Armadilha,
Trap, 2024, M. Night Shyamalan
Relatos
selvagens, Relatos salvajes, 2014, Damián Szifron
Quadrilha
maldita, Day of the Outlaw, 1959, André De Toth
Aos
ventos que virão, 2013, Hermanno Penna
Wagner,
Minissérie de televisão, 1983, Tony Palmer
Faustão,
1971, Eduardo Coutinho
A Fúria, The
Fury, 1978, Brian De Palma
O Cangaceiro,
1997, Anibal Massaini Neto
The
Hitch-Hiker, 1953, Ida Lupino
Assim
morrem os bravos, The Glory Guys, 1965, Arnold Laven
Sob o signo de
Capricórnio, Under Capricorn, 1949, Alfred Hitchcock
Os
Cruéis, I crudeli, 1967, Sergio Corbucci
Gente
no Domingo, Menschen am Sonntag, 1930, Direção: Robert Siodmak & Edgar
G. Ulmer & Rochus Gliese
Ouro e
Maldição, Greed, 1924, Erich von Stroheim
Estrela do Norte,
The North Star, 1943, Lewis Milestone
Deus sabe quanto
amei, Some came running, 1958, Vincente Minnelli
O monstro
de Londres, The Sleeping Tiger, 1954, Joseph Losey
Se meu
apartamento falasse, The apartment, 1960, Billy Wilder
O
terceiro tiro, The trouble with Harry, 1955, Alfred Hitchcock
Aconteceu
num apartamento, The notorious landlady, 1962, Richard Quine
O Jogo da Rainha, Firebrand, 2023, Karim Aïnouz
Cem anos
de solidão, Cien Años de Soledad, Série de TV, 2024, Alex Garcia Lopez
& Laura Mora Ortega
O anônimo
veneziano, Anonimo veneziano, 1970, Enrico Maria Salerno
Os
violentos vão para o inferno, Il mercenario, 1968, Sergio Corbucci
Hayao
Miyazaki and the Heron, 2024, Kaku Arakawa
A rainha
serpente, The Serpent Queen, Série de TV, 2022–2024, Justin Haythe
(criação)
Ainda
estou aqui, 2024, Walter Salles
Round 6,
Ojing-eo geim, Série de TV, 2021–2025, S02, Hwang Dong-hyuk (S02)
27/11/24
Armadilha, Trap, 2024, M. Night Shyamalan
Crítica | Armadilha (2024) por Felipe Oliveira 10 de agosto de 2024
Inimigo da sociedade.
Considerado o pai do suspense e das reviravoltas, para cada novo trabalho de M. Night Shyamalan, a fama para que o foi O Sexto Sentido reflete nas expectativas do público e crítica, enquanto que o cineasta insiste em ser resiliente e defender sua forma de contar histórias – até sua única trilogia (Corpo Fechado, Fragmentado e Vidro) é distinta por ter focado na particularidade dos personagens e seus universos. Depois dos últimos filmes lançados sob acordo com a Universal Pictures, Shyamalan provoca uma experiência diferente em Armadilha, thriller que se passa durante o show de um artista pop. Mesmo com a pressão, Shyamalan é feliz em articular uma lógica própria para seus filmes, ainda mais sabendo que o resultado não vai ser diferente do que tem sido: mantendo a parcela fiel de quem enxerga seu cinema como autoral e atraindo o hate da geração manjada em reviravoltas.
Embora a premissa de Trap não tenha sido disfarçada na divulgação – isto é, um serial killer que cai numa arapuca ao levar sua filha ao show de sua ídolo favorita – a armadilha apontada no título se torna notória pela forma escrachada que Shyamalan inicia o filme. Se a expectativa fez imaginar uma dança de gato e rato no nível Tom Cruise e Hayley Atwell em Missão: Impossível 7 – Acerto de contas: parte um enquanto se sabotavam e fugiam das autoridades num aeroporto, o que o diretor indiano faz é tratar as tentativas de fuga do assassino procurado com um cinismo ridículo, um pastelão que não tem vergonha de se assumir. Encontrar um suspense para chamar de clássico é apenas a isca que a audiência espera morder, mas se quiser, Shyamalan faz do thriller uma comédia com toques sobrenaturais e tiradas descabidas que só elevam a performance de Josh Hartnett.
É interessante como Shyamalan é direto ao deixar claro a dicotomia que há no personagem de Hartnett: de um lado, um pai cuidadoso que está realizando o desejo de sua filha em ir a um show, do outro, um psicopata. Essa dualidade, de um homem de família e um criminoso caçado, se choca ao se ver numa emboscada, e essa é a parte divertida de Armadilha. Explorar as possibilidades em um espaço limitado é algo frequente na filmografia do cineasta indiano, e é através da olhadas de Cooper para a câmera – o que entra a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom – que a audiência é envolvida na claustrofobia por ter duas figuras – o procurado e a polícia – tendo que agir discretamente em um estádio cercado por mais de vinte mil pessoas. Ao contrário de usar o realismo da situação e explorar os absurdos disso, Shyamalan insere um humor sádico que aproveita várias nuances de Hartnett em cenários isolados, ao brincar com a tensão e as alternativas que tenta encontrar para fuga.
A experiência prometida no conceito sobre um serial killer que tem um show como cenário é cumprida, mas também se faz um meio de Shyamalan trazer o tema recorrente em seus filmes. Enquanto os recentes Tempo e Batem à Porta refletiam os temores do cineasta sobre sua família, em Trap, traduz o pavor íntimo de ser o cara que põe seus entes em perigo. Essa reflexão é nítida do terço final, quando a produção assume um tom de urgência e perigo que não era sentida com a mesma intensidade nas cenas do show. Claramente Shyamalan se diverte ao jogar em diferentes nuances, mas é na dualidade de Cooper que se encontra o coração do filme, ao refletir uma paternidade fajuta que aos poucos revela a psicopatia que camufla frente à responsabilidade.
Mesmo com a atuação de Harnett sendo tão precisa, o tom do filme sempre soa caricato, como se não quisesse levar a própria premissa a sério. É mais um filme de Shyamalan, mas também em um nível estranho, que se sustenta mais pelo nome principal do elenco do que as ideias que deixa na linha da sugestão – como a chefe da operação, liderando a polícia incompetente. A tensão do momento é logo quebrada pelos excessos e as obviedades das escolhas. A exemplo da cena que a artista pop toca piano, o que ao mesmo tempo é um artifício genérico para o gênero, mas que em Armadilha se mostra ridículo – o que é aceitável dentro da proposta do pai do suspense em oferecer, conscientemente, essa experiência para o público.
28/11/24
Relatos selvagens, Relatos salvajes, 2014, Damián Szifron
Antologia: Pasternak, Las ratas, El más fuerte, Bombita, La propuesta, Hasta que la muerte nos separe
'Relatos Selvagens', dez anos depois, está acima das provocações atuais
Sérgio Alpendre, fsp, 28/11/2024
Revisão de longa dirigido por Damián Szifron mostra que há algo além da oposição entre o cinema argentino e o brasileiro Quando "Relatos selvagens" foi lançado no Brasil, no final de 2014, não foram poucos os críticos brasileiros que o usaram como exemplo da superioridade do cinema argentino sobre o nosso.
Dez anos depois, a discussão já não faz o menor sentido, mas vale a pena voltar ao filme, que agora reestreia nos cinemas após três anos em exibição em São Paulo, até 2017, para ver o que restou de sua verve provocadora, que revelava, na época, algo que o cinema brasileiro, supostamente, seria incapaz de fazer.
Primeiro ponto: claro que o cinema brasileiro não pode fazer coisas que o cinema argentino faz. O contrário também é verdadeiro. Cada cinematografia tem seus percalços, suas medidas de representação, suas ambições e seus cenários a serem criticados. Temos que nos preocupar em fazer o melhor cinema brasileiro possível, não um cinema melhor que o argentino.
Afinal, como medir essas coisas? Público e premiações nunca foram bons critérios de avaliação. E uma avaliação mais cuidadosa só seria possível vinda de alguém que viu todos os filmes produzidos nos dois países num período específico. Mesmo assim, é puramente subjetivo.
Segundo ponto: para ficar bem claro, há talento na direção de Damián Szifron. Algo desse talento está presente também em seu filme seguinte, "Sede assassina", de 2023, seu primeiro trabalho nos Estados Unidos e o primeiro em inglês. Mas se encontra de forma mais intensa em "Relatos selvagens", ainda que os equívocos também apareçam de forma mais vistosa.
Temos seis histórias envolvendo revoltas, vinganças, traições, corrupção e protestos. Na primeira delas, que funciona como um prólogo, um piloto junta num mesmo voo todos que o humilharam no passado, para depois jogar o avião contra seus próprios pais, os culpados de todo o seu sofrimento, segundo seu psicanalista, por sinal, um dos passageiros.
Filmes em episódios costumam pecar pela irregularidade. Alguns relatos são melhores que outros, não só pela trama que ensejam, mas eventualmente pelo roteiro, pela direção ou pela interpretação de todo o elenco.
"Relatos selvagens" também sofre desse mal, ainda que nenhum episódio seja realmente ruim, como também não há episódio muito bom. Todos estão num espaço qualitativo entre o interessante e o bem-sucedido. Todos têm escolhas que me parecem acertadas e escolhas que me parecem infelizes.
Em alguns momentos, o filme parece ter esperteza em excesso, piscadelas para plateias eventuais de shopping centers. Em dois episódios, o primeiro e o último, há um personagem vomitando, por exemplo. É uma das pragas do cinema contemporâneo. No entanto, percebemos que os melhores episódios têm essa esperteza bem dosada.
Vejamos o da estrada, que acentua seu aspecto de desenho animado. Temos um homem com seu carro novo e veloz tentando ultrapassar um outro com o carro velho e lento. Ao ser ofendido na ultrapassagem, o do carro velho passa a atacar o riquinho depois que este foi obrigado a parar por causa de um pneu furado.
Temos então um duelo entre quem não tem nada a perder e quem acha que pode ganhar tudo. Szifron mostra o argentino tosco e o argentino rico e arrogante, duas facetas masculinas ridículas. Talvez esteja aí uma chave para entender o que se passa na Argentina: uma grande nação, refém por vontade própria de um presidente ultraliberal com motosserra. A vida ultrapassa a arte, mais uma vez.
Outro episódio de destaque é o do playboy que atropela e mata uma mulher grávida. Como é filho de um poderoso ricaço, faz-se um acordo para que um empregado assuma a culpa. O investigador desconfia, mas o dinheiro compra tudo — menos a indignação popular.
Szifron conta essa história do ponto de vista dos ricos, o que a deixa ainda mais cruel e revoltante. É o episódio de dramaturgia mais sólida, mais calcado nas interpretações e nos traumas dos personagens. Sugere que nas altas esferas econômicas a compra de pessoas é tão frequente como a de bens de consumo.
O episódio mais fraco é justamente o que tem Ricardo Darín, ator que, sem querer ou planejar, tornou-se para muitos um símbolo da tal superioridade do cinema argentino. Ele não tem culpa, mas a história sádica de um homem maltratado de todas as formas pelo sistema não encontra sua melhor realização e é prejudicada por uma ironia tola no final.
Se temos no filme alguns dos sinais do pior que o cinema deste século nos deu, é necessário afirmar que Szifron, pelo talento de sua direção e pelo risco de algumas escolhas, está muito acima de outros provocadores atuais, como Ruben Ostlund e Yorgos Lanthimos.
Talvez essa reestreia sirva para separarmos os diretores com alguma verdadeira ambição autoral daqueles que só se interessam em afrontar o gosto médio da maneira mais grotesca possível.
Relatos Selvagens (2014) - Crítica: dez anos de uma das grandes antologias do cinema
29/11/24
Quadrilha maldita, Day of the Outlaw, 1959, André De Toth
Crítica | Quadrilha Maldita por Luiz Santiago 4 de setembro de 2014
Quadrilha Maldita é um longa capaz de deixar qualquer espectador com o queixo caído. Filmado nas belas e gélidas paisagens do Mount Bachelor, no Estado do Oregon, o filme faz parte do apogeu do western clássico, e traz uma importante abordagem psicológica dos personagens, bem como um estudo quase filosófico sobre a maldade, o confinamento e a ameaça como forma de convencimento.
O húngaro André De Toth já tinha dirigido alguns westerns antes, como A abrasadora (1947), Renegado heroico (1952) e Feras humanas (1954), mas nenhum deles com a densidade da história de Quadrilha Maldita, cujo roteiro foi baseado na obra de Lee Edwin Wells, publicada em 1955, e escrito com primazia por Philip Yordan, escritor e roteirista com bastante experiência, já tendo passado por obras como Johnny Guitar (1954), Um certo Capitão Lockhart (1955) e Estigma da crueldade (1958).
A história é quase improvável e já no início delineia o isolamento do espaço geográfico e uma espécie de opressão que o inverno do norte dos Estados Unidos pode trazer. A trama se passa em finais de novembro e início de dezembro, principiando com o conflito entre dois homens pela colocação de uma cerca de arame farpado num racho da cidade, algo que seria ruim para a pastagem do gado que viria na primavera. Mas em pouco tempo o real motivo da disputa é revelado e, quando o duelo mortal está para acontecer, entra em cena os sete homens que mudariam toda a história.
De Toth consegue criar uma situação amedrontadora em pouquíssimo tempo, utilizando-se das condições climáticas, da noite e dos diferentes interesses da quadrilha chefiada pelo ex-capitão Bruhn (papel maravilhosamente interpretado por Burl Ives), para levar adiante problemas como assédio, adultério, tentativas de estupro, ganância, traição, deserção e medo. Sua forma é objetiva e prima pelo sentido pleno do território na trama (nesse ponto ele se parece bastante com Anthony Mann), colocando a câmera em trilhas cobertas por metros de neve onde vemos cavalos e homens sofrerem – o que de fato aconteceu nas filmagens, a ponto de Robert Ryan ficar afastado do set por um período devido a pneumonia que contraiu.
