Amarcord, Federico Fellini, 1973
Crepúsculo de uma raça, Cheyenne Autumn, John Ford, 1964
O homem do Norte, The Northman, Robert Eggers, 2022
A marca rubra, Branded (Marcado), Rudolph Maté, 1950
Honra a um homem mau, Tribute to a bad man, Robert Wise, 1956
O pistoleiro e a bela aventureira, Heller in Pink Tights, George Cukor,1960
Duas mulheres, La ciociara, Vittorio de Sica, 1960
A árvore dos tamancos, L'albero degli zoccoli, Ermanno Olmi, 1978
Os abutres têm fome, Two Mules for Sister Sara, Don Siegel, 1970
Ontem, hoje e amanhã, Ieri, oggi, domani, Vittorio De Sica, 1963
Um dia muito especial, Una giornata particolare, Ettore Scola, 1977
Duelo de titãs, Last train from Gun Hill, John Sturges, 1959
Revólver de um desconhecido, Chuka, Gordon Douglas, 1967
O último azul, Gabriel Mascaro, 2025
Paixão dos fortes, My Darling Clementine, John Ford&Lloyd Bacon, 1946
Papa, Papa Hemingway in Cuba, Bob Yari, 2015
O carro de Jayne Mansfield, Jayne Mansfield's Car, Billy Bob Thornton, 2012
Meu vizinho Adolf, My neighbor Adolf, Leon Prudovsky, 2022
Uma batalha após a outra, One Battle After Another, Paul Thomas Anderson, 2025
Conspiração e poder, Truth, James Vanderbilt, 2015
Malês, Antônio Pitanga, 2024
08/09/25
Amarcord, Federico Fellini, 1973
No iutubi aqui

Amarcord: as lembranças de Fellini e seus significados. Por
Fabio Belik - julho 2021
HUMOR, LIRISMO, NOSTALGIA E UMA ATMOSFERA ONÍRICA
Só consegui assistir ao filme Amarcord, realizado em 1973 por Federico Fellini, no começo dos anos 1980. Foi pela televisão. Na época, apesar de já ser apresentado como um grande clássico, com relevância na história da sétima arte, o título ainda evocava um certo clima de safadeza, dada a sua temática sexual – eram tempos bem mais puritanos!
Amarcord é uma comédia dramática costurada a partir de um amontado de cenas e esquetes, que não estão presos a uma linha de tempo ou a uma trama estruturada. Não há uma história a ser seguida; tudo o que temos são situações que lampejam como recordações da infância e da adolescência de Fellini, vividas em Rimini, sua cidade natal. Amor, sexualidade, vida familiar, religião, política, educação, cinema, causos... Tudo é contado com doses generosas de humor, lirismo, nostalgia e emoções verdadeiras.
O significado do título desperta curiosidade. Amarcord, que virou neologismo no idioma italiano, é um termo do dialeto romano que significa “lembro-me”. É ao conjugar o verbo lembrar que o filme nos leva para os anos 1930; pelos olhos do jovem Titta, enxergamos um mundo de sonhos e imaginação repleto de personagens extravagantes. Somos apresentados à mulher da tabacaria, à cabeleira, ao padre, ao músico de rua, à ninfomaníaca... A vida passa com certa lentidão despreocupada, embora a sombra do fascismo paire sobre a vila de Borgo San Giuliano, como prenúncio do trágico futuro que espreita a Itália e o mundo.
O cinema de Fellini é, antes de tudo, um espetáculo visual. Em Amarcord, a beleza plástica se impõe, imersa numa atmosfera onírica e influenciada pela tradição circense. A fotografia elaborada ao nível dos detalhes por Giuseppe Rotunno, a direção de arte inspirada de Giorgio Giovannini e Danilo Donati e a trilha sonora irretocável de Nino Rota são partes que não podem ser vendidas separadamente. Fellini as uniu em uma obra sólida e consistente, na qual impôs sua personalidade criativa e sua alma de cineasta provocador e inovador. Não foi por menos que o filme lhe rendeu o quarto Óscar, dessa vez o de melhor filme estrangeiro em 1975.
Nos créditos de Amarcord, porém, há um nome que precisa ser especialmente lembrado: o do roteirista Tonino Guerra. Festejado como um dos maiores roteiristas da história do cinema, escreveu ou colaborou em mais de cem filmes ao longo da carreira: trabalhou para os maiores nomes do cinema, mas foi nesse filme que fez sua primeira parceria com Fellini, reprisada mais tarde em E la Nave Va e Ginger e Fred. O romance Amarcord, assinado por Federico Fellini e Tonino Guerra, traz no texto as digitais de Guerra e mostra sua importante contribuição, não só no refinamento da linguagem, mas no senso de humor contagiante.
Como qualquer obra de Fellini, Amarcord é um filme sensível, mas provocante, que revela novos detalhes e sutilizas a cada vez que é revisitado. Agora que temos a oportunidade de acessá-lo por diferentes mídias – já não somos mais reféns do monopólio do celuloide – podemos fazer isso com mais frequência. Viva o cinema!
Resenha crítica do filme Amarcord
Ano de produção: 1973
Direção: Federico Fellini, Roteiro: Federico Fellini e Tonino Guerra
Elenco: Pupella Maggio, Armando Brancia, Magali Noël, Ciccio Ingrassia, Nando Orfei, Luigi Rossi, Gianfilippo Carcano, Josiane Tanzilli e Bruno Zanin
10/09/25
Crepúsculo de uma raça, Cheyenne Autumn, John Ford, 1964
Um faroeste épico de John Ford que ele usou para se desculpar por todas as atrocidades em seus filmes anteriores
Giovanni Rodrigues, Adorocinema, 30 de ago. de 2025
Crepúsculo de uma Raça baseia-se em um acontecimento real, embora conte com licenças artísticas para desenvolver a trama.
Durante décadas, o cinema western estabeleceu a ideia de que os cowboys eram heróis que tentavam seguir adiante com suas vidas, mas tinham que lutar contra os "selvagens", que estavam ali para matar e aniquilar. Nesse tipo de cinema, na grande maioria das vezes os nativos eram os vilões, o que, sem dúvida, colocou um estigma sobre a comunidade indígena da América.
John Ford, como gênio dos filmes do Oeste, foi um dos diretores que mais ajudaram na criação desses estereótipos, mas chegou um momento em que ele mesmo quis corrigir o que havia feito. No final de sua carreira desenvolveu Crepúsculo de uma Raça, um filme que retrata de forma mais empática a difícil situação dos povos indígenas, em especial a história real do êxodo cheyenne em 1878.
"Matei mais índios do que Custer, Beecher e Chivington juntos e as pessoas na Europa sempre querem saber coisas sobre os índios", contou o cineasta em um livro de entrevistas escrito por Peter Bogdanovich. Ford reconheceu a má imagem que havia ajudado a difundir através de suas produções, por isso quis se despedir da indústria com um filme mais sincero que lhe servisse como redenção. "Toda história tem duas versões, mas por uma vez queria mostrar o ponto de vista deles. Sejamos justos: os tratamos muito mal e isso é uma mancha em nosso histórico; nós os enganamos e roubamos, matamos, massacramos e fizemos de tudo; mas se eles matam um único homem branco, por Deus que o Exército aparece".
Crepúsculo de uma Raça baseia-se no acontecimento real do Êxodo Cheyenne do Norte entre 1878 e 1879, embora Ford tenha tomado algumas liberdades criativas. Em 1878, os nativos cheyennes começaram uma viagem desde as terras em que estavam confinados em direção ao Norte, buscando fugir do massacre. No centro da ação encontram-se a professora quaker Deborah Wright e seu noivo, o capitão Thomas Archer, que lidera uma tropa de cavalaria do Exército dos Estados Unidos. Quando ambos descobrem que os cheyennes decidiram retornar a Yellowstone, juntam-se ao seu êxodo.
A tentativa de perdão de Ford ficou pela metade, pelo menos se a vemos a partir de nossa mentalidade atual. Ford filmou em Monument Valley, reserva navajo, e todos os membros da comunidade atuaram no filme - embora os papéis protagonistas tenham sido dados a atores mexicanos. O problema é que o filme conta a história dos cheyennes, um grupo totalmente diferente. Portanto, os diálogos que se escutam no filme são, na realidade, navajo. Conta a lenda que os nativos não respeitaram nenhum dos diálogos em navajo que o roteiro tinha e se dedicavam a dizer bobagens enquanto mantinham cara de circunstâncias. Afinal, ninguém no set falava o idioma.
Ford tinha muito carinho pelo filme, mas a crítica lançou comentários muito díspares. Para alguns é um "filme bonito e poderoso" cujo clímax, entretanto, não é "nem um drama efetivo nem convincente nem fiel ao romance". Crepúsculo de uma Raça foi o último western de Ford e seu penúltimo filme. Não triunfou nas bilheterias tão bem quanto outros títulos, mas agora é considerado um dos filmes mais maduros e autocríticos de sua filmografia.
11/09/25
O homem do Norte, The Northman, Robert Eggers, 2022
O homem do Norte
12/09/25
A marca rubra, Branded (Marcado), Rudolph Maté, 1950
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Choya, um pistoleiro de moral distorcida, é convencido por Leffingwell a se passar pelo filho do rancheiro Richard Lavery, que está desaparecido há vinte e cinco anos e, com isso, possa herdar a fortuna de sua família. No entanto, Choya apaixona-se por sua "irmã" Ruth, o que o leva a confessar a trama e sair à procura do verdadeiro filho de Lavery, que está mais perto do que se imagina. Adorocinema
13/09/25
Honra a um homem mau, Tribute to a bad man, Robert Wise, 1956
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Sinopse
Wyoming, primavera de 1875. Steve Millar (Don Dubbins) é um jovem da Pensilvânia que quer ser cowboy. Ao cavalgar para Laramie ele acaba salvando a vida de Jeremy Rodock (James Cagney), o maior proprietário de terras e cavalos da região. Quando um ladrão tentava desafiá-lo era logo enforcado, o que ficou conhecido como "justiça de Rodock". Mas agora o poderoso Jeremy foi baleado por ladrões de cavalos e depende de Steve para levá-lo até sua casa. Steve consegue retirar a bala, algo que nunca tinha feito, e levá-lo até o seu rancho. Jeremy lhe dá um emprego, mas algo que não estava nos planos de Steve acontece: se apaixonar pela garota de Jeremy, Jocasta Constantine (Irene Papas), uma grega. Adorocinema
14/09/25
O pistoleiro e a bela aventureira, Heller in Pink Tights, George Cukor,1960
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Sophia Loren, presente.
Perseguidos por cobradores, a Companhia de Teatro Healy (que inclui, além do próprio diretor Healy, a voluptuosa Angela, a atriz-mirim Della, a mãe desta, Lorna, e o velho Montague) chega em Cheyenne para atuar no maior teatro do oeste. Após a chegada de credores, Angela consegue a proteção e um empréstimo do dono do teatro, Peirce, ao mesmo tempo em que aposta tudo contra o pistoleiro Clint. Filmow
15/09/25
Duas mulheres, La ciociara, Vittorio de Sica, 1960
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Em quase 60 anos de carreira, Vittorio de Sica atuou em mais de 160 películas, além de ter dirigido 35 obras e escrito o roteiro de 23 filmes. Como se isso não bastasse, de Sica, ao lado Roberto Rossellini e Luchino Visconti, compôs a trinca criadora do movimento neorrealista italiano, que revolucionou o cinema mundial. Duas Mulheres, que dirigiu em 1960, traz muitos elementos do neorrealismo. Com roteiro de Cesare Zavattini, baseado no romance de Alberto Moravia, o filme conta uma história que começa no período da Segunda Guerra Mundial. Somos apresentados à viúva Cesira (Sophia Loren), dona de uma pequena mercearia em Roma, onde vive com a filha Rosetta (Eleonora Brown), de 13 anos. Por conta das bombas jogadas na cidade, Cesira decide fugir com a menina para Santa Efemia, cidade onde nasceu. Duas Mulheres, nas mãos de um diretor sem talento, cairia facilmente no mais puro melodrama. De Sica é bem mais sutil e inteligente ao nos conduzir por uma narrativa que parece, inicialmente, bastante simples e previsível. Ledo engano. Aos poucos, percebemos estar diante de uma obra grandiosa e intimista ao mesmo tempo. Principalmente, no seu terço final. Todo o elenco se sai muito bem, porém, não há como não destacar o estupendo desempenho de Sophia Loren, vencedora de diversos prêmios de atuação por este papel. Inclusive, o Oscar de melhor atriz, o que fez dela a primeira atriz a receber o prêmio por um filme que não era falado em inglês.
