domingo, 10 de dezembro de 2023

Filmes parte 36

Thank You for the Rain, 2017, Julia Dahr

Réquiem Para Matar, Requiescant, 1967, Carlo Lizzani

A Queda da Casa de Usher, The Fall of the House of Usher, Minissérie de televisão, 2023, Michael Fimognari & Mike Flanagan

Os Fuzis, 1964, Ruy Guerra

O Homem Mosca, Safety Last!, 1923, Fred C. Newmeyer & Sam Taylor

A Queda da Casa de Usher, La chute de la maison Usher, 1928, Jean Epstein

Nyad, 2023, Jimmy Chin & Elizabeth Chai Vasarhelyi

Free Solo, 2018,     Jimmy Chin & Elizabeth Chai Vasarhelyi

Seis Mulheres Para o Assassino, 6 donne per l'assassino, 1964, Mario Bava

Alçapão Sangrento, Jack McCall, Desperado, 1953, Sidney Salkow

O Senhor das Moscas, Lord of the Flies, 1963, 

O Assassino, The Killer, 2023, David Fincher

O Homem que Burlou a Máfia, Charley Varrick, 1973, Don Siegel

As Corças, Les biches, 1968, Claude Chabrol

Deserto do Ouro, Gold, 2022, Anthony Hayes

Quando Éramos Bruxas, The Juniper Tree, 1990, Nietzchka Keene

A Pequena Vendedora De Sol, La petite vendeuse de soleil, 1999, Djibril Diop Mambéty

Hiroshima, 1953, Hideo Sekigawa

Amor Esquecido, Znachor, 2023, Michal Gazda

Alam, 2022, Firas Khoury

Terra de Deus, Vanskabte land, 2022, Hlynur Pálmason

Adoção, Örökbefogadás, 1975, Márta Mészáros

Samurai de Olhos Azuis, Blue Eye Samurai, mini-série tv, 2023, Michael Green & Amber Noizumi

Anatomia de Uma Queda, Anatomie d'une chute, 2023, Justine Triet

Amarcord, 1973, Federico Fellini

Os Dois Indomáveis, Wild Rovers, 1971, Blake Edwards

Veneno Para As Fadas, Veneno para las hadas, 1986, Carlos Enrique Taboada

Arco do Triunfo, Arch of Triumph, 1948, Lewis Milestone

Texas 1867, 7 winchester per un massacro, 1967, Enzo G. Castellari

O Mundo Depois de Nós, Leave the World Behind, 2023, Sam Esmail


25/10/23

Thank You for the Rain, 2017, Julia Dahr

Kisilu Musya 

Durante os últimos cinco anos, Kisilu, um pequeno fazendeiro no Quênia, usou sua câmera para capturar a vida de sua família, sua aldeia e os impactos das mudanças climáticas na região. Filmou inundações, secas e tempestades, mas, sobretudo, os custos humanos resultantes dessas mudanças: sofrendo com a escassez na agricultura, homens se veem obrigados a migrar para as cidades em busca de emprego e as tensões familiares aumentam. Em parceria com a cineasta norueguesa Julia Dahr, Kisilu lança luz sobre o movimento da justiça climática e a vastidão de mundos distintos que ele representa. ​ 

Há cinco anos, Kisilu, um agricultor queniano, começou a usar a sua câmera para captar a vida da sua família, da sua aldeia e os danos causados pelas alterações climáticas. Quando uma violenta tempestade une ele e uma cineasta norueguesa, vemos ele se transformar de pai em um líder comunitário e ativista no cenário global.

Nesta premiada história de esperança sobre a linha de frente das mudanças climáticas, acompanhamos Kisilu filmando inundações, secas e tempestades, e construindo um movimento comunitário de agricultores que lutam contra os impactos das condições meteorológicas extremas. Ele leva esta mensagem de esperança até às negociações climáticas da ONU, em Paris, à COP21 e às palestras em todo o mundo.

Filme disponível no streaming FILMICCA 

Thank You for the Rain 

Thank You for the Rain is a 2017 feature-length documentary film created by Julia Dahr and Kisilu Musya produced by Hugh Hartford.[1] The film follows Kisilu Musya over five years, from small scale farmer to climate activist on a global scale. The film had its world-premiere at Copenhagen International Documentary Festival,[2] and has since toured more than 80 festivals. The film has sold to over 60 countries, earlier versions of the film were bought by Al Jazeera and NRK, and screened at the 2015 United Nations Climate Change Conference in Paris. The film is a co-production between Differ Media and Banyak Films.

Five years ago Kisilu, a Kenyan farmer, started to use his camera to capture the life of his family, his village and the damages of climate change. When a violent storm throws him and a Norwegian filmmaker together we see him transform from a father, to community leader to an activist on the global stage. Thank You for the Rain is an inspiring and captivating tale of an indefatigable optimist, who nonetheless tests his limits in the fight for a greener world.

Thank You for the Rain is a collaborative film made by Kisilu Musya, a Kenyan farmer, climate fighter and video diarist, and Julia Dahr, a Norwegian filmmaker. Living in completely different parts of the world, Kisilu and Julia found each through this project, and have been working together for more than five years to complete Thank You For The Rain.

Reception

Thank You for the Rain has received acclaim by critics.[3][4] The film has won several awards including Best Documentary at the Kenyan Kalasha Awards[5] and two awards at Social Impact Media Awards[6] in 2018. The film has won 16 awards, and has competed at 28 international festivals.

Winner: Best Cinematography, Women in Film and Television, Canada 2019

Winner: Basil Wright Film Prize, Rai Film Festival, UK 2019

Winner: Best film on sustainable development, Millenium Film Festival, 2018 Belgium

Winner: Best Story, Naturvision Film Festival 2018

Winner: Ethos Jury Prize, Social Media Impact Awards, United States 2018

Winner: Best Cinematography, Social Media Impact Awards, United States 2018

Winner: The Main Prize of the Minister of the Environment, IFF Ekofilm, Chzech Republic 2018

Winner: Best Documentary Film, Kalasha Film and TV Awards, Kenya 2018

Winner: WWF Award, Thessaloniki Documentary Festival, Greece 2018

Winner: Best Movie, Nuovi Sguardi, Italy 2018

Winner: Jury Prize, Another Way Film festival, Spain 2017

Winner: Osiris FAO Prize, Agrofilm, Slovakia 2017

Winner: Fethi Kayaalp Grand Award, Bozcaada International Festival of Ecological Documentary, Turkey 2017

Winner: Jury Award, Alimenterre Film Festival, Belgium 2017

Winner: Pangolin Power Film Award, Eco Film Festival, Singapore 2017

Winner: Best Feature Documentary, FICMEC, Spain 2017

26/10/23

Réquiem Para Matar, Requiescant, 1967, Carlo Lizzani

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Requiescant (Lou Castle) é um menino mexicano que vê seus pais serem assassinados em um massacre feito pelo sanguinário George Bellow Ferguson (Mark Damon). Depois de ficar órfão, o menino é adotado por um pastor católico que o educa desde pequeno no uso de armas. À medida que Requiescant se torna adulto, ele tentará reconquistar sua irmã adotiva, que foi tirada dele quando seus pais morreram. O destino vai querer que sua irmã vá parar nas mãos de Ferguson, provocando nele um desejo de vingança que ele jamais imaginou.Nesta premiada história de esperança sobre a linha de frente das mudanças climáticas, acompanhamos Kisilu filmando inundações, secas e tempestades, e construindo um movimento comunitário de agricultores que lutam contra os impactos das condições meteorológicas extremas. Ele leva esta mensagem de esperança até às negociações climáticas da ONU, em Paris, à COP21 e às palestras em todo o mundo. (Adorocinema)

Carlo Lizzani (1922-2013) 

Lou Castel 1943 

Mark Damon 1933 

Pier Paolo Pasolini (1922-1975) 

28/10/23

A Queda da Casa de Usher, The Fall of the House of Usher, Minissérie de televisão, 2023, Michael Fimognari & Mike Flanagan

Auguste Dupin: Quando a vida te dá um limão faça uma limonada?

Roderick Usher: Não. Primeiro, faça uma campanha multimídia pra convencer as pessoas de que os limões estão escassos. Só funciona se você estocar limões, controlar o abastecimento e usar a mídia. Limão o único modo de dizer "eu te amo",  um acessório indispensável pra noivados e aniversários. Fora com as rosas. Que venham os limões. Anuncios dizendo que ela não vai transar se não tiver limões.

Traga a De Beers. Braceletes de limão edição limitada, diamantes chamados gotas de limão. Faça a Apple chamar o novo sistema operacional de OS LIMÕES.

Cobre 40% a mais por limões orgânicos e 50% por limões de áreas sem conflitos.

Encha o Capitólio de lobistas, faça uma Kardashian chupar um limão numa sex tape. Timothée Chalamet com sapatos de limão em Cannes. Use hashtags. Algo não é "legal", "maneiro" ou "incrível", e sim "limão". "Viu aquele filme?" , "Foi àquele show? Foi limão pra caralho."

Billie Eilish: "Nossa, hashtag limão"."Faça o Dr. Oz recomendar quatro limões por dia e um supositório de limão pra se livrar de toxinas, porque nada mais assustador do que toxinas. E patenteie as sementes. Crie um código genético que faça o limão se parecer com um seio e terá uma patente do gene da sequência do DNA do seio-limão.

Faça a polinização, faça a sementes circularem na natureza e processe os fazendeiros por violação de direitos quando o código aparecer na terra deles.

Sente-se, recolha os milhões e, depois, quando tiver terminado e tiver vendido seu império  por alguns bilhões de dólares você então faz a porra da limonada.

Verna Recites "The City in the Sea"

A queda da casa de Usher de Edgar Allan Poe 

O poço e o pédulo

O corvo 

O GATO PRETO 

A máscara da morte rubra 

Os assassinatos da rua Morgan 

O escaravelho de ouro 

O coração delator 

Drinque inspirado em Allan Poe combina com a data

Crítica | A Queda da Casa de Usher (2023)

Mike Flanagan com Allan Poe.

por Felipe Oliveira 29 de outubro de 2023

Marcando seu projeto de despedida no acordo de vários anos com a Netflix, Mike Flanagan retorna para inspiração de contos góticos para imprimir seu estilo de contar histórias de terror da mesma forma que iniciou com sua série inaugural, baseada no romance de Shirley Jackson, dessa vez, se inspirando na literatura de Edgar Allan Poe. Diferente das primeiras adaptações, Flanagan usa o conto de A Queda da Casa de Usher como uma sala principal que interliga outros contos de Poe, assim, a série limitada funciona como uma coletânea das obras do autor gótico, reunindo num encadeamento narrativo várias de suas histórias criadas, porém, longe de ser uma adaptação pensada para ser fiel ao seu autor, mas, talvez, essa seja uma das adaptações mais distantes e ainda criativa sobre os contos de Allan Poe.

Flanagan trata os contos, poemas e romance de Poe como referências ao seu estilo de trabalhar o terror psicológico, e isso de maneira alguma é um fator negativo – talvez para quem gostaria de ver mais das características de Poe – pois The Fall of the House of Usher entrega mais uma abordagem consistente, um adeus divertido, ao que Flanagan firmou ao longo de suas produções com a Netflix. A estrutura semelhante ao que foi vista em The Haunting of Hill House — além da fotografia azulada que carimba o olhar o frio e melancólico do cineasta —, está presente, mas, desde o primeiro momento, parecia que Flanagan se permitiu a fazer uma subversão de sua identidade, o mais próximo que veríamos de Ryan Murphy se baseando em Succession para criar sua versão de American Horror Story sobre uma família disfuncional encontrando o terror numa premissa adaptada de Stephen King, porém, é só o Flanagan se levando a sério até quando é caricato.

Mesmo quando soa como uma autoparódia ao permitir elementos diferentes a sua abordagem, Flanagan ainda surpreende pelo equilíbrio de manter a história interessante numa decupagem familiar. Há um melodrama ridículo e consciente, e o texto bebe o tempo todo de longos diálogos que se misturam com os poemas de Poe e novamente grita para parecer relevante e ácido ao tecer comentários políticos e à hipocrisia elitizada, mas indo além da comparação óbvia da dinastia em Succession, A Queda da Casa de Usher tem sua personalidade ao ser caricata e manter por perto reflexões existenciais e conflitantes em um clima de luto e o cumprir de uma predestinação punitiva em ação. O que Flanagan faz aqui é prender a curiosidade para o antes e depois dos eventos que levaram a anunciada “queda” do título e entregar um resultado inesperadamente sádico. 

Talvez, até a cena final do segundo episódio da série limitada, tudo indicava que The Fall of the House of Usher se contentaria em ser um drama sobre uma dinastia com sugestões para o terror, porém, Flanagan mostra um lado diferente do que vem trabalhado: uma violência grotesca, batidas melodramáticas e a magnífica presença de Carla Gugino interpretando uma entidade sobrenatural que garante o fim da linhagem Usher com um jogo psicótico recriando o inferno de escolhas que o levaram até ali. Com sequências longas que remete a um slasher sobrenatural, se o final cruelmente divertido com a chuva ácida foi uma boa amostra ao que Flanagan espalhou ao longo dos oito capítulos, a sequência com espelhos verdes coroa a criatividade das cenas em ver a queda de uma dinastia ser perversa e cômica, quase que reduzindo a camada existencial, como se não importasse mais já que ver a inevitável ruína dos Usher era a cereja do bolo.

Embora seja até menos Flanagan toda vez que vemos as máscaras que compõem a bizarra família Usher, o cineasta imprime os traços de Poe na presença de Auguste Dupin e na estética, como se fosse um tema para cada um dos episódios que recebe os nomes e interconecta os contos — além de citações de poemas, como de Annabel Lee — e isso veste a série com uma composição chamativa além das cores frias que referenciam a estilização habitual de Flanagan enquanto o drama, os extensos monólogos e os caos que acompanha essa família não parece realmente importar quando estamos vendo uma espécie de novo conto narrando o fim de uma dinastia, o acerto de contas após anos de impunidade. O que torna a minissérie um entretenimento cômico de terror — além de Gugino — são as performances de Willa Fitzgerald e Mary McDonnell interpretando fases diferentes da implacável Madeline Usher superando as versões destoantes de Roderick Usher — e o que dizer de Flanagan tentando recriar um momento de Annalise Keating com McDonnell tirando parte da peruca de sua personagem?

Com menos terror psicológico que Flanagan costuma entregar, a participação imprescindível de Gugino é um lembrete do que tem funcionado durante esses anos de colaboração em projetos diferentes: mesmo caricato, a hipnotizante Venna é o lado de Flanagan que não queria se despir totalmente da sua seriedade com o terror, de ser desconfortável, dramático, um pesadelo reflexivo da existência humana, nem que seja numa família disfuncional finalmente experimentando o inferno do império farmacêutico que criaram. Não temos aqui uma adaptação à estranheza, ao gótico e inquietante universo das histórias de Allan Poe, mas temos Flanagan em seu estado mais morno no que poderia fazer com o terror.

30/10/23

Os Fuzis, 1964, Ruy Guerra

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"Os Fuzis" mistura monotonia e beleza

MARILENE FELINTO, FSP, 13 de dezembro de 1995

Como grande parte da produção do Cinema Novo, o filme "Os Fuzis" (1964), de Ruy Guerra, é uma mistura de absoluta monotonia (ou pura chatice) com beleza e erudição. Isso posto, claro, para leigos, mortais que só se interessam por cinema que diverte, que prende a atenção.

"Os Fuzis" é o chamado clássico cinemanovista, que encerra em seu conteúdo o estudo ou a crítica da miséria brasileira por meio da figura do sertanejo espoliado; e que opta, no que se refere à forma, pela atmosfera estática herdada da nouvelle vague francesa.

O filme, construído em primeiros planos, expõe uma situação de agonia provocada pela seca nordestina. São rostos e expressões quase imperceptíveis retratando o ambiente de esterilidade e tensão.

Em 1963, chegava ao município de Milagres, sertão da Bahia, um destacamento de soldados, encarregado de proteger o único armazém de alimentos da cidade contra a ameaça de invasão por centenas de retirantes famintos. "Se for preciso, varro a bala toda essa região", sentencia o comandante da milícia que pinga de suor no mormaço da caatinga, buscando em vão justificativas para a missão sem sentido de tirar a comida de quem tem fome.

A narrativa segue uma constante dramática, ascendendo aqui e ali por instantes críticos, de alguma ação. Casam-se bem a ausência de vento e de movimento. Fica assim manifesta a resignação do povo cujo "único serviço" era rezar.

Enquanto os soldados vigiam, o povo reza, faz cantorias e procissões, chamando chuva, ignorando a presença da milícia e seguindo os passos de uma espécie de Antonio Conselheiro ou padre Cícero local. Na sua cegueira religiosa -não são gratuitos os depoimentos de dois cegos na história-, o sertanejo vai morrendo de fome enquanto venera um boi gordo em plena caatinga esturricada.

Os momentos de tensão instalam-se a cada tentativa de comunicação entre soldados e população local. São mundos isolados um do outro. Só há relação direta entre eles no caso amoroso de um soldado com uma moça da cidade.