Como se permitiu explorar temas fortes, o diretor conseguiu nos dar não apenas cenas lancinantes, como a da extração da bala alojada em um dos personagens, mas também de tensão a toda prova, como as antológicas cenas do baile de sábado à noite ou da cavalgada pela neve, na parte final do filme. Em cada um desses momentos temos um pequeno detalhe adicionado à história, um elemento que nos serve de contexto ou nos deixa positivamente confusos quanto a postura verdadeira de cada um dos atores em cena.
Assim é o caso do jovem Gene (interpretado por um David Nelson aos 22 anos, um ator que tinha hordas de fã-clubes pelos Estados Unidos), que acaba sendo uma espécie de “anjo do mal” e a quem a paixão vem salvar em momento oportuno e de uma forma muito interessante. Infelizmente, o ator protagoniza o elo mais fraco do longa (o seu romance com Ernine), mas essa relação recebe apenas algumas cenas de atenção e não se dá como real ameaça à qualidade da obra. Em outro extremo, a relação de Blaise (Robert Ryan) e Helen (Tina Louise) é carregada de profundidade e não serve apenas como introdução ao problema de abertura da fita como também contribui para que vejamos a mudança de Blaise ainda no início do filme (como esquecer aquela olhada no espelho?).
Se atentarmos a história do western pós 59, veremos que este filme de De Toth influenciou de maneira decisiva a produção de alguma obras, como por exemplo, O vingador silencioso (1968), de Sergio Corbucci, além de marcar uma fase bastante movimentada para o gênero, trazendo mudanças no tratamento de certos assuntos e tendo a coragem de narrá-los sem muita ação, deixando o público digerir compassadamente os enfrentamentos. A música de Alexander Courage ajuda bastante nesse processo, contornando a partitura sinfônica – mais comum nos westerns até esse final da década de 50 – e entregando temas menos épicos para acompanhamento, sugerindo através de instrumentos específicos ou de uma plácida composição para orquestra, os pontos de maior peso na trama, deixando também espaço para o silêncio.
Quadrilha Maldita é um western que reina na lista dos ilustres desconhecidos do grande público, o que é uma pena. O filme é de uma beleza fotográfica inesquecível, marcado por ótimas atuações e com uma construção dramática que se encerra ainda em processo, uma bem vinda reticência para a vida daqueles personagens de figurinos escuros em contraste com a neve branca, pessoas cujo comportamento, anseios e descobertas às vezes punham-se em contraste com eles mesmos, dançando uma espécie de quadrilha moral cujo real resultado, por melhor que queiramos vez o futuro deles, sempre será uma grande dúvida.
30/11/24
Aos ventos que virão, 2013, Hermanno Penna
No iutubi aqui
Aos ventos que virão por Robledo Milani
Sinopse: Depois que o bando de Lampião é dizimado, o cangaceiro Zé Olímpico decide migrar para São Paulo. Anos depois, ele retorna para o Nordeste, onde se torna político. Revoltando contra a corrupção, ele toma atitudes drásticas.
O que trazem os ventos que ainda estão por vir? Ou, talvez ainda mais importante, o que carregarão daqui os ventos que agora passam por nós? Retirada de um texto de apresentação de Brasília quando foi lançada como a nova capital nacional, Aos ventos que virão dá nome também a este longa dirigido pelo veterano Hermano Penna, um cearense que já morou na Bahia e em São Paulo e que conquistou cinéfilos e admiradores logo com seu primeiro longa, Sargento Getúlio (1983), que conquistou mais de duas dezenas de prêmios no Brasil e no exterior, inclusive o de Melhor Filme no Festival de Gramado. E aqui Penna volta novamente seu olhar a um homem comum movido por situações extraordinárias, e através dele tenta propor uma visão da própria história nacional.
Do interior de Sergipe sai Zé Olímpio (Rui Ricardo Diaz, o protagonista de Lula, O filho do Brasil, 2009), um homem do sertão que encontra uma esperança por uma vida melhor e sem injustiças no cangaço, seguindo os passos de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Estamos no final dos anos 1930, e após a morte do ícone da rebeldia nordestina seus seguidores ficam perdidos, à procura de uma outra causa que os una. Perseguido pela polícia e temendo pela segurança dos pais, Zé Olímpio decide partir, tendo apenas a companhia da mulher, para São Paulo, terra desconhecida e promessa de um futuro melhor. Muda-se o cenário, porém os problemas continuam, ainda que outras oportunidades lhes surjam. É quando um chamado o levará de volta à sua cidade natal, partindo para uma nova batalha que poderá ter fim trágico, novamente às vésperas de um outro período de mudança no país.
Aos ventos que virão começa de forma bastante impactante, através de um prólogo em preto e branco que expõe de imediato a violência e a ignorância de tempos passados e a necessidade desse homem urbano em se modernizar. Após prender a atenção do espectador de modo quase irreversível, no entanto, o diretor a maltrata na hora e meia seguinte, propondo uma narrativa problemática, repleta de elipses, quase episódica, que irá exigir demais para uma melhor compreensão, sem oferecer muito em troca. Afinal, ainda que inspirado em uma coletânea de fatos reais, há pouco de diferencial no conto que está sendo exposto. Sua singularidade é escassa, e mais serve como reflexo de um contexto maior, que é formação de uma nação feita a partir de muitos golpes, enganos e desrespeito. Quem é, portanto, este homem a qual somos apresentados e com quem dividimos a companhia durante toda a duração desta história? O que ele tem a nos dizer, ensinar ou, principalmente, propor como reflexão além do óbvio?
Mesmo com um roteiro falho, Aos ventos que virão possui como mérito a estudada fotografia de André Lavenére (Se nada mais der certo, 2008) e uma ótima interpretação de Rui Ricardo, um ator que promete oferecer muito ainda ao cinema nacional. Ele consegue se distanciar do seu papel mais marcante até então, mesmo compondo um tipo similar, o retirante nordestino que busca seu lugar no mundo. De olhos profundos e discurso intenso, consegue até superar o desperdício de outros do elenco, como Neusa Borges e Marat Descartes, que saem de cena mais rápido do que entram, desperdiçando seus talentos. E essa parece ser a melhor síntese deste filme, prometendo tanto e deixando tanto a desejar.
01/12/24
Wagner, Minissérie de televisão, 1983, Tony Palmer
No iutubi aqui
Wagner (filme)
Wagner é uma minissérie de televisão de 1983 sobre a vida de Richard Wagner com Richard Burton no papel-título. Foi dirigido por Tony Palmer e escrito por Charles Wood . O filme foi posteriormente lançado em DVD como uma minissérie de dez partes.
Outros papéis principais foram interpretados por Vanessa Redgrave , Gemma Craven , Marthe Keller , Ronald Pickup , Miguel Herz-Kestranek e László Gálffi . Sir John Gielgud , Sir Ralph Richardson e Sir Laurence Olivier interpretaram ministros de Ludwig II da Baviera .
O elenco também inclui o compositor William Walton e sua esposa Susan Walton , nos papéis do casal real Frederico Augusto II da Saxônia e Maria Ana da Baviera .
A música de Wagner foi gravada especialmente para o filme e conduzida por Sir Georg Solti .
O conceito original de Wagner de Tony Palmer era como um longa-metragem. Durou 7 horas e 46 minutos, mas depois foi editado para uma versão de 5 horas na qual alguns personagens desapareceram. Mais tarde, o filme foi exibido como uma minissérie de 10 episódios na televisão, com quase 9 horas de duração. Em 2011, foi relançado em um conjunto de três DVDs em sua versão original completa como um longa-metragem, em alta definição e widescreen. Ele havia sido lançado anteriormente em videoteipe.
Foi filmado em muitos locais autênticos, incluindo o castelo de Neuschwanstein e Herrenchiemsee do Rei Ludwig II , e o Residenz em Munique . Outros locais foram na Hungria , Suíça , Siena , Toscana , Veneza , Viena e Dublin .
Palmer disse sobre a atuação de Burton: "Mesmo agora - embora tenha havido críticas - não consigo pensar em ninguém que pudesse ter feito melhor do que ele."
O filme recebeu críticas elogiosas dos principais jornais europeus e de música.
" Wagner pode ser mencionado ao lado de biografias cinematográficas excepcionais como Gandhi , Reds e Napoleão de Abel Gance ... Wagner é um dos filmes mais lindamente fotografados da história."
"Um tiro certeiro... maravilhoso... tecnicamente brilhante... musicalmente e filmicamente no mais alto nível... certamente partirá em uma procissão triunfante ao redor do mundo."
"Um filme monumental... uma obra de arte completa... verdadeiramente visionário..."
"Um evento notável... dificilmente um minuto a mais... um filme britânico de glória... toma conta das telas... uma grande obra espirituosa"
Na América, quando uma versão muito truncada de pouco mais de 4 horas foi exibida na PBS , o The New York Times, em uma crítica atípica, descreveu o programa como "kitsch pretensioso" e um "desastre colossal"
Richard Wagner
Ópera Tristan und Isolde de Richard Wagner
01/12/24
Faustão, 1971, Eduardo Coutinho
No iutubi aqui
Adriana Scarpin, Review by Adriana Scarpin Letterboxd
Em honra do centenário de um dos mais memoráveis atores negros do nosso cinema: Eliezer Gomes filme #3.
Esse é da época em que o Eduardo Coutinho fazia ficção, antes de se tornar o maior documentarista do Brasil e também estava apto a fazer uma grande adaptação de Shakespeare no cangaço.
O Faustão do título vem do Falstaff, não posso dizer que é minha adaptação favorita do Henry IV porque Welles e Van Sant foram bem felizes nisso, mas certamente nenhum deles tinha a banda de pífanos de Caruaru como trilha sonora e aqui faz toda a diferença.
Aliás, o cangaço é um gênero subaproveitado no Brasil, nos anos 60 e 70 deveria ter florescido tanto quanto os westerns spaghettis na Itália.
TVRip no MakingOff. (no youtube: youtu.be/utFklgmhs0I )
01/12/24
A Fúria, The Fury, 1978, Brian De Palma
No iutubi aqui
Crítica | A Fúria (1978) por Luiz Santiago 11 de dezembro de 2016
Após o estrondoso sucesso de Carrie, A Estranha (1976), Brian De Palma embarcou em mais um projeto envolvendo personagens com poderes telepáticos e psicocinéticos, adaptando o livro homônimo de John Farris, lançado dois anos antes. O diretor tinha apreço pelo tema e, de certa forma, trouxe para A Fúria um grande número de elementos de Carrie, como as intrigas escolares, a dificuldade de relação entre pais e filhos — algo que muda, dependendo da família, ao longo da narrativa — e pressões externas que empurram os sensíveis a esses poderes até o limite, fazendo com que suas atitudes machuquem outras pessoas.
A obra se divide em dois blocos narrativos. No primeiro deles temos Peter (Kirk Douglas, em excelente e quase incansável interpretação) e Robin (Andrew Stevens, aos 23 anos e em boa conexão com Douglas na primeira sequência), pai e filho se divertindo em uma praia do Oriente Médio, em 1977. Em pouco tempo, o roteiro estabelece a presença de um “dom” em Robin e o fato de existirem poderes em jogo não é um problema para ninguém, até então. Mesmo quando Gillian (Amy Irving, cuja personagem em Carrie foi a única sobrevivente do ataque) mostra que é telepata e também possui outros poderes, os personagens à sua volta aceitam isso como piada ou parte de futuros experimentos realizados para um fim que o roteiro jamais explana. Do conflito com as colegas de escola até a internação voluntária em um lugar de treinamento para pessoas com habilidades especiais, no melhor estilo X-Men, o segundo bloco irá mostrar como os poderes de Gillian se desenvolvem e o que podem fazer com que se colocar em seu caminho.
Do Oriente Médio às cenas em Chicago, em 1978, notamos diversos núcleos de suspense sendo erguidos. Sabemos que esta fase da carreira de De Palma foi uma das mais marcadas pelas referências ao cinema de Alfred Hitchcock, e aqui temos dois polos onde a presença do Mestre do Suspense é diretamente sentida; o primeiro, na trilha sonora composta por John Williams, que emula com sucesso o estilo de Bernard Herrmann; e o segundo no clímax do filme, com planos propositalmente similares a Janela Indiscreta (1954) e Um Corpo Que Cai (1958). À medida que o suspense ganha força, algo bastante peculiar sobre os personagens começa a ser sentido, o fato de que a maioria são pessoas tremendamente solitárias, começando pela jornada de Peter — Kirk Douglas brilha nessas sequências! — e terminando com os jovens que possuem poderes e os envolvidos com a organização que realiza pesquisas na área.
Sabendo que De Palma nunca teve muito compromisso com o realismo, entendemos certos caminhos visuais que ele escolheu para mostrar as mortes; ou mesmo a orientação para a montagem e para algumas escolhas do roteiro. Aos poucos, porém, esse cenário de terror e ficção científica se torna exagerado demais para ser aceito e ganha contornos que não ajudam o preparo para o desfecho, pois as linhas narrativas separadas se juntam — começando com a soberba sequência em slow motion, quando Gillian é resgatada da instituição –, mas ao mesmo tempo, se repelem. É como se as jornadas funcionassem apenas de forma separada. Juntas, elas nem chegam a se sobrepor, pois perdem o vigor que tinham e são elevadas a um nível ainda maior de exagero, acabando por se auto-destruírem, uma pela morte de dois personagens, outra pela mudança de abordagem que terá nos minutos finais, guardando muita semelhança com Carrie.
