Jones Manoel - O Teatro da revolução (O Mercado da consciência) - podcast
A ilusão da radicalidade: Jones Manoel e o teatro da revolução
Resumo:
Este texto é uma crítica à figura de Jones Manoel como expressão da vulgarização do marxismo e da captura da radicalidade pelo espetáculo. Longe de representar uma saída revolucionária, sua trajetória encena a revolução como performance segura para o algoritmo, convertendo a crítica em mercadoria, a militância em plateia e a revolta em combustível eleitoral. O que se anuncia como radicalidade é apenas a reedição farsesca do reformismo de sempre, agora embalado em estética digital e pedagogia domesticada. Contra esse teatro, o texto reivindica o resgate da crítica como arma e da auto-organização proletária como única via de emancipação real.
Arthur Moura, 2025
Diante dos ataques neonazistas e reacionários que Jones Manoel vem sofrendo, é preciso afirmar, antes de tudo, solidariedade incondicional. Contra o fascismo não há nuances nem hesitação: trata-se do inimigo absoluto da classe trabalhadora e de qualquer horizonte emancipatório. No entanto, essa solidariedade não implica calar a crítica. Pelo contrário: se a extrema-direita investe na violência aberta, o reformismo se encarrega da violência surda da conciliação, desarmando a classe diante da barbárie. É precisamente porque combatemos o fascismo que devemos também desnudar as formas domesticadas de radicalidade que, sob a máscara da revolução, reforçam a ordem. Nossa crítica a Jones Manoel não se confunde com o ódio da direita; nasce da necessidade de preservar o marxismo como arma, e não como espetáculo pedagógico ou mercadoria de engajamento.
Muitos têm argumentado que não seria o momento de criticar Jones Manoel, que seria melhor “esperar” para ver até onde ele vai, evitando “jogar pedra” em alguém que surge no campo da esquerda e começa a acumular relevância. Esse raciocínio é exatamente o que tem levado a esquerda a se repetir em farsas históricas: poupar a crítica em nome de uma unidade ilusória e, quando finalmente se percebe a natureza reformista do projeto, já é tarde demais, a neutralização já se consumou. A crítica marxista não pode ser adiada sem se tornar cúmplice daquilo que denuncia. Presto, portanto, solidariedade incondicional a Jones Manoel contra os ataques neonazistas e reacionários que ele vem sofrendo, mas é precisamente por lutar contra a barbárie fascista que a crítica ao reformismo precisa ser feita agora; sem medo, sem sectarismo, sem ilusões.
Jones Manoel tornou-se uma figura central no que se convencionou chamar de “influenciador de esquerda” ou “webcomunista”. A sua ascensão é inseparável do próprio movimento da social-democracia digitalizada, que encontrou no YouTube, no Twitter e em outras plataformas uma forma de reciclar a velha política de conciliação de classes em linguagem jovem, didática e aparentemente radical. O problema é que, por trás da superfície de combatividade, está sempre o mesmo horizonte: o Estado, o progressismo, a mediação institucional e a conciliação como condição para a prática política; não almejando, portanto, níveis primários de radicalidade necessária para a organização da luta popular. O PCB, partido ao qual esteve vinculado por anos, funciona como rótulo histórico que dá verniz de tradição revolucionária a um discurso que, na prática, se dissolve em pedagogia reformista onde se estabelece todo tipo de acordo. A história do reformismo no Brasil é ampla. Nos centraremos aqui no que diz respeito à Jones Manoel.
O percurso de Jones Manoel na União da Juventude Comunista (UJC), organização juvenil do PCB, foi marcado tanto pelo engajamento no movimento estudantil quanto pela participação em processos de formação de quadros, entre 2013 e os anos seguintes. Nesse espaço, Jones consolidou sua militância teórica e política, aproximando-se do marxismo-leninismo e defendendo a centralidade da organização popular como caminho para a construção de consciência de classe. Assim, sua trajetória na UJC revela, ao mesmo tempo, o aprendizado militante e as contradições internas de uma estrutura marcada pela reprodução burocrática e pelo desafio permanente de se enraizar nas lutas reais da classe trabalhadora.
Essa organização, longe de ser um espaço de formação radical, funciona como braço auxiliar da direção partidária e tem como função primordial engessar as lutas estudantis, canalizando-as para acordos com reitorias e sindicatos de professores como o ANDES, a ADUFF na UFF e a ASDUERJ na UERJ. Trata-se de uma prática sistemática de burocratização, pela qual qualquer tentativa de radicalidade é contida em nome da manutenção de relações institucionais, da negociação permanente e da política de “respeitabilidade”.
Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes intérpretes críticos da burocracia no Brasil, articulando Marx, Weber e a tradição marxista heterodoxa. Em Burocracia e Ideologia, ele define a burocracia não como simples “máquina administrativa” ou mero conjunto de normas técnicas, mas como uma forma histórica de dominação que expressa interesses sociais específicos. Inspirado em Weber, Tragtenberg reconhece que a burocracia moderna é marcada pela racionalidade formal, pela hierarquia impessoal e pela especialização de funções. Contudo, diferentemente do sociólogo alemão, para ele a burocracia não é apenas “racionalidade eficiente”, mas um mecanismo de controle social que assegura a reprodução da ordem capitalista.
Tragtenberg mostra que a burocracia não é neutra: ela é instrumento de classe. No Estado, manifesta-se como forma de separação entre governantes e governados, entre dirigentes e massa, naturalizando a desigualdade e convertendo o aparelho administrativo em instância acima da sociedade. No interior dos partidos e sindicatos, assume a feição de casta dirigente, afastada da base e preocupada em preservar seus privilégios, carreiras e status. Ele fala em “autonomização da burocracia”: um processo pelo qual o aparato passa a agir em função própria, reproduzindo-se mesmo contra os interesses daqueles que deveria representar. Sua crítica vai além da denúncia moral: a burocracia é, segundo Tragtenberg, um modo de gestão da luta de classes. Ela administra os conflitos sociais, amortecendo-os, canalizando-os para negociações controladas e impedindo sua radicalização. Daí a ligação entre burocracia e ideologia: o discurso da competência, da técnica e da legalidade serve para legitimar a dominação, escondendo o caráter político e de classe das decisões. Essa ideologia burocrática aparece tanto no Estado quanto em sindicatos e partidos, reforçando a ideia de que “especialistas” ou “dirigentes” devem conduzir as massas, enquanto estas permanecem passivas.
Portanto, para Tragtenberg, burocracia significa dominação organizada pela hierarquia e pelo controle técnico-ideológico, que transforma os trabalhadores em objeto de administração e neutraliza sua autoatividade. Não se trata de acidente, mas de forma estrutural de poder no capitalismo e em suas organizações “alternativas”, incluindo partidos comunistas e sindicatos oficiais. Contra ela, o autor reivindica a autogestão, a democracia direta e a organização de base como alternativas à alienação burocrática.
A UJC se apresenta como juventude combativa, mas age como correia de transmissão da lógica reformista: organiza o movimento para que este não ultrapasse os limites seguros das alianças burocráticas. É por isso que são comumente chamados de pelegos, pois cumprem o mesmo papel que as burocracias sindicais tradicionais: mediar a luta de base, mas sempre no sentido de desarmar o conflito e canalizar as energias para a institucionalidade. Essa função é concreta, histórica. Eu mesmo pude observar esse processo de perto na UFF, em diferentes períodos de greve estudantil. Sempre que a luta autônoma dos estudantes se radicalizava, surgiam os dirigentes da UJC para deslegitimar as iniciativas, acusar de irresponsabilidade, criminalizar a ação direta e defender acordos com reitorias e professores. Em todos os momentos de confronto real com as estruturas de poder universitário, a UJC se colocou terminantemente contra, atuando ao lado da burocracia docente e contra as frentes independentes e anarquistas. Estamos falando de uma linha política que transforma a juventude comunista em administradora da rebeldia estudantil, podando qualquer desvio que pudesse escapar ao controle do partido. Registrei esse processo em meu filme Utopia e Cidade (2012), justamente porque ele expressava de forma concreta a contradição entre uma juventude que se reivindica revolucionária e uma prática política que atua contra a autoatividade dos estudantes, contra sua organização independente e contra a possibilidade de ruptura.
A crítica que formulei ainda no calor das lutas do movimento estudantil ajuda a compreender a gênese da prática política de Jones Manoel. Em 2015 escrevi que “não se constrói mobilizações populares sem um balanço político do caráter das mobilizações passadas”. Denunciava então a forma como a greve de 2012 nas universidades do Rio de Janeiro (e em outras universidades públicas) foi esvaziada por comandos burocratizados e por uma elite docente que, aliada às reitorias, criminalizou qualquer tentativa de autonomia estudantil. Mostrava-se ali que a pauta dos estudantes, quando radicalizava — moradia sob autogestão, equiparação das bolsas, questionamento da própria produção do conhecimento — era sistematicamente abafada em nome de negociações de cúpula, de mesas de reitoria, de acordos sindicais. A greve, ao invés de momento de ruptura, tornavase teatro controlado, onde cada setor cumpria seu papel: professores como elite dirigente, comandos estudantis como pelegos de plantão, reitorias como polícia administrativa. Foi nesse terreno que Jones se formou.