Mesmo quando um sertanejo é morto por um tiro da milícia, paira a dúvida sobre se a mira teria sido em um cabrito ou no homem. Resta a imagem do homem-cabrito, sob o ponto de vista do soldado.

O mais expressivo contato entre os dois mundos é feito pelo único elemento estranho a ambos, o revolucionário, o caminhoneiro gaúcho de passagem pelo local, que se revolta contra tanta injustiça.

É exemplar a cena da caça dos soldados ao caminhoneiro, sob o latido de todos os cachorros do lugar, em que outra vez homem se confunde com bicho. Tudo muito bem encaixado e resolvido nesse filme de clima angustiante, de tomadas e fotografias precisas de uma agonia. Resta ter paciência para atravessar o mar de tédio. 

01/11/23

O Homem Mosca, Safety Last!, 1923, Fred C. Newmeyer & Sam Taylor

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Safety Last! (O Homem Mosca) – 1923

Waldemar Dalenogare

De tempos em tempos sempre vejo uma interessante discussão na internet: qual é a melhor comédia da história do cinema? Quem conhece a filmografia de Chaplin diz ser uma difícil tarefa apontar seu melhor longa no gênero que ele popularizou, mas The Gold Rush sempre é lembrado pela famosa cena do Oceana Roll Dance. Os fãs de Buster Kreaton apontam The General, que também é minha comédia favorita. A terceira via escolhe Safety Last, estrelado por Harold Lloyd como responsável por uma das cenas mais difíceis e bem orquestradas do cinema mudo de Hollywood.

A cena inicial deste longa é inesquecível! Um homem está atrás das grades. Sua família chora e é consolada por um padre. Ao fundo, podemos ver uma corda posicionada e um policial pedindo para o homem ter pressa. O que poderia ser o começo de uma história sobre uma condenação a morte ganha outros ares quando descobrimos que estamos em uma estação de trem e que tudo não passava de uma ilusão criada pelos produtores: as “grades da prisão” na verdade eram apenas barras que dividiam as sessões da estação e a corda para a forca era apenas uma pickup hoop (instrumento utilizado para dar ordem aos trens na década de 1920). As mulheres choravam porque o protagonista estava tentando a sorte na cidade grande para poder realizar o sonho de se casar com a bela moça (interpretada por Mildred Davis, que se tornou esposa de Lloyd após a produção deste filme).

Só que quando Lloyd chega em Los Angeles descobre que arrecadar dinheiro não vai ser uma tarefa fácil. Ele começa a trabalhar como vendedor em uma loja de departamentos e envia cartas para sua mulher dizendo que é o diretor geral. Até que um dia ela vai visitar seu amado e ele decide arriscar sua vida em um plano para levar 1000 dólares (o que valia quase 150 mil dólares com a inflação de 2013 americana corrigida).

O clímax está na famosa cena em que o protagonista escala o prédio da International Savings Building (ou o prédio de doze andares de Bolton, como referenciado no longa). Apesar do final ser previsível, é impossível não ser sugado para a história e acompanhar os vários problemas que Lloyd enfrenta para concluir sua tarefa e chegar ao topo. O título é um trocadilho a popular frase americana (Safety First, ou segurança em primeiro lugar). Aqui a segurança é deixada de lado. No Brasil o filme recebeu o título “O Homem Mosca” por influência do mercado de língua espanhola, que também adotou tal nome.

Safety Last! mostrou o alto nível de atuação de Lloyd. Ele adota uma postura facial nas telas muito próxima de Chaplin, com um sorriso aberto a cada confusão com um policial ou fazendo graça até mesmo em uma situação de vida ou morte. Apesar de ter feito mais dinheiro que Chaplin na década de 1920, Lloyd não se adaptou a transição dos mudos para os talkies e teve dificuldades para encontrar projetos a partir da década de 1940.

Uma comédia única! Aos leitores que ainda não viram esta pérola, recomendo ir atrás o quanto antes. 70 minutos de risadas garantidas, proporcionadas pelo terceiro gênio do cinema mudo.


02/11/23

A Queda da Casa de Usher, La chute de la maison Usher, 1928, Jean Epstein

No iutubi aqui  h

Um homem vai visitar o conhecido e estranho lorde Roderick Usher , que vive isolado numa velha casa carregado de angústia e enigmas ao lado da esposa doente. Ao chegar lá, encontra Usher pintando com obstinação o retrato da mulher. Um dia, ela morre. Enterram-na na cripta do parque. Mas Usher está persuadido de que ela está apenas adormecida. A partir daí começa uma série de fatos insólidos e misteriosos em torno da capa de Usher. Em A Queda da Casa de Usher, as personagens parecem flutuar, as cortinas são agitadas por imperceptíveis tremores, o tempo fica como que suspenso. Mas do que o fantástico, estamos no universo do sonho. O clássico da paranóia e suspense de Edgar Allan Poe foi transposto para o cinema inúmeras vezes, mas nenhuma comparada com está obra- prima da vanguarda francesa, dirigido pelo visionário Jean Epstein e tendo como assistente de direção Luis Buñuel. InterFilmes 

Nyad, 2023, Jimmy Chin & Elizabeth Chai Vasarhelyi

CRÍTICA | NYAD (2023) por RITTER FAN 

Um sonho impossível 

Diana Nyad, nadadora de longa distância que ganhou notoriedade ao, em 1974, ganhar a competição do Golfo de Nápoles com um recorde feminino (8h11m – 35 km), ao, em 1975, nadar ao redor da Ilha de Manhattan (45 km) e, em 1979, nadar das Bahamas até a Flórida (164 km), tentou, em 1978, aos 28 anos, cruzar o oceano entre Havana, Cuba e Key West, Flórida, uma travessia de 180 km, com a ajuda de uma gaiola de tubarão, mas, depois de 42 horas de esforço, foi retirada da água pela equipe médica. O longa-metragem Nyad, coproduzido e distribuído pelo Netflix, é a ficcionalização da história real da nadadora tentando novamente essa travessia nada menos do que 33 anos depois, aos 61 anos e, ainda por cima, sem a proteção da gaiola.

Com direção do casal Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, especializado em documentários sobre esportes radicais com os ótimos e premiados Free Solo e The Rescue no currículo, em sua primeira obra ficcional, Nyad é uma fascinante história real que deve quase toda sua força e valor à dupla central de atrizes, Annette Bening como a nadadora do título e Jodie Foster como sua amiga de longa data e treinadora Bonnie Stoll. E não quero com isso desmerecer a direção de Chin e Vasarhelvi, mas sim, ao contrário, saudá-la por justamente entender a importância de se focar nessas excelentes atrizes sexagenárias que continuam mostrando sua capacidade dramática, dando-lhes tempo para maturar suas personagens e a relação amorosa, mas conflitante entre elas.

O roteiro da estreante em longas Julia Cox é simples e usa a estrutura clássica dos “filmes de esporte” que Hollywood sabe fazer tão bem ao destilar a impossibilidade e a quase literal loucura do que Nyad pretende fazer, reunindo traços de obsessão, teimosia e demonstração daquela qualidade admirável, mas por vezes perigosa, que é a fusão de se recusar a admitir derrota e de nunca desistir de seus sonhos. Cox sabe criar flashbacks em momentos chave da projeção para dar estofo ao passado da protagonista, dando-se até o luxo de criar suspense nessa construção, o que aumenta ainda mais a importância do que tenta fazer, mas, assim como o trabalho de direção, a roteirista confia em Bening e Foster para darem vida a diálogos que, saindo de atrizes menos experientes, não passariam de clichês do gênero.

E as atrizes simplesmente dominam todas as cenas em que aparecem, o que é basicamente o filme todo, com Bening, ainda por cima, demonstrando um vigor e forma físicas impressionantes, sem vergonha alguma – como ela não deveria ter mesmo, mas que a sociedade em geral e Hollywood em particular em tese a força a ter – de quase que literalmente desnudar sua idade diante das câmeras, algo que, em grau menor, Foster também faz. Ou seja, além de todas as mensagens edificantes que ficam bem claras no filme, há também, em segundo plano, a discussão sobre o envelhecimento de atrizes hollywoodianas, um tabu que, ainda bem, vem sendo consistentemente derrubado por obras como Grace and Frankie e, agora, Nyad.

Mas não seria justo de minha parte ignorar a presença e a atuação de Rhys Ifans no elenco de apoio como o cuidadoso e genial navegador John Bartlett que cria as rotas marítimas para Nyad. Com aquela simpatia que lhe é peculiar – quando ele quer, claro -, o ator estabelece com muita facilidade um rapport tanto com Bening quanto com Foster, só que em níveis claramente diferentes, como se seu personagem olhasse para Nyad com uma espécie de admiração absoluta e para Foster como uma igual, em seu cuidado e seriedade com o trabalho que lhe é confiado. Os três são muito naturais mesmo em situações extremas, como a feroz discussão que Nyad e Bartlett têm ou quando o céu literalmente cai sobre a cabeça deles em uma das tentativas de travessia, com a delicada trilha sonora composta por Alexandre Desplat pontuando esses importantes momentos com grande destreza e, melhor ainda, sem parecer intrusiva, algo que, claro, foi escolha da direção durante a sincronização sonora em pós-produção.

A grande verdade, porém, é que Nyad não seria Nyad sem o espetacular trabalho da equipe de maquiagem. Assim como eu sempre costumo afirmar que a melhor computação gráfica é aquela que não conseguimos dizer com certeza que é computação gráfica, a melhor maquiagem, para mim, normalmente é aquela que duvidamos ser maquiagem. Reputo bem menos fascinante transformar, por exemplo, Brendan Fraser em um obeso mórbido em A Baleia, do que Bening depois de dezenas de horas na água, com os efeitos do sol, do sal e de criaturas marinhas em sua pele. No primeiro caso, por melhor que seja o trabalho, o espectador sabe que é maquiagem, o que costuma quebrar um pouco a imersão e, no outro, a imersão é absoluta a ponto de ser perfeitamente crível imaginar que a atriz realmente passou dias na inclemente água salgada do Atlântico.

Nyad só realmente não funciona quando a direção tenta criar suspense e perigo na travessia que saem abertamente do esgotamento físico da nadadora. E não é o caso de os perigos não terem efetivamente acontecido – não sei se aconteceram -, mas sim a maneira quase episódica como eles aparecem, especialmente a sequência envolvendo tubarões que é algo amplamente esperado na linha da Arma de Tchekhov, mas que ganha uma execução paupérrima e contraproducente em uma obra que não precisava disso. Seja como for, não há como não apreciar a direção de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, além do roteiro de Julia Cox que funcionam quase que exclusivamente como palcos para Annette Bening e Jodie Foster brilharem em uma história que por si só é imediatamente atraente.

06/01/23

Free Solo, 2018,     Jimmy Chin & Elizabeth Chai Vasarhelyi

“Mas nunca ficarei satisfeito se não tentar. Porque se fizer o trabalho todo e ainda achar que é muito difícil, talvez não seja para mim, seja para as gerações futuras. Ou talvez para alguém que não tenha razões para viver.”

Free Solo é um documentário americano de 2018 dirigido por Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin. O filme demonstra o trabalho do alpinista Alex Honnold em sua missão de escalar o El Capitan, em junho de 2017. Estreado no Festival de Cinema de Telluride em 31 de agosto de 2018, também foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto, vencendo a categoria People's Choice Award: Documentaries.[2] 

O lançamento ocorreu em 28 de setembro de 2018, nos Estados Unidos, por intermédio da National Geographic Documentary Films, levando-o a arrecadar US$ 15 milhões em bilheteria. O filme recebeu aclamação crítica, incluindo uma vitória no Oscar 2019 na categoria de Melhor Documentário. Wiki 

Homem e natureza

Marcelo Queiroz | 24 de Dezembro de 2020 

A relação entre indivíduo e meio ambiente foi, ao longo da história, se modificando. Muitos elementos de fauna e flora foram utilizados para sobrevivência e tantos outros serviram de inspiração para criar e se desafiar. A natureza teve e ainda detém poder destrutivo, como a força das ondas, do vento, de um terremoto... Mas também fornece cenários para o homo sapiens testar a si próprio, observando até onde pode ir com sua força e habilidade. É o foco de Free Solo evidenciar essa ideia. O grande personagem do documentário é Alex Honnold, cujas ações são captadas pela lente atenta tanto de Jimmy Chin quanto de Elizabeth Vasarhelyi.

Os dois cineastas se embrenham na tentativa de entender a vida que orbita a façanha daquele que escalara o grande paredão de 915 metros de altura. Falo de El Capitan, parede rochosa situada em Yosemite. Obstáculo que, desde o início, se mostra o grande fetiche de Honnold, e que será perseguido pelo mesmo até que este consiga escalá-lo sem cordas ou equipamentos de segurança. O doc vai, lentamente, desvendando toda a preparação de Alex de uma maneira bem instigante.

Inicialmente, os marcos temporais no rodapé dão a tônica de um filme que guarda clímax poderoso. A cada novo salto no tempo, concluímos como testemunhas mais uma etapa de treinamento do obcecado partícipe central. Apesar dessa gradação, o filme de Chin e Vasarhekyi não mira somente a catarse final, mas também assenta bases no seu desenvolvimento para que nos aproximemos de Honnold. Tornamo-nos íntimo dele, próximos de sua vida que, como bem explora a direção, assemelha-se a de um outsider. Honnold, apesar de não viver à margem do comportamento social típico, é bastante focado naquilo que mira, detendo um estilo de vida próprio, com crenças e valores bem evidenciados.

Em dado momento, no início do documentário, Alex é perguntado quanto ao medo da morte, quanto ao fato de a mesma sempre rondar sua atividade, digamos, radical. O mesmo responde que é no questionamento feito que mora o “espírito da coisa”. Ele sabe do extremo risco, da adrenalina que dispara a cada encaixe de pés e mãos nas fendas pedregosas. Entretanto, mesmo ciente, tem na mente uma ideia fixa. Interessante, ainda nessa ideia, que o filme mostre que não há muitas explicações para esse comportamento corajoso de Honnold, quando uma tomografia de crânio revela nele uma atividade diminuída das amígdalas cerebrais.

Enquanto em meros mortais estas são estimuladas com um mínimo de alteração nas ondas fisiológicas, em nosso protagonista é preciso uma dose cavalar de estímulo. Importante aspecto de uma direção que, além de revelar esse breve momento, ainda guarda espaço para relatos que tornem o documentário bastante intimista. A câmera é muito bem posicionada nos pequenos espaços para mostrar que, mesmo em pequenas dimensões, Honnold tenta aprimorar sua parte física. São cantos em sua van e espaços entre uma árvore e outra. Todos espaços reduzidos. Sua subsistência é mostrada numa cena que contém uma boa frase que, quando proferida, é captada de maneira certeira pelo documentarista atento: “minha alimentação hoje é chilli enlatado com ovo”. É um homem, não selvagem, mas que se vira com pouco, que não come da carne animal por uma questão bioética.

Entretanto, mesmo com várias dessas passagens que revelam um pouco de sua personalidade característica de um indivíduo com bastante autonomia e devoção à natureza que o cerca, a direção tem mérito em não tornar herói um homem que é apenas firme em suas próprias convicções. Um homem que, novamente interpelado, responde não a uma pergunta que queria conduzi-lo a um caminho sentimental. Honnold não prioriza o namoro, a paixão, sobre sua performance de risco. No máximo, trata em pé de igualdade.

A condução da dupla com a câmera na mão, contando com uma boa montagem e eficientes transições, ainda desvela o passado de Honnold, com um pai detentor da síndrome de Asperger, que falecera antes de presenciar a tour de force do filho, e com uma mãe respeitosa e orgulhosa de seu filho. No relato da mesma, a demonstração materna de uma pessoa que entende as motivações do filho e vibra com cada pé montanha acima.

Esses são alguns dos destaques de um documentário que, em seu aspecto formal, não é tão arrojado, pelo menos esteticamente. É bem preenchido com inserções ilustrativas na tela, – contendo capas de revista, desenhos das rotas na montanha – mas não foge à regra de uma lógica televisa. É um Nat Geo aprimorado para escopo maior. As cenas de abertura e as do clímax parecem feitas para a tela grande. E interessante notar como a exuberância dessas tomadas não vem de um trabalho artesanal, mas sim das próprias esculturas que a mãe natureza oferece. O fotógrafo responsável, nitidamente, soube escolher as melhores lentes para cada período do dia, visto que o filme percorre cada um deles. As cenas preparatórias para o gran finale mostram o último declínio de Honnold, antes de aceitar de vez o monstro de Yosemite, na escuridão da madrugada. O ápice vem na luz do dia, num majestoso cartão postal ensolarado. No total, quase 4 horas para que Alex escalasse todo o El Capitan.

Utilizando de vários recursos cabíveis no universo cinematográfico, dentre eles o time lapse, Free Solo ainda assim fica um pouco preso à formatação típica das telinhas. Algumas pessoas próximas a Honnold não impactam com seus relatos, mostrando que alguns minutos a menos fariam bem ao documentário. Contudo, Free Solo, além de uma experiência cativante, é uma obra que enseja reflexões. Seria anormal e isento de medo aquele que, na relação com sua própria natureza, crê em feitos quase impossíveis aos leigos? Será mesmo que Honnold é um homem cuja ambição diz respeito somente a uma satisfação pessoal? Muito embora o documentário deixe clara a resposta à essa pergunta, que sim, Alex não almeja ostentar sua proeza, fica a pulga atrás da orelha. No fundo, ele deve sentir dois pesos. O de uma baita sensação de dever cumprido e o de uma leve injeção dilatatória no próprio ego.