O plot da conspiração do governo sugerido no começo e mais ou menos elencado no decorrer da história se perde completamente. Ben Childress, personagem interpretado por um cínico John Cassavetes, é o melhor produto dessa parte da película, mas sua ação picotada na montagem, e incerta através do texto, se segura apenas pela presença impactante do ator em cena, nada mais. A maioria das tomadas internas são de uma precisão impressionante, e indicam um De Palma seguro em relação ao que mostrar para o público, como gerar determinados sentimentos e como desviar temporariamente a nossa atenção.
Em par com a música de John Williams, ele consegue acertar nessa manipulação do público e obter resultados imediatos na primeira parte, com direito até a uma sequência cômica no meio de uma grande fuga; mas do meio para frente, talvez pela já citada conexão de linhas narrativas que não funcionam bem juntas, a impressão do espectador é completamente outra. Ainda é possível aproveitar as citações visuais no parque de diversões, remetendo a Pacto Sinistro (1951) e ao desenho de produção e direção das duas mortes bizarras no final, especialmente a última, mas diante da falta de unidade, o desfecho chocante consegue apenas gerar um espantoso riso e a espera de algumas respostas que deveriam vir. Mas não vem.
01/12/24
O Cangaceiro, 1997, Anibal Massaini Neto
Novo "O Cangaceiro" restaura clássico de 52
Lúcio Ribeiro, fsp, 18 de março de 1997
O cangaço na visão de um veterano. O paulistano Anibal Massaini Neto, 50, que dirigiu e produziu a nova versão de "O Cangaceiro", fala à Folha sobre seu filme. (LR)
Folha - Por que um "remake" para o clássico de Lima Barreto?
Anibal Massaini Neto - Minha primeira produção foi um filme sobre o cangaço: "Corisco, o Diabo Loiro". Quando resolvi trabalhar novamente o tema do cangaço, me associei ao projeto desse remake. Por que "O Cangaceiro"? O filme de Lima Barreto, em sua época, foi um fenômeno internacional. Eu não teria outra motivação de trabalhar de novo o cangaço, ambicionando um resultado, se não fosse resgatando "O Cangaceiro".
Folha - Sua nova versão traz alguma diferença do filme de 1952?
Massaini - Essa história de começar o filme com um cangaceiro velho que vai contar sua história a alguém e depois levar a narrativa para sua infância estava no roteiro original de Lima, que não sei por qual razão não foi executado. Ao pesquisar sobre o filme, descobri esse roteiro original e resolvi fazer na minha versão o que Lima queria ter feito em "O Cangaceiro" de 52 e acabou não fazendo.
Folha - Por que essa coincidência de três filmes recentes ("Corisco e Dadá", "O Baile Perfumado" e "O Cangaceiro") sobre o gênero?
Massaini - No governo Itamar, foi criado esse Prêmio Resgate de incentivo à produção cinematográfica. Acontece que o dinheiro do prêmio saiu para esses três filmes, o que significou um "start" para essas produções. Por isso elas são concomitantes.
02/12/24
The Hitch-Hiker, O mundo odeia-me, 1953, Ida Lupino
No iutubi aqui
THE HITCH-HIKER / 1953 (Arrojada Aventura) um filme de Ida Lupino
Manuel Cintra Ferreira Cinemateca portuguesa - Museu do cinema
17 e 19 de junho de 2021
Como realizadora, a mulher teve, no começo do cinema, um papel não desdenhável. Desde Alice Guy, a pioneira em França e nos EUA, até Nazimova, passando por Lois Weber, Germaine Dulac e, entre nós, Bárbara Virginia, ela esteve presente como autora, realizadora ou argumentista (recorde o papel fundamental de Jeanie MacPherson nos filmes de Cecil B. DeMille). Foi a progressiva transformação do cinema em indústria, com sistemas de produção específicos e organização estruturada de acordo com as das outras indústrias, com os centros de decisão ocupados por homens, que afastou a mulher da realização, tido como um centro de comando, mantendo-se nas outras categorias mas em situação inferior à dos seus parceiros masculinos, enquanto como actriz era, de certo modo, transformada em objeto.
Praticamente durante todo o reinado do studio system (que vai do começo dos anos 20 ao fim da década de 40) manteve-se a situação, com raras exceções que confirmavam a regra (Dorothy Arzner, que foi também uma das pioneiras do cinema). Com o fim do domínio dos estúdios as coisas começaram a mudar mas só se tornaram visíveis nas últimas décadas, após as lutas feministas dos anos 60. Ida Lupino foi uma das raras mulheres que ousou enfrentar o sistema exatamente nesse campo, quando a lei anti-trust acabou com o reinado absoluto dos estúdios. E para o conseguir teve de jogar com regras feitas pelo poder ainda dominante, o que parece não ter sido bem compreendido pelas feministas que criticaram os seus filmes.
Quando se resolveu a passar para detrás da câmara, Ida Lupino já tinha atrás de si uma carreira feita como atriz, marcada por uma série de brilhantes interpretações desde The Light That Failed/A Luz Que Se Apaga, de William Wellman (1939) até Road House/Com o Amor Nasceu o Ódio de Jean Negulesco (1948), e passando por High Sierra/O Último Refúgio de Raoul Walsh e Sea Wolf/O Lobo do Mar de Michael Curtiz. Mas desde esses tempos era grande o seu interesse pelas outras tarefas da criação do filme, discutindo os argumentos e a direção e a iluminação das suas cenas.
O interesse levá-la-ia inevitavelmente a arriscar-se na mudança de trabalho, começando pela produção (criando, com o então seu marido Collier Young, uma companhia produtora, a “Filmakers”). Mas quis o acaso que o realizador do primeiro filme da companhia, Elmer Clifton, tenha adoecido ainda na pré-produção, acabando Ida Lupino por realizar todo o filme, mas, apesar disso Not Wanted tem apenas o nome de Clifton no genérico nessa categoria (algo semelhante aconteceu em 1951 com On Dangerous Ground/Cega Paixão, de Nicholas Ray que embora tenha dirigido grande parte do filme não pôde acabá-lo por ter adoecido, tomando Ida Lupino o seu lugar dada a experiência que já tinha, e porque a RKO, produtora do filme era a distribuidora dos seus).
The Hitch-Hiker é um filme que à partida desconcerta quem tome contato com a obra da realizadora com este filme, considerando a classificação de “feminista” que lhe é atribuída a partir dos outros trabalhos. E isto desde logo porque não há praticamente mulher alguma no filme (apenas vemos uma ou outra como figurante). Por outro lado é um filme duro e de ação, marcado por um clima de suspense bem vincado e dominador. Na verdade o filme resulta de um certo compromisso com o dono da RKO, Howard Hughes, para apoiar a distribuição dos outros filmes (mais comprometidos) que ela produzia (Private Hell 36, de Donald Siegel, foi outra das suas produções) e realizava e a RKO distribuía. Deste compromisso resultou um dos melhores filmes de Ida Lupino e um dos mais reveladores do seu estilo e talento.
É indubitável que se pode falar de um estilo. No caso dela, ele não resulta apenas do método de trabalho típico da série B de então, que explorava outros métodos em voga, como os do neo-realismo: orçamento reduzido, filmagens em cenários naturais, quase tudo em exteriores, reduzido número de actores. Até aqui o método é comum a muitos outros filmes. Recordemos Five de Arch Oboler, Detour, de Ulmer, ou um esquecido Jeopardy de John Sturges que tem em comum com The Hitch-Hiker o fato de se concentrar quase todo em três personagens. Mas o que surpreende no trabalho de Ida Lupino é a forma desromantizada como se aproxima dos personagens. Há uma secura de tom que não é indiferença mas sim a percepção do comportamento real das personagens em situação real.
O que surpreende em The Hitch-Hiker é que não há aqui heróis no sentido tradicional do termo e tal como o cinema americano o explorava então. Do que resulta um certo desconcerto do espectador que procura uma espécie de “apoio” que lhe permita circular pela história. O ator principal, Edmond O’ Brien, está num papel que vai contra essa imagem tradicional (chegando a agredir o fugitivo Myers quando este se encontra já algemado pela polícia). Lovejoy seria o mais próximo do estereótipo, mas costumava ser utilizado geralmente como secundário. De qualquer forma ambos estão impotentes perante o perigo que os ameaça. Não há hipótese de saírem, pelos seus próprios meios, daquela situação, o que vai contra a imagem tradicional do herói que encontra sempre uma saída, inesperada ou não, para resolver a questão. E é, talvez, neste retrato tão pouco convencional dos personagens que se projecta o olhar mais pessoal de Ida Lupino e aproxima este filme dos restantes, sendo a contradição apenas aparente. Não há heróis, apenas homens convencionais, fracos e indecisos, que não ousam agir no momento e tomar responsabilidades, que é, no fim de contas, o tema de The Outrage, The Bigamist, Not Wanted, Never Fear e Hard Fast and Beautiful, os outros filmes de Ida Lupino desta fase.
E destaque-se o brilhantismo de algumas cenas para as quais a falta de meios se revelou proveitosa: toda a sequência de abertura que nos mostra (ou sugere) as façanhas de Myers, através de uma série de elipses entre planos de pernas em movimento e de carros. É preciso saber bem o que se faz e como se faz, para conseguir tal efeito.
03/12/24
Assim morrem os bravos, The Glory Guys, 1965, Arnold Laven
No iutubi aqui
Roteiristas: Sam Peckinpah & Hoffman Birney
Cinematroppher: James Wong Howe (1899-1976) (créditos 143)
Adriana Scarpin, Review by Adriana Scarpin Letterboxd
Continuando com a saga de filmes não creditados com Sam Peckinpah parcialmente na direção, agora é a vez do The Glory Guys, cujos eventos que o levaram a dirigir apenas algumas cenas me são ignorados, igualmente quanto a quais cenas seriam estas, mas não os fatos de que ele assina o roteiro e de que foi rodado seguido de Major Dundee, onde ambos os filmes são protagonizados pela divinal Senta Berger e trazem o habitual Slim Pickens a tira colo.
A verdade é que deveria ser um filme inteiramente do Peckinpah, ele era o diretor oficial, mas foi substituído pelo agora recém falecido Arnold Laven, também um dos produtores, os quais não estavam gostando muito dos rumos que Bloody Sam estava dando ao seu precioso dinheiro. O que desconheço nessa coisa toda é: o que diabos ele estava fazendo de tão disparatado para lhe retirarem do comando do seu próprio roteiro? Presumo que o de sempre, como correr atrás de seus atores com sabres e coisas assim, mas o mais estranho de toda essa cisão entre Laven, Arthur Gardner, Jules Levy e Peckinpah é que eles já eram parceiros de longa data, co-criadores do The Rifleman e tudo mais, todo mundo alí sabia onde estava pisando, embora seja amplamente comprovado que até nas mais harmoniosas famílias existam rompantes de fúria e afastamento.
The Glory Guys é um bom filme, uma espécie de revitalização sessentista de Fort Apache do John Ford e de O Intrépido General Custer do Raoul Walsh, mas sob o comando total de Peckinpah podia-se esperar uma pseudo-Big Horn muito mais entusiasmante. Essa coisa com o Walsh era tão evidente que até James Wong Howe foi utilizado, este que era um dos mais queridos diretores de fotografia de Raoul, até mesmo o tipo de alívio cômico presente no cinema de Walsh era mais próximo do que no de Ford e isso tudo faz pensar se Walsh não foi muito mais influente nos westerns de Peckinpah do que Ford, este que é mesmo considerado o pai de tudo e todos.
Laven foi quase que um diretor-produtor inteiramente televisivo, não possuía o talento nato de Bloody Sam, mas também estava longe do medíocre e de alguma forma toda a alma de Peckinpah sessentista acabou inscrustada neste trabalho, em algumas cenas é possível visualizar a mão de Bloody Sam pairando, o que nos faz pensar se tinha sido mesmo ele a gravar aquelas cenas ou se o roteiro decupado seria tão bom que era inevitável associa-lo àquilo tudo.
Harve Presnell fica com um papel que parece inspirado em Buffalo Bill, enquanto Andrew Duggan é a imagem cuspida de Armstrong Custer, presumo que o papel principal de Tom Tryon seja inspirado no capitão que fora seu braço direito. A grande sacada dos anos 60 em relação ao western americano e até à figura do General Custer é esse abandono de conceitos datados sobre bravura e coragem, provavelmente por conta da falha aventura vietnamita e que acabou da mesma forma incitando a cultura hippie. Nesse roteiro de Peckinpah, esse pseudo-Custer num papel coadjuvante é mostrado mais perto da realidade do que fora nas mãos de Walsh ou Ford, a personificação de um cara com grande dignidade, mas ao mesmo tempo um babacão egolátra que não estava nem aí para a vida de seus soldados e só queria a tal da glória – um tipo de visão que casava muito bem com a inutilidade prática da Guerra do Vietnã. Dois anos depois, Robert Siodmak daria sua visão do fatos, ainda mais vinculada ao Vietnã e dotada de um feliz olhar estrangeiro, culminando num dos mais humanistas momentos da história do western americano, aqueles fatídicos dez minutos de Custer of the West em que uma personagem execra a ordem, o dinheiro e sobretudo a glória, tudo em nome de pequenos prazeres e por isso mesmo acaba destroçado pelo sistema. The Glory Guys nunca vai tão longe no quesito marginal, ainda paira uma fumacinha dos velhos westerns, mas isso Bloody Sam acabaria por sanar lindamente quando tivesse o controle nos seus próximos filmes.
Nota 1: Toda vez que olho para o poster deste filme, penso “Hey! Ho! Let’s Go!”. Impressionante.
Nota 2: Sempre assista filmes relacionados ao Peckinpah sob efeito de álcool, por algum motivo desconhecido (!?!) os melhores insights que tenho sobre seus filmes são em estado de embriaguez.