A mesma função que a UJC exercia nas greves — a de transformar a radicalidade em espetáculo domesticado, a revolta em assembleia controlada, a greve em rito de integração — é a que Jones exerce hoje no YouTube. Ontem, a burocracia estudantil organizava a rebeldia para não deixá-la escapar; hoje, a pedagogia digital organiza a crítica para não deixá-la romper. Trata-se da mesma função histórica: canalizar a energia da juventude para formas seguras, compatíveis com a ordem. No fundo, é a mesma lógica do espetáculo: oferecer a sensação de participação, mas retirar da base a possibilidade de agir como sujeito autônomo. O Jones que emerge como youtuber e webcomunista é o mesmo militante formado na escola da burocracia estudantil. O método é idêntico: a crítica jamais transborda, jamais se liga a práticas de auto-organização popular. Ao contrário, permanece sempre ajustada à institucionalidade, seja na forma de comando de greve, seja na forma de canal de YouTube. A função histórica é clara: neutralizar a possibilidade de ruptura, reproduzir a ordem sob a máscara da radicalidade.
Debord, em seu clássico texto Da Miséria do Meio Estudantil, já havia apontado esse processo como um dos elementos centrais da dominação no campo universitário. Para ele, as frações burocráticas que se apresentam como vanguarda estudantil não passam de guardiãs da ordem, convertendo o movimento em apêndice das negociações institucionais. O papel dessas burocracias é precisamente transformar a radicalidade em espetáculo controlado: promovem assembleias formais, discursos inflamados e um teatro de contestação, mas tudo cuidadosamente limitado para que não transborde. Debord denunciava a miséria não apenas material, mas também política do meio estudantil: sua captura por organizações que falam em nome da revolução enquanto domesticam a revolta. Ao invés de abrir caminhos para a autonomia, reforçam a heteronomia, substituindo a ação direta pela representação, a criatividade da base pelo aparato burocrático. Essa análise é fundamental para compreender a função histórica da UJC: longe de ser o motor da radicalidade, ela é o freio, o dispositivo de normalização, a instância que garante que o estudante rebelde não se converta em sujeito revolucionário, mas permaneça integrado à lógica do partido e às negociações de cúpula. Os estudantes revolucionários têm duas barreiras: a burocracia estudantil e universitária.
Outro momento fundamental da carreira de Jones Manoel que o permite entrar no circuito premium da indústria cultural foi ser autorizado por Caetano Veloso. No campo cultural descrito por Bourdieu, a consagração funciona como porteira: quem já detém capital simbólico decide quem pode circular como “crítico aceitável”. Caetano fez exatamente isso — citou Jones na Globo, disse que ele “mudou sua cabeça”, e a máquina girou: entrevistas, capas, convite permanente ao circuito da respeitabilidade. O próprio Jones relatou que, nas duas semanas após a citação na TV, recebeu convites, isto é, a crítica instantaneamente conversível em capital. É a dissidência integrada, no sentido de Debord: o sistema não combate a crítica — ele a incorpora como decoração da sua própria vitrine. Quem é o curador? Um liberal de “extrema-esquerda”, nas próprias palavras de Caetano. O rótulo é perfeito para a função que ele cumpre desde sempre: dar aparência de ousadia a posições estritamente liberais. Não por acaso, em 2006 assinou o manifesto contra as cotas raciais, exemplo típico do universalismo liberal que nega a reparação histórica sob o pretexto da ‘harmonia republicana’. É a velha operação: negar a materialidade do racismo institucional para conservar a pureza abstrata da lei. Anos depois, Caetano suaviza o tom (“menos liberaloide”), flerta com leituras antiliberais, mas preserva o centro liberal: defende liberdade de expressão como fim, aposta na via institucional e, quando muito, “revisa” ideias sem romper com o teto burguês. No vocabulário de Adorno e Horkheimer, a indústria cultural neutraliza o negativo incorporando-o como estilo; no de Bourdieu, converte prestígio em moeda política; no de Debord, transforma antagonismo em espetáculo.
A benção de Caetano, portanto, não prova a radicalidade de Jones; prova a capacidade do aparato liberal de selecionar e domesticar vozes com léxico marxista que não atravessam a forma-mercado. O selo Caetano é a garantia de que a crítica virá higienizada: falas duras, embalagens palatáveis, nenhum risco sistêmico. Esse é o ponto que precisa entrar no texto: a escalada de Jones não decorre de ruptura com a ordem, mas da sua perfeita compatibilidade com o circuito de legitimação. O resultado é pedagógico: sob a curadoria do liberalismo artístico, a rebeldia vira produto e a teoria vira carreira; a luta de classes vira conteúdo; e a esquerda, satisfeita com seus medalhões, aplaude o crítico domesticado que confirma o jogo. É trovão cenográfico: muito som, zero abalo estrutural. O elo entre esses dois momentos é justamente a lógica de legitimação que atravessa tanto a indústria cultural quanto o campo político: se Caetano funciona como curador da rebeldia domesticada no plano artístico, o modelo comunicacional da esquerda cumpre papel análogo no plano organizacional. Em ambos os casos, a radicalidade aparente é filtrada, higienizada e devolvida ao público como espetáculo seguro, seja em forma de música, seja em forma de conteúdo político. A compatibilidade entre Jones e esse circuito revela que não se trata de ruptura, mas de continuidade: a crítica se transforma em performance dentro de um aparato que tem por horizonte não a emancipação, mas a manutenção das regras do jogo.
A crítica ao modelo comunicacional é nada mais que a crítica ao modelo organizacional. Tal como vem sendo regida pelo conjunto das esquerdas, a comunicação se reduz à propaganda institucional com o claro objetivo de ganhos eleitorais. A insistência dos setores ligados à classe trabalhadora em disputar os aparatos institucionais, mesmo depois de tantas experiências históricas que já demonstraram o desgaste dessa via, tem reforçado formas de organização cada vez mais distantes de uma verdadeira autonomia diante do desafio central: superar a exploração do trabalho. A teoria da comunicação popular foi abandonada para privilegiar a relação instrumentalizada de uma comunicação que diz reverberar o interesse popular sem a sua participação na construção dessas redes. A ideia de popular se confunde com audiência com uma instrução rudimentar, passiva e sedenta por orientação, haja vista o seu vazio existencial e organizacional. Esse hiato vem sendo ocupado por uma burocracia comunicacional. Principalmente jovens, muitos de classe média, carentes não só de identidade, mas de reflexões e um pensamento histórico sistemático demandam de figuras como Jones uma orientação capaz de satisfazer seus hiatos, reproduzindo uma dinâmica de torcidas nas redes sociais. Quando presentes em realidade concreta, esses setores são barulhentos, mas passivos diante do desafio concreto das contradições que os aguardam.
O modelo comunicacional no campo das esquerdas reflete, portanto, o modelo organizacional pautado em figuras midiáticas que também exercem funções burocráticas em partidos, sindicatos ou repartições do Estado, seja em Câmaras Municipais ou no interior do núcleo duro do Parlamento burguês. Esse movimento é histórico e não casual. Ele não foi inaugurado por Jones Manoel, obviamente. Esse modelo pautado no espetáculo, na representatividade e na mutilação da radicalidade das lutas populares ganha força com o desenvolvimento da comunicação via internet, inflada nas redes, vazia nas ruas. Esse modelo está em disputa entre diferentes facções que perceberam a urgência da comunicação, reduzindo-a ao personalismo via youtube; característica mais comum desse novo-velho modelo persuasivo. Ele segue as mesmas tendências da luta política intra-parlamentar, mas corrige suas deficiências frente ao novo dinamismo das redes sociais. O personalismo é requentado, mais próximo ao público, ainda mais convincente e sedutor. Esse é o alimento da força eleitoral de partidos e quadros políticos desesperados por um lugar seguro aos aparatos de poder ao passo que comprometem sem perspectiva de mudança a ausente organização popular, que carece ainda mais de autonomia e poder próprio. Ceifar a autonomia popular não é novidade para estruturas burocráticas. O uso das novas tecnologias e a adaptação à lógica da máquina comunicacional transformaram figuras antes marginais em protagonistas da cena política, mas sempre com a promessa ilusória de mudanças que esses próprios espaços, limitados e controlados, jamais permitirão realizar.
Essa crítica estrutural ao modelo comunicacional e ao personalismo digital prepara o terreno para compreender o alcance e o sentido da Carta de Ivan Pinheiro: não se trata de um desentendimento episódico, mas da manifestação concreta de como a forma-espetáculo, antes restrita ao parlamento e à indústria cultural, penetra também no interior das organizações comunistas, corroendo sua organicidade e colocando em xeque a tradição leninista com as novas lógicas de legitimação midiática.
Ivan Martins Pinheiro, advogado e histórico dirigente comunista, foi Secretário Geral do PCB entre 2005 e 2016, figura central na reconstrução do partido como referência marxista-leninista em ruptura com os governos petistas. Após o racha que transformou a seção de Roraima em partido próprio, o PCBR, em 2024, Ivan divulgou na revista A Comuna, em março de 2025, uma “Carta de Afastamento Orgânico do PCBR”, na qual anuncia sua saída e denuncia problemas internos. Em sua avaliação, a direção nacional incorreu em omissão e oportunismo ao permitir que Jones Manoel acumulasse protagonismo midiático descolado da disciplina partidária.