Free Solo (2018): proeza individual e audiovisual

William Sousa 

Nas montanhas da Califórnia fica o Parque Nacional de Yosemite, onde há um dos mais lindos vales do mundo. Ele possui formações geológicas únicas, como o “Half Dome”, uma enorme cúpula de granito de 1500m de altura, e também o impressionante penhasco chamado “El Capitán” com quase um quilômetro de paredão de pedra. Não é à toa que o lugar é um dos principais destinos para alpinismo no planeta, atraindo verdadeiros loucos por adrenalina. Alex Honnold é sem dúvida um deles e responsável por um feito inédito e de tamanha insanidade que dificilmente será superado no futuro. O experiente alpinista encarou “O Capitão” sem nenhum equipamento de proteção, contando somente com os pés e as mãos livres na modalidade conhecida como “Free Solo”. Este é o nome do impressionante documentário que gravou a intimidade, a metódica preparação e a incrível façanha quase suicida de Alex, contra a preocupação genuína de todos os profissionais envolvidos.

Realizadas pelo casal Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin (“Meru – O Centro do Universo”) com apoio da National Geographic, as imagens do documentário são em si um resultado tão miraculoso quanto a escalada, devido ao altíssimo perigo e aos desafios da produção. Nada menos que a vida de Alex dependia não só de suas habilidades físicas, mas de total e absoluta concentração. Assumir o risco de interferir e, sem querer, causar a morte do alpinista, seria devastador para a equipe participante, formada por profissionais especialistas em montanhas justamente para solucionar esses problemas. Como forma de contornar os obstáculos técnicos, foram utilizadas câmeras controladas remotamente e microfones projetados em consideração às dificuldades físicas.

Em relação à proeza registrada, é possível uma comparação com o também excelente documentário “O Equilibrista”, que relatou a caminhada do francês Philippe Petit sobre um cabo de aço entre as torres gêmeas do World Trade Center em Nova York. No entanto, “Free Solo” tem a oportunidade que o anterior não teve, que foi acompanhar “ao vivo” todos os passos de preparação para a fascinante aventura. A montagem do filme ainda propõe estudar Alex Honnold, seu passado e suas motivações, buscando pintar um retrato completo sobre sua pessoa. Morando há quase uma década numa van por praticidade, Alex dedicou a vida ao alpinismo, colocando relacionamentos em segundo plano e evitando pessoas para não ter estresses. Seu comportamento distanciado e propenso a riscos tem uma explicação científica sugerida por testes neurológicos, realizados a partir da ideia de que seria preciso algo anormal na cabeça de uma pessoa para ela se sujeitar ao desafio de escalar montanhas sem proteção.

Quanto ao quebra-cabeça psicológico construído em paralelo com a preparação e depoimentos dos profissionais envolvidos, na ausência de um crédito de roteirista para a obra, atribui-se igualmente o notável resultado ao veterano editor Bob Eisenhardt (“Nora Ephron – Tudo é Cópia”). Um clássico arco narrativo é apresentado entre os relatos em fotomontagens estilizadas e as animações tridimensionais sobre os perigosos trechos da escalada. Alex é o protagonista, seu objetivo e obstáculos são claros, e os “coadjuvantes” do filme ajudam a desenhar seu caráter. O clímax dessa história já conhecemos, mas não o caminho a percorrer nem as lições do “herói” ao final da jornada. Sua “mocinha” se chama Sanni, a metade emotiva e compreensiva namorada de Alex. E seu “ajudante” é o também perito Tommy Caldwell. Enquanto Sanni representa a imprevisível distração e a estabilidade que Alex resiste a buscar, as reações de Tommy são o melhor indício da inconsequência de encarar “El Capitán”. Caldwell tem anos de experiência a mais que o amigo, e todo o medo que Honnold não sente é visível em seus olhos.

Com vertiginosas imagens desconcertantes e uma narrativa limpa e envolvente, “Free Solo” é um impecável documentário, que só não é mais emocionante de acompanhar por causa da natural dificuldade de se criar empatia com um personagem com as condições psicológicas de Alex. Não se surpreenda, no entanto, se seu estômago congelar ao escutar sobre os perigos da escalada livre e os históricos acidentes fatais. Em certo momento, até a equipe técnica parece torcer para que Honnold desista da subida para não arriscar serem testemunhas de sua morte. Mesmo já sabendo de antemão sobre o sucesso do alpinista, é quase igual desafio tentar manter o fôlego durante esse ótimo filme.

ABOUT THE FILM 












08/11/23

Seis Mulheres Para o Assassino, 6 donne per l'assassino, 1964, Mario Bava

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CRÍTICA | SEIS MULHERES PARA O ASSASSINO

Muito antes de Jason afiar o seu facão nas numerosas incursões da franquia Sexta-Feira 13, o cineasta Mario Bava lançou o que alguns especialistas consideram como as bases do subgênero giallo: Seis Mulheres Para o Assassino, um frenético e deslumbrante horror com mortes sangrentas e bastante sensualidade.
Com roteiro assinado por Mario Bava, Giuseppe Barilla e Marcelo Fondato, o filme nos mergulha no mistério acerca do assassinato da modelo Isabella (Francisca Ungaro). Antes de encontrar violentamente a morte, a moça trabalhava no ateliê da condessa Cristina (Eva Bartok) e Max Marian (Cameron Mitchell).

É quando o inspetor Silvester (Thomas Reiner) é chamado para a investigação. Confuso diante do acúmulo de pistas que se estabelece ao longo da narrativa, o investigador terá de se esforçar para dar conta da resolução do caso (algo não muito complexo para o espectador mais atento).
Logo mais, o diário de Isabella é encontrado por Peggy (Mary Arden). Interessante observar que todos parecem interessados no material. Há, no entanto, motivações para deter os escritos da modelo. Saberemos adiante que ela era uma chantagista e que guardava segredos de todos os envolvidos cotidianamente no ateliê.

Sendo assim, de maneira épica, tamanha a grandiosidade estética do filme, acompanhamos as mortes, uma a uma, até a revelação final, elemento clássico do gênero, com o uso efetivo do que se convencionou chamar de estilo whodunit (quem matou?).  Todos são suspeitos até o momento em que morrem, pois se Isabella guardava revelações secretas de cada um, há motivações gerais para o assassinato da moça.
Esqueça os detalhes dramatúrgicos de Seis Mulheres Para o Assassino. Sabemos que sem roteiro um filme dificilmente consegue se guiar, mas no caso deste giallo seminal, o que importa e o faz sobreviver ao tempo, catapultado ao Olimpo da linguagem cinematográfica é a sua estética barroca, com elementos góticos e profusão de cores.

A câmera de Bava vagueia pelos espaços e através de um eficiente espetáculo visual, contempla cada personagem, dando ênfase aos seus respectivos comportamentos, tendo sempre como foco situá-los no espaço narrativo, através de enquadramentos que se assemelham aos mais primorosos trabalhos da história da arte ocidental.
Durante os 90 minutos, Seis Mulheres Para o Assassino nos apresenta uma história de violência excessiva (um choque para os anos 1960) mediada por uma atmosférica condução narrativa, esteticamente muito bem sucedida, mesmo que falhe nos absurdos do roteiro e nas atitudes pouco verossímeis de alguns personagens. Cabe ressaltar: poucos filmes utilizaram o vermelho de maneira tão estética e psicologicamente eficiente.

Em 1963, Bava já havia trazido o esquema whodunit para a trama de Olhos Diabólicos, mesmo ano que lançou As Três Máscaras do Medo, também conhecido como Black Sabbath, filme em três episódios em que um deles, O Telefone, flerta com os seguintes elementos: luvas de couro pretas, facas afiadas e brilhantes e bastante sensualidade, bem como o uso estético e psicológico da cor vermelha. Some o elemento narrativo (whodunit) + elementos estéticos (luvas, facas e vermelho) = giallo. Este é o resultado da equação, um estilo narrativo que ganharia a Itália nas décadas seguintes e seria trabalhado exaustivamente, tornando-se o slasher mais tarde, nos Estados Unidos.

Em suma, a trama nos oferta o que devemos considerar como as bases do terror nas décadas seguintes (1970 e 1980): um assassino em série, crimes repletos de sadismo, jovens sendo perseguidos até o encontro com a morte, geralmente criativa e absurda, além de uma trilha sonora bastante incisiva e desempenhos dramáticos questionáveis.

09/11/23

Alçapão Sangrento, Jack McCall, Desperado, 1953, Sidney Salkow

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Jack McCall é um sulista, mas se junta ao Exército da União na Guerra Civil. Quando ele é enganado para dar a localização da sede, ele é julgado como espião e condenado à morte. Ele faz boa a sua fuga, mas Hickok e Bat matam seus pais para aproveitar sua plantação e dinheiro. Tentando provar sua inocência, ele localiza Spargo após a guerra, que é pago por Hickok e Bat, de modo que Jack é novamente preso e novamente escapa. Ele ainda tem esperanças de limpar seu nome, mas Bat e Hickok agora estão atrás de ouro nas Dakotas.

10/11/23

O Senhor das Moscas, Lord of the Flies, 1963, 

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CRÍTICA | O SENHOR DAS MOSCAS (1963)

por LUIZ SANTIAGO, 19 de outubro de 2011 

Adaptação da obra de William Golding, esse filme de Peter Brook é ao mesmo tempo impressionante e assustador. A história de um grupo de crianças que sofre um acidente de avião e fica preso numa ilha deserta é trabalhada de maneira interessante pelo diretor, e pode trazer uma série de reflexões sobre poder, humanidade, maldade, etc.

No entanto, O Senhor das Moscas (1963)* é um filme inconstante no ritmo e no roteiro. A primeira parte da película é exaustivamente contemplativa, investiga cada uma das crianças e também as ações do grupo, uma atitude seguida pela montagem, que opta pelo paralelismo narrativo a fim de dar uma visão geral de ambos os grupos em diversos pontos da ilha. Num primeiro momento, o ritmo é aceito porque não conhecemos a história. Todavia, quando ela se estrutura, não há motivos para detalhar as sequências, algo que será abandonado apenas nos takes finais do filme.

O suspense e a ação, estão postos em O Senhor das Moscas a partir da mudança extrema de comportamento das crianças. Embora algumas tendências ético-morais fiquem claras desde o momento em que aparecem, os dois grupos de garotos possuem o verniz civilizacional e seguem as regras da democracia para gerir o grupo e a sua sobrevivência na ilha deserta. Mas quando crescem os interesses pessoais (a vontade de comandar um grupo inteiro), a guerra é declarada e as crianças aparentemente inocentes que vimos ao início mostram que não são tão inocentes assim. Mesmo os garotos que não são de má índole adequam-se a uma realidade imposta pelo algoz para não sofrerem maiores danos – fingem aceitar uma situação, mas preparam, em silêncio, um motim.

Diversas teorias e diversas ciências humanas e biológicas podem ser aludidas aqui e, se bem pontuado, O Senhor das Moscas pode ser um núcleo perfeito para debatermos sobre o universo dissimulado da infância.

Apesar do problema dos ritmos (externo – montagem; e interno – roteiro), O Senhor das Moscas certamente é uma ótima reflexão sobre o caráter da infância, sua dissimulação e obstinação. Vale a pena suportar a primeira parte do filme em favor do final estonteante, este sim, composto de planos, ângulos e edição perfeitos, muito bem ajustados no tempo fílmico e de uma forma imagética e dramática exemplares.

Embora boa parte das atuações não sejam perfeitas, Peter Brook consegue arrancar bons momentos de todo o elenco. A fotografia trabalha muito com contrastes, principalmente nas tomadas de conjunto dos “selvagens”, com as pinturas na pele. A repetição dos temas musicais foi um bom acerto para o filme, porque dá diversos significados ao tema e remete-nos à sensação de estarmos presos, andando em círculos, sem esperança – ainda mais em se tratando de um filme cujo tema é tão macabro quanto a trilha sonora pode sugerir. Uma obra que nos faz refletir sobre uma série de coisas, muitas delas, lamentavelmente presentes em nosso mundo atual.

Há uma versão americana desse filme, dirigida por Harry Hook em 1990.

10/11/23

O Assassino, The Killer, 2023, David Fincher

"Todos os anos, nascem 140 milhões de seres humanos. A população mundial é de, aproximadamente, 7,8 mil milhões. A cada segundo, morrem 1,8 pessoas. Enquanto que, no mesmo segundo, nascem 4,2 pessoas. Nada do que alguma vez fiz fará qualquer mossa (marca) nesta estatística. As pessoas costumam confundir ceticismo com cinismo. Na sua maioria, recusam-se a acreditar que o grande além não passa de um vazio infinito e frio."

'O Assassino': David Fincher explica como fez uma ideia batida parecer nova

Roberto Sadovski, Colunista de Splash, 22/11/2023

Alguns filmes têm a incrível capacidade de nunca cansar. Não importa quantas vezes a gente assista, sempre existe algo novo a ser descoberto. "O Assassino", de David Fincher, é um destes filmes. Rodado com precisão impecável e um inesperado senso de humor, o thriller encabeçado por Michael Fassbender teve uma breve carreira no cinema e agora está disponível em streaming - aqui em casa, ao menos, segue em alta rotação.

Exatamente por isso que, quando a turma da Netflix me perguntou se eu tinha interesse em conversar com Fincher, a resposta foi um "sim" entusiasmado. Ao contrário de boa parte das entrevistas com diretores, o papo com o diretor de "Seven" é sempre descontraído e revelador. Foi assim quando papeamos anos atrás no lançamento de "Zodíaco", e mais recentemente quando ele fez "Mank".

Na conversa a seguir - via zoom , com o diretor se desculpando por seu fundo de tela temático de "Star Trek" -, David Fincher fala sobre o processo para produzir "O Assassino", além de pérolas sobre como escolher um bom elenco, o segredo de contar uma boa história que todos de certa forma já assistimos e por que ele saiu de casa para assistir a "Assassinos da Lua das Flores" no cinema. Acredite, não há como não concordar.

Uma vez você me disse que nem sempre você consegue fugir do óbvio ao escolher seu elenco. Em "Vidas em Jogo", por exemplo, buscava um "homem de meia idade em crise", escolheu Michael Douglas. No caso de "O Assassino", Michael Fassbender sempre foi sua única opção?

Bem, vamos falar sobre Michael Douglas por um segundo. Ele não foi escalado por sua idade. Michael Douglas foi escolhido porque ele traz um tipo muito específico de raiva e um tipo específico de frustração. Se você tem um filme em que vai torturar um cara por ser ostensivamente rico, Michael é muito sagaz e pode ver além do sadismo. Ele conseguiu transformar uma situação do tipo "Um Conto de Natal para Nicholas van Orton em algo divertido. No que diz respeito a Fassbender, não sei se você viu o trabalho dele, mas ele é muito bom! (risos).

Eu diria que sim!

Sendo honesto com você, não sei se teríamos feito o filme se ele tivesse recusado. A mesma coisa vale para Tilda Swinton. Um dos aspectos que pouca gente conhece sobre a escolha de elenco é que é um efeito dominó, uma espécie de alquimia onde você busca cobrir certos aspectos do que você precisa de um personagem. Por exemplo, o papel de Tyler Perry em "Garota Exemplar" foi escrito para Alec Baldwin. Ele deveria ser esperto. Ele deveria ser suave. Ele deveria ser extremamente bem articulado. Mas eu sentia que, com um sujeito chamado Tanner Bolt, tínhamos de ter muito cuidado para preservar outro aspecto nele: ele é um bom apresentador de talk show.

Em que sentido?

O personagem de Ben Affleck deveria ser razoavelmente inteligente, certamente está sob muita pressão, e Tanner tinha de ser capaz de acalmar esse cara. Eu precisava desse elemento apaziguador. É fácil optar por alguém no estilo "O Sucesso a Qualquer Preço", o cara que diz "café é para quem fecha o negócio". Dá para ver esse sujeito no papel. Mas havia outro argumento, que acho que no final nos ajudou. Quando Tanner diz "você e sua esposa são certamente as pessoas mais fodidas na cabeça que eu já conheci", isso é simplesmente mais engraçado quando é Tyler Perry quem fala. (risos)

Fiquei curioso para saber quantas viagens vocês fizeram para filmar "O Assassino".

Viajamos para todos os lugares que você vê no filme! Começamos em Paris. Fomos para o Caribe, na República Dominicana. Filmamos em Paris por cerca de três semanas. Acho que a República Dominicana também demorou três semanas. Depois estivemos em Nova Orleans, na Louisiana, que também serviu de cenário para... (hesita)

Para a Flórida

Isso, então era Nova Orleans e Flórida na Louisiana. Depois fomos para Chicago e fizemos Nova York e Chicago, em Chicago. (risos) Então tocamos a pós produção em Los Angeles. Portanto, praticamente tudo que você vê no filme entrou em nosso cartão de milhagem. Exceto que não fomos para Nova York.