Nota 3: Lembrei de uma história do Wild Bunch que é muito engraçada, com respeito aos surtos do Peckinpah com produtores e atores e de quando ele estava encrencando com Robert Ryan, mas alguém da equipe o advertiu que não era muito prudente mexer com Ryan, pois este acabaria com ele fácil, fácil. Depois da sanidade do aviso, Bloody Sam concordou e deixou o homem em paz, afinal, Ryan era tão conhecido pelo seu humanismo e pacifismo tanto pelo qualidade de seus socos nocauteadores. Com o passar do tempo creio que Bloody Sam aprendeu um pouco de autocontrole, pelo menos quanto à convivência com outras pessoas num set de filmagens, talvez o fato de não ter conseguido voltar ao cinema por quatro anos deva tê-lo feito ponderar certas coisas – ou simplesmente não tinha tanta cocaína na sua frente e ficou só na macoínha mesmo, porque nada no mundo te dá um complexo de super-homem maior do que o pozinho, com poder de mudar personalidades enraizadas, por isso sempre acharei que cocaína é o melhor entorpecente do mundo, fazendo dela o mais perigoso também.
03/12/24
Sob o signo de Capricórnio, Under Capricorn, 1949, Alfred Hitchcock
No iutubi aqui
Sob o Signo de Capricórnio, 1949 Posted by JC in Alfred Hitchcock, Agosto 2014
Para produzir o segundo filme da sua Transatlantic Pictures, Alfred Hitchcock viajou para a Inglaterra, onde já não filmava uma longa metragem desde 1940. Filmando pela terceira vez com Ingrid Bergman e pela segunda com Joseph Cotten, Hitchcok voltou a contar com um argumento de James Bridie e Hume Cronyn. “Sob o Signo do Capricórnio”, um drama psicológico e filme de época, baseia-se numa peça de teatro e, tal como no anterior “A Corda”, é constituído por longos planos-sequência de um só take.
Sinopse:
Em 1832 o irlandês Charles Adare (Michael Wilding) chega à Austrália pelas mãos do seu primo e novo governador (Cecil Parker), para fazer fortuna. Em Sydney, Charles conhece o poderoso proprietário Sam Flusky (Joseph Cotten), um ex-condenado que o quer ajudar nos seus negócios. Em casa de Flusky, Charles encontra Henrietta Flusky (Ingrid Bergman), mulher do seu protector. Enamorado da beleza de Henrietta, que conhecera na infância, Charles luta por lhe devolver a auto-estima, já que ela, vítima do alcoolismo, e dominada pela governanta Milly (Margaret Leighton) parece estar cada vez mais à beira da loucura.
Análise:
Depois de “A Corda” (Rope, 1948), Alfred Hitchcock rumou à Inglaterra para produzir o segundo filme da sua Transatlantic Pictures. Foi também o seu segundo filme a cores, neste caso com cores bem mais garridas que as dessaturadas de a “A Corda”. Como história, Hitchcock decidiu-se por mais uma adaptação de uma peça de teatro, a qual era baseada num romance com o mesmo nome, e escrito por Helen Simpson.
Talvez por continuar a adaptar o mundo do teatro, Hitchcock voltou a construir o filme sobre planos-sequência de take única com durações de quase 10 minutos. No entanto, ao contrário de “A Corda”, “Sob o Signo do Capricórnio” passa-se numa grande diversidade de cenários, pelo que à primeira vista esse exercício não é tão evidente. Algumas cenas são curtas e com vários planos, e as mais longas são diversificadas por movimentos de câmara que chegam a guiar-nos por diferentes divisões de uma casa. Ainda assim, nas longas sequências de diálogos nota-se que esta solução torna tudo mais estático e inerte.
Hitchcock, na sua célebre entrevista a Truffaut, confessaria que, se esta solução é desculpável em “A Corda”, por ser experimental, em “Sob o Signo do Capricórnio” surge como uma repetição do erro, já que se torna muito difícil ao realizador guiar o olhar do espectador omitindo e realçando detalhes com intuito puramente dramático. Embora com uma coreografia de movimentos (de actores e planos) extremamente elegante e elaborada, não deixamos de sentir que em certos momentos o filme se torna demasiado lento, por falta desse modo de Hitchcock nos fazer interagir com ele.
Consta que no momento da estreia, o público esperava mais um thriller, pelo que a decepção foi enorme quando o filme não o confirmou. Sendo um drama psicológico em torno de um possível triângulo amoroso, os elementos de suspense são poucos. Fugindo um pouco ao seu terreno mais familiar, Hitchcock filmou um drama de elementos góticos (a primeira visão da mansão dos Flusky, e o modo como as pessoas lhe reagem, tem muito de gótico), evocativo até da atmosfera de “Rebecca” (Rebecca, 1940), onde nem sequer falta uma governanta fria e dominadora, que aos poucos vai destruindo a dona da casa.
A história é, no entanto, mais complexa do que aparenta. Passada na Austrália do século XIX, quando esta se constituia uma colónia penal para condenados de Inglaterra, Charles Adare (Michael Wilding) chega disposto a fazer fortuna. Em Sydney torna-se amigo do magnata local Sam Flusky (Joseph Cotten), um ex-condenado, mal visto entre a classe alta. Mas ao conhecer a mulher deste, Henrietta (Ingrid Bergman), Charles Adare vai começar a imiscuir-se na vida doméstica dos Flusky, para tentar que Henrietta ganhe auto-estima e deixe de ser reclusa em sua própria casa, vítima do alcoolismo, da depressão e da dominação do marido e da governanta Milly (Margaret Leighton).
Só que Adare vai, não só, provocar o ciúme de Sam Flusky, como vai aos poucos perceber que a vida disfuncional do casal se deve a um passado secreto em que ambos se sacrificaram um pelo outro, e ambos perderam a inocência que os uniu. Esse peso do passado (outro traço do gótico), e o seu reavivar, será no entanto a solução que desbloqueará o novelo em que o triângulo se tornara.
Há muito mais que se pode ler nas entrelinhas sobre a emancipação de Henrietta, decididamente sobre a sua sexualidade reprimida, um tema tipicamente hitcockiano, e que o realizador habilmente tratava com a sua conhecida preversidade. Mas talvez o tema fundamental de “Sob o Signo do Capricórnio” seja o papel do sacrifício no amor. Sabemos dos sacrifícios cometidos pelo casal Flusky, que os trouxe a uma situação disfuncional. Pára-nos a respiração no momento em que cabe a Charles Adare decidir o futuro do casal. Sacrificar-se-á para que Hnerietta seja feliz com Sam? Este sacrifício fará dele um personagem bom (tal como Flusky e Henrietta), o que está nos antípodas do amor de Milly (a má da história), em nome do qual a governanta mente, trai, e tenta matar.
Esta primeira incursão de Hitchcock no filme de época, a cores, e fazendo uso de muitos figurantes, foi um fracaso de bilheteira, fazendo a produtora de Hitchcock perder imenso dinheiro. A isso não terá sido alheio o facto de que, aquando da sua estreia, rebentava o escândalo da gravidez e relação ilícita entre Ingrid Bergman e Roberto Rossellini, que faria da actriz persona non grata nos Estados Unidos durante anos. Hitchcock confessaria que apenas rodou o filme, porque era para ele um motivo de orgulho continuar a trabalhar com Ingrid Bergman.
03/12/24
Os Cruéis, I crudeli, 1967, Sergio Corbucci
Norma Bengell (1935-2013)
Norma Benguell
Dan Abel, Review by Dan Abel Letterboxd
Jonas is a Confederate soldier who hasn't given up since General Lee surrendered. He gathers his sons and some fellow compatriots called The Hellbenders to rob a union caravan of more than a million dollars. Money which he plans to use to reorganize Confederate units to fight back once more. Now flush with cash, The Hellbenders must use any means at their disposable to get through enemy territory, return home, and rebuild the fallen army.
In the past two or three years, westerns both American and the Italian spaghetti variety have found a place amongst my favorite film genres. In Novembers I tend to review a bunch of them, but I also like to sprinkle in at least one per month. Unfortunately it's been awhile since my last western, so why not return with a big ol' bowl of spaghetti delivered by the big chef himself Sergio Corbucci?
The Hellbenders aka I Crudeli is a fine example of why I tend to like spaghetti western storylines so much. Here we don't follow a hero on some hokey quest. Instead our protagonists are a crew of murderous scumbags and a shady damsel, all of which aren't good people. On their trip back home they encounter a whos who of stereotypical western antagonists from union soldiers to lawmen to Mexican outlaws and some Indians. I'm in all day.
Glorious violence, hilarious dialogue, cheesy writing, and those trademark closeups run rampant throughout this film and they go a long way to scratch my spaghetti itch. The Hellbenders isn't Corbucci's best but it's still damn good in it's own right. It wouldn't be the first Sergio Corbucci film that I would recommend to someone, and it damn sure wouldn't be the first western either but definitely somewhere in my top thirty. Sure it can get a little cheesy but it's mozzarella and parmesan so pile it on. PILE IT ON! This is for established fans of the genre, and for them it's some must see material. Good stuff.
04/12/24
Gente no Domingo, Menschen am Sonntag, 1930, Direção: Robert Siodmak & Edgar G. Ulmer & Rochus Gliese
Roteiristas: Billy Wilder & Curt Siodmak & Robert Siodmak
"People on Sunday" ["Menschen am Sonntag"] [1930] by Siodmak and Ulmer
Topics Billie Wilder, Edgar G. Ulmer, German cinema, Robert Siodmak, romance, silent film
Before the Nazi regime, there was time for lazy Sundays and romance. This is a remarkable film made in 1930 by Robert Siodmak and Edgar G. Ulmer.
"People on Sunday" [Wikipedia]
A review... https://archive.org/details/peopleOnSundaymenschenAmSonntag1930
The film opens at Bahnhof Zoo train station one Saturday morning. Its opening scenes show the bustling traffic of central Berlin. The action of the movie centres on five central characters, and takes place over a single weekend. At the start of the movie, a handsome young man, Wolfgang [a wine dealer in real life] sees a pretty girl [Christl - a film extra] who seems to be waiting in the street for someone who has not arrived. He takes her for an ice cream, teases her about having been stood up, and invites her to come for a picnic the following day. In the meantime, Erwin is carrying out his own day job as a taxi driver. While he is fixing the car, his depot receives a phone call from his wife, Annie [a model in the real world], who wants to know if they are going to the cinema that evening. Erwin clearly is not keen to go - he simply comments that Greta Garbo is showing until the following Tuesday. [One of the running themes of the movie is to play down the importance of the cinema in the lives of these young Berliners.] At the end of the day, Erwin returns home to find Annie moping about - she seems to spend most of her time lying on the bed in a fairly threadbare apartment. The couple start to get ready to go to the cinema, but they continually bicker with each other. The first row is over the pictures of movie stars in their bathroom - it is clear that all the actors are there for Annie's benefit, while the actresses are there for Erwin, because they punish each other by tearing up each other's photos. Another row is over whether Annie should wear the brim of her hat up or down. [Another recurrent theme of the movie is the self-centred machismo represented by Erwin and Wolfgang.] Wolfgang arrives in the middle of this argument, so Annie never gets to the cinema. Instead, Erwin and Wolfgang drink beer and plan to go to the countryside the following day. As a result, the following morning finds the two men taking a train to Nikolassee, accompanied by Christl and her friend Brigitte [who both in the movie and in real life is a sales assistant at a record shop]. Many Berliners seem to have the same idea - Nikolassee offers a beach, a lake, parkland, and a pine forest where daytrippers can spend a relaxing few hours. We see many such Berliners of all ages enjoying themselves on a Sunday at Nikolassee, including the four young people who are the focus of the film. As the four friends have a picnic, swim in the lake, and play records on a portable gramophone, Wolfgang flirts with Brigitte, to the annoyance of Christl. At one point, after lying down with his arms round both women, Wolfgang play-chases Brigitte into the forest, where they find a secluded spot and begin to make love. [The camera trails away at this point, to reveal that there is a great deal of rusting debris nearby - presumably the remains of previous such picnics.] Afterwards, the four friends go for a boat-ride, where Erwin and Wolfgang manage to flirt with two girls who are in a rowing boat on the middle of the lake. As they head back into Berlin, Brigitte suggests to Wolfgang that they meet again the following Sunday. He agrees, but Erwin reminds him afterwards that they had planned instead to go and watch a football match. It is not clear what they will decide to do, in fact - although it is clear that the two young men enjoy their carefree existence, without much regard for the feelings or wishes of the young women around them. The final scene returns to shots of the streets of Berlin. The closing series of intertitles announces: "And then on Monday...it is back to work... back to the every day... back to the daily grind... Four... million... wait for... the next Sunday. The end." Contemporary critics regarded the movie as an accurate and laconic portrayal of the Berlin they knew and saw the closing intertitles as an accurate claim that these characters represent ordinary real life Berliners. However, these closing words have also acquired an ironic poignancy today, since we are aware that it is not a carefree Sunday but the tragedy of Nazism that awaits the inhabitants of Berlin [and the film-makers themselves] in their very near future.
05/12/24
Ouro e Maldição, Greed, 1924, Erich von Stroheim
No iutubi aqui
“Greed”, de Erich von Stroheim por Fabricio Muller 25 de abril de 2021
Poucos filmes têm uma história tão mítica e trágica quanto “Greed” (“Ouro e Maldição” no Brasil), lançado em 1924. O seu diretor, Erich von Stroheim, o considerava a sua melhor obra e dizia que os cortes que o estúdio promoveu no filme o feriram tanto profissional quanto pessoalmente.
“Greed”, baseado no romance naturalista publicado em 1899 “McTeague”, do escritor americano Frank Norris, conta a história de John McTeague (Gibson Gowland), um trabalhador de minas que, após aprender o ofício, acaba trabalhando como dentista. Ele se casa com Tina Sieppe (ZaSu Pitts), prima de seu melhor amigo, Marcus Schouler (Jean Hersholt), e é a vitória dela numa loteria que acaba colocando a vida de todos de cabeça para baixo: Tina fica obcecada com o dinheiro, não gasta um centavo dele, e também não deixa o marido – um bom homem, mas limitado intelectualmente – gastá-lo (não à toa, o título do filme, “Greed”, é “avareza” em português). Acho que não precisa contar mais nada do enredo, para não estragar a surpresa.