Quando Ivan Pinheiro afirma que identifica no PCBR uma tendência à formação de uma “frente de esquerda radical”, em detrimento da frente anticapitalista e anti-imperialista definida em seu congresso fundador, ele está apontando diretamente para a orientação impulsionada por Jones Manoel. A noção de “esquerda radical” serve como rótulo estratégico para um agrupamento de partidos como UP, PSTU, PCO, PSOL e o próprio PCBR, cuja unidade se dá muito mais pela lógica da disputa eleitoral do que por qualquer projeto de ruptura com a ordem burguesa. É exatamente isso que Ivan denuncia: a substituição de uma perspectiva internacionalista e revolucionária por um arranjo de cúpula, centrado em alianças frágeis e reformistas, que acabam servindo para canalizar a indignação social para dentro do jogo institucional. Essa crítica não é meramente nominal, mas toca no cerne do que significa a política proposta por Jones: ao invés de fortalecer a frente anticapitalista e anti-imperialista — que exigiria, por definição, a recusa das etapas nacional-democráticas, o combate frontal ao progressismo e a construção de práticas de auto-organização proletária —, aposta-se numa “radicalidade” de vitrine, compatível com os calendários eleitorais e as demandas de visibilidade digital. É por isso que Ivan relaciona a adoção da sigla PCBR com uma tentativa de distanciamento das organizações revolucionárias que buscavam unidade de ação fora da lógica etapista: para ele, o partido teria cedido a um impulso pequeno-burguês, mais preocupado em apresentar-se como legenda “nova” e “radical” do que em articular, na prática, uma frente revolucionária consequente. Nesse ponto, a carta de Ivan ilumina a crítica mais ampla: a trajetória de Jones não apenas desorganiza internamente a disciplina partidária, mas orienta o partido a seguir uma via reformista travestida de radicalidade, convertendo o que poderia ser uma frente de luta anticapitalista em mera coalizão eleitoral, funcional ao progressismo e incapaz de enfrentar a ordem do capital.
Para Ivan, o canal Farol Brasil, lançado por Jones, exemplifica essa assimetria: um projeto pessoal que, já em sua estreia, entrevistou Elias Jabbour, quadro do PCdoB, em contradição com a linha internacional do PCBR e gerando constrangimento coletivo. Ainda segundo Ivan, houve um erro estratégico ao transformar o PCB-RR em partido nacional, decisão que reduziu as possibilidades de unidade revolucionária e agravou o isolamento sectário. O Comitê Central, em resposta, reconheceu falhas pontuais, como a demora em responder formalmente às correspondências de Ivan, mas defendeu a legitimidade das resoluções congressuais. Para a direção, “maior organicidade” significava, na prática, reforçar o centralismo democrático entendido como disciplina hierárquica e a centralidade da disputa eleitoral. Essa definição, contudo, não soluciona as contradições denunciadas por Ivan: ao invés de fortalecer a vida orgânica do partido junto às bases, cristaliza a subordinação da militância ao aparato e ao calendário institucional. Jones Manoel, por sua vez, reagiu publicamente em vídeo, rebatendo acusações específicas: afirmou ser falso que não divulgue o jornal O Futuro, disse que seu site apenas hospeda suas próprias obras e declarou que o Comitê Central havia realizado reunião extraordinária sobre o caso e emitiria posição oficial. Acrescentou ainda manter respeito e admiração por Ivan, mas admitiu não saber se essa relação pessoal permanecia após a carta — gesto mais retórico do que político, que pouco enfrenta o núcleo das críticas. O episódio, assim, ultrapassa a dimensão individual: explicita as tensões entre a tradição da disciplina partidária e as novas formas de militância mediadas pelo capital simbólico digital. Se, de um lado, Ivan reafirma a primazia da identidade revolucionária vinculada ao partido, de outro, Jones encarna a contradição de um militante que projeta sua figura acima da organização. A crise, nesse sentido, não indica apenas um impasse conjuntural: revela o limite estrutural da forma-partido, incapaz de conter o personalismo midiático sem reproduzir burocratismo ou autoritarismo, e, portanto, incapaz de oferecer uma via real de emancipação.
A expulsão de Jones Manoel do PCB e sua posterior tentativa de reconstrução partidária em torno do PCBR revelam, em última instância, o esgotamento dessa forma de organização burocrática, que há décadas se apresenta como herdeira de uma tradição comunista mas que, na prática, desempenha o papel de contenção da luta. Esse esgotamento deriva da própria natureza estrutural da forma-partido burocrática. Desde Marx, já estava claro que o Estado e seus aparelhos de representação funcionam como instâncias de separação: colocam a política fora da vida social, transformando a classe em objeto de administração e não em sujeito de sua emancipação. A burocracia partidária repete, dentro do movimento revolucionário, o que a burocracia estatal faz na sociedade capitalista: apresenta-se como portadora do interesse coletivo enquanto, de fato, cristaliza privilégios, carreiras e uma lógica de conservação do aparato. É por isso que, como já advertiam conselhistas como Otto Rühle e Anton Pannekoek, “o partido acima da classe” degenera inevitavelmente em substitutismo e contenção. Sua função histórica é canalizar a energia da base para a institucionalidade, seja na forma parlamentar, sindical ou eleitoral, impedindo que a radicalidade da luta se converta em ruptura. Assim, a experiência com o PCB e com o PCBR confirma teoricamente a tese de que tais aparelhos não podem ser reformados nem redimidos: são formas organizativas integradas à reprodução da ordem, cuja razão de ser é precisamente bloquear a emancipação autônoma do proletariado.
O fenômeno Jones está atrelado à lógica da mercadoria e da forma-influenciador. Trata-se de um padrão de comunicação comum entre as mais variadas vertentes políticas. O influenciador se apresenta como professor popular, mas no mesmo gesto se converte em celebridade digital, dependente de likes, engajamento, monetização e patrocínios indiretos. A didática que poderia ser força de esclarecimento reproduz uma performance controlada pelo algoritmo, obediente às normas da plataforma. Sua figura pública opera, portanto, como um dispositivo de gestão ideológica: ao mesmo tempo em que denuncia o fascismo, reforça a legitimidade da democracia burguesa; ao mesmo tempo em que invoca Marx, recusa a radicalidade da luta de classes em nome de um horizonte eleitoral. A sua presença midiática é, assim, mais importante para conter do que para radicalizar. Jones, portanto, ocupa o papel didático de convencer novas multidões a apostar no velho e carcumido modelo democrático representativo, centrado na figura da liderança, daquele que condensa o anseio geral, transformando a política em chancela para o modelo burocrático-institucional.
A própria forma do discurso de Jones evidencia essa contradição. Ele transforma a teoria revolucionária em produto comunicacional, esvaziando seu caráter ontológico e estratégico. Trata-se, em última instância, de um processo de vulgarização do marxismo, travestido de popularização. A vulgarização é o processo pelo qual uma teoria crítica, densa e inseparável da prática revolucionária é reduzida a fórmulas simples, slogans ou fragmentos de fácil assimilação, de modo a torná-la consumível dentro da lógica dominante. No caso do marxismo, isso ocorre quando categorias como luta de classes, exploração, mais-valia ou revolução deixam de ser conceitos que desvelam a totalidade da sociabilidade capitalista para se converter em palavras de ordem, analogias escolares ou “pílulas de conteúdo” ajustadas ao tempo de atenção das redes. Isso não é feito simplesmente para “tornar acessível” — o que pode ser tarefa legítima —, mas transformar uma teoria da emancipação em objeto de circulação mercantil, infantilizando o debate ao passo que se consuma como possível saída à política burguesa.
O marxismo, que nasceu para orientar a destruição do capitalismo, é desarmado e embalado como produto de ensino, como espetáculo pedagógico, como marca de identidade cultural. Isso é vulgarização: retirar a profundidade ontológica e o caráter estratégico da teoria para convertê-la em mercadoria simbólica. Adorno já denunciava que a indústria cultural reduz a obra de arte à sua função de distração; aqui, a forma-influenciador faz o mesmo com o marxismo, reduzindo-o a ferramenta de engajamento e lucro. A vulgarização é, portanto, a domesticação da crítica. Ela não é inocente: cumpre a função de neutralizar a radicalidade revolucionária, fazendo com que o marxismo pareça estar vivo, quando na verdade já foi convertido em conteúdo digerível, seguro e integrado à ordem capitalista.
O lugar político que ele ocupa se revela sobretudo na relação com o progressismo. Jones, apesar de falar mal, funciona como legitimador cultural e acadêmico daquilo que o PT e a esquerda institucional representam: a administração da ordem. Vale dizer que o ataque à extrema-direita é cínico. É a crítica que nunca transborda, que nunca aponta para a ruptura efetiva. O que ele oferece ao público é a sensação de radicalidade, mas sempre contida dentro do quadro do possível burguês. Isso explica por que ele é convidado para grandes veículos, entrevistas na grande imprensa, participações em programas de alcance nacional: sua presença é a do “marxista domesticado”, controlado pelo aparato de mídia que o impulsiona. A forma-influenciador agrava essa contradição. Ao se projetar como figura pública, Jones depende estruturalmente das mesmas engrenagens que critica: a monetização das plataformas, a lógica do espetáculo, a cultura de engajamento e aos acordos com fascistas. Ele encarna a contradição denunciada por Adorno e Debord: o crítico que, ao entrar no espetáculo, passa a ser peça dele. O sujeito que fala em revolução de dentro do palco do capital digital acaba inevitavelmente neutralizado. O capital absorve sua crítica e a converte em mercadoria simbólica, gerando seguidores, views, financiamento e capital simbólico, além de prestígio que se converte em poder financeiro (geralmente concentrado).
Essa função é ainda mais clara quando olhamos para o público que o segue. Muitos enxergam em Jones a porta de entrada para o marxismo. Mas o que encontram não é o marxismo enquanto teoria da revolução, mas o marxismo convertido em linguagem de curso online, palestra de YouTube e roteiro de comunicação. Isso produz uma base de jovens militantes formados não na práxis revolucionária, mas na lógica do consumo cultural. A consequência é a repetição de chavões, a dependência da figura de autoridade e a reprodução de uma militância sem organização real. Em lugar de partido revolucionário ou de conselhos proletários, forma-se uma comunidade de espectadores. Marx, Rosa Luxemburgo e Lukács não escreviam para entreter, mas para organizar e transformar. A pedagogia de Jones, por mais que pareça acessível, é pedagogia sem prática revolucionária, pedagogia que educa para a cidadania burguesa e para o horizonte eleitoral. É o marxismo desarmado, seguro, domesticado que funciona como mais uma porta para a dominação. E isso explica sua penetração em setores médios, universitários, professores e estudantes: ele oferece a estes uma forma de aderir ao marxismo sem precisar romper com o mundo em que vivem. A crítica marxista a essa figura não deve se limitar ao moralismo individual. Não se trata de apontar o dedo para Jones como indivíduo, mas de compreender o lugar social que ele ocupa: o lugar de gestor da crítica, mediador entre a radicalidade histórica do marxismo e a necessidade do capital de neutralizar essa radicalidade convertendo a crítica em instrumento de contenção.