Quando você constrói um filme em torno de tantos locais, os lugares também desempenham um papel ou poderiam ser quaisquer cidades em qualquer situação?

Acho que foi importante começarmos em Paris porque é a adaptação de uma história em quadrinhos francesa. Mas não é que a locação seja essencial. A República Dominicana com certeza traz praias incríveis e um recorte de selva que pode sugerir uma espécie de refúgio exuberante e a ideia de poder se esconder, mas acho que quase todos os locais pelos quais ele viaja estão lá para ressaltar a ideia de um sujeito escondido à vista de todos.

Nada de sofisticação.

A ideia era essa. Eu não queria um Aston Martin e ele usando um terno de três mil dólares. O que temos é um cara na classe econômica, sentado no fundo com aquele chapéu ridículo, que pode ser um assassino. E não digo isso no sentido de ser absurdo! Eu gosto da ideia de que você provavelmente esbarrou nesse cara no McDonald's. Você o viu em uma loja de departamentos. Ou esperando o ônibus. Nós conversamos sobre ele escapar de Paris em um patinete elétrico! Estávamos preparados para humilhar muito esse sujeito. (risos)

"O Assassino" é seu segundo filme com a Netflix depois de "Mank". E você criou "House of Cards" e "Mindhunters" com eles. Então, qual é a maior vantagem do streaming hoje?

Acho que, antes de mais nada, você sabe que existe uma espécie de medo institucional do fim de semana na maioria dos grandes estúdios. Então não me parece um plano maluco quando alguém lhe diz que gostaria de abrir a carteira e fazer um filme com você, e esse filme ficará conosco para sempre, e não vamos gastar US$ 100 milhões em divulgação porque é aí que seremos competitivos. A ideia é concentrar no conteúdo e fazer com que as pessoas saibam que esse conteúdo está aqui. Eu não desejo essa pressão do fim de semana de estreia a ninguém, não faz sentido ganhar a vida tendo de gastar US$ 100 milhões para fazer as pessoas assistirem aos US$ 100 milhões que você gastou em uma ideia. "Clube da Luta" demorou muito para as pessoas gostarem, "Zodíaco" certamente não foi descoberto em seu lançamento inicial.

O cinema precisa respirar.

Bem, todo o processo hoje gerencia uma expectativa que não é real, especialmente quando alguns filmes são exercícios em estilo. Eu não escolhi a ideia de "O Assassino" por ser inédita. Escolhi porque as pessoas entendem que essa alegoria é uma forma de entregar uma espécie de experiência cinematográfica. A estrada é a mesma, só estamos parando para apreciar coisas diferentes no caminho. E temos um sujeito no centro disso que não é totalmente confiável. Sim, ele pode matar com qualquer uma das mãos, mas ele também é um cara que tem sua playlist, alguns problemas organizacionais e está comprometido com essas ideias que, dada sua linha de trabalho, podem não ser executáveis. Todas essas coisas foram interessantes para mim. Nós já vimos o assassino que erra e depois se torna parte dessa cadeia alimentar. Mas eu queria demonstrar o quão diferente você poderia fazer o pudim.

A cultura pop foi dominada nos últimos anos por filmes baseados em propriedades intelectuais, algo que pode ser embalado e colocado em uma loja de brinquedos. Mas esse ano tivemos "Oppenheimer" fazendo barulho nas bilheterias e "Assassinos da Lua das Flores" no centro das conversas, ao mesmo tempo que estrelas como Marvel e DC perderam parte de seu poder. Ainda existe espaço para um filme ser só um filme, com começo, meio e fim?

Sim, com certeza. Bom, eu sou a pessoa errada para perguntar, porque não vejo filmes baseados em produtos. Provavelmente sou muito parecido com você, gosto de ficar na fila e quero ouvir sugestões de alguém em quem confio e que compartilhe meu gosto. Eu fui ver "Assassinos da Lua das Flores" porque, claro, era um filme do Scorsese, e eu queria ver um western feito por um cara de Nova York. (risos).

Não é o pior dos motivos...

Eu meio que sinto que dá para ver que um filme vai funcionar já no trailer. Eu vejo um trailer pela primeira vez e penso se foi cinematográfico, se parece saber usar todas as ferramentas do cinema, mesmo que tenha sido destilado em dois minutos. E eu acho que o cinema que parece cumprir a promessa de levar o público em uma jornada é sempre o que passa do ponto de corte. A gente não queria reinventar nada em "O Assassino", e sim colocando nossa atenção nas pérolas e não no cordão. O que mantém tudo unido é menos importante para mim do que as coisas que constroem cada momento. Isso faz algum sentido? (risos)

Com certeza. Infelizmente eu tenho de encerrar. Mas antes preciso fazer uma última pergunta sobre Sophie Charlotte, a atriz brasileira que você..

(interrompendo) A adorável Sophie Charlotte!

Como você chegou a ela? Foi algum trabalho que você viu, ela enviou um teste gravado...

Ela mandou um teste em vídeo, e as coisas se alinharam. Até porque a descrição da personagem não era fácil. A gente buscava alguém que fosse essa criatura incrivelmente adorável, que deveria ter sido protegida e que foi brutalmente atacada. Foi um processo delicado, já que só a vemos curada no final, e em sua primeira cena eu queria que parecesse que ela tinha lutado quinze rounds com o Jake LaMotta.

O papel de sonhos para qualquer atriz!

Exato! (risos) Eu vi no teste da Sophie alguém realmente deslumbrante, cativante e muito divertida. Até por que é uma coisa estranha pedir a uma atriz para ela passar duas horas em uma cadeira para que possamos cobrir todo o seu rosto até ela ficar completamente irreconhecível. Sophie nunca hesitou - pelo contrário, ela ficou empolgada com a experiência.

David, é sempre um prazer conversar contigo, espero que possamos fazer isso novamente.

E eu espero fazer outro filme! (risos)

"O Assassino" de David Fincher, na Netflix: resenha 2 em versão remix 

"O Assassino" é mais profundo do que parece | ANÁLISE PSICOLÓGICA de "The Killer" (2023) Netflix

12/11/23

O Homem que Burlou a Máfia, Charley Varrick, 1973, Don Siegel

Siegel desenvolve cinema físico

INÁCIO ARAUJO

Filme: O Homem que Burlou a Máfia

Enquanto não entra "O Homem que Burlou a Máfia", o que mais se pode apreciar em alguns filmes de hoje é a arte de suas atrizes: a ostensiva Marianne Sagebrecht, em "Bagdad Café", e a discreta Isabelle Huppert, em "Os Possessos".

Mas é mesmo "O Homem que Burlou a Máfia" que fica com todas as honras do dia. A históra é a de assaltante, Charley Varrick (Walter Matthau), que despretensiosamente rouba um pequeno banco.

Ao abrir o cofre, porém, percebe que ali existe uma dinheirama. Inteligente, logo nota que tirou a sorte grande ao contrário: assaltou um banco onde a Máfia moitava seu dinheiro. Varrick sabe que com a polícia o jogo tem leis precisas e limites. Com a Máfia, não tem conversa. Seus assassinos irão persegui-lo até o fim do mundo atrás do dinheiro.

Como não há como devolvê-lo, Varrick não tem outra solução exceto a de aceitar seu destino e tentar dribá-lo. Arma-se para a perseguição.

O problema que se coloca para ele é a de um combate desigual. É desse ponto em diante que "O Homem que Burlou a Máfia" se afirma como um produto típico de Don Siegel, em que a ação tem uma natureza física acentuada. É como se o espectador sentisse, a cada cena, a pulsação dos personagens em cena. Seus gestos são dotados de uma precisão absoluta, como sinais exteriores de um raciocínio incessante.

Já se disse que este é um filme sem tempos mortos, o que é verdade. Joe Don Baker, o matador da Máfia, está disposto a não deixar Matthau em paz por um momento. Não é o único, mas é o principal de seus perseguidores.

Entre os dois se desenvolve um jogo de inteligência que terá seu ponto alto na batalha entre um automóvel (que persegue) e um velho avião (perseguido). Cada instante desse conflito de tirar o fôlego designa um gesto de pensamento, em que as honras principais cabem ao perseguido. Escapar (e sobreviver) consiste, para ele, em interpretar o mundo corretamente, antecipar-se à ação do inimigo, surpreendê-lo fazendo o inesperado.

É, em suma, assumir integralmente sua condição de homem, indivíduo, às voltas com um mundo hostil e ser capaz de superar a adversidade. É como se alterasse a célebre frase de Descartes, transformando-a em "penso, logo sobrevivo". "O Homem que Burlou a Máfia" é um desses momentos em que Siegel desenvolveu plenamente a ideia de cinema popular.

13/11/23

As Corças, Les biches, 1968, Claude Chabrol

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Crítica | As Corças – Chabrol e seu Pequeno Brilho

publicado por Matheus Fragata

Claude Chabrol já havia iniciado sua carreira no cinema em 1958, mas apesar de já ter dirigido uma parcela generosa de filmes, foi somente dez anos depois com As Corças que o famoso francês atingiu uma relevância que não parou de crescer, possivelmente iniciando sua era de ouro profissional. Mas quem assiste a esse pequeno clássico francês, já consegue perceber os diferenciais que a obra tinha para chamar a atenção.

Mesmo sendo um filme extremamente frio e muito monótono com diversas inconsistências tonais entre o drama e a comédia exagerada oferecida por personagens irritantes, há um conceito psicológico curioso que resgata a memória dos suspenses hitchcockianos de outrora, além de oferecer um retrato intrigante sobre a bissexualidade.

Predação

Chabrol certamente traz um texto muito esquisito no primeiro segmento da obra que exala tensão sexual repleta de sensualidade. Acompanhamos a ricaça Frédérique em uma sutil andança por Paris até encontrar uma artista sem nome que diz se chamar Why. Rapidamente se afeiçoando pela jovem moça, a dondoca a convida para subir até seu apartamento. Apesar de uma rispidez inicial por parte de Why, as duas acabam se envolvendo romanticamente.

Porém, durante uma viagem à enorme propriedade de Frédérique em Saint-Tropez, o romance das duas logo finda por conta de Why se apaixonar por um arquiteto chamado Paul. Sabendo desse affair, a rica perversa rapidamente seduz o rapaz e engrena um relacionamento sério. Por conta disso, sua relação com a ex-amante logo se deteriora até se tornar uma verdadeira rivalidade.

Basicamente, a sinopse é uma porção gigantesca do filme, já que o desenvolvimento dos personagens é deixado de lado para atender ao conflito do triangulo amoroso incomodo, enquanto Chabrol pincela dicas que Why talvez seja uma pessoa mentalmente perturbada. Seu discurso marxista exibe como o rico preda o mais pobre não só no sentido financeiro, mas também em questões de amor, já que Frédérique apenas se envolve com Paul para prejudicar sua amiga.

Nesse meio tempo, há muita dedicação a personagens secundários de alívio cômico consideravelmente irritantes na figura dos empregados de Frédérique. Já a própria ricaça mais velha também desperta pouco interesse, já que o cineasta é focado nesse embate entre classes ao longo de todo o filme, apenas colocando Why como uma mulher reprimida sexualmente justo depois de experimentar uma orientação sexual mais aberta.

Sua obsessão por Paul fica ainda mais evidente quando temos uma ótima cena de voyeurismo com ela observando o novo casal tendo relações em um quarto não muito distante do seu. Entretanto, ao mesmo tempo que temos essa jornada curiosa e decadente para Why, a natureza do Cinema de Chabrol prejudica essa narrativa que necessitava de mais calor e outros riscos cinematográficos.

O cinema do diretor é bastante frio, não só pelo formato excessivamente quadrado da decupagem e dos cenários monótonos, mas principalmente pela condução dos atores que quase beiram o minimalismo já que todos mantém a mesma tonalidade de voz – além dos alívios cômicos de pouca de pouca graça que sempre estão berrando.

Isso gera uma completa falta de empatia e interesse por parte do espectador, além de termos aquelas tradicionais divagações quase incompreensíveis típicas do cinema francês que geram aquela atmosfera entediante. Chabrol também é justamente conhecido por ser um cineasta lento, mas em As Corças há um certo exagero.

Já com a câmera, certamente há elementos mais curiosos e criativos, mas quase todos se restringem a primeiro segmento da obra, na qual ele explora ângulos mais ousados e uma encenação que realmente funciona entre as atrizes. Novamente no final que há algo mais ornamentado com Chabrol realizando planos interessantes com o auxílio de espelhos para enfim atingir o ápice do seu discurso inesperado sobre identidade e da predação plena de uma classe sobre a outra.

Pontapé Fraco, mas certeiro

As Corças certamente não é o melhor longa de Chabrol por conta de diversas poluições narrativas e visuais que o diretor insiste em dedicar vários minutos que prejudicam demasiadamente o ritmo. Apesar disso, há uma história curiosa, mesmo que confusa, sobre esse estudo de ménage-a-trois misturado com o conflito marxista de classes.

13/11/23

Deserto do Ouro, Gold, 2022, Anthony Hayes

Crítica por Eduardo Kaneco

Deserto do Ouro (Gold) cabe naqueles pitching de elevador, pois sua trama pode ser explicada em menos de um minuto. Dois homens que acabaram de se conhecer encontram uma enorme pedra de outro no meio do deserto. Enquanto um deles parte em busca de uma escavadeira, o outro permanece ao lado do tesouro e enfrenta os desafios da natureza hostil. Como tema principal, está a ganância.

Para que esse enredo se torne um filme sólido, o roteiro deve criar situações convincentes de perigo. E, embora o plot seja previsível, uma armadilha difícil de contornar quando o plot é assim tão enxuto, a história é convincente. Exceto, claro, pelo tamanho exagerado da pedra de ouro, porém, se fosse menor, não representaria a necessidade de buscar uma escavadeira para desenterrá-la. Nos poucos dias em que o forasteiro, interpretado por Zac Efron, fica no isolado ponto do deserto, ele enfrenta o sol escaldante, cães selvagens, visitas inoportunas, sede e fome, e até uma tempestade de areia. Parece azar demais, mas é assim que o filme se sustenta.

Anthony Hayes

O ator Anthony Hayes, que faz o homem que sai em busca do equipamento, dirige aqui seu terceiro longa, e é coautor também do roteiro. Realiza um trabalho acima da média, em todas essas funções. Aliás, o conceito ajuda, pois é uma produção B que não exige um orçamento alto. A locação é, basicamente, uma só, o deserto do sul da Austrália, que traz lembranças do primeiro Mad Max (1979). Hayes precisa dedicar pouco tempo à atuação, pois seu personagem aparece apenas no início e no final da trama, o que libera seu tempo para dirigir.

Independentemente das condições, Hayes mostra que entende do ofício, e isso fica claro nos primeiros minutos de Deserto do Ouro, quando conhecemos o protagonista e o misterioso entorno de seu destino. Feito com planos curtos e cortes precisos, poucos diálogos, esse segmento, bem como a maior parte do filme, consegue causar apreensão no espectador.

Zac Efron

Além disso, Deserto do Ouro eleva Zac Efron para outro patamar de atuação. Ele se afasta, creio que com intenção planejada, do “rostinho bonito” que lhe garantiu o sucesso nas telas até agora. Seu personagem já surge com marcas no rosto, que pioram com a exposição ao sol do deserto, e viram feridas horríveis. Para completar, ele ainda é manco.

Mas, acima disso, Efron carrega o filme nas costas, pois atua sozinho em quase todo o filme, e, portanto, quase não fala. Com isso, precisa comunicar o que sente através de suas expressões.

Ganância

Quanto ao tema, não há novidade. Nas primeiras décadas de sua existência, o cinema já abordou a ganância em Ouro e Maldição (Greed, 1924), de Erich von Stroheim. Mas, talvez o mais memorável retrato sobre a perdição do ouro encontremos em O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, 1948), de John Huston. Deserto do Ouro não chega perto desses dois clássicos, mas não é para ser desprezado.  

13/11/23

Quando Éramos Bruxas, The Juniper Tree, 1990, Nietzchka Keene

QUANDO ÉRAMOS BRUXAS - O FILMAÇO SOMBRIO E SUBESTIMADO DA BJORK


14/11/23

A Pequena Vendedora De Sol, La petite vendeuse de soleil, 1999, Djibril Diop Mambéty

Em Dacar, vender jornais na rua é uma tarefa sempre ocupada por meninos. Certa manhã, Sili, uma jovem menina, decide desafiar essa regra exclusiva. Filmicca  

CRÍTICA | A PEQUENA VENDEDORA DE SOL

por LUIZ SANTIAGO, 30 de setembro de 2020 924 views

A Pequena Vendedora De Sol foi o sétimo e último filme dirigido por Djibril Diop Mambéty, que morreu em julho de 1998, alguns meses antes de o filme ganhar a sua primeira exibição, no Festival de Rotterdam, em 1º de fevereiro de 1999. O curta é a segunda parte de um projeto infelizmente não terminado pelo diretor, intitulado Contos de Pessoas Comuns, tendo sido iniciado em 1994 com o gracioso Le Franc. Neste Petite Vendeuse de Soleil, o diretor foca nas crianças pobres ou miseráveis que precisam trabalhar para ganhar algum dinheiro e conseguir sobreviver. Ao final do filme, ele faz a sua bela dedicatória: “à coragem das crianças de rua”.