Stroheim apresentou a sua versão inicial de “Greed”, de oito horas de duração, para um grupo pequeno de jornalistas e conhecidos. Boa parte dos presentes saiu da sala de projeção dizendo que este era o “melhor filme de todos os tempos”. Depois disso começou o drama do pré-lançamento. A Goldwyn Company (antecessora da Metro-Goldwyn-Mayer), produtora do filme, obviamente não gostou da ideia de lançar um filme tão longo e pediu para Stroheim deixá-lo num tamanho aceitável. Ele fez os cortes que quis e diminuiu o filme para quatro horas, mas mesmo assim a produtora não gostou e pediu para o editor Joseph W. Farnham diminuí-lo ainda mais – e o filme acabou com as quase duas horas e meia atuais. Stroheim ficou furioso com o resultado final e disse que “Greed” “foi cortado por editor que não tinha nada na cabeça fora o chapéu”. Entre os trechos cortados de “Greed”, por exemplo, as histórias paralelas de dois casais vizinhos – um casal bom, outro mau – dos McTeague foram eliminadas inteiramente!
A versão de “Greed” original de oito horas de duração tornou-se uma espécie de Santo Graal do cinema, com diversos comentários ao longo do tempo dizendo que a versão completa do filme tinha sido vista aqui e ali – Stroheim chegou a dizer que o ditador italiano Benito Mussolini tinha uma cópia -, mas não se encontrou nenhuma prova de que essa versão realmente exista em algum lugar. A Turner fez uma versão de quatro horas, juntando o roteiro original de Stroheim com trechos e fotos não aproveitados na versão comercial.
Em sua espetacular biografia “Stroheim”, Arthur Lenning comenta que promoveu a reconstrução de outro filme de Stroheim também dilapidado, “Foolish Wives”, aumentando significativamente o tamanho da versão da produtora; na estreia da sua versão da película, “um dos grandes amantes de filmes silenciosos” chegou para Lenning e lhe disse: “grande trabalho, mas fico feliz que você não tenha encontrado ainda mais” trechos não aproveitados do filme. Realmente, a sensibilidade moderna tende a rejeitar filmes silenciosos, por mais geniais que eles sejam.
Quanto a mim, já assisti ao filme três vezes (duas das quais descrevi aqui) e pretendo revê-lo algumas vezes ainda. A história contada por Stroheim é sórdida e fascinante em proporções iguais, e merece toda a fama que tem; só lamento que a versão a que assisti no YouTube não tem a parte final, filmada no Vale da Morte na Califórnia, tingida de amarelo como aquela do próprio Stroheim – de todo modo, trechos dessa versão amarelada podem ser vistos aqui.
Mas eu concordo com Arthur Lenning quando ele diz que é um erro considerar – como por muito tempo foi a opinião geral da crítica – que Stroheim foi o diretor de somente um filme importante, “Greed”. Na verdade, o restante dos seus filmes tem o mesmo nível artístico – e ainda não tenho ideia de qual é o meu preferido entre eles.
04/12/24
Estrela do Norte, The North Star, 1943, Lewis Milestone
No iutubi aqui
Roteiristas: Lillian Hellman & Burt Beck
1941. Um grupo de cinco amigos partem para uma curta visita a Kiev, mas a viagem é interrompida por aviões alemães, que fazem o primeiro ataque nazista à União Soviética. Quando a aldeia é atacada, os homens fogem para as colinas, onde tentarão formar uma guerrilha, mas logo chega um médico nazista, que irá ficar no comando. Ele começa a usar crianças como fonte de transfusão de sangue aos feridos alemães. O pequeno grupo de jovens tenta desesperadamente conseguir um fornecimento de armas para a guerrilha. Filmow
Do céu A Estrela do Norte, do inferno Os Carrascos Também Morrem: A ideologia estadunidense no cinema hollywoodiano (1943)
O cinema, desde sua constituição como arte nos anos finais do século XIX, adentrou na vida das pessoas, servindo inicialmente como meio de entretenimento, porém ao passar dos anos, as narrativas cinematográficas foram observadas pelos líderes de Estado como uma nova forma de difundir suas questões ideológicas, inúmeros seriam os exemplos, para essa questão. O cinema também assumiria um destaque crescente, principalmente após a década de 1970, como fonte para o estudo histórico. Se inicialmente relegado, com o passar do tempo demonstrou sua importância, constituindo assim como uma das novas formas para o crescimento da disciplina. A segunda Guerra Mundial fora um desses momentos em que os cinemas nacionais estavam incumbidos de valorizar ao máximo suas nações. O nazismo constitui um exemplo, de como os filmes se tornaram ótimas fontes de disseminação de ideologias. Entretanto essa particularidade não ficou restrita apenas aos alemães, os Estados Unidos também aproveitaram a estrutura de Hollywood a fim de realizar sua transposição ideológica, para isso analisaremos ao longo deste estudo os filmes Hangmen Also Die!, 1943 de Fritz Lang e The North Star, 1943 de Lewis Milestone, e também como as narrativas foram utilizadas para realizar determinados objetivos. Entre eles dois podem ser ressaltados: 1. Construir uma imagem negativa frente aos inimigos nazistas, demonstrando toda a sua crueldade, aos demais povos, e2. O processo de valorização ideológica para com os Estados Unidos, as narrativas cinematográficas apresentam ao longo do filme determinadas referências aos estadunidenses e o papel que teriam como dignos líderes e defensores da paz mundial. Caberia a essa nação com apoio de outras, impor o golpe final e eliminar a ameaça nazista. Baseado nisso o presente estudo tem como objetivo analisar como o governo estadunidense se utilizou do cinema hollywoodiano durante o ano de 1943, para difundir suas proposições ideológicas.
𝕭laze the 𝓐ction 𝕵unkie, Review by 𝕭laze the 𝓐ction 𝕵unkie Letterboxd
Allied war propaganda flick, or 'unashamed pro-soviet propaganda at the height of world war 2' according to Wikipedia. The major plot here is that Nazi Germany invades Russia to kill all the children. I'm not defending Nazis, their very real atrocities made them the heartless villains that we feel no remorse for today. It's just easy to see how over the top evil they were made in these war-time flicks. Which honestly if I think about it, while this film does portray what I think is over the top, it does seem in line with Nazi atrocities. Does that make this a good or bad film? It was quite drawn out, and took forever to make points at times. It wasn't a terrible watch, and while it may have been at one point a classic I did struggle with most of it.
"The face of war is ugly, and not for the young." "We're not young anymore."
06/12/24
Deus sabe quanto amei, Some came running, 1958, Vincente Minnelli
No iutubi aqui
Clássico do Dia: 'Deus Sabe Quanto Amei' subverteu a moralidade hollywoodiana
Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como esse dirigido por Vincent Minnelli e que tem no elenco Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin
Luiz Carlos Merten, Terra, 21 jun 2020
Vincente Minnelli é autor de uma obra extensa - 33 filmes em 35 anos de carreira. Recebeu duas vezes o Oscar de melhor filme, por Sinfonia de Paris e Gigi, de 1952 e 59, e pelo segundo também o prêmio de direção. Minnelli revolucionou o gênero musical, fez belas comédias, suntuosos musicais, mas talvez tenha sido mais apreciado na França - Cahiers du Cinéma o idolatrava - que nos EUA. Para a intelectualidade norte-americana, era um homem do estúdio - um funcionário de Metro, onde fez quase todos os seus filmes. Andrew Sarris dizia que se preocupava mais com beleza que com arte. Jean Domarchi e Jean Douchet, pelo contrário, sustentavam que era um visionário em busca de um mundo de beleza e harmonia. Minnelli trabalhou sempre no interior do sistema hollywoodiano. Fez filmes que não escolheu. Então, como podia ser reconhecido face à política dos autores? Pelo estilo.
A obra de Minnelli é toda ela uma afirmação da importância do estilo. Sonho e realidade, o próprio processo de criação são seus temas. Estão nos musicais, nas comédias, no mais forte de seus melodramas - Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running, de 1958. Baseia-se num romance de James Jones, e como toda a literatura desse autor liga-se ao tema da guerra - nesse caso, ao pós Guerra da Coreia. De cara, Dave, com seu uniforme militar, está chegando de ônibus à cidade que havia deixado há 16 anos. Traz na bagagem o manuscrito do novo romance que pretende publicar. Vem com uma prostituta, Ginny, da qual se desembaraça logo depois de chegar. Seu irmão, Frank, é cidadão respeitável. Joalheiro, casou-se com uma rica herdeira, e ela não tem Dave em boa conta. Acha que ele a retratou de forma pouco lisonjeira no livro anterior.
Dave conhece o professor French ea filha dele, Gwen. Fica seduzido por ela, e Gwen retribui. Ele lhe entrega o novo livro, ela encaminha para uma editora. Mas Dave vive no fio da navalha, entre dois mundos, o respeitável de sua família e o das juke-boxes, o mundo de Ginny, com quem se reencontra, e de um jogador de pôquer, ao qual se liga. Bama é seu nome, e como superstição de jogador ele não tira sob circunstância nenhuma, o chapéu. Por amor a Dave, Ginny dispensa o homem que a vem seguindo desde Chicago e Raymond, como se chama, jura que matará Dave. A trama complica-se. Dave acompanha Bama numa disputa em outra cidade. São acusados de fraude. Brigam, vão presos. Para Gwen é demais, mas sua iniciativa tem sucesso e o livro é publicado. Para Dave, pode ser um recomeço. Chega o aniversário da cidade, o clima é de festa, mas Raymond reaparece armado, ameaçando disparar contra Dave. Impulsivamente, Ginny coloca-se na frente, recendo os tiros
Dois anos antes, com sua cinebiografia de Van Ghogh - Sede de Viver, com Kirk Douglas -, Minnelli já colocara melos into drama ao construir ao narrar a história de seu talvez mais trágico personagem. Segundo François Guérif, o pintor tenta transformar o décor exterior em paisagem interior e, no limite, não consegue reconciliar sonho e realidade. Três anos depois, transformou o remake de Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, com base no romance de Blasco Ibañez - uma família dividida pela ideologia, quando seus integrantes se posicionam em diferentes campos da guerra, no filme de Minnelli, a 2.ª -, num melodrama em que o clima de sonho característico de seus musicais vira o maior dos pesadelos de seu protagonista, Julio Desnoyers. Em todos esses filmes, em todo o seu cinema, Minnelli foi sempre a prova da importância do desenvolvimento da cor e das cenografia na indústria de Hollywood. Sem essas ferramentas, o musical, principalmente, não teria aquele apogeu nois anos 1940 e 50.
E, no caso particular de Minnelli, havia a cor. No longo balé final de Sinfonia de Paris, ele já recriara, com canto e dança, a capital francesa perlo olhar de grandes pintores. Recriou as pinceladas vigorosas e os azuis e amarelos de Van Gogh. Fez de Os Quatro Cavaleiros uma permanente oposição entre o vermelho e o verde, como representações de guerra e mortandade. A cor é essencial em
Deus Sabe Quanto Amei. O cenário é urbano, mesmo que seja uma pequena cidade em Indiana. A oposição é entre noite e dia. A noite, com seus luminosos, bares, jogos, mulheres fáceis e vulgaridade. A noite, com suas luzes multicolotridas, é o reino de Dave, de Bama, de Ginny.
Como analista da obra de Minnelli, François Guérif, assinala que a noite em Deus Sabe Quanto Amrei se ilumina quando o dia se extingue. Quando Frank fecha sua loja e Gwen encerra as atividades da escola, recolhe-se à sua casa. Parece óbvio, mas tanto isso é verdade que um raro momento liberador dessa mulher ocorre de dia, quando ela fecha as cortinas para escurecer o ambiente. Minnelli subverte a moralidade hollywoodiana - o dia como repressão, a noite, quando todos os gatos são pardos, como liberdade. Minnelli sempre foi muito preciso na utilização de seus símbolos. Mesmo quando o projeto não era dele, e nessa caso era, buscava os conceitos visuais visuais - figurino, objetos, cenário, cor - mais adequados para servir à trama e aos personagens. Em Adeus às Ilusões, de 1965, a pintora libertária interpretada por Elizabeth Taylor, num momento de fragilidade, veste o poncho colorido para se proteger.
Gwen veste roupas sóbrias, usa coque. O penteado é decisivo na construção da personsagem como uma mulher reprimida. Martha Hyer é quem faz o papel, uma loira fria a a quem o mestre do suspense, Alfred Hitchcock, nunca deu a devida atenção. Gwen é a perfeita encarnação da cidade interiorana, para no tempo. Mesmo quando desfaz o coque e vai para a cama com Dave, não tem estrutura para o tipo de imprevisibilidade que ele traz à sua vida organizada. Shirley MacLaine ainda não havia iniciado a parceria com Billy Wilder, com quem perfeccionou o tipo de personagem fora da curva, fácil ou vulgar, que já interpreta aqui. Aliás, é muito provável que tenha sido Ginny, com sua explosão de humanidade - a mulher que se sacrifica por amor, sem ser a esposa e mãe tradicionais -, que a tenha levado aos grandes papeis em Se Meu Apartamento Falasse e Irma La Douce, em 1960 e 63.
Mas o que faz a força do Minnelli é a parceria de Frank Sinatra e Dean Martin, como Dave e Bama. Sinatra já era The Voice e um ator dramático avalizado pelo Oscar de coadjuvante que recebeu por A Um Passo da Eternidade, de Fred Zinemann, de 1953, e pelo drogado de O Homem do Braço de Ouro, um Otto Preminger aclamado, de 1956. Aos 43 anos, Sinatra já tinha o rosto marcado, as rugas que definiram sua persona de homem maduro, cínico e asmargurado. Nos anos 1960, teve grandes papeis em filmes de John Frankenheimer (Sob o Domínio do Mal) e Gordon Douglas (Crime sem Perdão e os dois Tony Romes).