DUAS MULHERES (La Ciociara – Itália 1960). Direção: Vittorio de Sica. Elenco: Sophia Loren, Jean-Paul Belmondo, Eleonora Brown, Carlo Ninchi, Andrea Checchi, Emma Baron e Raf Vallone. Duração: 100 minutos. Distribuição: Continental. Por Marden Machado
ESTUPROS DE GUERRA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM “LA CIOCIARA” (VITTORIO DE SICA, 1960), CONFLUÊNCIAS | ISSN: 1678-7145 | E-ISSN: 2318-4558 | Niterói/RJ V.24, N.2 maio/agosto de 2022 | páginas 83- 103
16/09/25
A árvore dos tamancos, L'albero degli zoccoli, Ermanno Olmi, 1978
Crítica | A Árvore dos Tamancos por Guilherme Rodrigues, 7 de outubro de 2020
A imagem conjurada inicialmente pelo título A árvore dos tamancos é um tanto exótica, e parece prometer uma produção com ares de fantasia, talvez algo inspirado no realismo mágico. Mas a obra do diretor Ermanno Olmi, lançada em 1978 e vencedora da Palma de Ouro em Cannes, vai pelo caminho contrário, já que o longa está concentrado no real.
Tanto que o letreiro logo após o nome do diretor informa “interpretado pelos habitantes do interior de Bergamo”, ou seja, temos aqui mais uma obra do cânone do neorrealismo italiano, mesmo que distante cronologicamente do auge do movimento. O longa acompanha quatro famílias camponesas no final do século 19 que habitam uma fazenda no interior da Itália, elas ocupam aquele espaço devido a um acordo com o senhorio: tudo que ali é produzido deve ser dividido com ele.
Não há aqui uma história devidamente estruturada, já que o foco é menos em uma trama e sim no cotidiano dessas pessoas, que estão ali mais para representar a totalidade da existência camponesa do que seres individuais, já que muito mal nos é dito seus nomes. Os nomes existem, é claro, mas não há é feito questão de evidenciá-los. Observamos essas pessoas realizando cada um de seus afazeres, entre o trabalho e os momentos de lazer.
Para isso, Olmi aposta em uma linguagem semi documental, que busca imprimir o mínimo possível de estilização na imagem do filme. É uma câmera sempre recuada, que aposta em planos médios e abertos, que permitem que as situações diante dela simplesmente transcorram, dando ênfase ao quão trabalhosas são as atividades em cena. É um filme de planos longos, que se preocupa em retratar em todo o processo de plantar tomates ou uma ida até a cidade, por exemplo. Uma situação dessa envolve três ou quatro planos longos, em que é possível sentir o tempo passando.
Essa decisão de preservar o tempo e o trabalho em cena é presente até nas situações menos “idílicas” relacionadas a vida do campo, como a longa sequência em que os camponeses abatem um porco, com direito aos guinchos do animal inundando a cena. A fotografia mais aberta também serve para mostrar a natureza comunal dessas atividades. Ninguém faz nada sozinho e raramente está só. Seja para matar um animal ou nos momentos de lazer, em que todos se reúnem para contar histórias e fofocar.
Mesmo que o grosso de A Árvore de Tamancos seja esse aspecto rotineiro da vida do campesinato, há, aqui e ali, algumas pequenas histórias relacionadas a alguns dos personagens, como o romance entre um jovem casal, a tentativa de curar uma vaca doente ou a preocupação de um pai com o calçado que o filho usa para ir às aulas. Apesar de algumas serem interessantes e até mesmo divertidas, como a aliança entre um avó e a neta para plantar tomates fora de época, a abordagem estética acaba resultando em certo afastamento dos momentos mais dramáticos. É difícil se preocupar com situações particulares em uma obra tão pautada pelo coletivo, pelo universal. Uma pena que esse aspecto não seja tão bem integrado ao todo, já que é justamente nessas situações “menores” que o filme melhor explora a fragilidade da situação daquelas pessoas.
A seu modo, A Árvore de Tamancos remete um pouco a Amarcord, em sua estrutura mais focada em mais focada no geral do que na especificidade, construindo um retrato daquela época, de uma comunidade. Mas enquanto Fellini se apoiou no aspecto da memória para sua obra, Olmi está interessado em nada menos que o real, da maneira mais “sem filtro” que ele puder.
A Árvore de Tamancos (L’Albero degli zoccoli, Itália – 1979), Direção: Ermanno Olmi, Roteiro: Ermanno Olmi, Elenco: Luigi Ornaghi,Francesca Moriggi, Omar Brignoli, Antonio Ferrari, Giuseppe Brignoli,Pasqualina Brolis, Giuseppina Langalelli, Duração: 186 min.
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A Árvore dos Tamancos, 10 abr 2013. Por Ricardo Flaitt
A transição do Feudalismo para o Capitalismo começou a partir do século XI. Nesse processo, o sistema de produção, bem como da vida da grande massa populacional foi se transformando de forma abrupta.
Com as mudanças nas relações comerciais, econômicas, de poder (políticas), o mundo foi adotando novos valores e composições sociais. Com isso, as pessoas foram perdendo o contato com antigos valores.
Há que se considerar que o homem no modo de produção feudal também sofria os efeitos da exploração. No modo de produção capitalista, o homem perde a propriedade dos bens de produção, do controle do seu tempo e da sua força de trabalho.
O Sistema Capitalista, em sua velocidade, aliena o homem, afasta-o de sua natureza, como bem disse o poeta Affonso Romano de Sant´Anna, em “Carta aos Mortos”: (…) Alguns hábitos, rios e florestas / se perderam. / Ninguém mais coloca cadeiras na calçada / ou toma a fresca da tarde, / mas temos máquinas velocíssimas / que nos dispensam de pensar.
Quando não se submetiam à venda de sua força de trabalho, os trabalhadores ocupavam as terras em sistemas de parceria da produção, onde o meeiro, era uma das formas de parceria, e tinha que viver com o que recebiam da venda de parte do que produziam nas terras do Senhorio. Num sistema ainda muito impregnado do sistema de vassalagem feudal (transição).
O ápice dessas transformações/revoluções no modo de se produzir e de se viver aconteceu no século XVIII, como consequência da revolução industrial, que iniciou na Inglaterra.
Com objetivo de retratar a relação homem e o trabalho no cinema, o diretor Ermanno Olmi, em “A Árvore dos Tamancos” faz um recorte histórico, metonímico, onde enfoca a vida de famílias na região da Lombardia, norte da Itália, e suas dificuldades para sobreviver como meeiros nas terras do Senhorio.
Como forma narrativa, no roteiro também assinado por Olmi, a história apresenta fragmentos dessas famílias, formando, ao final, um grande painel de como era a vida dos trabalhadores rurais no final do século XIX.
O mosaico de Olmi é formado de histórias que se entrelaçam como o surgimento do amor entre um casal de jovens camponeses; o trabalhador idoso que pensa como fertilizar os tomates antes da época para buscar maior ganho; as diferenças entre as famílias, a disputa pela produção; e a força da religião que permeia a todos e alimenta suas almas.
O título, “A Árvore dos Tamancos” é talhado a partir da história emocionante de um casal de trabalhadores, que luta para não transferir ao filho pequeno, o legado de suas duras vidas no campo, do trabalho incessante e da falta de acesso ao conhecimento.
Porém, a vontade dos pais em ver o filho estudar esbarra nas dificuldades práticas da vida. A escola localiza-se a quilômetros da fazenda e os recursos são parcos, a ponto de terem dificuldade de comprarem sapatos ao menino.
Numa sequência emocionante e trágica, em uma dessas longas caminhadas à escola, o menino vê seu sapato de madeira rachar. O pai, então, resolve cortar uma árvore para fazer, madrugada adentro, um novo par de sapatos para que o filho não perca os estudos.
Olmi, de forma poética, ilustra os desafios do casal para encaminhar o menino aos estudos. Coloca-nos a pensar sobre a condição do acesso ao Conhecimento para a grande massa operária e o Saber como instrumento de dominação.
Contrapondo-se ao Conhecimento, o filme enfoca também o papel e o peso da religião na comunidade. Uma forma de explicar os desencontros do mundo criado pelo homem social.
A força de “A Árvore dos Tamancos” está em sua atemporalidade e universalidade. O retrato das vidas dos trabalhadores da Lombardia pode ser o retrato de milhões de trabalhadores no mundo atual.
Mudam os artefatos, as tecnologias, a exploração do homem pelo homem; porém a equalização das desigualdades ainda representam um grande desafio para sistema capitalista, que cada vez mais caminha, de forma vertiginosa, para uma vida tecnicista e alienante, como já preconizou Godard em “Alphaville”.
Música não original: Johann Sebastian Bach.
Prêmios:
– Festival de Cannes 1978 (França): Ganhou a Palma de Ouro (melhor filme) e o Prêmio Especial do Júri Ecumênico.
– BAFTA 1980 (Reino Unido): Recebeu o Flaherty Documentary Award.
– Prêmio César 1979 (França): Venceu na categoria de melhor filme estrangeiro.
– Prêmio David di Donatello 1979 (Itália): Venceu na categoria de melhor filme.
– Academia Japonesa de Cinema 1980 (Japão): Indicado na categoria de melhor filme em língua estrangeira.
– Prêmio NYFCC 1979 (New York Film Critics Circle Awards, EUA): Venceu na categoria de melhor filme em língua estrangeira.
Curiosidades:
– Todo o elenco foi formado por camponeses reais da província de Bérgamo, na Itália, e não tinham nenhuma experiência como atores.
Ricardo Flaitt, Alemão, é assessor de imprensa da Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, colaborador no Centro de Memória Sindical e estudante dos cursos de História e Gestão Pública *Revisão crítica: Dra. Carmen Lucia Evangelho Lopes
17/09/25
Os abutres têm fome, Two Mules for Sister Sara, Don Siegel, 1970
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Crítica | Os abutres têm fome por Ritter Fan, 6 de outubro de 2020
Último filme de Clint Eastwood em que seu nome apareceria em segundo lugar nos créditos (curiosamente, nos cartazes, seu nome veio em primeiro), Os Abutres Têm Fome (incompreensível versão nacional do título Two Mules for Sister Sara…) é a segunda parceria do ator com Don Siegel, diretor americano que impulsionou sua carreira cinematográfica após seu retorno da Itália com Meu Nome é Coogan. Contando com Shirley McLaine no divertido papel de Irmã Sara, o primeiro faroeste com Eastwood dos anos 70 marca também uma das primeiras vezes que Ennio Morricone atuou como compositor de uma produção hollywoodiana, mesmo que essa tenha sido uma co-produção com o México.
O grande destaque do longa é, sem dúvida alguma, a dinâmica do mercenário Hogan, veterano da Guerra Civil em território mexicano a serviço dos juaristas contra a tentativa francesa de colonização, com a Irmã Sara que ele salva de ser estuprada e morta por três homens logo no começo, iniciando uma amizade que é a base de toda a narrativa. Apesar de repetir o figurino de seu clássico e calado Homem Sem Nome, as semelhanças com o personagem da Trilogia dos Dólares acaba aí, já que Hogan é um dos mais falastrões pistoleiros já vividos por Eastwood, algo que ganha eco na freira “saidinha” de McLaine que nunca realmente convence como freira, se o espectador tiver o mínimo de atenção.
Os dois astros estão muito bem em seus respectivos papeis e o filme exige que se compreenda que este não é um faroeste comum, no sentido clássico, pelo menos. Trata-se muito mais de uma comédia leve do que qualquer outra coisa, em que Eastwood desfaz sua personagem de pistoleiro estoico, transformando-se em um homem ainda durão, sem dúvida, mas de coração mole e uma vontade muito grande de explicar em detalhes o que pensa e o que pretende fazer, em muitos momentos evocando e espelhando Uma Aventura na África.
Quem melhor percebe essa característica humorística do longa, melhor ainda do que o próprio Don Siegel, é justamente Ennio Morricone que faz questão de compor a música tema com uma pegada cômica evidente que marca o filme desde seus primeiros segundos, inclusive criando uma versão orquestrada dos zurros das mulas do título (na verdade, é uma mula e um burro) que facilmente arranca sorrisos de reconhecimento por parte do espectador. É como se Morricone, mesmo compondo a partir da Itália, com a fotografia principal acontecendo no México, tivesse farejado que Eastwood e McLaine juntos não poderiam resultar em um um filme totalmente sério mesmo que Siegel tenha feito esforço estético para passar essa impressão, levando a um longa que se equilibra entre sub-gêneros do faroeste, notadamente o spaghetti e sua variação, o zapata western.