Jones Manoel é, assim, menos um desvio pessoal e mais uma expressão de época.Ele encarna a necessidade do progressismo de renovar sua base simbólica, de falar a linguagem da juventude, de parecer radical sem jamais ultrapassar os limites da ordem. Ele é a versão digitalizada da social-democracia: um intelectual orgânico do reformismo, embalado em estética jovem e radical. A tarefa, então, é dupla: desmontar a forma-influenciador como limite estrutural da crítica e, ao mesmo tempo, recolocar o marxismo em seu terreno original — o da luta de classes, da organização proletária, da revolução.
Uma das posições mais recorrentes no campo da esquerda é aquela que defende a adaptação da crítica revolucionária ao nível de consciência imediata das massas. O argumento central é simples: como as massas se encontram em atraso político, qualquer esforço que vá além de sua consciência atual corre o risco de isolamento; por isso, seria necessário vulgarizar a teoria, simplificar a crítica e atuar nos limites do possível. Essa posição, no entanto, expressa um desvio fundamental do ponto de vista marxista: transforma a limitação objetiva do presente em justificativa para a renúncia da perspectiva revolucionária. Para o marxismo, a consciência das massas não é uma essência imutável, mas uma determinação histórica e social. O atraso político não é um dado natural, mas o resultado da dominação ideológica da burguesia, do peso das tradições conservadoras, da fragmentação do proletariado e do papel das instituições reformistas em amortecer os conflitos de classe. Adaptar-se a esse atraso significa, em última instância, reproduzi-lo. O papel da teoria revolucionária nunca foi simplesmente espelhar a consciência existente, mas desvelar a realidade objetiva das relações sociais e apontar para sua superação. Marx não escreveu O Capital para confirmar o que o operário já sabia, mas para revelar a essência oculta da exploração capitalista, mostrando que o salário não é a remuneração justa do trabalho, mas a forma mascarada da extração de mais-valia.
A vulgarização do marxismo surge justamente quando, em nome da comunicação com as massas, a teoria é reduzida a slogans, frases de efeito e conteúdos adaptados ao consumo imediato. Não se trata de tornar a teoria acessível — tarefa legítima —, mas de amputar sua densidade ontológica para transformá-la em produto pedagógico e, cada vez mais, em mercadoria comunicacional. O marxismo, então, deixa de ser instrumento de organização da luta de classes e se converte em linguagem de identidade, em espetáculo de conhecimento. Essa adaptação, apresentada como aproximação das massas, cumpre a função inversa: preserva o atraso, bloqueia o salto da consciência e mantém o horizonte político dentro da ordem estabelecida. O problema do isolamento é, nesse sentido, mal colocado. A história mostra que todo movimento revolucionário verdadeiro nasce em isolamento relativo. Marx e Engels, no século XIX, eram minoritários frente às correntes dominantes do socialismo utópico e do reformismo. Lenin, antes de 1917, era isolado não só frente à burguesia, mas também dentro do próprio movimento operário russo, dividido entre mencheviques e populistas. Rosa Luxemburgo enfrentou o isolamento dentro da social-democracia alemã quando denunciou a traição parlamentar do SPD. Em todos esses casos, o isolamento não foi sinal de erro, mas de coerência diante da hegemonia burguesa e reformista. O verdadeiro perigo não está em ser minoria, mas em renunciar à crítica para evitar o isolamento. Isso conduz ao reformismo, que se dissolve na ordem e abdica da revolução em nome de uma integração supostamente pragmática.
Do ponto de vista marxista, portanto, a posição que defende a adaptação ao atraso das massas não é uma estratégia de inserção, mas uma forma de legitimação da ordem. Ela naturaliza a debilidade da esquerda revolucionária e a transforma em argumento contra a radicalidade. Em vez de trabalhar pela elevação da consciência, reforça a lógica segundo a qual é preciso falar “apenas o que as massas querem ouvir”, mesmo que isso signifique renunciar à crítica do Estado, da mercadoria e da democracia burguesa. Essa é a essência do progressismo: oferecer às massas um simulacro de radicalidade que não ultrapassa os limites da sociedade capitalista. O marxismo exige outra postura. Reconhece as limitações do presente, mas não se adapta a elas. Mantém a crítica radical mesmo em isolamento, porque sabe que a função da teoria não é reproduzir a consciência existente, mas abrir caminho para sua superação. Como afirmou Rosa Luxemburgo, a alternativa segue posta: reforma ou revolução, socialismo ou barbárie. A vulgarização da teoria, ainda que vestida de pragmatismo, nada mais é do que a escolha pelo caminho da reforma — um caminho que, em última instância, leva à derrota histórica do proletariado. Essa discussão sobre reforma e revolução, sobre manter a crítica radical mesmo em meio ao isolamento, ajuda a iluminar também o uso histórico da própria sigla PCBR. Se hoje ela reaparece como desdobramento da crise recente do PCB, é preciso lembrar que já em 1968 o nome Partido Comunista Brasileiro Revolucionário carregava o peso de uma dissidência contra o etapismo e o pacifismo do velho Partidão.
O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), surgido em 1968, inscreve-se em um momento histórico de crise da esquerda brasileira após o golpe de 1964. Sua fundação por Jacob Gorender, Mário Alves e Apolônio de Carvalho expressa uma cisão real com o PCB no plano programático, já que suas teses etapistas e a orientação pacifista se mostraram incapazes de enfrentar a ditadura militar. O PCBR nasce, portanto, sob o signo de uma radicalidade retórica: recusava a via democrático-burguesa e a estratégia de aliança com a burguesia nacional, defendendo a imediaticidade da revolução socialista e a centralidade da luta armada. No entanto, à luz do materialismo histórico dialético, essa ruptura mostrou-se parcial: apesar do discurso intransigente, o PCBR permaneceu preso às formas e ao imaginário burocrático do movimento comunista do século XX, reproduzindo a lógica do partido de vanguarda centralizado e hierárquico.
O contraste entre o PCBR histórico e o PCBR de Jones Manoel é revelador: se o primeiro, fundado em 1968 por Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender, surgiu como cisão contra o etapismo e o pacifismo do PCB, reivindicando a imediaticidade da revolução socialista e a centralidade da luta armada, o segundo nasce como seu avesso, em plena adaptação à institucionalidade burguesa. Enquanto o PCBR original buscava negar as alianças com a burguesia nacional e recusava a via eleitoral, ainda que preso ao imaginário burocrático do partido de vanguarda, o projeto encabeçado por Jones assume a burocracia como forma e o reformismo como conteúdo, apostando numa frente eleitoral de “esquerda radical” que reedita, em chave digital, as velhas ilusões da conciliação. A ironia histórica é que, se o PCBR dos anos 1960 pecava pelo voluntarismo e pelo excesso de radicalidade estratégica, o PCBR de Jones se caracteriza pela ausência completa de horizonte revolucionário, limitando-se a administrar sua imagem midiática e a negociar alianças dentro da ordem. Trata-se, portanto, não de continuidade, mas de negação farsesca: a radicalidade histórica é substituída por um personalismo domesticado, que faz da ruptura apenas uma retórica vendável.
O marxismo libertário de Otto Rühle e Anton Pannekoek fornece um ponto de partida decisivo para essa análise. Ambos denunciavam a burocratização do marxismo a partir do stalinismo, mas já em Lenin identificavam o germe de uma concepção autoritária da organização, que reduz a classe trabalhadora a massa de manobra de um partido dirigente. O PCBR, ao mesmo tempo em que criticava o etapismo e a conciliação do PCB, mantinha-se dentro do mesmo paradigma de vanguarda dirigente e centralização partidária, transferindo a mediação da emancipação para uma estrutura organizativa fechada, clandestina, hierárquica, incapaz de se constituir como auto-organização do proletariado. Nesse sentido, embora se apresentasse como alternativa revolucionária, não rompeu com o núcleo fundamental da ideologia da representação, que Nildo Viana aponta como uma das formas centrais de alienação política. A defesa da luta armada, embora historicamente compreensível diante da violência da ditadura, no PCBR assumiu um caráter militarista que carecia de lastro orgânico nas lutas concretas da classe. Maurício Tragtenberg, em sua crítica à burocracia sindical e partidária, mostrou como as organizações revolucionárias podem degenerar em aparelhos separados da classe, funcionando como substitutos em vez de instrumentos da autoatividade popular. O voluntarismo armado do PCBR, ao não enraizar-se no cotidiano das lutas proletárias urbanas e camponesas, transformou a luta revolucionária em uma operação de comandos, mais próxima de um esquema militar do que de um processo de emancipação. Aqui se evidencia uma contradição central: ao pretender superar o reformismo, o PCBR acaba por cair no isolamento de pequenos grupos armados, afastando-se da perspectiva de massificação e auto-organização da classe trabalhadora.