Por melhores que sejam Sinatra, Shirley, Martha, a alma do filme é Dean Martin, como Bama. Além de cantor, Martin tivera aquela carreira carreira de sucesso em dupla om Jerry Lewis. Desde o rádio e, depois, através de 16 filmes nos anos 1940 e 50, viraram favoritos fo público na 'Améreica' e no mundo. Conta a lenda que, a despeito das aparências, não se toleravam, cada um convencido de que o sucesso do duo era coisa sua. Com o fim da dupla, Jerry iniciou uma carreira solo também como diretor, e foi grande. Martin teve seus momentos inspirados como ator, e no biênio 1958/59 teve papéis antológicos em dois filmes que pertencem à história, o de Minnelli e o western de Howard Hawks, Onde Começa o Inferno/Rio Bravo. (Também integrou, com Sinatra, Sammy Davis Jr. e Peter Lawford, cunhado do presidente, o Rat Pack que chegou à Casa Branca e tinha proximidade com John Kennedy. Por isso mesmo, Martin Scorsese sempre quis fazer sua cinebiografia de 'Dino', como era conhecido.)
Assim como o coque que define Gwen, o chapéu é a marca de Bama. Durante todo o tempo, o espectador se pergunta se alguma coisa fará esse homem descobrir a cabeça. Ele tira o chapéu. Toda a arquitetura do filme converge para esse momento de respeito. O tributo a uma grande mulher. Sempre houve controvérsia quanto à sexualidade de Minnelli. Seu biógrafo, Emmanuel Levy - em Hollywood's Dark Dreamer - diz que ele era abertamente gay em seu começo, em Nova York, e que Hollywood levou-o ao armário. Sua celebração do feminino (Ginny) se faz num filme em que a grande ligação é masculina (Dave e Bama). Minnelli foi casado com Judy Garland, a quem dirigiu em grandes musicais nos anos 1940 (Agora Seremos Felizes e O Pirata) e com quem teve a filha Liza Minnelli. Morreu em 1986, aos 83 anos.
Shirley MacLaine, 1934
Sobre Billy Wilder: I liked him, but I wouldn't put him at the head of the line for women's liberation. Eu gostava dele, mas não o colocaria no topo da fila para a libertação das mulheres.
07/12/24
O monstro de Londres, The Sleeping Tiger, 1954, Joseph Losey
No iutubi aqui
Depois de um condenado irromper na casa de um psicoterapeuta, ele concorda com a reabilitação em vez de prendê-lo, mas a esposa do terapeuta se apaixona por ele. Interfilmes
10/12/24
Se meu apartamento falasse, The apartment, 1960, Billy Wilder
Se meu apartamento falasse (1960): um brilhante e agridoce retrato da sociedade - por Hiago Leal
Um deleite nada meloso e muito verdadeiro para a época do Natal e para todos os demais dias do ano.
Calvin Clifford Baxter (Jack Lemmon, de “Quanto Mais Quente Melhor”) é um funcionário da Consolidated Life, uma das maiores seguradoras dos EUA, segundo ele mesmo narra. Do 19º andar, na mesa 861, ele é o único a ficar uma ou duas horas a mais. Porém, engana-se quem pensa que o tempo extra no escritório é fruto de uma profunda dedicação ao trabalho. É que seu apartamento serve como motel para que seus superiores possam se encontrar com as respectivas amantes, deixando Baxter de fora de sua própria residência. Está formada a base para “Se Meu Apartamento Falasse”, comédia agridoce e repleta de crítica social de Billy Wilder (“Crepúsculo dos Deuses”).
A localização do apartamento de Baxter é privilegiada. Ele fica próximo ao Central Park em Nova York, no bairro Upper West Side. Tem até um bom tamanho para servir de moradia a solteiros, e é abastecido com bebidas e aperitivos para os casais adúlteros. Inicialmente, o público não sabe como um simples funcionário da Consolidated Life se meteu nessa situação. Mas tudo indica que a rotina se repete com alguma frequência e interessa a todos os envolvidos. Para o quarteto de gerentes da seguradora, o apartamento é um fuga de suas vidas ao lado das esposas. E para Baxter, é o seu atalho para uma promoção.
A história se complica ainda mais quando o diretor de recursos humanos, Jeff D. Sheldrake (Fred MacMurray, de “Pacto de Sangue”) descobre o esquema e decide tirar proveito com a sua própria acompanhante. E, em meio a toda essa infidelidade, Baxter demonstra nutrir sentimentos pela ascensorista Fran Kubelik (Shirley MacLaine, de “Laços de Ternura”), que chama a atenção de todos pela sua simpatia e beleza.
O cineasta Billy Wilder também assina o roteiro ao lado de I.A.L. Diamond (“Quanto Mais Quente Melhor”), e é exatamente nos diálogos que a história se ancora. O que começa como uma comédia ácida e com crítica social, passa a ser um drama e se desenvolve para um terceiro gênero no ato final – que estragaria a experiência expor -, mas sem nunca deixar de lado o humor como seu pilar. A dupla de roteiristas consegue extrair graça de praticamente tudo. Há o filme na televisão que jamais começa, sendo frequentemente interrompido por propagandas (em uma quase premonição do que futuro reservaria), e a divertidíssima incredulidade de que Baxter, um perfeito exemplo do homem comum, seria capaz de ter encontros amoroso todas as noites com diferentes mulheres.
Parte do poder dessa história reside em mostrar muito sem, necessariamente, dizer muito. Frases absolutamente banais carregam uma carga de sentimentos e intenções muito maiores do que aparentam, e esse charme é muito difícil de alcançar. Encoberto por humor, Wilder caçoa do corporativismo dos EUA dos anos 1950, que cobra serviço de todos, mas beneficia poucos e com segundas intenções. “Se Meu Apartamento Falasse” é um filme que consegue fugir da dicotomia dos mocinhos e vilões. Todos os personagens carregam falhas de caráter bem claras e nem por isso deixam de ser humanos. Muito pelo contrário, a complexidade deles e de suas várias facetas tornam a trama muito mais crível.
Apesar de não ser uma história de Natal propriamente dita, é durante esta época do ano que ocorrem as principais revelações do filme. A seriedade do 19º andar dá lugar a uma grande festa com bebidas, que tira a inibição do cotidiano e revela um pouco mais de quem aquelas pessoas do escritório de seguros realmente são. É em frente a uma árvore decorada com pisca-piscas que os ânimos se afloram, e são os presentes natalinos que evidenciam a visão que os personagens têm de seus colegas, subalternos e amantes.
Se há uma coisa em comum entre os grandes cineastas, certamente é serem grandes fãs de cinema. O próprio Billy Wilder mesmo é um ótimo exemplo disso. O diretor tinha uma placa em sua mesa com as palavras “como Lubitsch faria isso?”, em referência ao diretor do clássico “Ladrão de Alcova”, Ernst Lubitsch. E em “Se Meu Apartamento Falasse”, ele usa o conceito de outro filme, “Desencanto”, de David Lean, para mostrar um novo ponto de vista que nenhuma obra havia abordado. Wilder criou, com este seu clássico de 1960, uma obra que fala também sobre as comemorações de fim de ano, e que ressoa todos os outros dias.
11/12/24
O terceiro tiro, The trouble with Harry, 1955, Alfred Hitchcock
No iutubi aqui
Crítica | O Terceiro Tiro por Luiz Santiago 30 de maio de 2020
What seems to be the trouble, Captain?
Em minha concepção, um dos principais ingredientes que fazem um diretor de cinema entrar para o Olimpo dos Grandes Mestres é a sua capacidade de brincar inteligentemente com as ferramentas que tem em mãos, de mudar solidamente de abordagem quando o enredo exige (digo isto porque não parece óbvio para alguns criadores, que teimam em forçar qualquer produto, em qualquer contexto, à sua forma única de fazer as coisas) e de propor novos pontos de vista dentro de sua identidade e seus temas recorrentes. Se pegarmos a filmografia de Alfred Hitchcock https://www.planocritico.com/tag/alfred-hitchcock/ apenas na primeira metade da década de 1950, veremos obras tão diferentes quanto Pavor nos Bastidores (1950), Pacto Sinistro (1951), A Tortura do Silêncio (1953) ou Ladrão de Casaca (1955) e tão experimentais, em diversos níveis, quanto Disque M Para Matar (1954), Janela Indiscreta (1954) e o objeto da presente crítica, O Terceiro Tiro, que chegou aos cinemas em setembro de 1955.
Estreia de Shirley MacLaine nos cinemas, último papel de Philip Truex (o pobre Harry) e primeira parceria de Hitchcock com o compositor Bernard Herrmann, O Terceiro Tiro é uma improvável comédia romântica do diretor, recheada de tons macabros, e cujo roteiro de John Michael Hayes (baseado na obra de Jack Trevor Story) brinca com o comportamento de pessoas muitíssimo respeitáveis diante da morte de um homem sobre o qual ninguém fará perguntas ou irá se importar. Guardadas as devidas proporções, essa temática de “teste de reações para distintas classes/ocupações” sempre foi um dos grandes prazeres de Hitchcock, mas aqui isso tudo é embrulhado num estilo cronista de narrativa, ressaltado pela montagem que faz questão de marcar cada bloco da ação por fades pretos entre um ato e outro, indicando a passagem do tempo ou também do espaço; com toda a saga passando-se ao longo de um único dia. O dia em que Harry morreu e foi diversas vezes enterrado e desenterrado por um grupo de desconhecidos.
A placidez da música de Herrmann e a abordagem idílica, saturada, marrom, vermelha e amarela da fotografia de Robert Burks (vencedor do Oscar na categoria por Ladrão de Casaca), tão bela que parece saída de um melodrama qualquer de Douglas Sirk, nos coloca em um cenário onde aparentemente um crime não teria lugar. Pessoas corretas, silêncio e o vento ajudando na queda das folhas das árvores estabelecem um clima de improbabilidade criminal que rapidamente é contrastado com a descoberta do Capitão Albert Wiles (Edmund Gwenn) de que ele, sem querer, atirara em um homem e o matara. É nesse primeiro contato que o diretor dá partida ao sombrio motor cômico da fita, estabelecendo o corpo de Harry como um McGuffin e diante dele sugerindo uma discussão densa sobre a responsabilidade legal de alguém diante de um crime.
Criminosos devem pagar pelos crimes cometidos, correto? Bem… nesta vila, não necessariamente. Mais para o final do filme, quando a verdade vem à tona, a tensão se distende e a comidade ganha o seu tempero moral (mas não negativo). Todavia, não temos essa informação no início, e ao longo de toda a obra vemos pessoas que não dão a mínima para um homem morto, não se espantam com a possibilidade de alguém próximo tê-lo matado e, principalmente, não se ressentem de colocar ou retirar o homem da cova para atender a diferentes interesses pessoais que surgem pelo caminho. O roteiro faz brilhar as nuances de uma “banalidade do mal sob o olhar de cidadãos de bem“, onde a morte não tem o impacto que deveria ter e onde o crime é apenas um inconveniente que deve ser logo escondido para que os distintos cidadãos voltem aos seus romances outonais — e notem aqui a pequena ironia frente aos laços humanos na obra: as relações amorosas desabrocham no momento em que a vida da natureza à volta começa a morrer, tendo um corpo morto como catalizador de dois encontros para casais em diferentes faixas etárias.
Testando um novo tipo de comédia para o público americano e entrelaçando o encobertamento de um crime com insinuações sexuais que devem ter feito corar os recatados dos anos 50, Hitchcock cria em O Terceiro Tiro um teste moral onde todos os seus personagens são reprovados, com anuência do público, que ri e teme pela possibilidade desses encobertadores e possíveis criminosos serem pegos. E sabem o que é melhor? A indicação final de que toda a nossa simpatia por essas pessoas de ilibada retidão é válida, já que elas não cometeram crime algum. A finalização com a máxima maquiavélica que prova o perigo de certos horrores cometidos em uma bolha povoada por gente de rabo preso ou simplesmente cegos pela paixão. E tudo isso em um pequeno e ‘simples filminho’ do Mestre do Suspense, um daqueles que quando temos contato e atentamos para o que é mostrado, nos perguntamos por que não recebeu a estima e o reconhecimento que de fato merece.
11/12/24
Aconteceu num apartamento, The notorious landlady, 1962, Richard Quine
Josh Gillam, Review by Josh Gillam Letterboxd
Kim Novak, Jack Lemmon and Fred Astaire star in this mystery comedy about an American diplomat in London who rents a room from a woman everyone thinks has killed her husband.
I really enjoyed the first half especially, as it has a witty, dark sense of humour, playing off the interactions between the characters. Astaire, in particular, gave a fun performance as Lemmon’s boss, and did well in a slightly against type role.
It felt like an updated screwball comedy along the lines of The Talk of the Town, looking at gossip and rumour. There were a lot of great moments, mixing verbal and visual humour to great effect, like the scene where Lemmon is searching Novak’s room and has to sneak out of the house and back in again to avoid being seen.
Blake Edwards and Larry Gelbart co-wrote the script, and in the first part their styles blend together well. However, I found the second half much weaker, becoming a Hitchcock-type comic thriller, with an increased focus on slapstick and contrived plot devices. This sudden shift feels really out of place with the rest of the story, and I don’t think the humour fits as well in these later scenes.
The Notorious Landlady is an entertaining comedy that begins to run out of steam after a while, and could have been a bit tighter to stop this from happening, but was still a lot of fun.