O diretor, aliás, faz excelente uso das locações em Tlayacapan, no estado de Morelos, algo que a fotografia de Gabriel Figueroa (e de Robert Surtees, que não levou crédito) salienta com o aproveitamento da tonalidade vermelha – ou tijolo para ser mais preciso – da terra local para “colorir” toda a produção e esquentar a conexão entre Hogan e Sara até o divertido dénouement que escancara as portas de vez. Há uma grande variedade de cenários que mantém a história, que nada mais é do que uma corrida de obstáculos, por assim dizer, sempre refrescante, sem cair na mesmice, seja com trivialidades como uma cobra cascavel aparecendo, chega pela chegada da guarnição francesa, seja pelos momentos de luxúria em que a câmera de Siegel faz questão de mostrar Hogan como um homem que precisa fazer enorme força para respeitar Sara e seu celibato.
Somente quando a dupla finalmente chega aos juaristas, com Hogan e seu plano para acabar com um forte da guarnição francesa, é que o filme perde seu ritmo quase que completamente. O tom leve, engraçado e romântico abre espaço para a longa execução do mencionado plano que cobra um preço alto do longa, fazendo-o perder a personalidade e tornar-se apenas mais um faroeste cheio de tiroteio e explosões. Na verdade, o roteiro de Albert Maltz, com base em história de Budd Boetticher não tinha muita história para contar e Siegel parece ter percebido isso ao tentar extrair o máximo da química entre os dois astros, o que talvez tenha tornado os dois terços iniciais do filme bem mais longos do que devem ser, fazendo com que o espectador já chegue “cansado” para o clímax também alongado.
Os Abutres Têm Fome apoia-se no estrelato de Eastwood e de McLaine, além da subversão da imagem do Homem Sem Nome de Eastwood, para prender a atenção do espectador, algo que a fita consegue por boa parte do tempo ajudada pelas piscadelas cômicas sonoras inseridas por Morricone. Mas Siegel talvez não tenha sabido explorar todo esse potencial, deixando de encontrar a melhor maneira de contar sua história. Talvez, indo além disso, o cineasta não tenha mesmo é conseguido encontrar o tom de sua narrativa e investido nele sem reservas, o que acabou resultando em uma obra que não mergulha de verdade em nada, permanecendo constantemente apenas na superfície da premissa e do uso da dupla principal.
Os Abutres Têm Fome (Two Mules for Sister Sara, EUA/México – 1970)
Direção: Don Siegel, Roteiro: Albert Maltz (baseado em história de Budd Boetticher)
Elenco: Clint Eastwood, Shirley MacLaine, Manolo Fábregas, Alberto Morin, Armando Silvestre, John Kelly, Enrique Lucero, David Estuardo, Ada Carrasco, Pancho Córdova, José Chávez, José Ángel Espinosa, Rosa Furman, Duração: 116 min.
18/09/25
Ontem, hoje e amanhã, Ieri, oggi, domani, Vittorio De Sica, 1963
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Sinopse: Filme em três episódios:
1º Episódio - Adelina de Nápoles
Adelina, arrimo de família, vende cigarros no mercado negro e pratica outros atos ilegais para ajudar na manutenção de sua família. Presa por contrabando, para não cumprir pena, ela sempre tem de estar grávida, fato que seu sub-empregado marido, Carmine, precisa aceitar. Depois de oito filhos, ele já não é mais o mesmo. Ela, então, faz o nono filho com o melhor amigo do marido. Felizmente, nada acontece...
2º Episódio - Anna de Milão Anna é uma dama da sociedade, casada com um industrial, com muito amor pra dar, principalmente quando seu rico marido viaja. Renzo é um escritor muito fiel e correto.
Num certo domingo, os dois viajam para o campo no novíssimo 'Rolls-Royce' dela, oportunidade em que ela tenta seduzi-lo. Por sua vez, ele a censura por seu materialismo desenfreado. A certa altura, quando Renzo está no volante, o carro bate, incendiando-se e quase matando uma criança que vendia flores à beira da estrada.
Após o acidente, ao pegar carona num belo 'Lancia', Anna se dá conta de que o importante para ela são as liras. Enquanto isso, Renzo compra algumas flores da criança e caminha pelo acostamento tirando suas pétalas...
3º Episódio - Mara de Roma Mara é uma prostituta que vive num bairro pobre de Roma. Augusto Rusconi, filho de um rico industrial de Bolonha e apaixonado por ela, é seu cliente mais assíduo. Entretanto, sempre surge alguma coisa para atrapalhar seu relacionamento com ela. Cansado com a situação, ele jura que não vai mais voltar.
Nesse meio tempo, seu vizinho, um jovem cujos avós o estão mandando para o seminário, para o seu próprio bem e, também, por conta de suas finanças, termina se enrabichando por ela. A avó a acusa de estar arruinando a vocação do neto.
Rusconi retorna, dizendo que pensou muito sobre ela. Forçado a intervir como pacificador, ele termina normalizando as relações com os vizinhos de Mara, ao mesmo tempo em que o caso do jovem seminarista é solucionado.
Como prêmio, ela faz um strip-tease para ele, cujo sistema nervoso já se acha, a essa altura, à flor da pele. Entretanto, para seu desespero, ela lhe diz que fez um voto de castidade por 'duas semanas'...
Crítica | Ontem, Hoje e Amanhã por Fernando Campos, 21 de agosto de 2016
O diretor Vittorio De Sica é reconhecido por ser um dos maiores nomes do neorrealismo italiano, caracterizado por utilizar elementos reais em histórias de ficção, normalmente abordando a realidade social da época. Esse movimento fez com que ele dirigisse obras marcantes que entraram para a história do cinema, como, por exemplo, Ladrões de Bicicletas e Vítimas da Tormenta. Apesar de ser lembrado pelos dramas, De Sica também produziu comédias, como o longa analisado a seguir, Ontem, Hoje e Amanhã. Mas será que fora do gênero que o consagrou De Sica conseguiu realizar um bom trabalho?
A obra conta a histórias de três mulheres (interpretadas por Sophia Loren) e os homens que atraem. A primeira mostra Adelina, vendedora de cigarros importados e casada com o desempregado Carmine (Marcello Mastroianni). Ela é sentenciada a prisão, mas pode escapar enquanto estiver grávida. Sete anos e sete filhos depois, o marido esta exausto e a prisão parece algo inevitável, assim como o desprezo de Adelina por Carmine. A segunda acontece em Milão, onde Anna está entediada e resolve dar carona para um escritor. Ela fala com um ar sonhador em fugir dali e ele dá a atenção que ela precisa, até que algo inesperado acontece. Por fim, a terceira história conta sobre Mara, uma prostituta, que chama a atenção de um ingênuo seminarista, fazendo com que ela brigue com a avó do rapaz e faça um voto de castidade.
O risco de construir um filme com três histórias diferentes e independentes entre si é a falta de coesão que isso pode acarretar na obra, uma vez que, se a qualidade destas for desparelha, o ritmo do longa pode ser prejudicado. Mesmo sendo separadas, todas as tramas têm a mesma base: o relacionamento entre homem e mulher. Os roteiristas são hábeis em explorar cada trama de maneira diferente, como pode ser destacado pelo fato do primeiro segmento envolver uma mãe de família e o terceiro uma prostituta, evitando a sensação de repetição e construindo uma obra que em nenhum momento cai na monotonia.
Apesar de ser uma comédia, o roteiro não investe em piadas durante os diálogos, mas busca ser engraçado através de histórias que focam na inversão de papéis, atingindo seu objetivo pelo absurdo de algumas situações, como, por exemplo, o fato de uma garota de programa fazer um voto de castidade para que um padre não largue a batina, ou o marido que fica mais cansado e feio a cada filho, enquanto sua mulher fica mais bonita. Nenhuma dessas cenas faz o espectador gargalhar, mas causam uma constante sensação de graça, tornando o tom do filme suave e cada vez mais agradável de assistir.
Um dos fatores que dão leveza à obra é a excelente química entre Sophia Loren e Marcello Mastroianni, apresentando casais de relacionamentos completamente destoantes, mas que captam o carisma do público desde o início. Mesmo encarnando três personagens diferentes, Loren explora a sensualidade em todas as suas composições, mas com ótimas variações entre elas, criando uma Adelina que é a típica mãe italiana, falando alto e cheia de gestos; mostrando Anna com um olhar arrogante e superior; e construindo uma Mara que é simplesmente uma das personagens mais sensuais da carreira da atriz. Já Mastroianni se destaca por trazer mais variações em suas composições, uma vez que, não há nenhuma semelhança entre seus personagens, nem mesmo a sensualidade, portanto, Carmine é preguiçoso e vagabundo; enquanto Renzo transmite um ar de sabedoria e preocupação; e Augusto se destaca pela infantilidade e desespero para ter relações com Mara.
Mas se o elenco funciona, claro que isso é graças as escolhas do diretor Vittorio De Sica, que também tem méritos em sua direção, utilizando os elementos técnicos da obra em função da história, uma vez que, pelo pouco tempo de duração de cada segmento, os demais componentes do longa precisavam ajudar a contá-los. Portanto, muito mais do que decorar e vestir, a direção de arte e figurino mostram detalhes sobre seus personagens, como, por exemplo, o fato das camas de Mara e Carmine serem próximas a dos seus filhos, além de destacar a humildade deles, sugere a união da família; já o Rolls Royce que Anna dirige destaca a riqueza dela, enquanto o figurino decotado de Mara evoca toda a sensualidade da prostituta, justificando o porque do Padre se deslumbrar e querer largar a batina. Devido a esses detalhes, De Sica investe mais em planos médios, captando todo o entorno dos personagens e suas movimentações corporais, utilizando também alguns zooms-in e travellings para reforçar o relacionamento entre eles, como na cena em que Anna conversa com Renzo no carro posicionados juntos na composição, até que ambos começam a falar sobre dinheiro e a câmera se move para enquadrá-la sozinha, destacando como ela só pensa em si mesma.
Claro que De Sica sempre será exaltado por suas grandes obras neorrealistas, como o já citado Ladrões de Bicicletas, mas o diretor entrega em Ontem, Hoje e Amanhã um filme que não deve em nada a outras comédias, pelo contrário, a obra, além de divertidíssima, se destaca na filmografia do diretor por sua leveza e irreverência ao abordar um tema que, em pleno século XXI, ainda é cheio de tabus como o sexo.
Ontem, Hoje e Amanhã (Ieri, Oggi, Domani) – Itália e França, 1963
Direção: Vittorio De Sica
Roteiro: Eduardo De Filippo, Isabella Quarantotti (segmento Adelina); Cesare Zavatti, Bella Billa, Lorenza Zanuso (segmento Anna); Cesare Zavattini (segmento Mara), Elenco: Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Aldo Giuffrè, Agostino Salvetti, Lino Mattera, Tecla Scarano, Silvia Monelli, Armando Trovajoli, Tina Pica, Gianni Ridolfi, Gennaro Di Gregorio, Duração: 118 min
18/09/25
Um dia muito especial, Una giornata particolare, Ettore Scola, 1977
No iutubi (archive) aqui
Crítica | Um Dia Muito Especial por César Barzine, 8 de dezembro de 2022
Um sensível ensaio entre relações humanas e a História.
A banalidade da história é o ponto central de Um Dia Muito Especial. Aqui o olhar histórico do presente se cruza com a realidade bruta do passado e causa um choque ao percebermos todas as distorções que há entre examinar a história e viver essa história. O roteiro de Scola, Costanzo e Maccari localiza essa história a partir de um olhar natural, de pessoas comuns e fatos banais. O fascismo e o nazismo estão lá pelas ruas e mente dessas pessoas, e tudo isso é encenado com um “senso de contemporaneidade“, isto é, não existe anacronismo no olhar de Ettore Scola; os personagens vivem aquele momento como autênticos seres humanos, e não através da ótica revisionista dos tempos contemporâneos.
Assim, ideologias nefastas são encaradas com uma visão apaixonada, um modo de pertencimento a um futuro próspero. É com esse pensamento que a família de Antonietta (seu marido e seis filhos) saem todos animados para o encontro-desfile de Mussolini e Hitler que reúne quase toda Roma. Porém, Antonietta, mesmo sendo mais uma entusiasta do fascismo, acaba ficando em casa para o cumprimento das tarefas domésticas. Mas devido a um ocorrido ela acaba se encontrando com seu vizinho Gabriele, e daí nasce uma forte relação entre eles. É criado, então, o contraste entre o aspecto pessoal dos sentimentos e o impessoal da ideologia, do indivíduo e do coletivo, do microcosmo e do macrocosmo. Do lado de fora do prédio onde vivem os dois há o triunfo das massas pautado numa linha de pensamento pronta, enquanto que, naquele interior, há a construção de afetos, receios e incertezas.
