é entendido como disfarce, menos ainda desonestidade. "Temos uma noção melhor de que, de certo modo, estamos sempre a representar."


Pessoa: uma Biografia


    Preço R$ 199,90 (1.160 págs.)
    Autoria Richard Zenith
    Editora Companhia das Letras
    Tradução Pedro Maia Soares



Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


In Fernando Pessoa,  Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.


___________


Tabacaria é um poema longo e complexo, onde o heterônimo Álvaro de Campos levanta as questões centrais que regem a sua poesia. A obra é das criações poéticas mais famosas de Fernando Pessoa.

Escrito em 1928 (e publicado em 1933, na Revista Presença), os versos são um registro do tempo em que viveu, da modernidade veloz e do sentimento de incerteza do sujeito que se sentia perdido diante de tantas mudanças. A sensação de vazio, de solidão e de incompreensão são as linhas norteadoras do poema.    Rebeca Fuks


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Carta de achamento do Brasil

Introdução de Sheila Hue para o livro "Carta de achamento do Brasil - edição comentada"

Contam os brancos que um português disse ter descoberto o Brasil há muito tempo. Pensam mesmo que ele foi o primeiro a ver nossa terra. [...]. Nasci na floresta e sempre vivi nela. No entanto, não digo que a descobri e que, por isso, quero possuí-la. Assim como não digo que descobri o céu, ou os animais de caça! Sempre estiveram aí, desde antes de eu nascer. Davi Kopenawa, A queda do céu, p. 253.

Vozes ao vento

Uma das cenas mais intrigantes da carta de Pero Vaz de Caminha (disponível aqui) é a do primeiro contato entre os navegantes portugueses e os habitantes da terra. 


Trata-se de uma cena cheia de ruído, de barulho, de vozes. O pequeno bote dos viajantes aproxima--se da boca do rio do Frade, no Sul do atual estado da Bahia. Cerca de 20 homens vêm na direção deles, “rijos”, com arcos e flechas em posição de batalha, na defensiva, guerreiros. Ao final, segundo a versão de Caminha, acabam trocando objetos: chapéus europeus por cocares de penas e colares de contas. Sabemos que os habitantes da terra falam, expressam-se oralmente, assim como os recém-chegados. Mas o autor da carta registra no texto somente o som das ondas, tão ruidoso que impedia que os indígenas fossem escutados, num local não conhecido pela arrebentação ruidosa.
“Ali não pudemos entender a fala deles nem os ouvir direito, por o mar quebrar na costa”, escreve, no dia 23 de abril de 1500, empregando uma imagem metafórica para representar o que outro texto, conhecido como Relato do piloto anônimo, descreve com mais exatidão: “não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem”. Não sabemos o que falaram, mas sabemos que os indígenas se expressaram o bastante para que sua língua fosse identificada como desconhecida.

 

Homem de letras, funcionário régio, conhecido por sua habilidade com a escrita, a ponto de ter redigido capítulos para as Cortes (as assembleias legislativas do reino), conhecedor do latim, sabedor da existência dos idiomas africanos da costa do Atlântico, com os quais os portugueses tinham contato havia décadas, Caminha devia ter alguma familiaridade com o árabe, falado por alguns dos membros da tripulação. A frota de 13 embarcações  e cerca de 1.500 homens dirigia-se a Calicute, na Índia, para fundar o primeiro entreposto comercial português no Oriente, um empreendimento da Coroa portuguesa, com o apoio de investidores italianos. Os homens que iam no pequeno bote eram experientes, tinham viajado pelo Mediterrâneo, alguns conheciam Ceuta, outros haviam atuado na costa africana ocidental e outros ainda já tinham viajado até a Índia com Vasco da Gama, passando pela costa africana do Índico e inaugurando a rota que agora pretendiam seguir pela segunda vez. Alguns deles, como Duarte Pacheco Pereira, provavelmente já haviam estado na América do Sul. 


Mas Pero Vaz de Caminha nunca viajara pelo “mar oceano”, como então se dizia. Embarcara pela primeira vez, na segunda viagem portuguesa à Índia, para assumir o lucrativo cargo de feitor em Calicute, onde seria vitimado pouco após sua chegada durante um ataque de comerciantes “mouros”, muçulmanos, insatisfeitos com a nova concorrência europeia. Talvez por não ter familiaridade com as viagens marítimas e com a realidade do encontro com outros povos, sua carta narra copiosamente mal-entendidos, equívocos ou mesmo a total ausência de comunicação entre as partes. 


Apesar disso, seu relato acaba sendo eloquente ao registrar, ou silenciar, o que não é ouvido e entendido. A primeira cena do contato, em que a arrebentação das ondas impede a escuta, vai se refletir no restante da carta, na qual outros discursos indígenas, sejam peças de oratória tupi, sejam linguagens gráficas da pintura e dos artefatos corporais, serão ignorados, não compreendidos ou encarados com perplexidade. 