O documento do PCBR, ao propor a revolução socialista imediata, rejeita explicitamente a noção de “burguesia nacional progressista” e denuncia o imperialismo como núcleo da dominação. Trata-se de um avanço em relação à linha do PCB. No entanto, José Chasin nos lembra que o marxismo, enquanto ontologia da vida social, não pode ser reduzido a um receituário estratégico ou a um plano de poder. O PCBR ainda concebia a revolução como conquista de Estado e como reorganização da sociedade a partir de cima, sem romper com a forma-Estado e sem projetar a auto-emancipação do proletariado como sujeito histórico. Dessa forma, mesmo ao se colocar contra a conciliação, permanecia atado à lógica da reprodução da dominação por meio de novas formas de centralização política.
A herança stalinista se manifesta também na concepção de partido. O PCBR defendia uma organização centralizada, com disciplina férrea e clandestinidade permanente. Essa forma, ainda que compreensível em face da repressão, reproduzia a ideia de que a consciência revolucionária deveria ser introduzida de fora da classe, cabendo a um núcleo dirigente a tarefa de conduzir as massas. Rühle já advertia que o partido político, nesse molde, deixa de ser instrumento e torna-se fim em si mesmo, desenvolvendo interesses próprios e afastando-se da autoatividade dos trabalhadores. O PCBR não rompeu com essa lógica; apenas a revestiu de um discurso mais radical e intransigente. À luz do materialismo histórico dialético, podemos compreender o PCBR como síntese de um movimento contraditório: representava, de um lado, a justa recusa ao reformismo do PCB e a tentativa de recuperar a perspectiva revolucionária; de outro, reincidia nos limites da tradição burocrática e militarista do comunismo do século XX. Como observa Nildo Viana, o marxismo revolucionário não se confunde com as formas degeneradas que se cristalizaram em partidos burocráticos e Estados socialistas, pois sua essência é a emancipação humana integral e a auto-organização do proletariado. O PCBR não foi capaz de realizar essa ruptura essencial.
O saldo histórico do PCBR é, portanto, ambivalente. Seu heroísmo diante da ditadura e sua recusa à conciliação merecem ser reconhecidos. Mas a análise crítica nos obriga a perceber que sua derrota não se deveu apenas à repressão brutal do regime militar, mas também às suas próprias insuficiências teóricas e práticas: ausência de enraizamento de classe, concepção de partido burocrática, fetichização da luta armada e subordinação da emancipação à conquista do Estado. Em última instância, o PCBR é testemunho de como a radicalidade aparente pode conviver com a permanência de estruturas ideológicas herdadas, reforçando a necessidade de um marxismo antiautoritário e libertário. Hoje, revisitar esse documento é essencial para compreender a genealogia do reformismo e do radicalismo no Brasil. Ao passo que o PCB persistiu como força conciliadora, e figuras como Jones Manoel atualizam essa função em chave midiática e institucional, o PCBR representa a memória de uma ruptura inacabada. Sua crítica ao etapismo foi justa, mas sua prática não logrou realizar a emancipação. Para que a história não se repita como farsa, é preciso retomar o fio do marxismo libertário, que recusa tanto a conciliação parlamentar quanto a substituição militarista, e recoloca no centro a autoatividade da classe trabalhadora como sujeito da emancipação.
Desde os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) até O Capital (1867), Marx foi inflexível em demonstrar que a raiz da exploração não está em distorções episódicas da circulação, mas no modo de produção fundado na extração de mais-valia. É contra esse núcleo que ele dirige seu golpe: enquanto utópicos como Saint-Simon, Fourier e Owen concebiam alternativas baseadas na moralidade, na cooperação voluntária ou em comunidades-modelo, Marx denunciava que tais projetos, embora generosos, permaneciam dentro da lógica da sociedade burguesa. Eles não compreendiam a contradição objetiva entre capital e trabalho, tratando a dominação de classe como problema de vontade e não como estrutura histórica. Por isso, no Manifesto Comunista (1848), Marx e Engels afirmam que os socialistas utópicos “procuram remediar as misérias sociais para assegurar a existência da sociedade burguesa”, enquanto o socialismo científico nasce para dissolver essa própria ordem. Sua crítica a Proudhon, em A Miséria da Filosofia (1847), é emblemática: Proudhon acreditava que bastaria reformar o crédito, instituir um “Banco do Povo” e reorganizar as trocas para que a exploração fosse superada. Marx mostra que tais soluções atacam apenas a esfera da circulação, sem tocar na produção. Reformar a troca não elimina a exploração porque o núcleo da exploração não está no mercado, mas no trabalho assalariado como forma histórica específica de escravização do trabalhador ao capital. Aqui Marx inaugura o que José Chasin chama de ontologia da vida social: compreender que a emancipação não é produto de arranjos jurídicos ou morais, mas da transformação radical da base material de produção.
Esse embate atravessa todo o século XIX. Contra o socialismo vulgar, que reduzia o problema da exploração a injustiças pontuais — salários baixos, abusos individuais, más condições de trabalho —, Marx insistia na contradição estrutural: ainda que o salário subisse, a forma assalariada continuaria reproduzindo a alienação, pois o trabalhador não controla o produto de sua atividade. Contra os socialistas de cátedra (como Lassalle e mais tarde Bernstein), que defendiam reformas graduais dentro do Estado burguês, Marx reforça que o Estado é expressão da dominação de classe e que sua lógica não pode ser “neutra” frente ao conflito social. O reformismo não é apenas insuficiente, mas funcional ao capital porque adapta a luta dos trabalhadores à lógica da ordem, impedindo que a contradição se eleve ao patamar da totalidade. Por isso Marx, em suas críticas a Lassalle, ataca a ideia de que bastaria o Estado financiar cooperativas para “gradualmente” substituir o capital. A “ilusão do crédito” reaparece aqui: a tentativa de eliminar o capital sem suprimir a lógica da mercadoria. No cerne de todas essas críticas, Marx sempre retorna a três pilares:
1. Totalidade – o capitalismo não é um conjunto de abusos a corrigir, mas uma forma histórica da sociabilidade, fundada na produção de valor. Quem ataca apenas os efeitos (juros, preços, crédito) deixa intacta a essência.
2. Centralidade da produção – a exploração não nasce na troca desigual, mas na produção, no fato de que o trabalhador cria mais valor do que recebe em salário. Sem abolir o trabalho assalariado, a exploração persiste.
3. Emancipação pela prática de classe – a superação do capital não virá da moralidade, da boa vontade ou da intervenção estatal conciliatória, mas da ação autônoma da classe trabalhadora organizada enquanto sujeito histórico.
É nesse sentido que Marx, já em 1850, ironiza os reformistas: “O crédito público e as formas de poupança não emancipam o trabalhador, apenas o tornam acionista de sua própria escravidão.” A crítica não é apenas econômica, mas ontológica: qualquer teoria que trate a exploração como defeito técnico ou moral acaba reproduzindo o horizonte da mercadoria.
No Brasil, a tradição do reformismo encontrou terreno fértil. O Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922, já nasceu sob a ambiguidade: reivindicava a revolução, mas sua prática esteve quase sempre orientada por um etapismo que postergava indefinidamente o horizonte socialista. O PCB assumiu a defesa da democracia burguesa como pré-condição, apostou em alianças com setores progressistas da burguesia e buscou ocupar espaços de mediação institucional. A retórica revolucionária nunca desapareceu de seus documentos e discursos, mas serviu cada vez mais como ornamento para uma prática legalista, parlamentar e integradora. O resultado foi a construção de uma esquerda que aprendeu a falar em revolução enquanto se movia no registro da conciliação. O marxismo, nesse contexto, tornou-se doutrina pedagógica, catecismo de partido, discurso moralizante que servia para formar militantes disciplinados, mas não sujeitos autônomos da luta de classes.
A crítica dos conselhistas ajuda a compreender esse processo com clareza. Otto Rühle advertia que a emancipação da classe não poderia vir de um partido que se colocava acima dela. Pannekoek insistia que o partido centralizado substitui a auto-atividade proletária por uma burocracia que decide em nome da base. Paul Mattick demonstrou como a socialdemocracia e os partidos comunistas se tornaram gestores da ordem, integrando-se à engrenagem do capital. Maurício Tragtenberg, em solo brasileiro, mostrou que o mesmo se dava nos sindicatos: a burocracia se autonomiza, transforma-se em carreira, passa a gerir a insatisfação ao invés de enfrentá-la. A forma partido, absolutizada, se converteu em aparelho de gestão da classe. O reformismo se justifica sempre pelo atraso da consciência de classe. Como os trabalhadores estariam marcados pela ideologia dominante e pela fragmentação social, diz-se que é preciso rebaixar a crítica para dialogar com eles. Em nome de “não se isolar”, abdica-se da radicalidade. Em nome de falar às massas, adapta-se a teoria ao senso comum. Assim, o reformismo não só nasce do atraso, mas o reforça: legitima o rebaixamento como critério e neutraliza qualquer esforço de elevação da consciência. O que se apresenta como realismo político é, na verdade, a forma ideológica da rendição.
A polêmica entre Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein ilumina de modo exemplar a diferença entre a popularização revolucionária e a vulgarização reformista. Bernstein afirmava, no final do século XIX, que o capitalismo se tornara mais estável, menos sujeito a crises, e que o socialismo poderia ser alcançado pelo acúmulo de reformas no interior da democracia burguesa. Para ele, o movimento era tudo, o fim nada. Rosa demonstrou a falsidade dessa lógica, provando que as crises não haviam desaparecido, mas apenas se deslocavam para a periferia do sistema, sustentadas pela expansão colonial e pelo crédito. Mostrou também que as reformas, quando convertidas em horizonte, não preparam a revolução, mas a desarmam. Elas servem como válvula de escape, estabilizam o sistema e impedem o transbordamento da luta. Sua conclusão foi clara: reforma e revolução não se somam, mas se opõem. A primeira, erigida em estratégia, integra a classe ao capital; a segunda exige ruptura com a totalidade do sistema. Rosa deixou explícito que não se tratava de escolher entre dois caminhos igualmente válidos, mas de afirmar que a via reformista dissolve o próprio sentido da luta socialista.