Ao mesmo tempo, percebemos a incompreensão da realidade vivida, em que por trás do feito histórico há uma noção distorcida da realidade. Desta forma, através do clamor que o fascismo desperta entre as pessoas, Scola sinaliza como ideias totalitárias atingem o povo e sua época. Essas ideias, claramente nocivas para nós, estão no cotidiano de uma nação embriagada por populismo. “Como ele pode ser um antifascista? Ele é uma pessoa de bem“, diz Antonietta ao descobrir que Gabriele é um oposicionista à sua causa. O longa tenta mostrar a cada instante que, por trás dos ideólogos, há seres humanos comuns — sejam eles apoiadores ou negadores de tal ideologia. Por isso que cenas do desfile em questão não são apresentadas, pois o que importa é o subjetivismo de alguns personagens específicos; que opera na ênfase da individualidade, dando luz não às crenças políticas de modo frio, mas às relações íntimas que há entre elas e seus defensores.

Embora o filme não encene este encontro entre Hitler e Mussolini, ele abre justamente com um cinejornal apresentando o tal evento. A exposição da reportagem, ao invés de uma sequência de imagens silenciosas ou com intervenção da produção do longa, é certeira aqui, pois neste primeiro modelo, além de apresentar as imagens daquele momento histórico, há também a exposição bruta da visão que o próprio objeto mostrado possui de si mesmo. O teor panfletário nos coloca naquele tempo-espaço e nos faz deparar com a autoconsciência de seus agentes. Em seguida, há um choque com o fim desta abertura, que, apesar de se manter neste mesmo contexto, se desloca para o campo pessoal sob a ótica da encenação. Assim, a trama se inicia, explorando, de uma forma perfeita através da decupagem, o território a qual está imersa. A câmera faz uso de uma movimentação fluida com panorâmicas e movimentos verticais que contemplam o espaço em que vivem nossos personagens, o que sugere que Scola está prestes a invadir a vida privada e quebrar o protagonismo da vida pública recém-apontado.
Antonietta é uma dona de casa que, embora não fique tão explícito logo de cara, se encontra meio desolada em sua condição de esposa por não ter nenhum afeto do marido. Ela acaba, então, encontrando em Gabriele um reduto amoroso para se apoiar. Seu sentimento por ele demonstra ir além de uma simples paixão, ele é também uma tentativa de fuga por vezes desesperada da sua desprezível vida. Sophia Loren e Marcello Mastroianni, que interpretam o casal, deixam aqui de terem a figura de grandes estrelas estonteantes que tiveram no passado e passam a contracenar como criaturas vulneráveis, frágeis, que se sentem, cada uma à sua maneira, perdidas. Mastroianni está bem em seu papel que demonstra certo apelo sentimental ao mesmo tempo que se equilibra numa postura, por vezes, mais reclusa, porém é Sophia Loren que realmente brilha no filme. A atriz faz um uso perfeito de sua gesticulação, exalando uma naturalidade que se encaixa bem com a persona de uma dona de casa com problemas pessoais. Loren vai se assumindo a cada segundo como uma mulher comum dotada de problemas pessoais, uma pessoa em situação tão ordinária que carece de um norte para viver. O resultado acaba sendo uma personagem impossível de não se depositar empatia.

Neste caminho, um dos melhores planos de todo o filme é o que apresenta Antonietta em busca de uma reconciliação com Gabriele. Ele é apresentado à esquerda comendo uma omelete na cozinha, e ela, à direita, em pé e silenciosa em outro cômodo. A simplicidade deste único quadro, que não precisa de nenhuma fala, é sublime. Há, sob um plano geral, os dois personagens separados em cada lado por uma parede, em que ocorre a sugestão do desejo caloroso de Antonietta para se encontrar com ele e a expectativa por parte do espectador para que isso aconteça. Porém, Um Dia Muito Especial não é nenhum Desencanto; existe o desejo recíproco de uma relação entre os personagens, mas não de um caso amoroso. Gabriele é homossexual, uma ligação conjugal entre os dois seria impossível. O que não impede Antonietta de enchê-lo fortemente de beijos, demonstrando o quão devastada ela está. Existem outros planos que, através de seus movimentos de câmera, exploram de uma bela maneira os corpos dos protagonistas. Mas, no final das contas, os sentimentos de Antonietta não passam de uma utopia em que ela própria logo aprende a se conformar.
Curioso traçar uma comparação deste filme com outra produção de Scola, que é Nós Que Nos Amávamos Tanto. Nele, também vemos a fusão entre o estudo sentimental de personagens e o retrato histórico da Itália, mas que, neste caso, se discorre por um total de trinta anos. Já Um Dia Muito Especial se passa todo em apenas um dia, o que fortalece ainda mais esse mergulho dentro daquele presente que é vivido a cada segundo, ao invés de apenas ser exposto de uma forma distante num simples retrato histórico. Neste caso, mais do que retratar, o que Scola promove é um verdadeiro exercício de história, algo que se desloca da mera passividade. O uso da narração radiofônica presente na diegese do filme é um eficaz maneirismo que salienta isso, pois o som que sai do rádio narra o evento em curso, ao mesmo tempo que acompanhamos a vida íntima dos personagens que coexistem em paralelo a isso. Trata-se de um contraste com foco em figuras que são coadjuvantes daquele momento histórico, mas que aqui assumem o papel de protagonismo.

Una Giornata Particolare (Itália, Canadá, 1977)
Direção: Ettore Scola, Roteiro: Maurizio Costanzo, Ruggero Maccari, Ettore Scola, Elenco: Sophia Loren, Marcello Mastroianni, John Vernon, Françoise Berd, Patrizia Basso, Tiziano De Persio, Duração: 110 minutos.
César Barzine: Redescobri o cinema aos 13 anos, e passei a (tentar) escrever sobre ele aos 14. Percebi que a escrita era um complemento da experiência fílmica, um modo de concretizar e externalizar minhas ideias e sentimentos. Venho encarando o cinema como um instrumento de espiritualização, sendo ele uma forma de viver as vidas que não vivi. Sou entusiasta da década de 1950, mas também abro o meu coração para a Hollywood Clássica por completa - sem dispensar as demais nacionalidades. Tenho Luis Buñuel em primeiro lugar, e mais uns seis diretores em segundo.
19/09/25
Duelo de titãs, Last train from Gun Hill, John Sturges, 1959
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Roteiristas: Les Crutchfield&James Poe&Dalton Trumbo
Sinopse: Quando Catherine Morgan, mulher de origem indígena e esposa do Delegado Matt Morgan, está regressando com seu filho de nove anos, Petey, da reserva em que moram seus pais, onde fora visitá-los, a charrete em que se encontram é perseguida por dois homens a cavalo. Com seu chicote, ela consegue ferir o rosto de um deles, Rick Belden, mas termina sendo dominada, violentada e morta. Enquanto isso, Petey consegue escapar com o cavalo de Rick até a cidade de Pawlee, onde mora, a fim de pedir ajuda ao pai. A sela do cavalo usado pelo filho possui um emblema que Matt reconhece como sendo pertencente a seu velho amigo, Craig Belden.
Enquanto isso, na enorme propriedade de Craig, este se enfurece quando toma conhecimento que sua sela foi roubada por ladrões de cavalos e que o corte no rosto do filho foi consequência de um encontro romântico. Craig, que vem fazendo um extraordinário esforço para torná-lo “um homem de verdade”, ordena-lhe que recupere sua preciosa sela.
Por outro lado, decidindo questionar Craig sobre a sela, Matt embarca no trem para Gun Hill e, a bordo, conhece uma bela mulher, Linda, que o adverte para o fato de que a cidade é controlada pelo poderoso Craig. Ao chegarem à Gun Hill, ela decide não ir de imediato ao rancho, preferindo assim ficar na cidade. Matt, no entanto, aluga uma charrete e segue para a propriedade de Craig.
Uma vez no rancho, ele é muito bem recebido pelo velho amigo que, acreditando que o Delegado teria prendido os ladrões que roubaram seu cavalo, comenta que, depois da morte da esposa, ficou muito solitário, contando apenas com a presença de seu único filho. Matt o interrompe para lhe falar sobre o assassinato de Catherine e, ao questioná-lo, deduz que Rick, que se acha com um corte no rosto, e Lee são os responsáveis pelo crime. Craig implora ao amigo para que não prenda seu filho, mas quando Matt insiste que Rick deve pagar pelo crime, ele o adverte que domina a região inteira, incluindo o xerife e o Conselho da cidade. Matt novamente lhe diz que estará deixando Gun Hill no último trem do dia e que Rick e Lee estarão sob sua custódia.
Depois que o Delegado deixa o rancho, Craig chama o filho para pedir-lhe satisfação pelo ocorrido, ocasião em que o jovem tenta justificar suas ações ao responder-lhe que ele mesmo sempre falou que as mulheres Cherokee são as mais bonitas. Craig grita com o filho por mentir e matar a mulher de seu amigo. Logo a seguir, expulsa Lee do rancho ao lhe dizer que nunca mais ponha os pés em sua casa. Insistindo que pode cuidar de si mesmo, Rick decide ir à cidade em companhia do capataz Beero e do capanga Skag, ocasião em que seu pai o alerta para ficar longe de Matt, até que ele chegue com o resto dos homens que vai reunir.
Em Gun Hill, os habitantes mostram-se beligerantes em relação a Matt, a ponto deste se ver obrigado a esmurrar um deles ao ouvi-lo dizer que, na cidade, um homem que mata um índio merece ser recompensado e não preso. No Horseshoe Saloon, Linda, mostrando-se aflita pela animosidade dos moradores para com o Delegado, o avisa que é melhor que ele esqueça seus ideais e deixe a cidade antes que seja morto. Diante da negativa do policial, ela o informa que Rick se encontra no bar do outro lado da rua. Com habilidade, Matt sobe numa árvore e consegue entrar no prédio onde funciona o Saloon através da janela de um quarto situado no 1º andar. Lá, com uma coronhada, ele deixa Rick desacordado e o leva para fora. No entanto, sem conseguir ajuda do covarde Xerife Bartlett, Matt se vê obrigado a levá-lo, ainda desacordado, para o quarto de um hotel, onde o amarra numa cama, enquanto espera o horário do trem para Pawlee.
Quando Craig e seus homens chegam à cidade, tomam conhecimento da situação em que se encontra Rick. Craig pede a Matt que solte seu filho, mas este se recusa a fazê-lo. Os capangas do rancheiro iniciam um tiroteio com alguns homens localizados no teto de um prédio que se acha do outro lado da rua. Matt abate dois deles e, ao colocar a cama em que se acha Rick na frente de uma das janelas do quarto, este grita para que o pai faça com que acabem com o tiroteio. Cessado o fogo, Craig e seus homens retiram-se para o Horseshoe Saloon, onde encontram Linda. Craig pergunta-lhe por que, ao voltar para Gun Hill, ela não foi direto para o rancho, ao que ela o lembra que teve que se hospitalizar por dez dias em consequência do espancamento que sofrera dele após Rick ter mentido em relação à sua fidelidade.
Depois de fazer uma aposta, Linda visita Matt, ocasião em que este lhe pede para que lhe consiga uma espingarda. Embora desenvolvendo certa afeição por ele, ela lhe diz ser muito egoísta para ajudá-lo, voltando em seguida para o
Horseshoe. Lá, ao se encontrar com Lee, ela pede que ele lhe fale sobre o incidente que resultou na morte de Catherine. Ao saber de detalhes, indignada, Linda joga sua bebida no rosto dele e se retira. Enquanto isso, Craig sobe ao quarto de Matt para uma conversa cara-a-cara. Embora acredite que ele esteja pedindo honestamente pela vida do filho, Matt vê, através de um espelho, que dois de seus capangas estão tentando se aproximar pelo corredor. O Delegado habilmente os acerta, mas se abstém de matar o amigo.
Ao verificar que ninguém na cidade se dispõe a ajudar Matt, Linda decide levar a espingarda que ele lhe pedira. Em seguida, Lee ateia fogo no hotel e, enquanto os homens de Craig tentam apagar as chamas, já que a vida de Rick fica seriamente em risco, Matt o algema em um de seus braços e, com a espingarda plantada sob o queixo do assassino, desce as escadas e caminha lentamente para a rua. Ao ver a situação do filho, Craig ordena a todos que não disparem um único tiro. Lee, no entanto, desobedece à ordem e decide enfrentar Matt, disparando contra ele, mas atingindo mortalmente Rick, sendo simultaneamente morto por Matt.
Abraçado ao corpo do filho e completamente arrasado, Craig desafia Matt para um duelo final. Apesar de o Delegado lhe dizer que o assunto já está resolvido, ele insiste e, no embate que se segue, Craig cai mortalmente ferido. Pouco antes de morrer, ele diz ao amigo que cuide muito bem do filho Petey. Em seguida, Matt embarca no trem de volta à Pawley, quando troca um olhar de relance com Linda.