12/12/24
O jogo da rainha, Firebrand, 2023, Karim Aïnouz
Roteiristas: Henrietta Ashworth & Jessica Ashworth & Elizabeth Fremantle
Sobre o filme Firebrand ler aqui
13/12/24
Cem anos de solidão, Cien Años de Soledad, Série de TV, 2024, Alex Garcia Lopez & Laura Mora Ortega
O tempo parou e a eternidade começou. Mas o homem não nasceu para ser eterno. Nascemos para morrer. Para nos tornarmos matéria orgânica. Para nos tornarmos memória e esquecimento no coração dos homens. (E04)
'Cem Anos de Solidão', a série, é um alento para quem temia adaptação do livro
Dá para imaginar que Gabriel García Márquez teria apreciado a produção da Netflix
Luciana Coelho, fsp, 17/12/2024
Assíduo nas listas de melhores romances do século 20 e de preferências pessoais de leitores diversos, "Cem Anos de Solidão" é tanto a epítome de um gênero (o realismo mágico) quanto de parte expressiva de um continente (a América Latina); um livro que, com estimados 50 milhões de cópias vendidas, emana nostalgia e doçura na memória dos que o leram, muitos dos quais o fizeram bem jovens.
Não é de se estranhar, portanto, que sua estreia nesta semana na forma de série, na Netflix, tenha sido tão ansiada quanto temida. Trata-se de ambição tremenda adaptar para as telas esta obra-prima do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), algo que ele mesmo receava permitir e que sempre criou sentimentos dúbios em seus milhões de leitores.
Há razões objetivas e também indizíveis para isso. O romance, afinal, se desdobra em forma de saga pelas muitas gerações da desgraçada família Buendía, e retratar seus infortúnios com fidelidade ao livro exigiria tempo, afinco e dinheiro diante de um resultado incerto. A conjunção da atmosfera onírica relacionada à região e da aridez de sua realidade econômica e política também produz algo difícil de capturar, mais ainda após ter sido, por quase seis décadas, erigido na imaginação de tanta gente.
Finalmente, "Cem Anos de Solidão" costura temas universais em seu enredo que tão bem se apropria de elementos bíblicos e gregos, mas é improvável que um gringo entenda suas nuances da mesma forma que um latino-americano.
É um alívio — e uma feliz surpresa — ver tudo isso transplantado para as telas de forma tão convincente e pulsante. Não que a minissérie se coloque no mesmo patamar que o livro, como bem escreveu a colega Sylvia Colombo. Mas a saga do coronel Aureliano Buendía, dos Buendía que o precederam e dos que vieram depois dele está vivamente contada na produção escrita por Natalia Santa e José Rivera e dirigida por Alex García Lopez e Laura Mora Ortega.
A equipe, bem como o excelente elenco, é essencialmente latina não apenas porque os herdeiros de Gabo insistiram que ele preferiria assim, mas também por estratégia da Netflix, cujo catálogo de obras originais em línguas que não o inglês se expande como o de nenhuma outra plataforma a fim de ampliar sua base de assinaturas. E o caminho seguro é apostar em obras ou nomes consagrados.
Como o livro, "Cem Anos de Solidão", a série, exige certa atenção para acompanhar as sucessivas gerações da família que fundou Macondo, na qual a (má) sorte se repete e os mesmos nomes se alternam pela linhagem.
Nesta primeira leva de oito episódios (haverá mais oito, com data de estreia a ser anunciada), conhecemos o casal de primos Úrsula Iguarán (Susana Moráles) e José Arcádio Buendía (Marco González), que, na tentativa de escaparem de um destino maldito, fundam Macondo e toda uma genealogia de personagens trágicos, sobretudo o intuitivo Aureliano (Claudio Cataño), que se tornará coronel, rebelde e protagonista da história.
Se muitas produções hoje pecam pela falta de concisão, no caso desta série um dos méritos está em dar tempo para que os personagens se apresentem e cresçam, o que se mostra essencial para dar força à intrincada genealogia imaginada por García Márquez, suas repetições e seus constantes opostos entre carisma e força, razão e emoção, terra e céu que se alternam aos pares conforme crescem a família, Macondo e a Colômbia.
Traz certa alegria pensar que Gabo, vivo estivesse, poderia ter gostado do resultado.
Os oito episódios da primeira parte de 'Cem Anos de Solidão' estão disponíveis na Netflix
Nos 50 anos de 'Cem Anos de Solidão', entenda a relação entre os personagens da obra
‘Cem Anos de Solidão’ é experiência grandiosa. Mas é melhor do que o livro? Veja perdas e ganhos
Série da Netflix que adapta o grande romance de Gabriel García Márquez estreia primeira parte com o lirismo sonhador de seus personagens. Conheça as principais diferenças entre livro e série
Por Wilson Alves-Bezerra, O Estado, 12/12/2024
Quando publicou Cem Anos de Solidão, em 1967, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) não poderia imaginar que sua obra fosse às telas. Sobretudo, porque ele não desejava isso. O autor chegou a afirmar, mais de uma vez, que escrevera aquele livro “contra o cinema”, juntando seus argumentos recusados por produtores audiovisuais.
Em uma entrevista em 1989 para o documentário Tales Beyond Solitude, Gabo explicou suas razões: “Os leitores de todos os meus livros, me dizem: olha, eu gostei do seu livro porque Úrsula Iguarán é muito parecida com minha vovozinha, porque Amaranta é igualzinha a uma tia minha (...) Então, você sente que as pessoas vivem a história. No cinema não dá, porque você tem a cara do Anthony Quinn, da Sofia Loren, do Robert Redford. É inevitável. E é muito difícil que um avô nosso se pareça com o Robert Redford. Eu prefiro deixar para os leitores [imaginarem]. Literatura é literatura e cinema é cinema. (...) O romance deixa uma margem de criação para o leitor que o cinema não deixa. A imagem é impositiva demais.”
Literatura é literatura e cinema é cinema?
Pois no último 11 de dezembro este tabu caiu, no que se pode chamar de o grande acontecimento do audiovisual deste fim de 2024: a série Cem Anos de Solidão, no streaming. E, diferentemente do que os puristas poderiam pensar em décadas passadas, a saga dos Buendía não surgirá na sala escura do cinema, numa experiência coletiva de cerca de 120 minutos, mas na tela pessoal de cada espectador, ao longo de 16 episódios de aproximadamente uma hora cada.
Além das interrupções de bipes, pop-ups, zaps e e-mails, os mais afoitos terão que aguardar até a segunda entrega da Netflix, que oferece, de imediato, apenas oito dos dezesseis episódios. Não será possível maratonar (esse verbo contemporâneo) a série inteira. E isso lembra a experiência do primeiro leitor do manuscrito, o editor argentino Francisco Porrúa que, em 1967, só recebeu metade do livro porque o autor e sua esposa Mercedes, tinham pouco mais de 40 pesos e o envio do calhamaço de setecentas páginas pelo correio passava dos 80. Assim como Porrúa, há quase sessenta anos, teve que se encantar pela amostra que tinha, também os espectadores de hoje farão este julgamento antes de embarcar na segunda parte.
Saber mostrar, saber calar
O crítico e professor de literatura João Alexandre Barbosa (1937-2006) dizia que a grande vantagem de não ter lido o D. Quixote ainda era poder lê-lo pela primeira vez. Os leitores de Cem Anos de Solidão que se aventurarem à série sentirão o mesmo: não terão o privilégio de ver a adaptação com olhos virginais e vão estar condenados a todo momento a comparar o que a tela exibe com o que haviam imaginado lendo o romance. Desafio e tanto que os produtores da obra tiveram que enfrentar, diante de uma obra que se vale do imaginário histórico sobre a América Latina. Em resposta, oferecem imagens deslumbrantes na natureza virgem, atores com traços nativos e corpos erotizados. Em certos momentos, é como se estivéssemos outra vez em 1990, assistindo à telenovela Pantanal, de Jayme Monjardim, na TV Manchete.
Os grandes achados da adaptação são aqueles em que o verbo de García Márquez se faz imagem, sem a mediação do texto do livro ou a voz de um narrador. Um exemplo é a célebre cena em que o cigano Melquíades exibe, como se fosse mágico, o imã, diante do povoado incrédulo de Macondo. Na série, a cena não tem palavras, pois se veem as panelas e demais utensílios ganharem vida e irem em direção às barras magnéticas; apenas um curto diálogo, inexistente no livro, arremata a cena: “Isso é bruxaria!”, diz uma mulher. “Não, isso é ciência!”, retruca o cigano.
Em outras várias passagens, a voz de um narrador em off, declamando trechos do romance, arrebenta com a ilusão novelesca e nos faz lembrar que os pobres produtores estão numa luta física com um monumento literário, sem saber o que fazer com o texto de Gabo. Nesses casos, ocorre algo que fazem os locutores de futebol mais afoitos da televisão: narram o que já estamos vendo na tela, como se a imagem não bastasse. O que poderia ser uma homenagem ao texto da obra se torna uma tautologia injustificada. Isso acontece, por exemplo, no segundo episódio, quando José Arcadio, obcecado pela alquimia, é chamado à realidade por sua esposa Úrsula e passa a se encarregar dos filhos. Uma voz em off, citando o livro, conta-nos o que já estamos vendo.
Cenas delicadas do romance, como a iniciação de José Arcadio, filho, com Pilar Ternera, perdem ao se tornarem um ato sexual entre um casal de atores com belos corpos. Nem tudo é perda, porém: as cenas com os ciganos em geral, e com Melquiades, em particular, ganham em colorido, movimento, porque a mera exibição de suas roupas e seus objetos mágicos (ímãs, astrolábio, mapas) prescinde do verbo, e a direção sabe calar nesse momento. Recria-se assim o impressionante encontro cultural entre a feira medieval europeia e o povoado latino-americano de Macondo: puro deleite.
A fala local
O crítico uruguaio Ángel Rama exaltava um grupo de escritores latino-americanos da geração de García Márquez, como Guimarães Rosa, José María Arguedas e Juan Rulfo, por narrarem suas histórias a partir de pequenos povoados latino-americanos, com um ponto de vista local e com o resgate das línguas autóctones. De todos esses escritores, García Márquez foi aquele que deu menos atenção à língua indígena e, diferentemente de Arguedas, com longos trechos em quíchua em seu Os Rios Profundos, não permitia que seus leitores ouvissem língua guajira.
Mais ainda, caracterizava os indígenas de um modo algo estereotipado: “[Visitación e seu irmão] eram tão dóceis e serviçais que Úrsula os encarregou de ajudarem nos ofícios domésticos. Foi assim que Arcádio e Amaranta falaram língua guajira antes do castelhano e aprenderam a tomar caldo de lagartixas e a comer ovos de aranha sem que Úrsula percebesse, porque estava ocupada demais com o negócio dos pirulitos de bichinhos.” (capítulo III).
Pois a série tem um apuro mais de acordo com os códigos contemporâneos. Houve uma pesquisa linguística e Visitación, Cataure, Arcádio e Amaranta de fato falam língua guajira, diante de uma Úrsula que, por outro lado, insiste que falem apenas a língua espanhola. O zelo vai além, pois todos os personagens falam espanhol caribenho; o espanhol peninsular, muito adequadamente, fica por conta do cigano Melquíades, o brilhante ator espanhol Moreno Borja. Tal cuidado é um mérito e tanto para uma produção global, que esquivou atalhos fáceis de ceder à homogeneidade linguística.
‘Cem Anos de Solidão’ nas telas contemporâneas
A grande pergunta, para quem leu o romance, é: vale a pena a experiência da série? A resposta é: o universo narrativo de García Márquez está na tela, em movimento, com o lirismo sonhador de seus personagens e com a exuberante natureza selvagem. A obra escrita tem mais matizes, mais sutilezas, mas é uma experiência e tanto ver outra forma de colocar em cena, com dezenas de atores, o universo de Macondo, que ficou por décadas na imaginação de cada leitor. Numa palavra: com perdas e ganhos, Cem Anos de Solidão agora tem som, imagem e movimento, é uma obra delicada, muitíssimo bem produzida e que merece ser vista.
Em um mundo sem literatura, seria uma obra-prima. No nosso, onde a narrativa escrita ainda resiste, é uma experiência estética grandiosa, que compensa as horas de dedicação. Tal como no livro, é certo que a série irá despertar, com sua linguagem própria, utopias e estereótipos sobre a natureza e o suposto maravilhoso latino-americano. Não foi García Márquez quem criou isso: tem sido assim desde 1492. Que sejam cada vez menos literais e mais oníricas tais imagens, é o mínimo que podemos desejar.
Pontos fortes
Paisagem natural colombiana
Casting com atores locais
Os personagens ciganos
Apuro linguístico: presença da língua guajira (wayuu) e do castelhano caribenho
A atuação do espanhol Moreno Borja, o Melquíades
Pontos fracos
Excesso de narração em off
Abuso do erotismo
Intrusão de elementos biográficos do autor no personagem José Arcadio, como o sonho com Macondo
A cena em que Aureliano Buendía conhece o gelo
O desperdício da exuberância visual limitada nas telas domésticas
Por que ler o livro
O poder imagético e sugestivo de uma história muito bem contada de García Márquez, que busca e alcança uma dimensão de universalidade, como D. Quixote e As Mil e Uma Noites.
García Márquez opera com maestria a diferença cultural, naturalizando o cotidiano não-ocidental de Macondo e magnificando o cotidiano ocidental.
A dimensão da história latino-americana contada sutilmente ao longo da narrativa.
O efeito vertiginoso das repetições familiares ao longo das gerações.
Cenas memoráveis, como a iniciação sexual de José Arcadio com Pilar Ternera são delicadas e magnéticas, e a série não dá conta de reconstruí-las.
Por que ver a série
A série transpõe ao audiovisual contemporâneo, com méritos e alguns achados, uma das obras literárias mais importantes do século vinte.
Os personagens indígenas guajiros, como Visitación e Amaranta, são caracterizados com apuro visual e linguístico, superando a obra literária.