Esse ensinamento mantém sua força ao longo do século XX. No Brasil, o PCB seguiu à risca a lógica bernsteiniana sob a roupagem leninista. Defendia a revolução em palavras, mas subordinava toda sua prática a etapas democrático-burguesas. As alianças com setores da burguesia nacional, a confiança na democracia formal e a busca pela legalidade foram os pilares de sua linha política. O partido oferecia às massas um horizonte de cidadania e progresso, mas não de ruptura. A cada momento decisivo, optava pela integração: em 1935, com a Aliança Nacional Libertadora; no pós-guerra, com a defesa da legalidade democrática; na ditadura, com o projeto de frente ampla; na transição, com o apoio ao pacto que manteve intactas as estruturas da ordem. O discurso revolucionário se manteve, mas esvaziado, funcionando apenas como identidade simbólica. O resultado foi uma tradição que moldou gerações inteiras de militantes, habituados a falar em socialismo mas a agir como gestores da ordem.
A recente movimentação de Jones Manoel em direção à disputa eleitoral de 2026, com o projeto de construir uma frente denominada “esquerda radical” — formada por UP, PSOL, PSTU, PCO e o próprio PCBR — não pode ser analisada em seus próprios termos, como se representasse uma novidade histórica ou a emergência de um polo revolucionário na política brasileira, como busquei demonstrar nos parágrafos anteriores. Pelo contrário: trata-se de mais uma atualização do velho reformismo, travestido em radicalidade retórica e midiatização militante; é a tentativa de canalizar a indignação popular e a juventude proletária para dentro da velha forma burguesa do Estado, reeditando as armadilhas que já levaram ao fracasso o PT e toda a esquerda socialdemocrata do século XX. Do ponto de vista marxista libertário, como já advertira Nildo Viana em seu texto Direita e Esquerda: duas faces da mesma moeda, a divisão convencional entre esquerda e direita é apenas uma disputa interna no campo burguês. A esquerda aparece como o polo que promete reformas, mas sempre nos marcos do capital e do Estado, funcionando como mecanismo de absorção das demandas populares. Jones Manoel, ao tentar reconstituir uma “unidade radical” entre partidos notoriamente burocráticos, nada mais faz do que reafirmar essa lógica. Trata-se de uma “radicalidade” de vitrine, cuja função é mobilizar o descontentamento social e redirecioná-lo para o terreno seguro das eleições, das candidaturas, das alianças de cúpula e da manutenção da ordem.
A falácia central das teses de Jones está em acreditar que uma candidatura presidencial comunista poderia alterar qualitativamente a correlação de forças no Brasil. O máximo que poderia ocorrer seria uma reedição farsesca das velhas candidaturas de esquerda, com um programa inflado de retórica anticapitalista, mas funcionalmente integrado ao jogo institucional. Não há qualquer perspectiva de ruptura real no interior de um Estado burguês dependente como o brasileiro: a máquina estatal é estruturada para reprimir a auto-organização popular e preservar a acumulação capitalista. Fingir que se pode “usar” o Estado para fins emancipatórios é a mais antiga das ilusões reformistas — e também a mais perigosa, porque naturaliza o poder burguês e disciplina a classe trabalhadora sob a bandeira da legalidade. O PCBR de Jones Manoel não passa, até aqui, de um coletivo sem registro, dependente da filiação a partidos já existentes. Isso significa que toda a sua “radicalidade” será imediatamente submetida às regras eleitorais da burocracia estatal. Sua força real reside menos em bases proletárias organizadas e mais em sua presença midiática, construída no algoritmo das redes e no jogo da atenção digital. Eis a contradição: Jones apresenta-se como porta-voz do marxismo revolucionário, mas atua como gestor de uma marca política, igualando-se aos webcomunistas que transformam a crítica em carreira. A candidatura, nesse sentido, é apenas a extensão natural de sua trajetória como influencer: ampliar alcance, consolidar autoridade e buscar institucionalidade, ainda que à custa da autonomia popular.
Cada um desses partidos possui um longo histórico de disputas internas, personalismos e submissão à via eleitoral. A aliança entre eles não aponta para uma revolução, mas para a tentativa de construir uma terceira via reformista, uma espécie de “PT rejuvenescido”, capaz de disputar espaço com o lulismo e com outras frações. A retórica da radicalidade serve apenas como embalagem de marketing, vendendo ao público juvenil e militante a sensação de novidade, enquanto repete velhas fórmulas gastas. O que Jones Manoel ignora — ou deliberadamente esconde — é que a emancipação proletária não pode se dar pela via do Estado. O Estado é a forma política da dominação de classe, e não pode ser apropriado para outros fins. A verdadeira alternativa não está em alianças partidárias ou candidaturas presidenciais, mas na construção da autogestão: conselhos de trabalhadores, redes de solidariedade popular, experiências de democracia direta que escapem à lógica institucional. A história mostra que toda vez que o movimento operário confiou na via eleitoral e nos partidos de cúpula, foi derrotado, cooptado ou massacrado. O destino de uma eventual candidatura de Jones não será diferente: ou recua para a moderação, ou é esmagada pelo aparato repressivo, restando apenas como peça de museu do radicalismo domesticado.
Além disso, a postura de Jones reforça uma dimensão profundamente autoritária da política. Ele se apresenta como líder intelectual e carismático, portador da “linha correta” do marxismo, e pretende concentrar em sua figura a representação de uma suposta esquerda radical. Essa centralização personalista é típica das burocracias que se erigem em nome da classe, mas atuam acima dela, falando em seu lugar e silenciando suas expressões autônomas. Ao invés de estimular a auto-organização das massas, a candidatura de Jones reproduz o velho esquema: massas como base de apoio, partido como vanguarda dirigente, candidato como rosto midiático. O resultado é o oposto da emancipação: a substituição da classe por seus representantes.
A crítica marxista libertária nos obriga a denunciar essa mistificação. A candidatura de Jones Manoel não é a emergência de uma esquerda radical, mas a repetição do ciclo reformista, agora embalado pelo marketing digital e pela estética comunista. A função histórica de tal projeto é conter, domesticar e desviar a energia das lutas sociais para o terreno seguro das urnas. É, em última instância, uma operação de neutralização: transformar a indignação proletária em combustível eleitoral para partidos que não têm qualquer horizonte real de ruptura com o capital. Aos trabalhadores, à juventude e aos militantes que buscam transformação, cabe não se iludir com tais projetos. O desafio não é apoiar uma candidatura “radical” em 2026, mas reconstruir práticas autônomas de organização popular, capazes de romper com o capital e o Estado. A revolução não virá das urnas, mas das ruas, das fábricas, das escolas, das periferias. O comunismo não é uma candidatura, mas um movimento real de destruição das formas de dominação. Contra a farsa da esquerda institucional, cabe afirmar a necessidade da autogestão e da revolução social.
A crítica ao modelo “influenciador” como forma de neutralizar a radicalidade é indispensável, mas não pode ser feita de modo mecânico. Se afirmarmos que toda presença nas plataformas digitais já está, de antemão, totalmente capturada pelo espetáculo, caímos em um determinismo que apaga a dimensão da contradição. Isso seria um erro semelhante ao do reformismo, que acredita ser possível usar o Estado burguês contra a dominação de classe. O Estado, por sua própria natureza, não pode ser transformado em instrumento de emancipação; ainda assim, suas estruturas não são homogêneas e podem ser atravessadas por tensões quando a luta de classes irrompe. Essas contradições, porém, não mudam sua essência repressiva, apenas revelam sua fragilidade momentânea. O mesmo ocorre com o espaço digital: constituído pela lógica da mercadoria e do algoritmo, ele permanece parte do espetáculo, mas pode apresentar fissuras transitórias, que não devem ser confundidas com uma saída emancipatória. O problema central não é a ferramenta em si, mas a forma como, integrada ao espetáculo, ela molda a crítica em mercadoria e canaliza a rebeldia para dentro da ordem.
O que diferencia Jones Manoel não é apenas o fato de usar o YouTube ou o Twitter, mas o modo como seu projeto se organiza inteiramente dentro dessa lógica, adaptando conteúdo, estética e horizonte político às exigências do engajamento e da monetização. Uma crítica radical à forma-influenciador precisa, portanto, expor esse mecanismo sem cair no moralismo ou no tecno-determinismo, apontando que o desafio real não é “usar bem” as redes, mas romper a dependência estrutural delas e rearticular a comunicação com formas de organização que escapem à lógica mercantil. É nesse ponto que se coloca a tarefa de construir circuitos alternativos de comunicação proletária, baseados em redes de solidariedade, imprensa independente radical e circulação material que não dependa do algoritmo. A questão é recolocar a comunicação como momento da organização, e não como carreira de indivíduos que se projetam no mercado da atenção.
Na conjuntura brasileira de 2025, essa função ganha uma centralidade ainda maior. O lulismo, embora tenha recuperado o governo federal, vive uma crise de legitimidade. Seu projeto de conciliação, fundado na promessa de administrar o capitalismo dependente com reformas sociais limitadas, está corroído tanto pela ofensiva permanente da extrema-direita quanto pelo desencanto de amplos setores populares diante da estagnação econômica e da continuidade da precarização. Ao mesmo tempo, a extrema-direita não se dissolve, mas se reorganiza em novas formas, disputando base social com pautas morais, securitárias e nacionalistas. Nesse cenário, o progressismo precisa renovar seus símbolos de legitimação. O PT já não consegue mobilizar o imaginário da juventude como nos anos 2000, e figuras tradicionais da esquerda perdem apelo.