20/09/25
Revólver de um desconhecido, Chuka, Gordon Douglas, 1967
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CHUKA (O REVÓLVER DE UM DESCONHECIDO) – WESTERN COM ROD TAYLOR, 11 de janeiro de 2015
O ator australiano Rod Taylor, nascido em Sidney em 11/1/1930, fez carreira nos Estados Unidos e alcançou relativo sucesso no início dos anos 60. Após atuar como coadjuvante em inúmeros filmes, Rod estrelou “A Máquina do Tempo” em 1960, seguindo-se “Os Pássaros”, um dos ais famosos thrillers de Alfred Hitchcock. Simpático e viril, o australiano foi por duas vezes galã de Doris Day e escolhido para estrelar “O Rebelde Sonhador”, filme iniciado por John Ford e concluído por Jack Cardiff. A essa altura de sua carreira Rod Taylor decidiu criar sua própria produtora e escolheu um faroeste intitulado “Chuka” como o primeiro filme a ser por ele produzido. Rod havia atuado, em 1955, em “Ágil no Gatilho” (Top Gun), pequeno western de Ray Nazarro estrelado por Sterling Hayden. Já nos anos 70 Rod Taylor passou a atuar mais em filmes de aventuras, retornando vez ou outra aos faroestes como em “Os Chacais do Oeste” (The Train Robbers) com John Wayne e “Fúria no Sangue” (The Deadly Trackers), ao lado de Richard Harris. “Chuka” recebeu no Brasil o título “O Revólver de Um Desconhecido”, tendo sido dirigido por Gordon Douglas e lançado em 1967. A partir do ano 2000 Rod Taylor passou a atuar cada vez menos e seu último trabalho foi em “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino, filme em que Rod interpretou Winston Churchill. Rod Taylor faleceu no dia 7 de janeiro último, quatro dias antes de completar seu 85.º aniversário.
Cerco motivado pela fome - Richard Jessup, o autor da história e do roteiro de “Chuka” inspirou-se, sem dúvida em filmes como “O Sabre e a Flecha” (Last of the Comanches) e nas versões para o cinema do cerco do Álamo. Assim como nesses filmes, alguns civis são forçados a permanecer em um forte prestes a ser atacado por inimigos em muito maior número, no caso de “Chuka” índios Arapahoes. Chuka (Rod Taylor) é um pistoleiro de passado obscuro que, diante da fraqueza do Coronel Valois, (John Mills) comandante do Forte Ciendennon, assume a liderança dentro da fortificação. O ano é o de 1876 e os Arapahoes não estão em guerra contra os brancos, mas sim famintos e tudo que querem é saciar a fome saqueando o forte. Chuka sabe disso e diz ao Coronel Valois que entregar comida e armas para os Arapahoes é a única saída para ele pois o forte dispõe de apenas duas dezenas de soldados. Valois entende que aceitar a sugestão de Chuka é infringir o Regulamento Militar, e acaba sendo vítima de um motim por parte da pequena tropa que se sabe incapaz de enfrentar os índios. Chuka consegue acalmar os amotinados mas o enfrentamento desigual leva à destruição do Forte Ciendennon. Apenas Chuka e a jovem mexicana Helena Chavez (Victoria Vetri) são deixados vivos.
Clichês, clichês e mais clichês - “Chuka” é um verdadeiro álbum de clichês em que não faltam o comandante cruel e desumano; o estranho corajoso e digno, ainda que seja ele um pistoleiro com histórico de muitas mortes; o sargento violento e irascível (Ernest Borgnine); duas mulheres delicadas e aristocráticas que sabe-se lá por qual razão atravessam território hostil numa diligência; claro que o pistoleiro e uma das mulheres se enamoram para que a história tenha um toque romântico; se o leitor pensou no excêntrico batedor, acertou pois ele também está na história, quase sempre com uma garrafa na mão; e há a amizade e respeito que o pistoleiro consegue num momento fortuito em que encontra o chefe Arapahoe; e que não se pense em um chefe índio como o ‘Cicatriz’ de “Rastros de Ódio” (The Searchers), por exemplo, pois o bravo Arapahoe é capaz de arrancar mais suspiros das espectadoras que o próprio Chuka. Filmes podem, é certo, fazer referências a clássicos sem, no entanto, perder a linha narrativa própria, o que não é o caso de “Chuka”. Dirigido por Gordon Douglas – aquele que em cada 20 filmes acerta em um – o western produzido por e para Rod Taylor chega a ser até divertido na previsibilidade das ações da história.
Do Sudão para o Oeste - Para se assistir a “Chuka” é necessário, inicialmente que o espectador aceite que um oficial do Exército Britânico que tenha lutado no Sudão e tenha sido expulso do Exército de Sua Majestade por covardia, acabe como comandante de um forte da U.S. Cavalry. É o caso do Coronel Valois (John Mills), que, não bastasse essa implausibilidade, é um homem atormentado, especialmente por ter sido mutilado em sua genitália no Sudão. E acompanhou Valois nessa trajetória internacional o rude Sargento Hansbach (Ernest Borgnine), a quem Valois teria, num ato de coragem, salvado a vida numa batalha no Sudão. Hansbach, por uma dessas incríveis coincidências, também esteve lutando por lá e sempre sob o comando do refinado Valois que admira igualmente bons vinhos e mulheres bonitas. O Coronel Valois convida a elegante Señora Veronica Kleitz (Luciana Palluzzi) para jantar, ele que se diz cansado de apenas se alimentar. Vinhos e brandy são servidos no jantar em que Valois resolve destilar seu ódio pelos seres humanos ‘normais’ humilhando a todos que estão à mesa, exceto as duas convidadas. E patético é o servilismo do Sargento Hansbach, mesmo diante da crueldade e inconsequência de Valois.
Reduto de covardes - Mas o filme não é do Coronel Valois e sim de Chuka e para isso Rod Taylor se esmera em fazer a mais áspera voz de homem do Oeste, como se a voz refletisse coragem e determinação. E coragem é o que não falta a Chuka, seja para enfrentar o brutamontes Sargento Hansbach ou para resgatar o batedor Trent (James Whitmore) em poder dos índios. E não é que os brutos também amam mesmo, pois Chuka ainda está loucamente apaixonado pela Señora Veronica, a quem já conhecia (e tome coincidência) de outros tempos. É explicado que a moça se casara por interesse fazendo com que o desprezado Chuka iniciasse sua vida itinerante de pistoleiro. Confuso o roteiro? Para o Forte Ciendennon parece que foram enviados quase todos os covardes da Cavalaria norte-americana pois além do próprio Coronel Valois, outros oficiais tem em suas fichas atos de covardia. O Major Benson (Louis Hayward) não é citado por covardia, mas sim por ser um desonesto jogador de pôquer e, pior ainda, mantém como amante no forte uma bela índia Arapahoe. E Chuka é o homem sobre quem recaem todas as esperanças de salvação, até o inesperado final deste filme do inefável Gordon Douglas.
Western de final aberto - Nos anos 60 os faroestes foram se tornando mais e mais amargos e os heróis pareciam envergonhados de serem assim chamados, assumindo a condição de anti-heróis. Amorais e mercenários, lhes restava quase sempre uma dose mínima de honradez e assim é com Chuka que apenas aceita ajudar a salvar o Forte Ciendennon pelos 200 dólares (adiantados) que recebe do Coronel Valois. E para que Chuka quer esse dinheiro? Para reconstruir sua vida ao lado da amada e agora disponível Señora Veronica. Mas os faroestes se tornaram amargos e Veronica é morta quando do ataque dos Arapahoes. Chuka protege então a Señorita Helena, apontando-lhe o revólver à cabeça quando o chefe índio Hanu (Marco Lopez) os descobre escondidos ao fim do massacre. Chuka jamais permitiria que a jovem caísse em mãos dos Arapahoes e ambos são deixados à própria sorte por Hanu. ‘Western moderno’, “Chuka” tem final aberto, como era moda naqueles anos e o mistério se instala com o relatório feito pelo Capitão Foster (Ford Rainey). O capitão deixa no ar o que poderia ter acontecido, pois do pistoleiro Chuka apenas o revólver foi encontrado. E assim como havia feito John Ford em “Crepúsculo de uma Raça” (Cheyenne Autumn), o cinema revisa a ‘selvageria’ dos índios que apenas queriam sobreviver, direito que os brancos com a Cavalaria à frente sempre lhes negou.
Clímax chocho - Filmado quase que inteiramente em estúdio, “Chuka” não propicia ao espectador sequer a tão comum beleza das paisagens do Oeste com suas pradarias, rios e montanhas. Pior ainda, o clímax do filme que seria o ataque mortal dos Arapahoes dura menos de dois minutos sem a menor dramaticidade comum nesse tipo de sequência. Duas coisas devem ter faltado: dinheiro para uma produção melhor e inspiração para o sempre pouco inspirado Gordon Douglas. Durante o ataque Chuka é trespassado por uma lança que lhe fura o abdome. Morte certa para qualquer mortal, mas Chuka consegue retirar a enorme lança que aparentemente não produziu muitos estragos no pistoleiro. Incomparavelmente melhor que a sequência da batalha final é a briga entre Chuka e o Sargento Hansbach, com duração até maior que o ataque Arapahoe ao forte. Ernest Borgnine e Rod Taylor evitaram até onde puderam a substituição por dublês e travam uma encarniçada luta que se transforma no grande momento do filme. Luta sem vencedor, ou melhor, em que sai vencedora a amizade e respeito entre os dois exaustos homens. Ah, já vimos isso muitas vezes no cinema e o leitor deve estar lembrando de “Da Terra Nascem os Homens” (The Big Country) com a luta entre Charlton Heston e Gregory Peck. E, sem dúvida, de “Depois do Vendaval” (The Quiet Man) com a interminável e inesquecível briga entre John Wayne e Victor McLaglen.
Rod Taylor matando de riso - Rod Taylor se esforça o quanto pode em “Chuka” para entrar para a seleta lista dos grandes canastrões do cinema e merece menção honrosa. Rod não nasceu para faroestes e a sequência em que ele desesperado após a morte de Veronica atira com seu revólver contra os Arapahoes é de matar de riso. O excelente John Mills cria um afetado e desatinado comandante, mas o problema é que nada em “Chuka” é convincente. Ernest Borgnine repete mais uma vez o tipo repulsivo-simpático que interpretava melhor que ninguém no cinema, isto desde sua inesquecível criação como o Sargento Fatso em “A Um Passo da Eternidade”. Assistir Borgnine vale qualquer filme, mesmo que seja dirigido por Gordon Douglas. Luciana Paluzzi desfila seu belo e impassível rosto pelo filme que tem ainda James Whitmore e Louis Hayward. O ótimo Whitmore é um desses atores que passaram a vida inteira à espera da grande oportunidade, ficando no mais das vezes relegado a papéis inexpressivos como o do batedor em “Chuka”. Louis Hayward, num de seus últimos trabalhos no cinema é uma lembrança do espadachim de tantas aventuras dos anos 40 e 50. Mas só isso.
Diretor sofrível e burocrático - Após assistir “Chuka” é inevitável a reflexão de como pôde esse mesmo diretor – Gordon Douglas – ter filmado “Rio Conchos” três anos antes, este sem dúvida um dos grandes westerns dos anos 60. Os tantos filmes fracos de Douglas atestam ser ele um diretor sofrível e burocrático e “Chuka” é exatamente isso: sofrível e monótono. Ponto negativo na carreira de Rod Taylor que será sempre lembrado como um ator correto que se sentia muito melhor em filmes de guerra ou conquistando com sua simpatia as leading-ladies. Por Darci Fonseca
20/09/25
O último azul, Gabriel Mascaro, 2025
O ÚLTIMO AZUL - um black mirror brasileiro | Crítica
Denise Weinberg fala sobre "O Último Azul"
CRÍTICA | O Último Azul, de Gabriel Mascaro (Idem, 2025) por Henrique Debski
A distopia de O Último Azul nos leva em uma viagem sensível pelo Rio Amazonas através dos olhos de Tereza, com a redescoberta da vida na terceira idade.
Recentemente, temos acompanhado, até mesmo no cinema comercial, uma expansão dos olhares em busca de histórias mais variadas, dando voz a parcelas da sociedade outrora esquecidas (ou até ignoradas) pela sétima arte. Ainda que as pessoas idosas estejam no dia a dia de todos nós, e muitas vezes dentro de nossas próprias casas, é interessante pensar em como a produção cinematográfica, durante muito tempo, os renegou o protagonismo em suas narrativas.