A protagonista aqui é Sili (Lissa Balera), uma garota que tem uma avó cega e que anda pela cidade com suas muletas, pedindo esmolas. Ao observar uma grande quantidade de garotos vendendo o “jornal do governo” (Soleil), ela toma a iniciativa de também se tornar uma vendedora (“mulheres também podem fazer o trabalho dos homens, senhor!“), e então começa as suas aventuras como “vendedora de Sol” como indica o título em português. A delicadeza com que Mambéty aborda a vida dessas crianças é algo notável em dois principais sentidos. Primeiro, porque ele consegue trabalhar todas as dificuldades que crianças de favela, de rua, da periferia de Dacar sofrem, sem forçar melodrama algum para expor essa condição; e segundo, porque ele consegue tirar elementos de beleza no comportamento e no olhar para o mundo que Sili possui, sendo ela própria um verdadeiro Sol, uma voz de esperança e felicidade nesse cenário.

Viver a vida nesse tipo de ambiente é uma luta em múltiplos sentidos, e especialmente para Sili, que tem problema de locomoção e nenhum tipo de apoio familiar, uma vez que sua avó cega, que vive de esmolas, pouco pode fazer pela garota. O enfrentamento dos problemas tampouco é visto com aquele olhar cínico de “passar por cima dos problemas” como se fosse simplesmente razoável pensar em uma criança de muletas, vendendo jornal para poder não morrer de fome e sendo ameaçada por garotos na mesma condição, como sendo um “símbolo de vitória“. Sili é na verdade um dos muitos símbolos de um sistema com inúmeros braços sujos, alguns dos quais vemos aqui no filme, como a força policial prendendo sem provas e o silêncio da população quando vê algum de seus pares acusado de algo que não fez.

Sili é sobrevivente de um trágico arranjo sociopolítico. Tudo o que ela conhece é apenas essa tragédia. E nela, a garota ainda consegue sorrir. A Pequena Vendedora De Sol é um filme que faz com que a gente se apaixone pela protagonista, vibre com a bonita amizade que ela firma com Babou (Tayerou M’Baye) e que ao mesmo tempo nos coloca discutindo consequências sociais a longo prazo, por todo um continente que só conseguiu se libertar mesmo no papel. É um hino, como o cineasta bem definiu. E a coragem desses seres humanos tão novos e tão inteligentes — como no conto que Sili narra para Babou — é a matéria-prima do dia a dia para cada um deles, ontem… e ainda hoje.

15/11/23

Hiroshima, 1953, Hideo Sekigawa

A versão restaurada do clássico de Hideo Sekigawa mostra o antes e o depois do bombardeio atômico em Hiroshima, combinando um angustiante realismo documental com um comovente drama humano, em um conto de dor, resistência e sobrevivência de um grupo de professores, seus alunos e suas famílias.

O elenco desta obra essencial conta com Yumeji Tsukioka (“Pai e Filha”), Isuzu Yamada (“Yojimbo”) e Eiji Okada (“Hiroshima Meu Amor” e “A Mulher da Areia”), que aparecem ao lado de cerca de 90.000 figurantes, moradores da cidade, incluindo muitos sobreviventes daquele fatídico dia de 6 de agosto de 1945. Filmicca  

Um assassino faz o vilão. Um milhão de assassinatos faz um herói". Citado no filme tendo como referência Monsieur Verdoux (1947) 





16/11/23

Amor Esquecido, Znachor, 2023, Michal Gazda

Crítica de “Amor Esquecido”, de Michal Gazda, na NETFLIX

Amor Esquecido (Znachor – 2023)

Após perder a família e a memória, um ex-cirurgião (Leszek Lichota) tem uma oportunidade de redenção ao se reconectar com uma figura do passado.

O filme original, lançado em 1937, dirigido por Michał Waszyński, que adaptava o livro homônimo de Tadeusz Dołęga-Mostowicz, fez um sucesso tremendo na Polônia, recebeu duas continuações e uma competente refilmagem na década de 80, que é exibida com frequência na TV polonesa no feriado do Dia de Todos os Santos.

Você encontra estas obras (e as respectivas legendas em inglês) garimpando na internet, mas, infelizmente, grande parte do público, principalmente a preguiçosa e desinteressada massa moderna, dificilmente teria contato com esta bela história.

A excelente nova refilmagem, que acaba de estrear na Netflix, pode operar este milagre tão necessário nos sombrios dias de hoje, instigar o interesse pelo garimpo cultural.

O simbolismo de sua mensagem, evidenciado já nas primeiras cenas, mostrando o amor do protagonista pelos pacientes, não poderia ser mais atual, o valor inestimável do médico que abraça a causa por vocação, algo que relembra a importância de não permitir que a nobre profissão seja corrompida por esquemas criminosos, mentirosos, verdadeiramente monstruosos.

O respeitado cirurgião e professor Rafal, desorientado pela ausência da esposa e da filha, acaba sendo agredido por um bando de ladrões em um assalto, sobrevive contra todas as probabilidades, mas perde sua memória.

Nós somos levados então a acompanhar o homem, muitos anos depois, vagando como um mendigo na zona rural, ele segue sua vida iluminado apenas por uma residual sensação de propósito existencial, as suas aptidões em amenizar as dores de estranhos, ainda que inexplicáveis para ele em sua condição mental, brotam de seu coração naturalmente, evocando a poética visão da medicina como extensão do caráter no indivíduo.

É claro que a sua generosidade, a sua fama como curandeiro, vai atrair o ódio dos peões do império da dor, os canalhas de jaleco branco que entendem medicina como fonte de poder e glória, a semente do mal que destrói a preciosa credibilidade da profissão e gerou os absurdos grotescos que o mundo pôde testemunhar nos últimos três anos.

O ritmo contemplativo potencializa a dedicação do roteiro em desenvolver bem cada personagem secundário que é inserido na trama. A entrega de Lichota reforça no espectador a imediata empatia, as suas atitudes, sempre objetivando a proteção de outrem, sem pensar em remuneração financeira, sinalizam claramente o interesse da obra em resgatar no mundo o entendimento do que representa o Juramento de Hipócrates.

O eventual reencontro do pai com a filha não é uma grande surpresa, nem parece ser o foco, apenas um recurso emocionante que enaltece a linda mensagem principal.

18/11/23

Alam, 2022, Firas Khoury


Filme do streaming FILMICCA

Firas Khoury : « En hissant le drapeau palestinien, on dit que l’on existe »

Mabrouck Rachedi, 31/10/2023, Jeune afirque

https://www.jeuneafrique.com/1466567/culture/firas-khoury-en-hissant-le-drapeau-palestinien-on-dit-que-lon-existe/

Avec « Alam » (« Le Drapeau »), Firas Khoury réalise à la fois un premier long-métrage politique sur la difficile affirmation de soi quand on est Palestinien en Israël et une comédie douce-amère sur une adolescence aux élans entravés. Un film tendre et militant.

« Le début de la liberté, c’est de pouvoir hisser un drapeau. Le summum de la liberté, c’est de pouvoir le brûler. » Ainsi s’adresse Safwat à Tamer, deux des personnages de Alam (Le Drapeau), le premier long-métrage de Firas Khoury. Le début de la liberté, c’est ce que souhaite une bande de lycéens en substituant le drapeau palestinien au drapeau israélien sur le toit de leur établissement scolaire. Le jour choisi est symbolique : la commémoration de la Nakba, « la catastrophe » en arabe, qui est aussi le jour de l’indépendance en Israël.

Un combat symbolique

Tamer, Maysaa, Shekel, Safwat, Rida, chacun va s’engager pour des raisons différentes dans cette mission à haut risque. Au-delà du renvoi qui pend déjà au nez de certains élèves, c’est la prison qu’ils risquent s’ils se font prendre. Le drapeau est plus qu’un morceau de tissu dans cette ville d’Israël dont le nom n’est jamais mentionné, c’est un combat symbolique, comme le confirme le réalisateur palestinien né en 1982 à Eilabun (Israël) : « Il y a de toute évidence un problème à revendiquer son identité palestinienne en vivant en Israël. Peu importe où l’histoire se déroule précisément, elle se passe partout où il y a un problème à lever le drapeau palestinien. En le hissant, on dit que l’on existe. »

La bande des cinq ne correspond pas à l’image homogène que l’on se fait du résistant palestinien vu de France : « Je voulais montrer différentes perspectives et de la nuance dans les caractères des personnages. Tous ne sont pas engagés dans la résistance, ni dans une lutte quotidienne contre l’occupation. Parce que les gens qui connaissent une catastrophe ou une invasion continuent majoritairement à vivre leur vie. » Ainsi, Tamer, Shekel et Rida sont de jeunes hommes plus préoccupés par la drague que par la lutte.

Dans la première scène, les trois adolescents devisent sur les règles à suivre pour courtiser une jeune femme en présence de son frère. S’ils s’intéressent à Lénine, c’est parce que c’est le nom du dealer du coin. Pour caractériser le protagoniste, Firas Khoury s’est nourri de sa propre expérience : « J’ai été Tamer, cet adolescent timide, pas très sûr de ses opinions, ni de ses convictions, peureux à l’égard des autorités. Mais s’il s’agit bien de mon tempérament d’alors, tout le reste de l’histoire a été inventé. »

Le jeune homme se joint à l’opération pour séduire Maysaa, nouvelle venue au lycée. « Maysaa est intelligente, drôle et courageuse. Elle n’avance pas au regard des lois dictées par le patriarcat, mais grâce à ses idéaux personnels », décrit le réalisateur. Elle résiste aux injonctions à préserver sa « réputation », comme lorsque l’un de ses camarades lui conseille de baisser la tête dans une voiture dont elle est la seule passagère autour de quatre hommes. « Dans la société arabe, qui est la mienne, les femmes subissent énormément d’oppressions de la part des hommes. Le personnage de Maysaa incarne mon propre rêve, celui d’une société où les femmes auraient la place de s’exprimer, d’avoir une voix », confie Firas Khoury.

Réparer l’amnésie collective

La jeune femme a fréquenté le même collège que Safwat, l’initiateur de l’opération drapeau. Biberonné au militantisme tout comme ses frères, il s’enflamme contre son professeur d’histoire qui ânonne la version de l’histoire racontée par les manuels scolaires. Sa colère tient dans l’histoire familiale : ses grands-parents ont été chassés de leur village en 1948. Un événement directement inspiré de la vie du réalisateur : « Je viens d’un village qui a été victime d’un nettoyage ethnique. Tout le village est devenu un camp de réfugiés en un jour. Les villes et villages palestiniens ont totalement été vidés de leurs habitants, lesquels ont fini par travailler pour les Israéliens, dans la construction de maisons et dans les champs. Nous sommes parvenus, ma famille et moi, à revenir en Palestine. On a pu étudier l’histoire de notre terre, mais pas celle de notre catastrophe, la Nakba. » Son film répare une amnésie collective : « Je veux mettre la lumière sur cette histoire pour la confronter au récit national israélien, qui réécrit celle des populations qui vivent encore là-bas. »

Ce trou de mémoire savamment orchestré n’a pas été comblé par les anciennes générations. Les parents de Tamer, marqués par un épisode personnel, n’ont de cesse de mettre en garde leur enfant contre l’engagement politique. « Ce qui s’est passé après 1948 a été une grande catastrophe pour les Palestiniens : 80 % de cette population est devenue réfugiée ; les 20% qui sont restés en Palestine étaient dans un état traumatique et de peur. Ils ne savaient pas comment réagir face à l’occupation. La seconde génération avait peur de l’ordre établi. Elle n’a pas vraiment fait d’efforts pour s’opposer à l’establishment », explique Firas Khoury.

Donner un visage à la résistance

La résignation des parents n’a pas déteint sur la jeunesse. Sa révolte s’exprime directement, par des manifestations. Mais aussi à travers des tags, omniprésents dans le champ urbain, et la musique – du rap à « Mawtini », poème chanté qui vante la résistance palestinienne. Ces modes d’expression expriment leur état d’esprit, entre colère et aspirations : « La quatrième génération est très fière et n’a pas peur de se confronter à l’ordre établi. Je suis convaincu que c’est cette génération qui mènera à la libération de la Palestine. »

Alam est un film politique qui emprunte à la comédie. Les cinq lycéens ont tout de pieds nickelés dans leur mission, aussi touchants dans leurs intentions que maladroits dans leurs actions. Les plus résolus peuvent flancher lors du passage à l’acte. Ils portent sur leurs épaules le poids de l’Histoire mais ils continuent d’être avant tout des adolescents dont les élans se cognent au monde des adultes et aux codes de la société. « Je voulais poser ma caméra sur ces individus qui sont rarement dépeints dans les médias. Et je voulais montrer au monde que ces adolescents, que l’on a l’habitude de traiter comme des chiffres et des statistiques dans l’actualité, ont des histoires propres. C’est le réel propos du film. » La résistance filmée par Firas Khoury a un visage humain.

20/11/23

Terra de Deus, Vanskabte land, 2022, Hlynur Pálmason

Filme dos streaming  FILMICCA

Terra de Deus | Trailer 

'Terra de Deus', sobre fotografia e fé, é um dos filmes mais belos do ano

Longa retrata viagem árdua, por terras áridas da Dinamarca até ilha na Islândia, para a construção de uma pequena igreja

Inácio Araujo, FSP, 02/10/2023

Em "Terra de Deus" estamos no século 19, num tempo em que a fotografia era algo ainda muito raro, difícil de manejar e de resultado incerto. Mas Lucas é um homem de fé —na imagem e em Deus. Ele aceita fazer uma árdua viagem partindo da Dinamarca por terras especialmente áridas até uma ilha na Islândia. O objetivo é a construção de uma igreja para a diminuta comunidade local.

A viagem é marcada, entre outras coisas, pela perda do seu tradutor, que morre durante a travessia de um rio, enquanto levava a pesada cruz destinada à igreja. Se algo compensa os acidentes, parece, são as fotos. O que elas revelam? São basicamente retratos feitos naquele tempo em que era preciso o retratado ficar segundos e segundos imóvel, tempo de imprimir sua imagem na chapa.

A viagem traumática será também um momento de provar sua fé? Seria ela necessária? Um personagem diz ao pastor, e isso atinge toda a lógica do seu roteiro, que ele poderia muito simplesmente ter vindo de navio.

Então ele é movido por fé e por fotos, mas ambas são motivo de dúvida. A fé é revelação, um dom que têm certas pessoas. A fotografia é imagem, isso que de certa forma falta à fé. É a prova inequívoca —como nos lembra o "Blow Up" de Antonioni—, e ao mesmo tempo bastante equívoca, frágil —também "Blow Up" nos lembra disso. Traiçoeira, em suma.

Como bem advertiu o superior antes de sua partida, nessa ilha tudo induz à loucura, inclusive o fedor horrível do vulcão que existe por lá. Se Lucas se lança à aventura, se decide seguir essa trilha perigosa, não é, como diz a alguém, para conhecer as pessoas da região. Ele não conhece ninguém na travessia, salvo aqueles que o acompanham na jornada. Mas Lucas fotografa, registra.

Será o seu olhar como a câmera, que recebe a realidade, mas a devolve invertida? Não por acaso, certas imagens no filme mostram Lucas ao fotografar e, como, nas antigas máquinas, o que vemos é a imagem invertida do que o fotógrafo pretende captar. Sua viagem seria um fato de fé ou de dúvida?

Não se pode desprezar a imagem do vulcão, nem a da ilha praticamente deserta. Ela lembra o "Stromboli", de Roberto Rossellini, onde, ao final da Segunda Guerra, uma refugiada casa com um soldado italiano para se livrar do campo em que se encontra detida, mas acaba na árida ilha, que abriga também um vulcão. Ali, no entanto, ela encontrará a fé. Será o lugar de uma revelação.

A origem de "Terra de Deus" (Dinamarca, Islândia) nos lembra também de Dreyer, em seu "A Palavra", no qual o cineasta nos leva a testemunhar um milagre, uma ressurreição, derivada exclusivamente da fé.

Essas revelações é que parecem vedadas a Lucas, por mais que ele as busque. Do seu amigo tradutor, que morre na travessia, restará a ele uma foto. Contemplar a lembrança, porém, parece confirmar a distância que existe entre o ser vivo e sua imagem.

Algo que se confirmará no seu laboratório de revelação. Ali ele revela a imagem de Anna, a filha mais velha de seu hospedeiro. Anna está ao lado do pastor fotógrafo e vê sua imagem surgir lentamente. Um pouco mais tarde, no laboratório de revelação, Anna acaba por revelar seu amor e beija o religioso com afeto. Ele retribui.

Será esse o começo do fim das ilusões para Lucas? Os mistérios que o envolvem parecem se multiplicar nessa terra que só com alguma ironia se pode denominar "de Deus". Pois o equipamento fotográfico, que contém e guarda as imagens, se perde, e na igreja que constrói não consegue pronunciar sua primeira prédica.