Ao articular essas dimensões — a crítica dialética à forma-influenciador, as consequências práticas da vulgarização e a atualização da conjuntura — fica claro que Jones Manoel é menos uma figura isolada e mais uma engrenagem fundamental na reprodução do progressismo em crise. Ele funciona como mediador entre a tradição reformista do PCB, o aparato cultural do lulismo e a estética digital que organiza a juventude contemporânea. A função histórica de sua figura é neutralizar a possibilidade de que o marxismo volte a ser identificado com a revolução, mantendo-o no terreno da cidadania administrada. Contra essa lógica, a tarefa é resgatar a radicalidade em seu sentido pleno: organizar a autoatividade da classe, construir práticas de autogestão, romper com a chantagem do isolamento e afirmar que a crítica não é mercadoria, mas arma. O dilema segue posto com a mesma clareza de Rosa Luxemburgo: reforma ou revolução, socialismo ou barbárie. Enquanto figuras como Jones atualizam a reforma em chave digital, a barbárie avança. A única resposta real está em recolocar o marxismo em seu terreno original: a destruição da ordem capitalista e a emancipação autônoma do proletariado.
A forma-influenciador precisa de palcos com alcance massivo para converter reputação em poder — e os grandes podcasts operam como correias de transmissão do capital de atenção. Na prática, o influenciador ajusta tom, temas e forma à moldura do palco; em troca, recebe audiência, legitimidade e acesso. Esse arranjo é particularmente visível quando observamos a trajetória recente de Jones Manoel em circuitos como o Flow. Não se trata de “ir onde o povo está”, mas de aceitar uma condição de clientela num mercado controlado por plataformas privadas cujo modelo de negócio é a atenção — e cuja gramática editorial foi construída, testada e escalada por figuras que normalizaram a presença da extrema-direita e da política-espetáculo. O Flow Podcast foi fundado em 2018 por Bruno “Monark” Aiub e Igor “3K” Coelho (com Gianzão na direção), inspirado no Joe Rogan Experience, com a estética da “conversa de bar” e a promessa de “liberdade total” de pauta. Tornou-se rapidamente um dos podcasts mais vistos do país, recebendo de Lula a Bolsonaro e presidenciáveis como Ciro Gomes e Sergio Moro (há episódios dedicados a Lula e Bolsonaro; Ciro e Moro também passaram pelo programa). Em 2022, Monark foi desligado após defender a existência de um partido nazista, gerando uma crise reputacional e financeira; o próprio Estúdios Flow admite que o faturamento mensal — então em torno de R$ 1,5 milhão — “caiu a zero” após o cancelamento. A empresa, reestruturada sob a liderança pública de Igor, voltou a crescer; em 2024, a nova CEO anunciou aumento de 50% do faturamento e, em 2025, a imprensa de negócios reportou projeção de R$ 17 milhões no ano (dados de mercado, não auditados publicamente). Ou seja, longe de “mídia alternativa”, trata-se de um negócio escalado da creator economy, com metas, portfólio e governança empresarial. O palco “neutro” é um ativo, e a “pluralidade” — receber tanto Lula quanto Bolsonaro — é um modelo de captação de públicos divergentes sob uma mesma mercadoria: audiência monetizável.
A distinção prática entre Igor e Monark não altera a função do palco. Monark, após a queda, migrou para o Rumble com viés assumidamente direitista; Igor reposicionou o Flow como “mediador” e manteve a lógica de convidar polos antagônicos sob o verniz da imparcialidade. Em entrevistas, Igor se apresenta como crítico “de ambos os lados” para sustentar a autoridade do anfitrião-árbitro, preservando o modelo de negócio da equidistância — crítica rotativa às figuras do dia e manutenção das portas abertas a quem entrega pico de tráfego (Lula, Bolsonaro etc.). A chave é entender que o palco é a mensagem: ele transforma política em conteúdo e o conflito em entretenimento. O convidado entra como fornecedor de atenção; o programa, como operador de captura. É nessa moldura que se inscreve o clientelismo midiático de Jones Manoel. Em agosto de 2025, Jones esteve no Flow #479 por 3h38, e também no Flow News #004 (com direito a promoção nas próprias redes). Não são aparições pontuais: elas marcam o pertencimento do influenciador ao circuito que organiza a pauta do dia como show e, ao mesmo tempo, o legitima perante um público amplo como “a voz marxista que dialoga com todos”. A troca é clara: o programa recebe um “comunista explicador” que ajuda a compor a imagem de pluralidade; o convidado recebe volume de tráfego, novas inscrições, convites subsequentes e capital simbólico útil para a passagem do conteúdo à política institucional.
Aqui, o paralelo com Tragtenberg é direto. Em Ideologia e Burocracia, Maurício Tragtenberg mostra como a burocracia — estatal, partidária, sindical — profissionaliza a mediação entre base e decisão, deslocando a iniciativa dos de baixo para aparelhos especializados. A forma-influenciador opera como burocracia comunicacional: separa quem fala e capitaliza do conjunto que escuta e consome; fabrica porta-vozes permanentes; e converte a participação em passividade engajada (curtir, comentar, compartilhar). Esta é a verdade material do personalismo: não é traço psicológico; é forma social que surge quando a crítica precisa de meios privados para circular. O personalismo gera paternalismo (“o professor popular que explica a realidade”), populismo de plataforma (lives, desafios, “quem ganhou o debate”), e mitificação da coerência (“ele aguenta qualquer palco sem se vender”), precisamente porque a coerência é medida pelo desempenho no palco, não pela construção organizativa fora dele.
Quando o militante se torna cliente dos palcos, o critério de sucesso muda: não é mais o que organiza, mas o que viraliza. Isso obrigatoriamente empurra a teoria para formatos que rendem retenção (pílulas, slogans, takes “quentes”), e ajusta o conflito de classes a uma dramaturgia que precisa caber no roteiro do host. É por isso que “ir ao Flow” não é neutro: o palco não acolhe um discurso; ele enquadra o discurso e o redireciona para sua própria finalidade — a circulação rentável. Não por acaso, a lista de convidados ilustra a lógica de normalização do antagonismo sob a mercadoria audiência: de Bolsonaro a Lula, de Ciro a Moro, passando por quadros do MBL como Kim Kataguiri; a “pluralidade” é o business model, não um princípio democrático. Uma questão central para compreender o fenômeno Jones Manoel é perceber que sua recorrente participação em debates com fascistas e conservadores não se apresenta como um enfrentamento, mas como uma associação objetiva, ainda que disfarçada sob o manto da polêmica. É fundamental destacar que o fascismo, enquanto forma de reorganização da dominação burguesa, não se combate em arenas midiáticas espetacularizadas, mas na luta de classes concreta, na organização popular e no desvelamento crítico de suas raízes históricas e materiais. Ao aceitar reiteradamente o convite para estar ao lado de agentes do fascismo em podcasts, mesas redondas ou lives, Jones se insere numa lógica que, em vez de desestabilizar, legitima os fascistas como interlocutores válidos. A associação não é formal, mas estrutural: na medida em que compartilha palco, narrativa e linguagem com eles, ele contribui para a reprodução da forma-espetáculo da política, na qual as fronteiras entre esquerda e extrema-direita se dissolvem em performance e marketing digital.
A chave para compreender essa dinâmica está na crítica marxista à ideologia. Ao invés de se posicionar como antagonista radical, Jones se acomoda ao papel de “representante da esquerda radical que dialoga com todos”, convertendo a luta em produto de entretenimento. O que aparece como combate é, na realidade, uma simulação cuidadosamente calculada. O fascista entra fortalecido, pois sua presença diante de uma figura que se reivindica comunista é legitimada como parte do “debate democrático”. Jones, por sua vez, aparece como mediador supostamente racional e ponderado, consolidando sua imagem de intelectual acessível e de “comunista midiático” capaz de circular entre polos opostos. Trata-se de uma simbiose espetacular: ambos se beneficiam em termos de visibilidade, capital simbólico e circulação nas redes, ao mesmo tempo em que a consciência crítica do público é desviada para a ilusão de que a disputa ideológica se dá na forma de diálogos cordiais entre inimigos históricos.
Essa associação não pode ser naturalizada. Ela precisa ser compreendida como uma estratégia consciente de inserção no mercado da atenção. Não há qualquer ganho revolucionário em disputar espaço com fascistas sob os termos da indústria cultural digital, mas há sim um ganho de audiência e prestígio individual. Dessa forma ocorre a neutralização da crítica: o fascismo aparece como uma “opinião” dentro de um cardápio de ideias, e o comunismo como sua contraparte domesticada, incapaz de ultrapassar o limite da encenação midiática. A crítica radical se transforma em mercadoria de nicho, enquanto o fascismo se torna cada vez mais normalizado. Portanto, afirmar que os encontros entre Jones e fascistas configuram uma associação é ir ao cerne do problema. Não se trata de imputar cumplicidade ideológica no sentido estreito, mas de denunciar a função social que esse modelo cumpre: estabilizar o campo político dentro do espetáculo, oferecer ao fascismo uma plataforma de legitimidade e, ao mesmo tempo, adaptar o comunismo a um formato aceitável para o capital. A associação está no pacto silencioso de que, ao final, ambos saem vencedores no jogo da visibilidade, enquanto a luta real contra o fascismo — que exige organização, teoria crítica e ruptura — permanece bloqueada. É preciso desmascarar esse pacto, sob pena de reproduzir o ciclo histórico de neutralização que sempre perseguiu a esquerda em suas formas reformistas e midiáticas. Nesse sentido, além de cínico, Jones é cumplice.