Já há alguns anos, porém, isso tem se alterado. Nos anos 2010s, foram muito comuns ao cinema norte-americano comédias que reuniam grandes veteranos para alguma “última vez” – é só nos lembrarmos de A Última Viagem a Vegas (2013), Despedida em Grande Estilo (2017), Do Jeito que Elas Querem (2018), dentre outros. Já nos últimos anos, então, tem-se ido além, ao se tornarem ainda mais comuns também dramas que buscam pelo olhar da pessoa idosa – Meu Pai (2020) foi um grande exemplo disso. Mais recentemente, a comédia dramática Thelma (2024) concedeu à veterana June Squibb, aos 93 anos, a oportunidade de protagonizar um longa-metragem; e no cinema brasileiro, Domingo à Noite (2024) e Vitória (2025) tratam-se de bons exemplos.

Nesse sentido, O Último Azul, orgulhosamente vencedor do Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri, no Festival de Berlim (2º lugar da Mostra Competitiva), explora uma realidade distópica, de um Brasil que decide rejeitar os cidadãos da terceira idade, por considerá-los improdutivos e contraproducentes, impondo cada vez maiores restrições com o chegar da idade, culminando no encaminhamento às ditas “colônias”, onde podem finalmente, nos últimos anos de vida, apenas “descansar sem se preocupar”.
Na contramão de um thriller que facilmente poderia ser extraído de tal premissa, o longa de Gabriel Mascaro não busca pelos momentos de tensão perante o espectador, mas conduz sua narrativa no caminho de uma aventura sobre fuga e liberdade, com elementos fantásticos dignos de William S. Burroughs (e que até lembram da recente adaptação de Queer).
O estabelecimento dessa realidade distópica constrói-se na base da desilusão de sua protagonista, Tereza, que percebe o fim da linha de sua vida, e da impossibilidade de realizar alguns desejos frente às políticas governamentais. Sua demissão forçada do trabalho, ao qual dedicou a maior parte de sua vida, as “honrarias” que recebe publicamente do Estado e aos procedimentos burocráticos aos quais é obrigada a se submeter em razão da idade são uma forma de demonstrar a humilhação de um governo que não se importa com seu bem-estar, mas que a todo custa a provoca para que, mais facilmente, ceda ao último passo do “extermínio da terceira idade”, com o envio às ditas “colônias”, as quais, ainda que nunca vejamos, soam como uma espécie de campo de prisioneiros, para não dizer “concentração”.

Todo esse processo de constantes provocações (sem ainda mencionar o terrível carro “cata-velho”, como se fossem animais na antiga carrocinha) ao espectador, que na prática crítica, de maneira escancarada, uma desídia governamental com a população idosa, o que por vezes vale para nossa realidade brasileira, inclusive, é suficiente para que nos aliemos a Tereza em sua fuga do mundo como conhece para passar o final de sua vida explorando espaços que nunca percorreu, conhecendo novas pessoas, compartilhando histórias, conhecimentos, experiências, e sobretudo, conhecendo novas sensações que, por razões financeiro-sociais, nunca foi capaz de pensar.
Existe todo um ar de peso e solidão carregados pela personagem Tereza, os quais o excelente trabalho de Denise Weinberg sintetiza e dá vida com o olhar cansado, e mais ainda, decepcionado com a sua realidade, e o ponto em que sua vida chegou, ao ser “aprisionada”, pelo Estado e pela própria família, justamente quando encontra a oportunidade de desbravar a terra em que morou desde que nasceu, mas que nunca teve a oportunidade de efetivamente viver nela, quando sempre dedicada aos cuidados da filha e a levar dinheiro para casa.
Para além dessa jornada de amadurecimento da terceira idade, de redescobrimento da vida e do próprio lugar onde viveu – que estabelecem um paralelo interessantíssimo com as aventuras “coming of age”, protagonizadas por pessoas jovens, inexperientes, desbravando a vida, como uma espécie de contraponto –, Gabriel Mascaro também direciona o olhar para uma região pouco explorada do país no cinema nacional: o Norte, e especialmente, o Rio Amazonas.
Transformado em um personagem, o cenário nortista amazonense escanteia os carros e coloca, em seu lugar, as embarcações, fazendo da água um novo asfalto, e explorando pela imagem a imensidão da natureza, eterna, frente à fragilidade do ser humano e suas relações, para com o mundo, entre si, e sobretudo, com a terra em que se pisa.
Apesar de seu desfecho repentino, O Último Azul é um filme cujo maior mérito, para além da sensibilidade, é a maneira como nos deixa pensando – o que faz o encerramento muito bem se justificar. Ainda que o ambiente distópico sirva apenas como pretexto para uma aventura pessoal de redescoberta da vida após a chegada na terceira idade, é como se ilustrasse, de maneira óbvia, o que na prática acontece com muitas pessoas, ao tornarem-se idosas e serem abandonadas pelas famílias em casas de repouso, quando anda poderiam cuidar de si e das próprias vidas. É um drama aventuresco sensível que procura não apenas a visibilidade ao tema, mas reflexões, para que pensemos em nossa maneira de viver, e readaptemos para aproveitar a vida em todos os seus estágios, sempre que possível, em um diálogo profundo com todos os públicos, de todas as idades.
21/09/25
Paixão dos fortes, My Darling Clementine, John Ford&Lloyd Bacon, 1946
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Paixão dos Fortes recria o famoso episódio do duelo em OK Corral, envolvendo os lendários Wyatt Earp e Doc Holliday. Por Eduardo Kaneco, 10/09/2021
O enredo
A história acontece num período de poucos dias em 1882. Wyatt Earp já era um nome respeitado como xerife de Dodge City. Mas, ele dá uma pausa nessa função para levar uma manada de gado para a Califórnia junto com três irmãos seus. Perto de Tombstone, Wyatt e os mais velhos vão à cidade se divertir, enquanto o caçula fica com o gado no campo. Quando retornam, descobrem que alguém assassinou o rapaz e roubou a manada.
Então, Wyatt resolve aceitar a oferta para ocupar o cargo de xerife em Tombstone, para assim descobrir quem é o responsável por esse crime. Lá, conhece Doc Holliday, o charmoso dono da jogatina local, de caráter duvidoso.
Direção
John Ford conta com os recursos de produção de um grande estúdio, a 20th Century Fox. Isso, de cara, lhe garante três nomes famosos no elenco. São eles: Henry Fonda como Wyatt Earp, Victor Mature como Doc Holliday, e Linda Darnell como Chihuahua, a namorada mexicana deste último. Além deles, Cathy Downs faz a Clementine do título original.
Essa liberdade orçamentária permite a Ford trabalhar com vários elementos, e, assim, compor um filme com vários tons. Logo nos créditos iniciais, escritos criativamente em placas indicativas de madeira, ouvimos uma canção animada da época do Velho Oeste. Em seguida, o filme apresenta os irmãos Earp, em conversas descontraídas.
Esse tom jocoso continua na visita noturna a Tombstone. Então, quando os irmãos retornam e descobrem a tragédia que vitimou o caçula, o filme provoca um forte baque, pelo contraste do clima nessas cenas. Na tela, surgem agora sombras soturnas, heranças do cinema expressionista.
Ao longo do filme, as alternâncias entre momentos leves e sombrios continua. Aliás, essa característica reflete o personagem Doc Holliday, cujo comportamento parece sempre contraditório. Em alguns momentos, ele parece charmoso, gentil e leal. Em outros, um bêbado traiçoeiro. Dessa forma, se torna o personagem mais interessante do filme, pois é uma pessoa complexa, um médico diplomado que perde o rumo e vira um jogador com a saúde fragilizada. Já Wyatt Earp representa o oposto, um símbolo da retidão.
Clímax
Além da influência expressionista, ou em parte decorrente dela, Ford pontua o clímax do duelo no OK Corral com uma genial substituição das névoas do film noir pela nuvem de areia do deserto. Com esse recurso, ele deixa em suspense o destino do herói, após a troca de tiros.
Paixão dos Fortes, principalmente, pela sua alternância de tons, nunca cansa, mesmo que você conheça a história de Wyatt Earp e Doc Holliday, aqui modificadas por Ford. Afinal, estamos diante de um faroeste supremo.
22/09/25
Papa, Papa Hemingway in Cuba, Bob Yari, 2015
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Hemingway protagoniza o degelo cubano. O filme 'Papa' é o primeiro a ser filmado na ilha depois de 50 anos do embargo econômico
Natasha R. Silva, Madri - 30 DIC 2015
55 anos depois, Ernest Hemingway voltou a Cuba, seu lar durante três décadas. Com um talento especial para as palavras, as festas e a bebida, o escritor norte-americano que marcou a literatura mundial e gerações inteiras de escritores e jornalistas regressa ao centro da história como fio narrativo do filme Papa, o primeiro a ser rodado na ilha depois de mais de 50 anos do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos.
Hemingway viveu em Havana durante três décadas, antes da eclosão da Revolução liderada por Fidel Castro, em 1959. Lá ele tinha seu bar favorito, La Floridita. A 25 quilômetros da capital cubana, em San Francisco de Paula, ficava sua casa, a famosa Finca Vigía, agora um museu. No entanto, o escritor teve de abandonar a ilha em julho de 1960, um ano e meio depois da vitória da Revolução, devido às tensas relações diplomáticas entre o Governo de Washington e o cubano. Papa conta os três últimos anos de vida de Hemingway (interpretado por Adrian Sparks, que já havia interpretado o escritor em uma obra apresentada em 2005, em Los Angeles) através dos olhos de um de seus grandes amigos, o então jornalista do The Miami Herald Denne Bart Petitclerc, autor do roteiro do filme (interpretado por Giovanni Ribisi). Esses três anos foram muito obscuros na vida do escritor, que mergulhou na depressão e no alcoolismo e acabou cometendo suicídio um ano depois de deixar Cuba, em 1961.
Petitclerc morreu em 2006, quando o filme ainda estava em produção. Foram anos de negociações com o Governo dos Estados Unidos e o de Cuba para conseguir as autorizações necessárias para gravar na ilha caribenha. O diretor e produtor de Papa, Bob Yari, conta que o processo levou mais de quatro anos e culminou com uma autorização com restrições também no orçamento, que tinha um limite de 150.000 dólares, um orçamento muito baixo para qualquer produção não de Hollywood, mas do resto do mundo. “Era muito importante para mim poder gravar em Cuba”, diz Yari. “Não seria autêntico gravar em outro lugar”.
Os contínuos obstáculos que surgiram pelas questões políticas entre dois Governos que não tinham relações diplomáticas não desanimaram o diretor. A burocracia que teve de enfrentar para levar Hollywood para Cuba desapareceu assim eu pisou na ilha, onde filmaram em todos os lugares que Hemingway frequentou. “O Governo cubano foi muito amável durante todo o processo. Inclusive nos deixaram filmar em lugares bastante restritos, como o museu”, observa o diretor. Segundo ele, também houve uma boa integração entre os membros da equipe, composta por norte-americanos e cubanos. “Tivemos uma grande equipe de profissionais cubanos extremamente talentosos. O que existe é uma diferença de ritmo, pois eles não estão acostumados com o nosso estilo de produção”, disse Yari.
Papa consolidou seu papel como um filme quase simbólico do degelo entre os EUA e Cuba, que acaba de completar um ano, ao estrear no dia 11 de dezembro no Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, três meses antes de chegar aos cinemas norte-americanos. O resultado final foi visto por uma sala cheia de espectadores, entre os quais estava a neta do mítico escritor, a atriz Mariel Hemingway, que tem um papel no filme. “O filme revela algo desconhecido para muitas pessoas nos EUA, que é a ligação tão profunda que o meu avô tinha com Cuba”, afirmou ela depois da sessão.
O diretor de Papa, por sua vez, vê com alegria a acolhida do público cubano e norte-americano, especialmente numa data tão próxima do anúncio do degelo entre os dois países. Sobre a influência de seu trabalho no processo, afirma: “Creio que o mundo das artes pode conectar as pessoas melhor do que os políticos. Uma figura como Hemingway, que era amado por muitos nos Estados Unidos e em Cuba, é uma verdadeira ponte. Oxalá esse filme possa ajudar um pouco para que esse embargo inútil termine”.
23/09/25
O carro de Jayne Mansfield, Jayne Mansfield's Car, Billy Bob Thornton, 2012
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A young man in the 1940s raises a family in Alabama after his wife leaves him for an Englishman and moves to England. When the wife dies, she leaves a request to be brought back to Alabama to be buried, and at that point the man hasn't seen her in nearly 30 years. The two families - her original family she abandoned and her English family - meet and make an attempt to adjust to each other, with uneven results. Jayne Mansfield's Car (2012) - FilmAffinity
24/09/25
Meu vizinho Adolf, My neighbor Adolf, Leon Prudovsky, 2022
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Resenha do filme Meu Vizinho Adolf (2022, Leon Prudovsky). Por Levite
No filme “Meu Vizinho Adolf” (My Neighbor Adolf , 2022), o Sr. Polsky (David Hayman), um judeu polonês (sobrevivente do Holocausto), sobrevive solitário em uma casa velha em ruínas, localizada ao pé de uma montanha, numa remota zona rural na América do Sul (Colômbia). O velho tem como atividade rotineira cuidar da sua amada roseira de rosas negras plantadas junto a cerca de madeira que delimita seu quintal, ler jornais e outras horas jogar xadrez sobre o tabuleiro empoeirado. Todas essas atividades remetem aos momentos alegres vividos em companhia da família, cruelmente aniquilada em pleno campo de concentração e de extermínio dos nazistas alemães.