Como se não bastasse, existe na história o pai de Anna —seu hospedeiro—, que tem ainda uma outra filha, Ida, mais jovem. Esse pai sem mulher tem consigo, mais ou menos inseparáveis, suas duas filhas. Ele é claramente incestuoso. Detalhe, por assim dizer, que não será alheio ao destino do jovem pastor nessa implacável ilha — como alguém a qualifica.

Eu sou Deus, pensará em algum momento Lucas. Pois se todos nós temos algo de divino, ele pretende ter um tanto mais —por isso foi o escolhido para essa missão. Mas Deus é como mágica, dirá Lucas em outro momento. Ou seja, Deus não se revela, se oculta. Como pode um homem de fé resistir a todas as provações da Terra e, ainda, a um mistério de tal densidade, a uma tal obscuridade?

Essas questões que atormentam o jovem pastor em seu árduo trajeto habitam qualquer um, místico ou não. E justificam esse filme, que não deixa de ser uma derrota da fé e uma vitória do Deus oculto.

Ao contrário de Rossellini ou Dreyer, o autor deste filme, Hlynur Palmason, não parece vislumbrar a hipótese da graça a tocar o jovem religioso.

"Terra de Deus" é um dos filmes mais belos do ano até aqui. E não é de estranhar que tenha em São Paulo um lançamento tão tímido.

21/11/23

Adoção, Örökbefogadás, 1975, Márta Mészáros

Duas mulheres, cada uma em busca de uma realização. Kata, uma operária que deseja ter um filho com seu amante casado, e Anna, uma adolescente sob custódia do estado que está determinada a se emancipar para se casar com o namorado. O vínculo que se forma entre as duas fala poderosamente das forças sociais e políticas que moldam a vida das mulheres à medida que cada uma navega pelas realidades do amor, do casamento e da maternidade na sua busca pela autodeterminação. A autora pioneira Márta Mészáros revela uma expressão dolorosa das experiências das mulheres na Hungria dos anos 70 neste drama sensível e cativante, que se tornou o primeiro filme dirigido por uma mulher a ganhar o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim. FILMICCA

25/11/23/

Samurai de Olhos Azuis, Blue Eye Samurai, mini-série tv, 2023, Michael Green & Amber Noizumi

CRÍTICA | SAMURAI DE OLHOS AZUIS – 1ª TEMPORADA

Os olhos sem rosto.

por RITTER FAN,  17 de novembro de 2023 

Na última vez que encarei uma animação sobre um samurai nada ortodoxo no Japão feudal produzida pelo Netflix, minha decepção foi infinita. Yasuke, que tinha tudo para ser uma grande série sobre um personagem histórico, tornou-se uma papagaiada ridícula sem pé, nem cabeça, que se passa em um “passado” alternativo (e completamente idiota). Portanto, foi com compreensível hesitação que comecei a assistir Samurai de Olhos Azuis, desta vez sobre um personagem 100% ficcional em uma ambientação historicamente acurada que é exatamente como Amber Noizumi, uma das criadoras, disse que é, ou seja, um encontro entre Kill Bill e Yentl.

No entanto, tenho para mim que Noizumi ou foi modesta ou preferiu caracterizar sua obra de maneira chamativa, sem dúvida para atiçar a curiosidade de espectadores, mas que ficou longe, muito longe de ser o que ela e seu marido Michael Green efetivamente acabaram colocando nas telinhas. Samurai de Olhos Azuis é mais do que uma história de vingança e é mais do que uma história de uma mulher que se disfarça de homem para alcançar seus objetivos. É mais inclusive do que a combinação desses dois aspectos. Na verdade, a primeira temporada da série (se o Netflix não renovar, coloco fogo na sede deles e cometo seppuku!) é uma complexa história sobre dor, obsessão e honra; é sobre moralidade, sobre ter um código, sobre olhar para os lados e não apenas à frente; é sobre egoísmo e o preço que isso cobra; é sobre tolerância, ódio, xenofobia, racismo, sobre desigualdade de gêneros; é sobre corrupção da alma por dinheiro, por posição política, por dor; é sobre olhar para si mesmo e detestar o que vê; é, no final das contas, sobre um luta inglória que desvela sempre o pior, ainda que por vezes o melhor, da humanidade. E tudo tendo como pano de fundo um fascinante momento da História do Japão em que o país arrochou ainda mais sua política externa isolacionista, conhecida como sakoku, matando e expulsando ocidentais de suas terras e demonizando aqueles que tiveram o azar de nascer da mistura de raças.

Mizu (voz original de Maya Erskine) é um samurai repleto de segredos em um jornada obsessiva de vingança, mas, na verdade, essa frase descritiva está completa errada. Mizu, na verdade, é uma mulher birracial que passou a vida toda como homem para chegar ao ponto em que chegou quando a vemos no começo da temporada. Ela sequer é uma samurai, na verdade. Ela é sim uma exímia espadachim, mas ela não tem código algum que não seja sua raiva cega que almeja matar as quatro pessoas brancas que viviam no Japão quando ela nasceu e que ela reputa como responsáveis por todas as suas tragédias. Mas que tragédias são essas? Muita coisa é explicada ao longa da narrativa inteligentemente não linear dos roteiros que mantém o espectador sempre aprendendo coisas novas sobre Mizu e seu passado, mas a grande verdade é que sua vingança é contra aqueles que tornaram possível sua própria e infeliz existência como um monstro de olhos ocidentais azuis que é odiado por seus dois povos. Ou seja, nada da boa e velha vingança na base do “mataram um ente querido” ou até mesmo um cachorro como em uma certa franquia bacana e muito adorada, mas que é rasinha como o proverbial pires. Samurai de Olhos Azuis é, fundamentalmente, uma luta interna de sua protagonista para se aceitar ou para liquidar com aqueles que a tornaram inaceitável sob quaisquer olhos, até mesmo os dela que ela disfarça sob um jingasa e atrás das lentes amareladas de seus óculos. Mizu é a encarnação da vergonha e ela quer se livrar desse sentimento opressor exterminando o seu passado em uma jornada autodestrutiva que também é de descoberta.

Orbitando ao redor da fúria vingativa que é Mizu, há o sempre positivo cozinheiro rechonchudo e sem mãos Ringo (Masi Oka) que começa a idolatrar a espadachim quando a vê em ação no restaurante em que trabalha e passa a segui-la para ser seu pupilo, somente para, aos poucos, perceber que de verdadeiro samurai ela não tem nada, decepcionando-se no processo e, também, o arrogante samurai Taigen (Darren Barnet) que compartilha o passado com Mizu e que igualmente passa a segui-la, mas não por idolatria e sim por querer a chance de lutar com ela novamente em um duelo. Em paralelo à narrativa central, acompanhamos a Princesa Akemi (Brenda Song) que ama Taigen, mas cujo pai planeja outro destino para ela e cuja história vai, aos poucos, abrindo o leque da temporada para lidar com a nobreza, o xogunato e as relações secretas deles com o ocidente, aqui representado pelo sinistro contrabandista irlandês Abijah Fowler (Kenneth Branagh) que permanece recluso em um castelo e que tem ambiciosos planos para o país que adotou, além de ser, claro, o alvo da vingança de Mizu ao longo dos episódios. Todos esses e outros personagens – como esquecer do sábio e paciente Mestre Eiji (Cary-Hiroyuki Tagawa), forjador cego de espadas que criou Mizu, do amoroso e altruísta Seki (George Takei), tutor de Akemi, e do manipulador Heiji Shindo (Randall Park), cúmplice de Fowler? – refletem com muita perceptividade traços da personalidade de Mizu, tanto os que ela tem quanto os que queremos que ela tenha, seja a independência tolhida de Akemi, a bestialidade de Fowler ou a pureza inocente de Taigen, passando pela dedicação de Ringo, o amor do Mestre Eiji e a fidelidade de Seki.

E essa riqueza toda é refletida na complexidade da narrativa, em que a jornada de vingança, essencialmente simples em sua concepção, passa por transformações e alargamentos que desafiam Mizu e não apenas técnica e fisicamente, mas também e principalmente moralmente, levando-a a indagar quem exatamente ela é, tema que, em razão de sua origem e do segredo que esconde ao enfaixar seu seios e engrossar a voz, é da essência da série. A progressão narrativa merece aplausos aqui, aliás, pois o desenvolvimento de Mizu não é daqueles “mágicos” (falando em mágico e mudando rapidamente de assunto, por tensos segundos eu cheguei a imaginar que ela teria poderes especiais em razão da origem do metal de sua espada, o que seria uma desgraça completa…), em que a espadachim egoísta que só se interessa pelo que ela acha que tem que fazer muda completamente e se torna uma seguidora do Bushido. Muito longe disso, o que a temporada faz é oferecer lampejos à protagonista do que ela deveria ser, mas sem levá-la imediatamente na direção esperada. A origem do incêndio do último episódio (que ocorreu de verdade e destruiu Edo – como Tóquio se chamava na época – e matou mais de 100 mil pessoas, efeito semelhante, por incrível que pareça, às bombas atômicas jogadas centenas de anos depois em Hiroshima e Nagasaki) é prova do quanto Mizu mantém-se teimosamente em seu caminho destrutivo e autodestrutivo.

A direção de arte de Samurai de Olhos Azuis enche os olhos (sim, fiz um trocadilho sem graça). A equipe de artistas parece ter alcançado o equilíbrio mágico entre exatidão histórica, realismo visual, explosões de violência, coreografias de luta e personagens que carregam leves traços caricaturais que em momento algum tiram a imersão. Os figurinos parecem peças dignas de museu da mesma forma que as lutas com instrumentos cortantes e eviscerantes parecem sequências perfeitas de estética da violência, com cada momento “absurdo” – como é aquela “espadada no dente” no dojo de Taigen – funcionando não somente em si mesmo, mas também para elevar o status de Mizu ao de lenda, como realmente aconteceu com grandes espadachins da época. E a técnica de animação, uma computação gráfica 2D com efeitos 3D é, em combinação com uma paleta de cores rica quando precisa ser, mas emudecida em grande parte, é, usando uma expressão técnica restrita apenas a críticos de cinema de cachecol no pescoço, boina na cabeça e cachimbo na boca, de fazer o queixo cair, uma das melhores do serviço de streaming até agora, cortesia do estúdio francês Blue Spirit (Minha Vida de Abobrinha).

E a trilha sonora? A compositora Amie Doherty que, na televisão, compôs a música das ótimas Undone e Mulher-Hulk, retorna para criar uma espécie de fusão de seu material anterior, aliando o lirismo e a energia lisérgica da série animada de Raphael Bob-Waksberg e Kate Purdy, com o cinismo e a explosão da série da Marvel Studios, resultando em uma trilha potente, mas cirurgicamente pontual que enaltece e também condena a jornada de Mizu. E, como se isso não bastasse, Green e Noizumi trataram de inserir uma inesperada versão em japonês de For Whom the Bell Tolls, do Metallica, por Emi Meyer, que funciona como pano de fundo sonoro para o sexto episódio, aquele em que Mizu invade a fortaleza de Fowler.

Aproveitando a deixa, devo confessar que minha maior (ou seria única?) implicância com a temporada é justamente com All Evil Dreams & Angry Words, o sexto capítulo, o único que eu assisti duas vezes não exatamente por querer, mas pelo Netflix ter disponibilizado uma versão em preto e branco dele em seu canal do YouTube (mas eu prefiro a original mesmo). Em termos técnicos, não tenho nada a reparar, pois ele segue a qualidade impressionante de tudo o que veio antes e vem depois, mas, em termos estruturais, com Mizu caindo no que parece demais uma fase de um videogame com diversas armadilhas para chegar até Fowler, o final boss, a escolha me pareceu descolada demais da lógica interna da série que preza por um “realismo exagerado” que não precisava desse artifício banal consideravelmente fora do eixo e, sinceramente, com desafios não muito inspirados.

Eu poderia acrescentar a essa minha implicância a quantidade de vezes que Mizu passa perto da morte, somente para ser salva no último segundo, recuperando-se logo em seguida ou no também considerável número de vezes em que ela surge do nada para salvar o dia, mas aí eu já estaria ultrapassando uma barreira que não quero ultrapassar exatamente por reconhecer e aceitar que o exagero faz parte do DNA de Samurai de Olhos Azuis e, muito francamente, uma boa parte de sua graça visual. Afinal, vamos combinar que é raro encontrar violência gráfica no grau que encontramos aqui aliada a uma narrativa corajosa, inteligente e complexa que não entrega nada com facilidade e não encontra saídas fáceis e esperadas para os dilemas que a protagonista enfrenta.

Samurai de Olhos Azuis é, em resumo, um triunfo audiovisual que eu fiquei tão feliz assistindo que eu não queria que acabasse, além de eu ter feito um esforço hercúleo para não ver tudo de uma vez (essa série tinha que ter sido lançada semanalmente!), me forçado a economizar e a degustar cada episódio como se fosse o último. E o melhor é que a criação de Green e Noizumi não é espetacular porque meu sarrafo foi lá para baixo com Yasuke (e um pouco com Onimusha), mas sim porque ela consegue ser comparável às melhores séries animadas modernas oferecidas em grandes quantidades por aí. Que venha a segunda temporada!

27/11/23

Anatomia de Uma Queda, Anatomie d'une chute, 2023, Justine Triet

Anatomia de uma Queda

Um conflito de versões e dúvidas sobre a verdade

por Bruno Botelho

O que é realidade e o que é ficção? Quando estamos falando de um processo judicial ou condenação de uma pessoa, é natural pensar que não existe tanta margem para imaginação e que apenas fatos estão sendo apresentados. Anatomia de uma Queda, filme de Justine Triet vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, chega para quebrar essas percepções e levantar interpretações, não apenas dos personagens em tela, mas também o julgamento do público com a história contada.

Em Anatomia de uma Queda, Samuel (Samuel Theis) é encontrado morto na neve do lado de fora do chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho de onze anos com deficiência visual. A investigação conclui se tratar de uma "morte suspeita": É impossível saber ao certo se ele tirou a própria vida ou se foi assassinado. A viúva é indiciada, tendo seu próprio filho no meio do conflito: entre o julgamento e a vida familiar, as dúvidas pesam na relação mãe-filho.

O filme começa com Sandra recebendo uma jornalista em sua casa para falar sobre sua carreira. Logo o papo descontraído entre as duas é atrapalhado pelo som alto que vem do sótão, onde seu marido Samuel coloca para tocar repetidamente P.I.M.P. do 50 Cent (mas um cover por Bacao Rhythm & Steel Band) como provocação enquanto trabalha na reforma do chalé deles. Com isso, a entrevista é interrompida e adiada, e Sandra resolve tirar um cochilo. Pouco tempo depois, enquanto passeava com seu cachorro, o filho do casal, Daniel, encontra o corpo de Samuel morto na neve do lado de fora da casa.

Um começo chocante e instigante que já instaura dúvidas na cabeça do público: Samuel caiu acidentalmente do chalé? Cometeu suicídio? Foi empurrado por Sandra? São questões que o filme abraça de forma complexa e desenvolve sem pressa, focado nos diálogos, em suas 2 horas e 31 minutos.

Podemos dividir Anatomia de uma Queda de duas meneiras distintas. A primeira parte começa de forma mais lenta, focado na investigação e na reconstituição do ocorrido. Já a segunda parte do filme nos leva ao julgamento da morte de Samuel, com Sandra suspeita e acusada de assassinato, tendo que provar sua inocência com ajuda de Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud). 

Como provar algo sem evidências irrefutáveis? Essa é a chave da trama, onde não temos uma verdade definitiva ou resposta pronta, mas uma apresentação de diferentes versões. A diretora Justine Triet sabe trabalhar muito bem com as incertezas para prender o público e causar uma agonia constante em busca de respostas. Por isso, somos colocados praticamente como um membro do júri colhendo as informações.

Conforme a trama avança, ela fica mais desconfortável e sombria. Entramos na intimidade do casal Sandra e Samuel – e nos conflitos e relação abusiva entre eles. Inclusive, o roteiro de Anatomia de uma Queda foi escrito em colaboração por Justine Triet e Arthur Harari, que também são um casal na vida real, então conseguem explorar melhor as complexidades dos personagens e analisar a “queda” deste relacionamento. No final das contas, o julgamento de um crime passa a ser, na verdade, de um casamento.

É interessante como a narrativa subverte nossas pré-concepções, especialmente invertendo as construções sociais dos papéis de gênero em Anatomia de uma Queda. Por isso, a produção entra no psicológico dos personagens e examina todas as contradições.

Enquanto Sandra é uma mulher bem-sucedida com sua carreira de autora, Samuel está frustrado com o rumo que sua vida tomou, se dedicando à reforma do chalé e ao filho, pedindo mais tempo para retomar sua carreira. Tanto que eles têm uma briga violenta um dia antes de sua morte, levantando ainda mais suspeitas. Ao mesmo tempo, o filme faz questão de não tomar partido ou estabelecer juízo de valor, fortalecendo os diferentes pontos de vista sobre esse relacionamento que teve um final trágico.

Em determinado momento, descobrimos que Sandra é conhecida por misturar realidade e ficção em seu trabalho como autora – o que supostamente seria uma prova de assassinato com algumas descrições em seu último livro. Por isso, é construída uma protagonista fascinante e cheia de camadas, ao mesmo tempo que serve como base para a própria ambiguidade da trama. No filme, as “evidências” são subjetivas e interpretações por diferentes pontos de vista, que não são necessariamente a verdade.