Mas o ponto decisivo é o significado de alguém que se diz de esquerda capitular ao mais alto grau da burocracia estatal. Quando a crítica “chega lá”, ela não domina a máquina; ela é dominada por seus imperativos: coalizões, governabilidade, disciplina fiscal, controle policial, comunicação de risco. No Brasil real, isso significa reconduzir a juventude inquieta ao cidadanismo: participar, votar, comentar — enquanto a estrutura da propriedade, do trabalho e da violência estatal permanece intocada. A “coerência” que muitos veem numa liderança que “topa qualquer palco” é a coerência de manter aberto o funil que vai do like à urna, sem jamais tocar no núcleo ontológico da dominação: a forma-Estado e a forma-mercadoria. No plano subjetivo-político, esse circuito produz vaidade funcional e cinismo metódico. Vaidade funcional: a figura pública aprende a performar autoridade (eu explico o mundo) porque precisa manter a comunidade de fãs que sustenta o negócio. Cinismo metódico: sabendo que o palco exige ambiguidade, a liderança domina a retórica de “falar com todos” — inclusive com apresentadores que deram palco a Bolsonaro e normalizaram a extrema-direita —, e apresenta isso como “maturidade estratégica” ou “dever pedagógico”. A plateia, por sua vez, encontra alívio moral: pode dizer-se marxista sem romper com a sociabilidade que financia o palco. É a identidade segura de que falávamos: radicalidade como cultura, não como ruptura.
Diante disso, o “clientelismo” de Jones não é exceção ética; é efeito de forma. A forma-influenciador precisa servir a alguns templos para existir na escala que ambiciona; a forma-podcast precisa servir-se de certas vozes para reconstituir credibilidade após cada crise. Não se trata, portanto, de “não ir”; trata-se de não se tornar cliente. Um militante que entra e sai do palco com objetivos organizativos concretos (construir comitês, greves, redes de apoio, caixa de luta, formação vinculada à prática) está em disputa com o palco. Um influenciador que depende do palco para renovar sua autoridade está em clientela. A diferença aparece no dia seguinte: houve organização real? Houve convocatória para ação que não seja audiência? Houve endereçamento material a trabalhadores e territórios — ou apenas mais um funil para novas aparições e, agora, para uma candidatura presidencial?
Vejo se repetir, no fenômeno de Jones Manoel, a mesma lógica que denunciei há anos no rap. Não se trata apenas do acúmulo de capital simbólico, de seguidores, de convites para entrevistas ou de prestígio acadêmico. Jones acumula capital financeiro concreto, acumulado a partir da monetização das plataformas, dos cursos pagos, dos superchats, dos patrocínios indiretos. E esse montante não volta para os movimentos de base, não se converte em fundos de greve, em caixas de ocupação, em infraestrutura de luta. Ele permanece retido no circuito individual, alimentando a própria marca, reforçando o personalismo e a aura de coerência que se constrói em torno de sua figura. Quando escrevi sobre a mercantilização do rap, apontei exatamente isso: MCs que se apresentavam como porta-vozes da favela, que discursavam contra a exploração e contra o sistema, se converteram em empresários da própria imagem, transformando a periferia em mercadoria. Esse movimento, quando se tornou evidente, foi escandaloso, porque revelava a distância entre a fala e a prática. O que vejo agora é que Jones Manoel caminha pelo mesmo trilho.
A chave interpretativa proposta por Ivo Tonet é que o insucesso das experiências revolucionárias do século XX não pode ser explicado apenas pela degeneração política das direções ou pelas escolhas táticas de partidos e vanguardas, mas pela insuficiência objetiva no desenvolvimento das forças produtivas. Marx insistia que a emancipação humana integral exige o salto qualitativo que permita à sociedade superar a escassez, criar condições de abundância e, assim, generalizar o trabalho associado. Sem essa base material, a revolução tende a se encerrar em soluções de emergência, estatistas e autoritárias, que nada mais fazem do que administrar a penúria em nome do socialismo. Essa leitura recoloca o debate no terreno das determinações materiais: só uma reorganização da produção, orientada pela classe trabalhadora, pode transformar a revolução em emancipação efetiva. Ao contrastarmos essa perspectiva com o projeto de Jones Manoel, fica evidente sua limitação. Ao apostar na candidatura presidencial de 2026 e em alianças partidárias frágeis, o que Jones propõe não é um caminho para desenvolver as forças produtivas sob direção proletária, mas uma via de gestão da escassez dentro do Estado burguês dependente. Seu horizonte estatista ignora que o Estado, como forma de dominação de classe, não cria abundância; apenas redistribui carências em benefício da ordem. Ao mesmo tempo, sua pedagogia digital — transformando o marxismo em mercadoria consumível — desloca a questão fundamental da emancipação da esfera da produção para a da comunicação, substituindo a luta pelo desenvolvimento material coletivo por performance individual no espetáculo midiático. A consequência é clara: em vez de organizar o proletariado para construir novas bases produtivas e sociais, Jones o disciplina a acreditar que o salto histórico virá das urnas ou da “boa gestão” estatal. O resultado é um simulacro de radicalidade que, ao invés de enfrentar o atraso das forças produtivas — condição que explica os limites de todas as revoluções passadas —, o reproduz, mascarado de discurso revolucionário.
A crítica de Ivo Tonet recoloca o problema no seu lugar estratégico: sem a centralidade ontológica do trabalho, a centralidade política da classe operária e a centralidade do trabalho associado como horizonte efetivo, toda a disputa “de forma” — inclusive a do influenciador politizado — desliza para a superfície. É precisamente aqui que o projeto de Jones Manoel mostra seu limite: ele reorganiza atenção, reputação e votos sem tocar a base ontológica da sociabilidade capitalista. Quando a bússola é o algoritmo e a tática eleitoral, a classe trabalhadora aparece como público, não como sujeito histórico; e o Estado, como palco a ocupar, não como forma a ser extinta. O resultado é uma pedagogia política conciliada ao presente, que recodifica a emancipação como “participação” e a revolução como “gestão aprimorada” do mesmo aparato que Marx, Engels e Lênin caracterizaram como instrumento de dominação de classe e, portanto, condenado à destruição/extinção no processo de transição. Tonet tem razão: sem trabalho associado generalizado, não há superação do Estado; sem a classe operária organizada como força dirigente, não há universalidade possível.
No plano do conteúdo, as posições recentes de Jones esclarecem o vetor de sua orientação. Ele acena para candidatura nacional em 2026, orbitando um partido recémsaído de um racha do PCB (PCBR), ainda sem registro eleitoral — combinação típica de uma estratégia que desloca a “Revolução Brasileira” para a gramática da competição institucional e do marketing político. Em paralelo, cultiva presença em palcos de alta audiência, inclusive ambientes conservadores como o podcast “3 Irmãos”, convertendo antagonismo social em entretenimento palatável — operação na qual o conflito de classe vira performance e o “adversário” vira formato. O pano de fundo organizativo é conhecido: expulso do PCB em 2023, reorienta sua inserção pública como “dirigente” de uma nova legenda, reforçando a centralidade da circulação de imagem sobre a centralidade da produção social.
Há aqui uma contradição substantiva com a tradição que Tonet convoca. Quando Jones desqualifica a defesa armada dos trabalhadores como “conversa de pequenoburguês delirante” — na prática, ridicularizando a questão da autodefesa proletária em um país onde o monopólio burguês da violência (polícias, milícias privadas, aparato carcerário) é o núcleo duro da reprodução de classe — ele abandona a lógica materialista da luta de classes e se aproxima da moralização liberal do conflito. O próprio Jones, noutra chave, já reconheceu que política é relação de forças — “se um grupo armado ataca a comunidade, é preciso usar força de volta” — mas a inflexão atual trata a potência organizada do povo como “delírio pequeno-burguês”, enquanto a burguesia segue armada até os dentes. Em termos colocados por Ivo Tonet: sem forças produtivas e organização capazes de sustentar o trabalho associado, a extinção do Estado é impossível; mas sem organização independente da classe — inclusive com meios de autodefesa que inviabilizem o terror cotidiano do capital — a classe sequer chega a ser sujeito político. Reduzir a questão à ironia sobre “Glock de 12 mil” é naturalizar que só o Estado (burguês) e seus auxiliares tenham armas, enquanto o povo permanece domesticado.
O conteúdo real do projeto, portanto, é um reformismo de alta octanagem midiática: capitaliza indignações legítimas, promete uma “revolução” compatível com o calendário eleitoral, reencena a pedagogia de massas sob a forma do influenciador e, no momento decisivo, reafirma o tabu estrutural — o Estado como horizonte e a despolitização da força popular como norma. A consequência é a inversão denunciada por Tonet: a classe deixa de ser centro político e volta a ser plateia. Contra isso, a orientação de Ivo Tonet aponta o caminho: reconstruir a política a partir do local do trabalho, organizar associações de produtores com estratégia de poder, romper com a dependência existencial do aparelho estatal e de seus monopólios — inclusive o da violência — e repor a universalidade operária como direção. Sem isso, 2026 pode até render manchetes; emancipação, não.
Contra a farsa da radicalidade digitalizada, é preciso afirmar sem concessões que não há saída nos palcos da indústria cultural nem nas urnas da democracia burguesa. O caminho que se abre diante da classe trabalhadora não passa por influenciadores domesticados nem por partidos burocráticos, mas pela reconstrução da auto-organização de base: conselhos, assembleias populares, redes de solidariedade, autodefesa e trabalho associado como horizonte. Só assim a crítica deixa de ser mercadoria e volta a ser arma; só assim o marxismo recupera sua função originária de orientar a destruição do capital e do Estado. A alternativa permanece tão clara quanto no tempo de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie — e nada do que Jones Manoel representa nos aproxima do primeiro termo.