Em mais um dia monótono de sua vida, a rotina e o silêncio são interrompidos por uma mulher desconhecida e um tanto quanto agressiva (Olivia Silhavy) que o procura ao seu portão para saber se ele tem conhecimento do número de telefone do proprietário da casa ao lado, pois o imóvel parece o lar perfeito para um distinto senhor de Buenos Aires vir morar. Mal-humorado, Polsky diz não saber e dá de ombros.
Mais tarde, o senhor polonês observa, por uma fresta da cerca de seu quintal, a movimentação intensa de pessoas falando em alemão, enquanto carregam a mudança do futuro vizinho casa adentro, tudo sob as ordens daquela mesma mulher que outrora fora pedir informação – e que Polsky acredita ser advogada (da Gestapo) do futuro vizinho misterioso.
Desse dia em diante, Polsky passa a perscrutar a rotina da casa ao lado até que em uma manhã, ao ir recolher o jornal do dia, nota que um galho de uma de suas rosas encontra-se quebrado e, ao agachar para analisar, toma um susto grande que o traumatiza ao dar de cara com o pastor alemão do novo vizinho latindo a poucos centímetros do seu rosto, por entre um vão de uma tábua solta da cerca. Ao se assustar, ele acaba sujando a mão no cocô do cão, a prova cabal que revela o responsável em quebrar o galho da rosa negra.
É a partir dessa “cagada” canina em mãos que o senhor Polsky vai até o portão do vizinho, o Sr. Herzog (Udo Kier), mostrar a ele toda a sua indignação com a obra de arte orgânica produzida em domicílio, além de estragar a sua estimada roseira de tamanho valor sentimental. Adiante à discussão entre os novos vizinhos, Polsky é notificado que terá que recuar a sua cerca por estar utilizando parte da metragem do terreno pertencente ao seu vizinho alemão, no entanto a roseira encontra-se plantada no pedaço de terra que pertence ao senhor Herzog, este agora terá a responsabilidade em cuidar da planta, pois replantar em outro lugar correria o risco dela morrer.
A relação entre os senhores vizinhos fica mais áspera quando – já com a lua iluminando a noite de um final de dia agitado – Herzog vê da janela o seu papel com as instruções de cuidado com as rosas negras ser descartado pelo novo vizinho. Dominado pela raiva, devido ao desprezo com as suas orientações escritas em próprio punho, ele de novo vai tirar satisfações; no calor da discussão o óculos escuro do alemão cai do seu rosto e neste momento eles se olham frente a frente, a um palmo de distância; Polsky, imediatamente, relaciona os penetrantes olhos azuis e a expressão facial do misterioso vizinho semelhantes aos do genocida Adolf Hitler. Após a pausa dramática, Herzog recolhe o óculos do chão, o veste, esbraveja por um pouco de paz e tranquilidade, ordena que o judeu polonês se afaste do seu portão e o fecha se recolhendo para dentro de sua nova casa.
Adiante a essa cena, Polsky em um desespero aterrorizante, de quem acabara de bater de frente com um monstro horripilante, faz rápidas ligações da imagem dos olhos de seu vizinho gravada em sua memória com fotos do ditador alemão, complementada com a manchete estampada na capa do jornal de que há poucos dias o criminoso nazista Adolf Eichmann fora sequestrado por agentes do Mossad (agência de inteligência nacional de Israel) na Argentina. Essa cena é o momento de terror do filme, pois é a única vez em que o alemão espia da sua janela o judeu, que da janela dele encontra, sem querer, com os olhos azuis sem vida do suposto Hitler por entre uma tempestade torrencial, acompanhada dos lampejos dos relâmpagos. Cenografia e fotografia bem produzidas que potencializam o clima de tensão da tomada.
Agora que Polsky não tem dúvidas que Herzog é Hitler, ele vai até o consulado israelense e lá tenta convencer a inexpressiva oficial de inteligência (Kineret Peled) o que para ele já está para além de uma evidência. A oficial acredita que a denúncia do senhor é mais uma das dezenas recebidas durante os anos por cidadãos que acham ter visto Hitler e diz que ele também pode estar enganado sobre ter encontrado o líder nazista.
Depois de ser praticamente desacreditado pela oficial, o senhor Polsky tem como missão encontrar o máximo de provas capazes de convencer não só a oficial que o atendeu, mas todos do consulado israelense, de que o maior dos nazistas encontra-se ainda vivo, disfarçado com uma barba longa, de óculos de sol e morando ao lado da sua casa. Essa obsessão contumaz segue firme por mais da metade do filme.
A aproximação de Polsky com Herzog, para obter as provas contundentes, vão no final surpreender a todos e ainda colocar em discussão a importância do perdão. Querer perdoar o próximo e aceitar o perdão pode ser a paz de espírito que lavará a alma diante da não aceitação que até então o afundava em um sentimento que corrói paulatinamente corpo e alma. Pode ser o perdão o recomeço de uma vida livre do peso que o ressentimento causou sem cessar.
É nesse contexto que “Meu Vizinho Adolf” nos narra a história carregada de comédia negra dramática envolta em mistério. O diretor Leon Prudovsky nos reserva um desfecho surpreendente entre os vizinhos Sr. Polsky e Sr. Herzog, ambos brilhantemente interpretados pelos atores de longa data, tanto no campo profissional quanto na estrada da vida. A empatia que eles transmitem através de suas interpretações – principalmente quando se contracenam – é considerado um spoiler quanto ao desfecho que desembocará na relação complexa entre os simpáticos senhores de idade.
Mas calma, porque muitas pedras vão rolar até que eles se expliquem por meio das revelações contadas, em histórias passadas amargas e de imposições cruéis vividas por ambos, durante um período da história da humanidade em que muitos seres humanos passaram a ser desumanos, diante do grande poder que poucos tinham para fazer o mal ao delegar obrigações facínoras na vida de muitas pessoas inocentes que acarretaram em morte ou então em traumas incapazes de se curar por completo, não importa o tempo que passar.
O roteiro co-escrito por Dmitry Malinsky faz com que a trama caminhe por uma miscelânea de gêneros cinematográficos, onde é facilmente identificado o contexto histórico em que está atrelado – e estampado no título “Meu Vizinho Adolf”, ironicamente – onde prevalece o drama e a comédia agridoce caracterizado pela originalidade inteligente e de momentos a considerar surreais, devido ao passado dos dois personagens que estrelam este longa.
A questão do diretor ser israelense (imigrou para Israel aos 13 anos) demonstra a coragem dele no destino final escolhido para a dupla de personagens antagônicos, por motivos óbvios em grande parte do filme – até o momento em que passam a conviver por mais tempo, mesmo que de maneira muitas vezes agressivas, mas que se “acertam” quando passam a abrir caminho para o passado manchado pelos horrores de uma guerra mundial e transitar em uma conversa sincera, sendo honestos um com o outro.
Talvez muitas pessoas que tiveram familiares ou conhecidos vítimas dos campos de concentração nazistas – na sua maioria composta por judeus -, ao assistir não gostaram do resultado final em que se transformou a relação entre os personagens. É no mínimo polêmico um representante judeu que sobreviveu ao Holocausto relacionar-se amigavelmente com um “inimigo” alemão.
Prudovsky é criativo em sua direção, existem elementos inseridos em cena que fazem a conexão entre o passado e o futuro dos idosos, assim como a fotografia de Radek Ladczuk contribui para criar cores e iluminação alinhados à estética temporal. O destino criado para os personagens de “O Meu Vizinho Adolf” eleva ainda mais a importância da ação do perdão, contemplado de maneira cristalina nos momentos finais do filme, durante uma conversa franca entre os senhores Polsky e Herzog. O enquadramento fechado da câmera de Prudovsky, no momento do diálogo que antecede o desfecho final, capta as profundas expressões de emoção dos atores em meio ao brilho dos olhos marejados e carregados de sentimento desabrochando em ambos, nesta cena marcada pela busca de redenção.
Abro um parênteses aqui para destacar as metáforas utilizadas sutilmente pelo diretor em várias cenas, seja pela composição da cenografia ou pela representação expressadas pelos personagens; uma delas é quanto ao sentimento de viver preso no passado, carregado ao longo do filme pelo Sr. Polsky. No início, há uma cena em que ele faz um grande esforço para urinar (retenção urinária); lá para o final do longa – após uma conversa reveladora com o Sr. Herzog – Polsky consegue finalmente, agora aliviado, urinar continuamente.
Esta produção é uma colaboração dos países de Israel, Polônia e Colômbia; também são três o número de idiomas falados durante o filme, ouve-se o alemão, o inglês e também um pouco do espanhol. É curioso relatar aqui que os atores David Hayman e Udo Kier já tiveram a experiência de interpretar personagens semelhantes aos vividos aqui pelos senhores Polsky e Herzog: em 2008, Hayman foi uma vítima do Holocausto em “O Menino do Pijama Listrado” e no ano de 2020, Kier atuou como Adolf Hitler na série de TV “Hunters”.
Este filme é uma surpresa e tanto ainda mais no pano de fundo histórico em que o enredo está inserido. Ao assistir você nem irá notar o tempo transcorrer, pois além de ser um longa-metragem com uma história que pode parecer bizarra – se olhada por uma visão sem qualquer objetivo além do sentimento secular, mundano, o que é muito difícil, mas possível -, a presença dos atores veteranos contribuem para uma história que nos faz rir, ficar em estado de tensão, emocionar e surpreender diante do poder do diálogo e do perdão redentor. Perdoe ou aceite o perdão antes que você não tenha tempo de se arrepender. Perdoar é amar a Deus, ao próximo e a si mesmo.
Inté, se Deus quiser!
25/09/25
Uma batalha após a outra, One Battle After Another, Paul Thomas Anderson, 2025
One battle after another (Uma Batalha Após a Outra) - Crítica: um dos melhores filmes do ano!
UMA BATALHA APÓS A OUTRA - vai ser um dos grandes | Crítica
01/10/25
Conspiração e poder, Truth, James Vanderbilt, 2015
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“Conspiração e Poder”, vingança da história. Por Cloves Geraldo, Publicado 16/06/2016
Em filme sobre a deserção de George W.Bush durante a guerra do Vietnã cineasta estadunidense James Vanderbilt expõe a falência da grande mídia.
Nas sequências finais deste “Conspiração e Poder”, o famoso apresentador do jornal “60 Minutos” da Rede CBS, Dan Rather (Robert Redford), liga para a produtora do noticiário, Mary Papes (Cate Blanchett). Amargurado, ele sintetiza a história do programa, mostrando o quanto contribuiu para ele render lucros ao conglomerado Viacom, dono da emissora. Nenhuma menção à razão de ambos terem sido lançados à sarjeta: a denúncia de que George W. Bush desertara da guerra do Vietnã.
Com este recurso narrativo, o diretor-roteirista James Vanderbilt mostra que eles eram dois empregados da Rede CBS, a qual vendiam sua força de trabalho intelectual. E que ao porem supostamente em risco os interesses da Viacom e do próprio Sistema, configurado pela Casa Branca, foram sumariamente demitidos. Papes, porém, não se resignou, deu-lhes o troco ao escrever o livro “Verdade e Dever: A Imprensa, O Presidente e o Privilégio do Poder”, em que é baseado o filme, denunciando-os.
Papes, contudo, não é o tipo de jornalista que chafurda com o patrão na lama de interesses espúrios, manchando a própria imagem e reputação, para manter o emprego a qualquer custo. Vanderbilt dá-lhe a grandeza de, longe de ser heroína, enfrentá-los em seus próprios termos, sem distorcer a verdade ou mentir ao espectador. Ela já denunciara no “60 Minutos” as torturas perpetradas pelos soldados dos EUA na prisão de Abu Ghrab, no Iraque, ao submeter os prisioneiros a eletrochoques e chegara à Bush.
Bush desertou da guerra do Vietnã
O então presidente, George Walker Bush (1946), lhe oferecia a grande chance de desvendar um segredo. Candidato à reeleição em 2000, contra o democrata John Kerry (1943), ex-soldado na guerra do Vietnã, hoje secretário de Estado do Governo Obama, ele se alistou na Guarda Aérea Nacional, no Texas, em 1968, como piloto, em vez de fazer como os jovens de sua época. E escapou do campo de batalha, devido às influências de seu pai, George H. B. W. Bush (1924), ex-presidente dos EUA (1989/1993).