O público presencia o tempo todo as violências físicas e psicológicas sofridas por Sandra, desde a relação com seu marido até os advogados de acusação com retóricas machistas e misóginas, relacionadas ao fato dela ser uma mulher independente. É basicamente uma tentativa de destruição de sua reputação, expondo sua vida pessoal. Mesmo assim, em nenhum momento a protagonista é vitimizada pelo roteiro, pelo contrário, está sempre em busca de assumir o controle da narrativa ao seu favor.

Justine Triet (também responsável por Sibyl), que se tornou a terceira mulher a conquistar a Palma de Ouro em Cannes, sabe trabalhar perfeitamente a ambiguidade moral de sua personagem feminina, com sucesso principalmente pela atuação impressionante de Sandra Hüller – atriz que tem se destacado bastante nos últimos anos e está também no aclamado Zona de Interesse, vencedor do Grande Prêmio no Festival de Cannes 2023. Ela passa por todas as nuances e complexidades de Sandra em uma das melhores atuações do ano, que merece (e deve receber) bastante reconhecimento duante a temporada de premiações.

É natural que, com nossas próprias percepções de mundo e sobre a história contada, tenhamos um veredito para o relacionamento entre Sandra e Samuel, assim como a causa da morte do marido. Mas existe realmente um culpado? O filme brinca com essas impressões justamente com uma nova geração acostumada a ter uma opinião formada sobre todos os assuntos nas redes sociais.

Anatomia de uma Queda apresenta mais dúvidas do que respostas, o que neste caso específico é um ponto positivo e o principal objetivo da filme comandado por Justine Triet. Carregada pela atuação de Sandra Hüller, a produção mergulha o público em um julgamento desconfortável com percepções e interpretações diferentes e conflitantes, questionando se existe realmente uma verdade.

29/11/23

Amarcord, 1973, Federico Fellini

No iutubi aqui

Amacord por LUIZ RENATO MARTINS*

https://aterraeredonda.com.br/amarcord/

Considerações sobre o filme clássico de Federico Fellini

Ironia intrínseca

Uma constante estilística que se pode observar em vários níveis da obra de Federico Fellini (1920-93) é a relação entre signo e referente apresentada não como correspondência orgânica, consensual ou pacífica, e sim ao modo de oposição. Em geral os títulos originais dos filmes não fogem a essa tensão interna. A ironia é intrínseca à obra, estruturada à base de antíteses, inversões, negações ou contrapontos variados. Desse modo, os títulos denotam com frequência uma relação cortante, distanciada e negativa ante o objeto de referência: a temática aludida ou a própria obra em questão.

A começar por Luci del Varietà (1950, “Mulheres e Luzes”), que mostra o revés sombrio da magia do palco das variedades. La Dolce Vita (1960, “A Doce Vida”) – título muito discutido – parece aludir aos prazeres dos costumes flexíveis e de consumo supérfluo ou suntuário, franqueados pelo boom econômico na Itália dos anos 1950. Porém, à luz da ironia e ao cabo revela-se o estado de cisão de si; vale dizer, o sentimento da amargura e perda de si ou, enfim, da alienação como travo próprio à vida urbana e moderna na Itália fruto do miracolo (econômico).

Outro título muito aludido, mas pouco entendido, 8 ½ (1963, 8 ½) – que designa o número de filmes então dirigidos por Fellini – denota, além da ironia, abstração de si e alienação. Ao destacar de pronto a quantificação que coisifica o processo de trabalho e suscita uma visão externa do produto, 8 ½ resume parodicamente numa cifra a totalidade das realizações do autor. Traz assim um nome oco, dissociado de qualquer elemento interno à narrativa – ao modo do preço ou valor suposto (sobreposto ao bem), para não falar do salário que, ao precificar o tempo, abstrai o esforço de trabalho convertendo-o em bem para uso de outro. Duvidamos assim de pronto dos aspectos de autenticidade e imediatez inerentes ao relato das confissões e devaneios do protagonista de 8 ½.

Tensões construtivas

Amarcord (1973, “Amarcord”) sucede I Clowns (1970, “Os Palhaços”) e Roma (1971, “Roma de Fellini”), e designa como estes uma nota recorrente, uma marca estandardizada pela mídia do estilo do autor. Em todos esses casos, a ironia é redobrada: opõe-se à obra que anuncia e ao modo corrente de recepção.[i] Desse modo, Amarcord, além de alvejar a ideia de recordação – quase um logotipo do Fellini tido correntemente como memorialista – delimita o movimento de introspecção referido, já que o apresenta e o objetiva. E ao mesmo tempo faz mais: propõe o enlace reflexivo, o diálogo em torno de representações que não são pessoais, mas sociais ou nacionais.

Com efeito, a frase do título (“eu me recordo”, em dialeto romagnolo) – ao invés de propor a introversão via uma “senha mágica”,[ii] uma cifra unilateral ou privada, como o termo “asanisimasa” (sussurrado pelo menino-Guido, em 8 ½); ou como o “rosebud”, de Kane, no filme de Welles  (1915-85); ou, enfim, ao invés de funcionar ao modo da célebre madeleine, amálgama das vivências infantis da personagem de Proust (1871-1922) na Recherche (…) – “amarcord” designa uma ação em curso, sublinhada pelo tempo verbal no presente do indicativo. Em suma, “amarcord” põe o horizonte da atualidade como parâmetro comum e alerta para o regime próprio do que vai ser narrado. Logo, propõe a transformação de supostas vivências subjetivas em representações levadas a exame e debate do público.

Amarcord-título abre assim a interlocução e institui a exposição do passado em âmbito plural, para escrutínio coletivo. Desde aí, nada íntimo mas público, o foco narrativo do filme anuncia-se como dialógico. O que é reiterado logo na sequência inicial, rematada com uma imagem de Giudizio, o louco da cidadezinha, que encara a objetiva efetuando uma interpelação direta, análoga à da frase-título.[iii]

Na contramão da recepção

O preâmbulo de Amarcord contrapõe-se assim ao de 8 ½, que, após um título abstrato e impessoal, desfiava o pesadelo de Guido, desdobrado em várias seqüências. Lá, era preciso refletir de modo contraintuitivo e a contrapelo do curso inicial da narração, para se concluir (como o fez Roberto Schwarz[iv]) que o regime narrativo de 8 ½ era no geral distanciado e irônico, em vez de confessional ou subjetivo.

De fato, na época, a recepção do filme – ademais, impulsionada pelo favor então concedido às ideias de cinema de autor e de expressão pessoal difundidas pelo influente núcleo parisiense (Cahiers du Cinéma e da Nouvelle Vague) na órbita do novo cinema do pós-guerra – pendeu majoritariamente para a identificação da figura de Guido, com a de Fellini – que, após a avalanche de interpretações de 8 ½ como obra intimista, deplorou não ter sido mais incisivo no tratamento cômico da trama.[v]

Prevendo e prevenindo possível tendência subjetivizante da recepção, a orientação dialógica de Amarcord é pontuada no correr da narração por vários chamados ao público, de parte do avvocato, de Giudizio, do ambulante Biscein, etc. Mas não só intervenções orais explícitas de uma variedade de narradores complementares, quase ao modo de um Coro, balizam e reiteram a abertura dialógica da narrativa de Amarcord ao público. De fato, a idéia de um eu que se recorda, alegada pelo título, é paralelamente relativizada e negada, na estrutura, de múltiplos modos…

Assim, o foco narrativo nunca atribui às cenas sentido imediato. Antes, elabora um afresco ou mural da vida provinciana, no qual as figuras são identificadas esquemática e repetitivamente pela seleção dos seus traços sócio-culturais, que destacam seu grau hierárquico e apresentam um amálgama de trajes e trejeitos. Resultam estereótipos ante os quais o espectador é levado a diferenciar-se.

A estilização das personagens na narrativa de 8 ½, segundo artifícios de histórias em quadrinhos, foi destacada por Gilda de Mello e Souza (1919-2005).[vi] Italo Calvino (1923-1985) atribuiu tal parentesco a toda a obra de Fellini e apontou o seu teor agressivo e popular.[vii] De fato, tais aspectos salientam-se em Amarcord. É como se tudo e todos fossem vistos do exterior, sumarizados segundo seus interesses e, com evidente sarcasmo. Tem-se só caricaturas. Por que?

O ponto de vista da massa

Walter Benjamin (1892-1940) classificou a caricatura como arte de massa.[viii] Assinalou sua oposição, como fato estético, à valoração do belo, que é fruto de um juízo puro ou desinteressado, exclusivamente contemplativo – o qual é posto desse modo na estética do sujeito transcendental, segundo Kant (1724-1804), como uma das formas de mediação entre o sensível e o suprassensível. Pelo contrário, a caricatura opta quase sempre pelo grotesco e se põe como linguagem de fundo imanente; denota um juízo simplificador e agressivo, contraposto ao poder e à fama. Nesses termos supõe e gera um contexto conflituoso.

A aplicação de tais procedimentos reduz o valor de face das figuras de Amarcord; não favorece a identificação projetiva do público com as personagens, mas induz ao estranhamento ou à distância ante a forma visual. E leva o olhar a efetuar um exame empírico que distingue a diversidade dos traços sociais. Desse modo constitui-se um enfoque, ao invés de subjetivo, coletivo, fator de objetivação e em contraponto crítico às figuras.

O passado em formação (permanente) no presente

Não só na figuração do humano impõe-se a perspectiva de massa, em Amarcord, mas também no tratamento da cenografia e da imagem, que mimetiza técnicas reprodutivas gráficas ao modo dos desenhos animados. Nota-se o emprego de cores fortes, uma iluminação pouco nuançada, o achatamento dos ambientes, ao lado da demarcação da psique rasa das personagens. Mas por que procedimentos tão esquemáticos? Que ideia do passado acha-se aí embutida?

Se a forma ostenta a marca atual na configuração do passado, é que a atualização prepondera no ato de recordar sobre a ideia mítica do resgate intemporal de vivências – que valia em 8 ½, para Guido, e estava no foco da Recherche… de Proust.[ix] No caso de Amarcord, observam-se, em síntese, tensão e heterogeneidade entre conteúdo e forma da recordação; a marca do condicionamento atual e a forma resultante prevalecem sobre o conteúdo da memória. Logo, os temas mnêmicos não trazem valor em si ou moto próprio: é no âmbito da recepção, que o sentido irá se configurar.

Como explicar o primado do presente na formação do passado e em quê a ideia de memória, em Amarcord, afasta-se daquela de 8 ½? No filme de 1963, o conflito entre as séries temporais dava-se na alma de Guido – contrapunha-se ao ideal de unidade do eu – e tendia a sujeitar o presente ao passado. Enquanto em Amarcord, realizado cerca de dez anos depois, a possível premissa (nunca do autor, mas do espectador desavisado) de um monólogo interior cede lugar à reelaboração coletiva dos conteúdos mnêmicos. Enfim, a disputa de avaliações entre presente e passado em Amarcord trava-se no âmbito dialógico da linguagem, perde imediatez e é objetivada historicamente.

Desse modo, o conteúdo arcaico das experiências no vilarejo, de raízes remotas sublinhadas pelo avvocato (um dos narradores complementares), tem seu sentido de origem modificado pela nova forma sumária e irônica das imagens mnêmicas; o público de Amarcord, contagiado pelo vigor atual do traçado que prefere a caricatura, distancia-se das vivências arcaicas pontuadas com senso teatral pelo avvocato (a despeito da irrupção de estrepitosas pernàcchie, desferidas por um anônimo atrás das janelas). Em suma, a cisão das épocas avulta; em curso, uma crítica histórica.

Contrastes entre Amarcord e 8 ½

Logo, enquanto os temores e as limitações individuais de toda espécie agigantavam-se em 8 ½ à luz da subjetividade de Guido – já, em Amarcord, ao invés, esses fantasmas sofrem, por sua vez, redução e classificação mediante um conjunto de fatores que operam como práticas de protocolos laboratoriais: a opção de caricaturar que induz à objetivação; o reposicionamento da representação mnêmica à distância de si pela inversão ou pertença à perspectiva democrática antifascista – crítica ante os valores rememorados – e outros adiante comentados.

A tônica objetiva e sarcástica da narrativa de Amarcord revela-se, nas cenas escolares, na apresentação detalhada dos professores e colegas de Titta e ainda pelo recurso desta ao humor cru, típico dos ambientes coletivos. Inversamente, em 8 ½, os vultos dos colegas mal se notavam, sob as imagens fortes e comoventes dos fantasmas infantis. Lá, tudo salientava uma verdade imediata, íntima e irradiadora, que transcendia cada evento como índice maior da existência singular, idiossincrática e supracircunstancial, de Guido. Logo, os mundos do menino-Guido e do cineasta-Guido (personagem) espelhavam-se. A lei oculta de tal semelhança era a cifra do roteiro em esboço por Guido, embora contestado por outros, a começar pelo severo e erudito colaborador crítico que atormentava o cineasta, dado à introspecção e ao devaneio como privilégios e faculdades autorais. De fato, criação, realização e descoberta de si conjugavam-se no ideário produtivo do cineasta-Guido. O que não impedia que a obra de Fellini propusesse outra posição – irônica – ante a indecisão contumaz e o credo ensimesmado do protagonista.

O contraste entre os dois filmes na reconstrução das cenas de família é análogo. Em 8 ½, a atmosfera íntima e grave das relações familiares dotava-as de um sentido transcendente que impregnava os dilemas atuais do protagonista. Já em Amarcord a distância e a ironia delimitam as questões de família. Os genitores ostentam comportamento histriônico, próprio ao circo ou ao teatro popular. O recorte visual de tais cenas sugere um cenário de teatro e supõe o corte entre palco e plateia. Resulta uma representação esquemática, deliberadamente genérica ante o cotidiano do período em questão.

O contraste entre as cenas de confissão dos dois filmes é de mesma ordem. Demonstra que as premissas unificadoras, de imediatez e transparência – ou valor originário da subjetividade –, professadas pelo protagonista de 8 ½, cedem, em Amarcord, a uma redefinição da relação a si ou da memória pessoal, nos termos da alteridade intersubjetiva e segundo condicionantes históricos e gerais.

Assim as figuras femininas, em Amarcord, surgem da memória, não de modo íntimo e imediato, mas sim intermediadas, tal como vistas pelo grupo de adolescentes. Logo, longe de configurarem uma representação inaugural, carregada e fantástica, do erotismo, como a Saraghina, na infância de Guido, as formas eróticas, de Amarcord, refletem valores de grupo e da época.

Por conseguinte, enquanto produtos circunstanciados tais formas trazem, todas elas, sua sensualidade vinculada a qualidades psicossociais e as marcas históricas nítidas. Constam desse elenco ou catálogo semântico da “feminilidade” (da perspectiva dos escolares em iniciação), desde o mármore alegórico, incluindo um nu neoclássico, em homenagem à vitória, às figuras femininas mais emblemáticas no vilarejo, vistas (pelos adolescentes) como alegorias variadas do mito, distinguidas conjugadamente às suas atividades (a manicura Gradisca; Volpina, duplo feminino e deambulatório de Giudizio; as camponesas, a professora de álgebra, a comerciante de produtos de tabaco etc.) Enfim, de tão esquemáticas, como estereótipos de padrões biotipológicos e comportamentais, pode-se dizer delas que aparecem, nos “recitativos” à moda da turma de Titta, como contrapartidas satíricas das alegorias das artes e ofícios que ornamentavam, com clichês neoclássicos a gosto do século XIX, esquinas, ângulos e fachadas dos prédios e logradouros públicos.

Em resumo, em Amarcord, os produtos da memória mostram-se “dessubjetivados” ou sem imediatez e sob ironia. O efeito subjetivo de plenitude ou de reencontro de si da reminiscência proustiana, que fascinava o protagonista idiossincrático de 8 ½, evidentemente não influi aqui. O corte com o passado é constitutivo; a “memória involuntária”[x] – com função fundamental no roteiro de Guido – não tem lugar em Amarcord, visto que cabe à “memória da inteligência”, “voluntária” ou interessada – exercitada no jogo dialógico com o ponto de vista do outro –, realizar a seleção dos alvos segundo sua significação geral, ou seja, ao modo da prática crítica e metódica do historiador.

De acordo com tal paradigma, a comicidade em Amarcord do quadro da confissão, em meio de afazeres e interesses prosaicos do sacerdote, deriva do ponto de vista contrassubjetivo que ordena a narrativa. Assim, enquanto em 8 ½ a confissão compulsória do menino era redimida na forma também confessional do roteiro, esboçado por Guido, já em Amarcord ela é só exemplo de um código normativo e, por cima, parodiado, que constitui então uma forma esvaziada. Também nos moldes prosaicos do anedotário infanto-juvenil, a comicidade da cena de onanismo coletivo no calhambeque estacionado no cenário arcaico e rural do celeiro, evoca e parodia a mímica de Chaplin (1889-1977) da fragmentação repetitiva dos gestos para o trabalho fabril (e febril), que originalmente tinha sentido lírico, no ambiente industrial estilizado de modo um tanto futurista de Modern Times (1936).