A experiência visual da série, quando bem sucedida, enriquece o imaginário dos leitores do livro.
Melquíades e os ciganos são um espetáculo à parte.
Cenas épicas, como o êxodo de Úrsula, José Arcadio e os seus, do lugar de nascimento em busca do mar, com paisagens selvagens e sertanejas.
Mario Vargas Llosa, sobre Gabriel García Márquez
14/12/24
O anônimo veneziano, Anonimo veneziano, 1970, Enrico Maria Salerno
Anonymous Venetian soundtrack by Stelvio Cipriani - Track 12
Anonymous Venetian soundtrack by Stelvio Cipriani - Track 01
Anônimo Veneziano, (1970)
A magistral trilha sonora de Stelvio Cipriani é, sem dúvida, um dos pontos mais altos deste melodrama italiano. A partir do “Adágio do Concerto para Oboé e Cordas”, de Benedetto Marcello, compositor italiano do século XVIII, Cipriani criou uma romântica melodia para o filme.
É. A beleza é o anteparo da Morte e da Loucura. Ela nos poupa a entrada num mundo onde ou desconhecemos a fala – onde a comunicação não é possível, ou é muito difícil o entendimento. Anônimo Veneziano – baseado no romance homônimo do escritor Giuseppe Beto, tem roteiro magistralmente desenvolvido pelo diretor Enrico Salerno.
A beleza feminina de Veneza nos dá a mão para atravessarmos esta história de perda. Morte da vida, morte do amor. A decadência de Veneza – hoje em dia já bem mais restaurada – nos ensina que o tempo destrói porém a memória se mantém intacta – lembranças, sítios arqueológicos e sem data definida que incomodam o presente de forma invasiva e surpreendente.
Um casal nunca é desfeito quando as lembranças ainda se apresentam despudoradamente. Sempre formamos par com alguém para rodopiarmos na dança da Vida. Um casal se desfaz. Não importa de quem foi o corte – nesse caso não gosto de usar o termo ‘culpa’. Têm um filho dessa união da juventude, vivida com amor e desejo. Agora, separados, vivem em cidades quase vizinhas; ela em outra união e ele ainda só.
O reencontro ocorre por um chamado desse ex-marido para (pressupomos) um derradeiro encontro. Ele está com pouco tempo de vida e esse pouco que lhe resta será extremamente penoso – um tumor inoperável no cérebro. Tragédia na medida certa!
A paisagem da Veneza decadente é a metáfora…ora bolas, mas que metáfora… é o belo, sedutor e apaixonado amor vivido num passado da gloriosa juventude – como todas as juventudes…
E o filme é um excelente parcour por Veneza enquanto rememoram a paixão que, numa noite, volta insistente e atrevida a unir o casal. A cama – leito de carícias ou arena de indiferenças – naquele último e lamentoso encontro, passou a ser um leito de morte: da vida e do amor. Nada mais resta a fazer senão um doloroso adeus. Mas, Ó vós, homens de fé apoucada, o filme é lindo e ao final temos vontade de sair amando não importa quem. Porque si l’important c’est la rose, o importante é amar!
Tony Renis - Cuore Cosa Fai? [Coração, o que você faz?]
Anônimo Veneziano, de Enrico Maria Salerno (1970) Revistacinetv
Mais sobre O anônimo veneziano ler aqui
15/12/24
Os violentos vão para o inferno, Il mercenario, 1968, Sergio Corbucci
No iutubi aqui
Crítica | Os Violentos Vão Para O Inferno por Luiz Santiago, 31 de janeiro de 2015
Mais vale ser um palhaço vivo do que um herói morto
Quando dirigiu Os Violentos Vão Para O Inferno (1968), Sergio Corbucci já tinha seis westerns no currículo (Massacre no Grand Canyon, 1964; Minnesota Clay, 1964; Django, 1966 – este, o seu primeiro grande sucesso comercial; Ringo e Sua Pistola de Ouro, 1966; Joe, o Pistoleiro Implacável, 1966, e Os Cruéis, 1967), obras nas quais podemos ver sua evolução como diretor e sua identidade como criador de um estilo que mesclava várias influências do gênero, especialmente de Sergio Leone, e que tinha um grande apreço pela comédia, um dos gêneros característicos da filmografia de Corbucci.
Em Os Violentos Vão Para O Inferno — infeliz título nacional, pra variar –, o mercenário Sergei Kowalski, o polaco (interpretado por Franco Nero, com sua esterna simpatia), se vê envolvido em um momento tardio da Revolução Mexicana, o que caracteriza o longa como um Zapata western, porém, com menos importância dada aos aspectos políticos e mais à relação entre “o polaco” e Paco Roman (muitíssimo bem interpretado por Tony Musante), uma relação de companheirismo e desconfiança que marca a maioria os westerns italianos.
A forte influência de Leone sobre Corbucci neste filme vem principalmente de Três Homens em Conflito (1966), dos créditos iniciais ao duelo na arena de tourada, mas nós podemos ver traços da transformação realizados por Corbucci que dão ao longa uma alma própria, sempre jogando pesado com a comédia — esta, exposta de forma irônica e até cínica, vide a figuração de Paco, o revolucionário, como um palhaço — e de maneira muito sábia equilibrando doses de erotismo, ação e elementos canônicos do western como o roubo do trem, o roubo do banco, cenas de cavalgada e uma sequência no saloon.
A música de Ennio Morricone e Bruno Nicolai ajudam a montar essa identidade geral através de uma melodia recorrente, com o famoso ‘assobio de reconhecimento’ que marca a personalidade dos envolvidos na história e dá para o espectador um parâmetro de comportamento ou ações que podem surgir toda vez que ouvimos a melodia. Junto a isso, algumas composições que misturam ingredientes de música mexicana e famosas partituras de westerns estão presentes, colocadas de maneira bem equilibrada ao longo da fita, nunca entrando no patamar de muleta narrativa.
Corbucci consegue excelentes panorâmicas do espaço geográfico e seus movimentos e planos inventivos ajudam a criar um significado estético marcante para o filme (com exceção à fotografia noturna). O ritmo dado pela montagem de Eugenio Alabiso, especialmente nos tiroteios, fixam um constante interesse do espectador para o que está acontecendo, mesmo que esbarre na tendência cronista do roteiro, cuja linha narrativa é bem tênue, estabelecida através de personagens recorrentes e pensada como uma “sequência lógica de blocos independentes”.
O grande problema desse tipo de enredo é que ele sofre praticamente em todo o miolo, mas consegue resultados quase irreparáveis na abertura e no desfecho, uma característica que talvez nuble o olhar de alguns espectadores que acabam perdoando o desenvolvimento permeado de pontos pouco interessantes. O que acaba salvando uma parte desse aspecto é a oposição entre Paco e o polaco. A dubiedade moral e a traição (elementos-chave da Trilogia dos Dólares, na qual o time de roteiristas se inspirou para escrever esta história) vai ganhando espaço à medida que conhecemos a dupla e simpatizamos ou antipatizamos com ela. De todos os envolvidos nesses meandros comportamentais, a única personagem que recebe um mal tratamento é Columba (Giovanna Ralli), cuja presença no longa tem pouquíssima utilidade e que poderia ser facilmente substituída, uma vez que o mote da obra não gira em torno dela, não se expande consideravelmente com sua presença e nem depende dela para existir.
Mesmo com alguns problemas de roteiro, Os Violentos Vão Para O Inferno é um dos Zapata westerns mais icônicos do cinema e uma das obras mais interessantes de Corbucci, que no mesmo ano lançaria um outro filme, este sim excelente, O Vingador Silencioso. O espectador é enganado ao final com frequentes “ameaças” de que a obra terminaria mas outra e outra sequência se acrescentam ao desfecho, que alcança o seu término numa conciliação discordante e solitária entre os protagonistas, como não poderia deixar de ser. A sina do cavaleiro solitário, máxima dos grandes faroestes, se dá aqui de duas formas e tanto Paco quando o polaco sentem a separação, mas suas vidas e seus interesses acabam falando mais alto que o sentimento de pertencer, empurrando cada um para um caminho diferente. O filme se fecha, então, em um ciclo canônico e da melhor maneira possível.
27/12/24
Hayao Miyazaki and the Heron, 2024, Kaku Arakawa
Review by Champiñon08XD Luc Saby Letterboxd
Me cuesta escribir esto.
No creo que un documental me haya llegado tan profundo nunca. Y esto no es una recomendación, porque cae muy particularmente en el duelo que estoy atravesando.
Tal vez haya sido una experiencia que me hubiera pasado con cualquier otro documental de este asombro señor, pero agradezco que en un momento tan sensible, me haya tocado el que delata su verdadera vejez, que de verdad esta fue la última vez.
Me hizo despertar en mí una tristeza ya muy enterrada, desde hace mucho tiempo la remprimia: me sentía condenado al fracaso. Tengo en general mucha flojera por todo, lo único a lo que me dedico es a la escuela y lo odio, todo lo demás se me escapa y entonces me aburro, me deshago. Y me siento muy seguido triste, me dí cuenta con este duelo también qué mi modus operandi se basa completamente en eso: sentirme mal y desanimado. Así soy, y no me es agradable.
Pero aquí es diferente, Miyazak, en este odio por nosotros mismos y por la vida que siento que compartimos, decide abrirse, compartir y crear. Al borde de su vida, mientras ve a todos sus seres queridos poco a poco morir, él se decide a crear. Lo vemos atravesar tanto dolor, pero a final de cuentas se levanta y va a trabajar. Yo quiero eso, yo ansío eso y aspiro a eso. Quiero poder, cómo el dice, abrir mi cerebro por más que no funcione. Yo tal vez no comparta su genialidad, y no creo que nadie lo hará, y me da muchísima tristeza pensar que puede que ahora sí no habrá ninguna nueva película bajo la supervición y creación de esta ilustre figura, pero lo quiero intentar. Realmente quiero tratar. Por más que tal vez no llegué ni a eso.
La película la cual este documental retrata el proceso tiene una infinita sabiduría y finalmente veo el porqué. No me atrevo a verla por miedo pero realmente con este documental fue suficiente.
Le agradezco infinitamente a Miyazaki por indirectamente ayudarme ligeramente a vivir y hacerle honor al título original de su película. Gracias por leer.
Sobre o filme O menino e a garça ler aqui.
28/12/24
A rainha serpente, The Serpent Queen, Série de TV, 2022–2024, Justin Haythe (criação)
‘The Serpent Queen’: a rainha mítica da França que virou piada na TV
Série do Starzplay conta a história de Catarina de Médici
Por Kelly Miyashiro, Terra, 4/06/2024
Durante conversa com a rainha Catarina de Médici (Samantha Morton), uma criada questiona: “Então você sacrificou seu melhor amigo, seu marido e até seu filho por poder?”. A monarca mira friamente os olhos da serviçal e explica suas motivações. “Não. Eu fiz pela minha liberdade”, responde Catarina. A célebre esposa do rei Henrique II foi, sem dúvida, cruel — mas hoje faria por merecer o epíteto de empoderada. No século XVI, não houve mulher de maior influência no mundo: após a morte do rei, ela se tornou a eminência com poder de fato sobre a França nas regências de seus três filhos, os futuros Francisco II, Carlos IX e Henrique III. Como mostra The Serpent Queen, série que estreia no Starzplay no domingo 11, Catarina teve de ralar adoidado para chegar lá.
A produção bebe de uma tendência em alta: a exploração da vida de figuras históricas com uma veia cômica escrachada. The Serpent Queen (a rainha serpente) fica a meio caminho entre a indecorosa The Tudors, que recriava a vida do monarca inglês Henrique VIII priorizando o sexo sobre os fatos, e a sagaz The Great, que injeta humor de primeira na história de Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia. The Serpent é um tanto caricatural ao desenhar seus personagens. Mesmo com mil licenças históricas, porém, é uma vitrine válida para se conhecer a espantosa trajetória de sua protagonista — bem defendida na tela por Samantha Morton quando adulta e, principalmente, pela expressiva Liv Hill na juventude.
Apesar de ter nascido no lendário clã dos Médici, a italiana Catarina Maria Romola di Médici (1519-1589) ficou órfã cedo e foi obrigada a se esconder num convento em período conflituoso em Roma. Resgatada por seu tio, o papa Clemente VII, teve um casamento arranjado com um dos herdeiros do trono francês, o futuro Henrique II, em meio a uma negociação geopolítica entre França e Itália. Sozinha em território desconhecido, a rainha descobriria o desprezo do próprio marido, disposto a sempre favorecer a amante Diana de Poitiers (Ludivine Sagnier). A dificuldade para engravidar piorava a situação, e a levou a mil artimanhas, incluindo a aplicação de esterco de vaca e pó de chifres de veado em sua “fonte de vida”.
Deu certo: ela teve dez filhos, três dos quais seriam reis da França. Com a morte do marido, a escanteada Catarina vira definitivamente o jogo, conduzindo lances terríveis de perseguição religiosa e, por outro lado, exercendo o papel de patrona das artes. No meio disso, teria deixado um rastro de tortura e mortes — até por envenenamento. Ninguém é chamada de víbora por acaso.
Catarina de Médici
29/12/24
Ainda estou aqui, 2024, Walter Salles
Ainda estou aqui: Vazios, memórias e uma singeleza potente | Crítica
Ainda estou aqui: porque não gostei do filme
Autor de ‘Ainda estou aqui’ comentou sobre mim no Roda Viva (Chavoso da USP)
Meu problema com AINDA ESTOU AQUI (e a "SALVAÇÃO" plataformizada do Cinema Brasileiro)
30/12/04
Round 6, Ojing-eo geim, Série de TV, 2021–2025, S02, Hwang Dong-hyuk (S02)
Crítica da BBC para 'Round 6': 'Temporada 2 contém a cena mais selvagem que você verá na TV o ano todo'