Em 1972, Bush não fez o exame médico anual e entrou de licença para fazer a campanha de um amigo a senador pelo Alabama. “Não há documento do comandante (da Força Aérea Nacional) de que ele foi visto por lá”. Surpresa, Lucy Scott (Elizabeth Moss), da equipe de Papes, indaga: “O presidente dos EUA desertou do serviço militar!?”. Ele só ressurgiu no Texas nove meses depois, para dar baixa e ir cursar Administração em Harvard. E nem se justificou.
Esta bomba, confirmada por sucessivos superiores de Bush na Guarda Aérea Nacional, permitem a Vanderbilt montar um leque a se abrir a cada reviravolta, seguida de novos intervenientes e dificuldades para Papes e Rather. O Partido Republicano e, claro, o próprio Bush pressionaram para que o presidente da CBS News, Andrew Heyward (Bruce Greenwood) suspendesse a veiculação da denúncia para não influenciar o resultado das eleições. O que ocorreu mostra como funcionam as corporações da mídia.
Bush troca favores com os conglomerados
Não bastasse, Heyward montou o kafkiano comitê interno para interrogar toda a equipe de Papes, inclusive o âncora Dan Rather, sobre seus interesses pela deserção de Bush. Para chefiá-lo chamaram Laurence Lampler (Dermont Mulroney), ex-membro da equipe do governo Bush, pai. As indagações foram da tendência política dela à pressão de seu pai para que aceitasse o cancelamento das reportagens. Mas, em vez de se submeter, ela desmontou a farsa do comitê e da CBS.
No entanto, os interesses em jogo eram maiores. Também o jornalista Mike Smith (Topher Grace), de sua equipe, enfrentou o chefe de produção do “60 Minutos”, Josh Howard (David Lyons):”Você não acha que a Viacom não precisa do Governo (Bush) do seu lado?” Ele se referia à lei assinada por Bush para permitir que os conglomerados de comunicação pudessem controlar até 39% do mercado de mídia. “(…) Porque é a porcentagem com que a Viacom não terá de vender nenhuma estação”.
Isto mostra a capacidade de Papes, em seu livro, e Vanderbilt, no filme, de sintetizarem a complexa interpenetração de interesses do Sistema e da Mídia nos EUA (e não só lá) para manipular a massa a seu favor. Rather, perspicaz jornalista, entendeu o jogo de interesses, mas não o verbalizou. Ela, pelo contrário, ao invés de silenciar, preferiu expor ao público as entranhas dos conglomerados e as falcatruas de Bush. Forma de vingança apropriada, pois leva-o a refletir sobre a influência da mídia.
Vanderbilt e Papes denunciam a mídia
Ao transitar de um tema político para o corporativo, Vanderbilt ampliou o foco de seu filme. Não é sobre a liberdade de expressão ou o direito do cidadão à informação, insere-se no mundo real das corporações e seu entrelaçar com o sistema, do qual é um dos pilares. Nele predomina a confluência de interesses e troca de favores, para preservar áreas de poder e de manutenção da corporação e seus lucros, via audiência e receita. Papes e Vanderbilt os tornam claros ao escancará-los no filme.
03/10/25
Malês, Antônio Pitanga, 2024
Malês, se não tem na escola, agora, tem no cinema. Antônio Pitanga
'Malês' recupera o cinema novo e entrelaça o passado e o presente
Antônio Pitanga revisita episódio esquecido da escravidão. Ator e diretor equilibra a ação com os argumentos do filme
Inácio Araújo, fsp, 30/09/2025
Malês ****
Quando Estreia na quinta. (2/10/2025) nos cinemas, Classificação 16 anos, Elenco Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Rodrigo dos Santos, Produção Brasil, 2025, Direção Antônio Pitanga
Em "Malês" existe uma espécie de eco do cinema novo, do qual Antônio Pitanga participou como ator em várias ocasiões. Claro que não estamos no cinema novo, mas o desejo de mostrar algo até hoje ignorado no Brasil e na história do Brasil está presente. Trata-se de uma revolta ocorrida na Bahia, século 19, que envolve desde a existência de escravizados de religião muçulmana até o fato de eles serem alfabetizados.
Claro, isso remete ao desejo cinemanovista de trazer ao cinema um Brasil desconhecido e, no caso, é possível supor, bem escondido. Essa conexão aparece no discurso das personagens masculinas com frequência: há um inconformismo com sua condição que se revela tanto no desejo de construção de uma mesquita quanto no desejo de se libertar o maior número de escravizados possível mediante compra.
Nesse meio, fermenta a revolta sutilmente, o que se manifesta no falar desses homens que têm, aliás, uma dicção interessantíssima.
O ator Antônio Pitanga em cena do filme 'Malês', dirigido por ele - Divulgação
Fiquemos, por ora, com a mesquita: ela encerra o desejo de transmitir ensinamentos não só religiosos aos escravizados. Ensinamentos podem ser subversivos. No caso de "viventes", vistos como pouco mais do que objetos, o conhecimento é pólvora —quer os conjurados o admitam ou não.
A ação que se desenrola é didática, mas não como princípio: não se trata de mostrar às pessoas como agir, mas de buscar reconstituir o princípio da rebeldia — causas e consequências.
No mais, é preciso dizer que Pitanga faz um filme sobre o escravagismo e consegue fugir das muitas armadilhas que um trabalho dessa natureza sugere. Apenas como exemplo, é preciso notar as mulheres brancas da história. Elas não precisam bater, gritar, nada disso, para infundirem terror. A proprietária de terras, tanto quanto a freira, basta que olhem para as pessoas para sabermos exatamente como os negros de hoje sentem o olhar do homem branco.
Há na fazendeira, papel de Patrícia Pillar, um misto de desprezo e ódio pelo outro que dispensa demonstrações de força. Basta que leve o chicote: a força já está lá e equivale à dominação absoluta. Basta vê-la, com a ameaça implícita que marca seus olhares e gestos, para entendermos do que se trata.
Veja cenas de 'Malês', filme de Antonio Pitanga
Há na freira de Ítala Nandi o desejo de ensinar as belezas do cristianismo às jovens negras que pressupõe serem ignorantes por princípio — não conhecem o verdadeiro Deus, essas coisas —, e, no limite, desprezíveis. A representação das mulheres brancas é um dos pontos fortes do filme, mas não o único. Há as negras, que pouco falam, mas pensam.
A representação da revolta dos malês pelo filme tem muito a ver com o fundo histórico com que o Brasil convive até hoje, naturalmente, mas nisso o que mais afeta a realização, o que a motiva, é o esquecimento — desse episódio histórico, para começar.
Tem a ver também com a capacidade de evocar nosso passado angustiante e entrelaçá-lo ao presente que nos assombra, do qual é parte indissociável a naturalização da violência contra os negros — e pobres em geral — no país. É disso que trata "Malês", no fim das contas.
Pitanga expõe a ação com a mesma clareza que maneja seus argumentos. Pesa ali a data, 1835, um momento que precede em anos as primeiras legislações que anunciavam a condenação final do escravismo. Não se tratava, pode-se acreditar, de uma revolta capaz de chegar à vitória, mas de um signo que dava a ver a situação insuportável que viviam. Talvez por isso mesmo ela tenha ficado tanto tempo ignorada: o Brasil sabe cantar suas belezas, mas sabe como poucos esconder suas vergonhas.
Num filme que vale pela produção bem ajustada, pela bela luz, pelo elenco muito eficiente e equilibrado — do qual impossível não notar o trabalho de Rodrigo dos Santos —, pela capacidade de Pitanga de esquivar-se das armadilhas do gênero, não há como assinalar a intromissão de uma longa cena amorosa entre Dassalu, papel de Rocco Pitanga, e Abayme, vivida por Samira Carvalho. Entende-se a provável intenção de notar o amor — carnal e não carnal — entre as personagens, mas a cena destoa do conjunto do filme e das aflições das personagens, sempre ameaçadas de serem separadas.
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Antônio Pitanga e filhos estreiam ‘Malês’, filme sobre o maior levante de escravizados no Brasil
Cineasta finalmente materializa uma ideia que tinha há mais de três décadas; Rocco e Camila Pitanga atuam no filme, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 2
Por Matheus Mans, O Estado, 02/10/2025
Há histórias que habitam o corpo por décadas antes de encontrarem sua forma definitiva. Malês, o novo filme de Antônio Pitanga que estreia nesta quinta-feira, 2, é uma dessas narrativas que fermentaram na alma do cineasta muito antes de ganhar as telas. Aos 86 anos, o veterano finalmente materializa um projeto acalentado há três décadas: contar a Revolta dos Malês, o maior levante organizado por pessoas escravizadas na história do Brasil.
“Essa história já veio com o meu povo. Meu povo foi sequestrado, escravizado”, diz Pitanga ao Estadão, lembrando como a narrativa chegou até ele através da oralidade familiar e dos ensinamentos de Mãe Menininha do Gantois, que o encorajou a buscar suas origens na África. “Essas histórias já vêm nos alaridos, na oralidade, provocando de que tribo eu vim, de que África eu vim. Não bastava ser afrodescendente”.
Foi essa busca ancestral que levou Pitanga, logo após o fim da ditadura militar, a passar quase dois anos na África. As experiências naquele continente, somadas à sua formação no Cinema Novo, plantaram a semente de Malês – um filme que levaria décadas para florescer, mas que nunca saiu do horizonte do cineasta.
Uma jornada de resistência e amor
Ambientado na efervescente Salvador de 1835, Malês narra a trajetória de dois jovens muçulmanos que são arrancados de sua terra natal na África durante seu casamento e escravizados no Brasil. Separados pelo destino cruel, ambos lutam para sobreviver e se reencontrar, enquanto se envolvem na insurreição que mobilizou a população negra, escravizada e liberta, pelas ruas de Salvador.
A revolta, encabeçada por africanos muçulmanos chamados de malês, aconteceu no final do Ramadã de 1835. Após o fracasso da rebelião, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra os negros no Brasil se intensificou. O filme de Pitanga, entretanto, não se detém apenas no aspecto trágico da história.
“Eu pude desvendar uma história que estava na escuridão e levar à luz, revelar a beleza – não de negros oprimidos, de negros vítimas, mas revelar uma história de negros que detinham a sapiência, o conhecimento”, explica o diretor. O filme apresenta africanos de diferentes nações que se organizaram com inteligência estratégica, criando uma coalizão que antecipava, em pleno século 19, ideais democráticos que ainda buscamos consolidar.
Cinema familiar e coletivo
Malês marca também um encontro geracional especial. Pitanga divide a tela e o processo criativo com seus filhos Rocco e Camila Pitanga, numa experiência que o veterano descreve como natural extensão de sua formação cinematográfica.
“A gente era envolvido com todas as áreas profissionais de um cinema. A gente queria aprender tudo”, relembra, explicando como sua experiência multidisciplinar no Cinema Novo o preparou para dirigir, atuar e conduzir a família numa mesma produção.
Para Camila Pitanga, que interpreta Sabina no filme, Malês representa mais que um projeto artístico – é um chamado à ação para as novas gerações. “É para a gente acordar toda uma juventude que se deixou se sentir desengajada, se sentir sem perspectivas”, reflete a atriz. “Se naquele momento, daquela tragédia que é a escravização, líderes malês entenderam que eram sujeitos do seu tempo, por que não a gente evocar isso agora, em 2025?”
A atriz destaca ainda a importância da coalizão retratada no filme. “Ali são líderes malês que entendem que precisam lançar mão de outras lideranças, de outros pontos de vista, de outras perspectivas, porque o negro não é ‘o negro’, ‘a negra’. Nós somos pessoas que têm desejos, entendimentos, tempos muito distintos, mas que na diferença, na convivência dessa diferença, essa coalizão tem muita força”.
Cinema brasileiro e identidade nacional
O lançamento de Malês em 2025 não é coincidência. O filme integra um movimento cinematográfico brasileiro que vem repensando nossa história e identidade nacional. Pitanga reconhece essa sincronia. “Faz um corpo maravilhoso, importante, que mostra um dos melhores momentos do cinema brasileiro, do cinema mundial”, diz, citando filmes como Ainda estou aqui como obras irmãs dessa geração.
O filme, que teve sua pré-estreia no Festival do Rio em outubro de 2024, chega aos cinemas em 2025 carregando não apenas a força de uma história pouco contada, mas também a energia de um cinema que se recusa a aceitar narrativas incompletas sobre nossa formação nacional.
“É necessário contar uma história que a história não conta, que o povo brasileiro não conhece – a nossa própria história”, resume Antônio Pitanga.