Essa não escuta das vozes indígenas por parte de Caminha, um funcionário do empreendimento expansionista da Coroa portuguesa, será a tônica em muitos tratados, cartas, notícias e demais gêneros de escrita em que se registraram os lances da colonização do território que então, em abril de 1500, oficialmente era tomado pelo reino católico português. Os europeus liam os novos povos com o material que tinham à mão: obras medievais, literatura clássica e livros de viagem como o de Marco Polo. Colombo estava então fazendo sua terceira viagem e pela primeira vez pisaria o continente americano. E o próprio Américo Vespúcio, que viria a nomear o continente, ainda não tinha embarcado na sua viagem decisiva, que resultaria nas famosas cartas que circulariam pelo mundo em vários idiomas, criando uma imagem fantástica e irresistível da imensa nova porção de terra e de seus inquietantes e então incompreensíveis habitantes.


Dessa forma, mesmo que a frota portuguesa que aportou no Brasil já tivesse informações sobre as  primeiras viagens de Colombo, sobre a chegada de Vicente Yáñez Pinzón ao Norte da América do Sul e sobre a secreta e pouco sabida incursão marítima de Duarte Pacheco Pereira em 1498 ao que viria a ser o Brasil, mesmo assim o contato com os povos tupi do litoral desafiava tudo o que já tinham experimentado nas costas africanas, nas conhecidas praças das grandes cidades africanas do Mediterrâneo ou na conturbada vivência de Vasco da Gama na Índia.

 

É especialmente notável a cena em que Pedro Álvares Cabral, um membro da alta nobreza do Norte de Portugal, “espera”, na beira do rio Mutari, um ancião que se aproxima. Trazendo na mão um bastão de madeira, identificado por Caminha como um remo de canoa, mas provavelmente um ibirapema – indicativo de sua relevância naquele grupo social –, o chefe ou xamã faz um longo discurso dirigido aos recém-chegados, provavelmente um exemplar dos discursos formais dos antigos tupis, conhecidos por serem grandes oradores. A fala abundante do ancião causa perplexidade, fazendo com que o capitão-mor, Cabral, se enfade e lhe vire as costas. Os nove dias de contato esparso com as populações do Sul da Bahia, os tupiniquins de então, não seriam suficientes para que alguma compreensão maior fosse possível. Três anos mais tarde, franceses da Normandia, em um navio comercial, tentariam a sorte na costa do Brasil e, ao passarem um longo tempo entre os guaranis do Sul e os tupis mais ao Norte, conseguiriam se comunicar com os “selvagens” a ponto de estabelecer alianças e contratos. 

 
Do ponto de vista indígena, como observam Ailton Krenak, [1] Álvaro Tukano, [2] Eliane Potiguara [3] e Davi Kopenawa, [4] entre outras vozes indígenas, a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, longe de ser motivo de louvor, é o marco de uma brutal disrupção das populações que habitavam o território, estimadas entre dois e nove milhões de indivíduos. Em menos de um século, as epidemias causadas por doenças contra as quais não tinham imunidade, as guerras de apresamento de escravos e as ações de tomada de território levadas a cabo pelo projeto de colonização que tomava curso em todo o continente provocariam uma depopulação talvez inédita na história da humanidade, reduzindo drasticamente o número de habitantes e provocando a desintegração social ou novos arranjos sociopolíticos quase sempre desvantajosos para os povos nativos. [5] Ler hoje a carta de Pero Vaz de Caminha é observar o início desse processo diruptivo e destrutivo provocado pela colonização do Brasil e refletir sobre os marcos iniciais do embate entre os portugueses e os povos indígenas. Mas é também perscrutar, através de uma janela, um mundo que um dia existiu e a potência daqueles povos, que até os nossos dias pode ser constatada no protagonismo histórico indígena, marcante nesta segunda década do século XXI na luta por demarcação, recuperação ou manutenção de suas terras, de sua cultura, de seu modo de vida e de seus conhecimentos milenares que hoje, mais do que nunca, podem servir de farol para um possível futuro coletivo.
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[1] Krenak, 1999; Kadiwéu & Cohn, 2019; Krenak, 2019.

[2] Kadiwéu & Cohn, 2019.

[3] Idem.

[4] Kopenawa & Albert, 2015.

[5] Fausto, 2005.
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Na carta de Caminha observamos o confronto entre dois pontos de vista, que o narrador desvela com sua hábil pena, revelando-nos a dubiedade das intenções dos viajantes, as diferentes perspectivas em jogo naquele encontro e, principalmente, compondo uma pintura viva, falante, dos povos que pela primeira vez contatava. Como um homem treinado nas artes da escrita e da retórica, e além disso dotado de um verdadeiro talento que podemos chamar de literário, sua carta ao rei D. Manuel, sem paralelo nos discursos quinhentistas sobre as navegações e a expansão territorial europeia, é principalmente uma descrição minuciosa dos indígenas, de suas atitudes, seus corpos, seus  artefatos, seus grafismos, suas pinturas corporais, sua música, sua arte plumária exuberante, e mesmo dos discursos que não conseguiu ouvir, dando-nos o testemunho mais antigo da grande oratória dos antigos tupis.


Os desentendimentos ou os equívocos derivam, sobretudo, das conflitantes visões de mundo. Enquanto os povos indígenas entregavam aos recém--chegados portugueses, entendidos talvez como xamãs ou seres de dimensões espirituais, presentes que simbolizavam amizade e perspectiva de aliança, os viajantes, empenhados em uma aventura comercial, religiosa e política de expansão territorial, entendiam a troca de cocares de plumas – valiosos na Europa – e artefatos bélicos por chapéus e quinquilharias europeias como um escambo desigual e ingênuo por parte dos anfitriões, que não sabiam avaliar o valor pecuniário das coisas. A mentalidade comercial do raiar da época moderna, marcado pelo capitalismo mercantil, era inteiramente estranha à cultura tupi. Em lugar de aliança ou amizade, os futuros colonizadores buscavam ali o mesmo que já tinham achado na África Ocidental, às margens do Atlântico, na chamada Mina, cujo ouro irrigava a Coroa portuguesa e os ricos banqueiros italianos e de outras nações europeias envolvidos nas empresas marítimas portuguesas e espanholas. 

 

O ouro, como sabemos, só seria encontrado em proporções significativas no final do século XVII, mas é o principal foco das investigações portuguesas na terra nova encontrada. O Brasil seria inicialmente explorado como território de agricultura extensiva da cana de açúcar, principal ativo econômico da colonização. Entretanto, ainda no século XX e também no XXI, a exploração de ouro continua impactando as populações indígenas da floresta, como testemunha David Kopenawa, xamã e líder yanomami, no livro A queda do céu, escrito em parceria com o etnólogo Bruce Albert, [6] no qual narra cenas de contato muito parecidas às descritas por Caminha e em que relata a destruição da natureza e das populações nativas provocada pela mineração ilegal (e também pela legal), questão premente em nosso presente histórico e que hoje transborda as fronteiras territoriais da floresta e impacta todo o país. Como observa Aílton Krenak em “O eterno retorno do encontro”, [7] “os fatos e a história recentes dos últimos 500 anos têm indicado que o tempo desse encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todo dia”.


É no bojo dessas atuais reflexões de pensadores indígenas que podemos perceber o quanto a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita há mais de 500 anos, é ao mesmo tempo emissária de um outro mundo e interlocutora do presente, sendo igualmente um importante documento para a reflexão sobre o futuro.
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[6] Idem.

[7] Krenak, 1999, p. 25
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CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL - Edição comentada

Ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da Unicamp diretoria de tratamento da informação. Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – CRB-8a / 172

C146c Caminha, Pero Vaz de, 1450?-1500. Carta de achamento do Brasil / Pero Vaz de Caminha; introdução e modernização do texto: Sheila Hue. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2021.           isbn 978-65-86253-82-5
1. Cartas portuguesas.  2. Brasil – História – Descobrimento, 1500.  I. Hue, Sheila.  II. Título.            cdd - 869.62- 981.014

Sumário

Introdução .....................................................................9

A carta ..........................................................................55

Bibliografia .................................................................119  

Lista de figuras ...........................................................129

Sobre as imagens de capa ...........................................133


sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Carta de Pero Vaz de Caminha


 

Senhor,  

posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa  Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!  

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que,  para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.  

E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:  

E digo quê:  

A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária.

E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.  

Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser !  

Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais!  

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.  

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!  

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante -- por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças -- até meia légua da terra, onde todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.  

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.  

Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.  

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.  

À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
 
E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.  

E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa.  

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.  

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobrepente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.  

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!  

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.  

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.  

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.  

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.  

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.  

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.  

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.  

O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçavase por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.  

Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.  

E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.  

Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.  

Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.  

Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos beiços.  

E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.  

E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.  

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.  

Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.  

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.  

E com isto nos tornamos, e eles foram-se.  

À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.  

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.  

Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.  

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.  

Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.  

Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.  

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.  

Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.  

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.  

E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.  

E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.  

E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.  

E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.  

Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.  

Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.  

E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.  

Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.  

Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.  

Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.  

Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.  

Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.  

Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.  

E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.  

E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.  E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.  

Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem -- para os bem amansarmos !  

Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.  

Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.  

Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.  

E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.  

Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos.  

E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.  

Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.  

Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.  

E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!  

E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.  

Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.  

Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.  

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.  

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.  

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavamna aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.  

Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.  

Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.  

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o

Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!  

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.  

Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.  

E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.  

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!  

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.  

Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um - ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.  

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.  

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor.  

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.  

Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
 
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.  

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.  

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de EntreDouro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!  

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!  

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.  

E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê.  

Beijo as mãos de Vossa Alteza.  

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de
1500.  


A Carta, de Pero Vaz de Caminha
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