A objetividade crítica, histórica e política de Amarcord

Em síntese, a premissa da espontaneidade natural do indivíduo – antes, com função central na obra de Fellini como contraponto crítico à hegemonia do paradigma neorrealista no período do pós-guerra –, ao invés, em Amarcord, submete-se ao processo de revisão geral da cultura italiana tardiamente rural, clerical e patriarcal, tendo em mira determinar as raízes do fascismo. Na subsunção ao coletivo, Amarcord comprova-se uma obra visceralmente política, conforme salientado por Fellini.[xi]

Enfim, Amarcord está longe de operar como um desdobramento, dez anos depois, do roteiro monologado e intimista de Guido. Observa‑se, agora, um retrato do cotidiano no fascismo, focado no exame satírico da formação da subjetividade que padece a modernização, entre acelerada e tardia, inerente à dependência.

Logo, se Amarcord apresenta alguma continuidade efetiva com 8 ½, esta consiste principalmente no prolongamento do ponto de vista sóbrio, irônico e reflexivo; quer dizer, trocando em miúdos, no desdobramento potenciado da decisão, de 8 ½, de inscrever um modelo simulado de autobiografia encenada num “filme de autor”, como objeto de ironia, para explicitar, em contrapartida, uma possibilidade oposta, crítica e dialógica, de recepção – como, aliás, notou agudamente Schwarz em leitura precursora e à contracorrente – acerca de 8 ½, como história crítica e dialética de um capítulo de modernização tardia.

Amarcord constitui, em síntese, um vigoroso movimento de negação e diferenciação do passado, em que a memória não restaura figuras perdidas ou formas originárias, mas apresenta objetos de ironia ante os quais a crítica psicossocial, política e histórica, modulada pelo diálogo com o público, constrói a perspectiva da pluralidade própria à dialética antitética da democracia, que revisa criticamente, com espírito etiológico, o regime totalitário pregresso.

Em tal processo, a revisão do passado implica também a reinterpretação do presente. Logo, a investigação da origem do fascismo, conforme Amarcord, implica o exame simultâneo de outras duas colunas mestras do regime, que, mesmo após a queda militar do regime, continuaram de pé e a irradiar ativamente práticas e modelos pró-fascistas na vida social: a família patriarcal e a cultura de massa – desta última, por sinal, o cinema do regime opera como o protótipo essencial. Persistem, pois, fatores e bases, aponta Amarcord, mediantes os quais um híbrido pode se erguer. Como impedir?

Pulo do gato: fascismo vernáculo

Amarcord inova e surpreende no exame do fascismo ao mostrá-lo em sua dimensão vernacular e original, independente do nazismo. Nas obras do pós-guerra, de Rossellini (1906-1977)[xii] e do cinema italiano de modo geral, o fascismo surgia entremeado quase filialmente ao nazismo; em resumo, praticamente como um intruso, sem raízes locais.

A visão da Itália ocupada e do momento bélico do fascismo – de fato, a mais corrente nas telas – favorece a percepção do fascismo como derivação do nazismo, pois era notória a dependência militar do primeiro ante o segundo; de fato, cristalizou-se a relação de dependência política do fascismo ante o nazismo, escorada na militar, no período da república-fantoche de Salò (23.09.1943 – 29.04.1945) Porém, esquece-se assim não só a incômoda questão da gênese do fascismo, efetivamente italiana, como sua originalidade na criação de modelos políticos e de psicologia de massa que antecederam em mais de uma década ao nazismo e ao franquismo.[xiii]

Nesse sentido, em Roma (1971), um trecho, extraído por Fellini do jornal cinematográfico fascista Luce, apresentara o fascismo como fenômeno de autenticidade comparável à do “pão e do queijo italianos”. Amarcord vem aprofundar a caracterização do fascismo vernáculo, bem como também intensifica o exame de sua relação orgânica com o cinema.

Assim, Amarcord apresenta e disseca o Patacca (Lallo), tio de Titta, como um fascista de marca. Este e os amigos são parte da categoria dos vitelloni, formada por jovens ociosos e imaturos de classe média, que moram com a família e foram tantas vezes perscrutados pelas lentes de Fellini, inclusive em Amarcord, que sublinha os laços da turma do Patacca com o fascismo.

Ao salientar os elos desse grupo social com o fascismo, Amarcord deflagra outro movimento crítico-reflexivo: leva ao reexame de obras precedentes do autor, como I Vitelloni (1953), e vem recarregá-las de sentido político, como observações prévias das bases sociais do fascismo.

O Patacca é caracterizado como um tipo comum e que, sabe-se bem, sobreviverá ao regime (como os vitelloni, de resto) Sua adesão ao fascismo segue também o padrão geral. Na cidade, segundo é anunciado na cena do desfile, 99% da população estava inscrita no Partido. Exceção notória só o Sr. Aurélio, trabalhador da construção civil, mestre de obras e homem de esquerda, delatado pelo seu cunhado Lallo (o Patacca), por conta da instalação do gramofone no campanário a soar a L’Internationale (1871), estragando a festa fascista.

A normalização do fascismo assim encaminhada, longe de comportar condescendência, é estratégica e combativa; implica uma crítica aguda das matrizes socioculturais do fascismo.[xiv] Pois a questão das origens do fenômeno traz também a da sua persistência, bem como a do seu retorno ao governo italiano. E, se a gravidade do problema não era evidente à ocasião do lançamento de Amarcord, no início de 1974 – quando o PCI parecia a muitos rumar para a hegemonia –, a questão acentuou-se, vinte anos depois [1994], com o triunfo eleitoral do fascismo associado a Berlusconi (n. 1936) [sem falar da ascensão, na esteira deste, das variantes posteriores, G. Fini (n. 1952), M. Salvini (n. 1973) etc.].

Fisiologia e psicogênese do fascismo

Foram escassas as referências diretas ao fascismo na obra de Fellini ao longo dos anos 1950 e 1960; quando ocorreram, vinham de modo breve e alusivo, compondo traços de personagens e ambientes. Porém, a partir de I Clowns (1970) e Roma (1971), a questão do fascismo assoma ao primeiro plano da análise psicossocial e comportamental por Fellini dos condicionantes da modernização italiana.

Distingue-se então o cunho próprio da sua estratégia crítica. Esta renova notavelmente o enfoque da ação totalitária do fascismo na vida coletiva: detecta-o à flor da pele, como padrão patológico de raízes domésticas, projetado no coletivo. A começar pelo exibicionismo inerente ao narcisismo, vários signos demarcam tal extração: os trejeitos infantis no desfile; a reiteração dos comportamentos caprichosos e vaidosos; a paixão pela indumentária, pela coreografia e pela simetria ou de modo geral pelas formas espelhadas; a carência histérica dos líderes; o apelo escatológico traduzido na tortura mediante a ingestão de laxativo, etc.

Nesses termos, o fascismo põe-se como discurso articulado à infância, segundo Fellini, em dois graus: quanto à origem, como histeria ou retórica própria ao estado infantil e também, quanto à finalidade, como conjunto de técnicas associadas organicamente ao adestramento escolar. Desse modo, se extravasa e alcança aplicação social, é porque o todo social reproduz extensamente um estado atávico de menoridade ou de infantilismo. Pondo-se como pedagogia de matrizes e parâmetros infantis, o fascismo exige a subsunção da heterogeneidade social e política, naturalmente conflituosa, pela linguagem organicista e homogeneizante do horizonte doméstico.

O amor de exibição, inerente à infância, obtém a sua realização social na monumentalidade cênica e coreográfica. Logo, além da infantilidade, a espetaculosidade é o outro lado do fascismo, ressaltado por Amarcord. Nas intervenções de massa, o fascismo agiganta-se sobre a cidade mediante cenografias imensas, que incutem o culto do grandioso inerente à fantasmagoria patriarcal, duplo invertido do infantilismo.

Portanto, a equiparação do estúdio ao mundo, tão decantada como mania de Fellini, longe de traço estilístico ou autoral, mira, sim, o cerne da estratégia fascista. É parte de um programa estético crítico que caricatura e desconstrói o império do espetáculo pelo qual, como se sabe segundo Benjamin, a massa “tem a ilusão de expressar a sua ‘natureza’, mas certamente não os seus direitos”[xv] – aliás, como o Ciccio que imagina a união com Aldina, seu ideal amoroso, sendo celebrada por uma mescla cenográfica de Duce e sumo pontífice.

Fascismo e cinema: verso e reverso

A coincidência do espetaculoso e do infantil na caracterização do fascismo evidencia a correlação entre o cinema e o fascismo. De fato, Cinecittà foi uma criação do regime, concebida à imagem de Hollywood e sob a liderança de Vittorio Mussolini (1916-1997), filho do ditador.[xvi] Inaugurada em abril de 1937 pelo próprio Duce (como se fazia intitular), Cineccittà produziu, até a queda do fascismo (25.07.1943), duzentos e setenta e nove filmes, quase quatro por mês.

O mundo do cinema integrava o núcleo do regime e vários membros da família Mussolini voltaram-se para atividades na área; muitas divas foram amantes dos hierarcas fascistas e vários cineastas trabalharam para Vittorio Mussolini. Rossellini foi roteirista do primeiro filme deste, Luciano Serra Pilota (1938), girado na Etiópia, e tornou-se a seguir autor patrocinado e premiado (mais de uma vez), pelo regime. Antonioni (1912-2007) e Fellini também se iniciaram no cinema nessa época, em atividades secundárias.[xvii]

Portanto, destacar a associação entre o cinema italiano e o fascismo é levantar um tema, no mínimo, incômodo. Além de corajosa, a abordagem por Amarcord, Roma e I Clowns dessa problemática é plena de consequências; em resumo:

(1) propicia a delimitação efetiva do estatuto e dos elementos da linguagem cinematográfica, pois, a visada crítica (na acepção de autolimitação) de Fellini – ao contrário daquela dos neorrealistas – não se apressou em encenar e instaurar representações cinematográficas, que substituíssem os horrores da guerra – deixando, por conseguinte, que estes restassem em sua própria e ímpar feição, para o devido exame histórico; (2) propõe uma revisão radical da cultura de massa e da sua história na Itália, à luz da reciprocidade desta com o fascismo; exame cuja urgência evidencia-se na colusão crescente – através de Berlusconi e similares – do Estado com a comunicação de massa;[xviii] (3) obtém uma análise inovadora do fascismo, que detecta a persistência e a reprodução de processos genéticos (derivados da família patriarcal, da cultura de massa, do culto imagético etc.) em pleno vigor; (4) na oposição ao fascismo, mediante a crítica ao primado da memória unívoca, monológica ou mítica – para a qual Cinecittà contribuiu ativamente –, Amarcord elabora e explicita um paradigma oposto (na esteira da narrativa pseudopessoal de Roma, o filme precedente): aquele da narrativa democrática, estruturada dialogicamente.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).

Primeira parte da versão modificada do artigo publicado em Carlos Augusto Calil (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Companhia das Letras,1994.

Notas

[i] Em I Clowns (1970), os palhaços – tidos de modo geral, a partir de 8 ½, como índices líricos alusivos à inocência e à infância – são mostrados como seres à míngua, às voltas com a solidão e a velhice. De modo análogo, em Roma (1971), ao invés da visão da cidade como ateliê ou cenário essencial de Fellini, como era em geral compreendida após La Dolce Vita, o que se tem é a desconstrução da perspectiva autoral ou subjetiva, em suma, o estilo do autor visto do avesso, como um vazio. Ver a respeito L. R. Martins, “A Prática do Espectador”, in Conflito e Interpretação em Fellini/ Construção da Perspectiva do Público, São Paulo, Edusp/ Istituto Italiano di Cultura di San Paolo, 1994, pp. 25-50. Ou idem, “A Atividade do Espectador”, in Adauto Novaes (org.), O Olhar, São Paulo, Cia das Letras, 1988, pp. 385-97.

[ii] Para a aguda interpretação de asanisimasa – como cifra secreta de anima e senha de acesso a uma ordem intemporal – e a sua aproximação com o rosebud, de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, ver Gilda de Mello e Souza, “O Salto Mortal de Fellini”, in idem, Exercícios de Leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1980.

[iii] Fellini cogitou primeiro denominar o filme de Viva l’Italia; depois, de Il Borgo. Sobre essas hipóteses e a preocupação maior em “diligentemente evitar uma leitura em chave autobiográfica do filme”, ver Federico Fellini, Fare un Film, Torino, Einaudi, 1980, pp. 155-56.

[iv] Ver Roberto Schwarz, “8 1/2 de Fellini: O Menino Perdido e a Indústria” (1964), publicado originalmente no “Suplemento Literário”, O Estado de S. Paulo; republicado em R. Schwarz, A Sereia e o Desconfiado: Ensaios Críticos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 189-204.

[v] O artigo referido de Schwarz constituiu efetivamente uma exceção notável a essa tendência, e suscitou, inclusive, uma réplica como a de Bento Prado Jr., que insistiu, pelo contrário, na função memorialística ou confessional da narrativa em 8 ½. Ver B. Prado Jr., “A Sereia Desmistificada”, Alguns Ensaios, Max Limonad, 1985, p. 239. Para a contrariedade de Fellini com a interpretação intimista, ver L. R. Martins, Conflito …, op. cit. pp. 17-18, e nota 15, à p. 143.

[vi] Ver G. de Mello e Souza, “O Salto Mortal de Fellini”, op. cit..

[vii] Italo Calvino, “Autobiografia di uno spettatore”, in Federico Fellini, Quattro film, Torino, Einaudi, 1975, pp. XIX e XXII.

[viii] Ver Walter Benjamin, “L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée” (versão francesa) in idem Écrits Français, introduction et notices Jean-Maurice Monnoyer, Paris, Folio/Essais/Gallimard, 2003, pp. 214-17; trad. bras. [de uma outra versão]: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (segunda versão alemã), apres., trad. e notas Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado,  Porto Alegre, Zouk, 2012 Paulo, Brasiliense, 1985, vol. I, pp. 109-16.

[ix] Ver a propósito a menção a um mito celta em Marcel Proust, A la Recherche du Temps Perdu, Paris, Gallimard, 1949, vol. I, pp. 64-65.

[x] Para o contraste entre as noções de memória “da inteligência” ou “voluntária” e, de outro lado, a de “memória involuntária”, ver Marcel Proust, op. cit., pp. 64-69. Para um contraponto entre Proust e Baudelaire, ver W. Benjamin, “Sur quelques thèmes baudelairiens”, trad. Maurice de Gandillac, revue par Rainer Rochlitz, in Oeuvres/ tome III, traduit de l´allemand par M. de Gandillac, R. Rochlitz et Pierre Rusch, Paris, Folio/Essais/Gallimard, 2001; pp. 329-45, 376-87; trad. bras.: “Sobre alguns temas em Baudelaire”, in Obras Escolhidas/ Charles Baudelaire: um Lírico no Auge do Capitalismo, trad. H. A. Batista, S. Paulo, Brasiliense, 1989, vol. III, pp. 103-113, 139.

[xi] “O condicionamento bufão, de teatralidade, de infantilismo, a sujeição a um poder fantoche, a um mito ridículo, é o próprio fulcro de Amarcord… Uma grande ignorância e uma grande confusão… Ainda hoje, o que me interessa mais é a maneira psicológica, emotiva de ser fascista: uma forma de bloqueio, algo como ficar preso à adolescência…” Cf. Federico Fellini, Un Regista a Cineccittà, Verona, Mondadori, 1988, p. 13. Ver também idem, Fare…, op. cit., pp. 154-155; Ornella Volta, “Fellini 1976” in Vv. Aa., Federico Fellini, org. Gilles et Michel Ciment, Paris, Dossier Positif-Rivages, Rivages, 1988, p. 94. (Publicado pela primeira vez em Positif, 181, Paris, 1976).

[xii] Por exemplo, Roma Città Aperta (1945) e Paisà (1946), de que Fellini inclusive participou como principal assistente do autor.

[xiii] Recorde-se que Mussolini, eleito deputado em 1921, foi convidado pelo rei para a chefia do governo no final de 1922; entrementes, os nazistas detinham, seis anos depois (1928), apenas 12 cadeiras no parlamento. De fato, apenas após a eleição em 1932 de 230 deputados nazistas, é que Hitler veio a se tornar chanceler (primeiro-ministro) em 29.01.1933. Outro índice indicativo da precedência e da ascendência do fascismo ante o nazismo é que a “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922, que levou Mussolini ao governo, inspirou no ano seguinte em Munique o putsch fracassado de Hitler, que o levou à prisão onde ficou até dezembro de 1924. Por último, vale consultar um documento de época, escrito com a mordacidade e a agudez literária, para os detalhes, características de Trótski, então recém-exilado em Prinkipo, ilha próxima de Istambul. Firmado pelo autor em 10.06.1933, o texto traça vários paralelos que realçam a originalidade do fascismo e de Mussolini ante os alemães: “Desde o início, Mussolini tratou de modo mais consciente a matéria social, do que Hitler, que se sente mais próximo do misticismo policialesco de um Metternich qualquer do que da álgebra política de Maquiavel. Do ponto de vista intelectual, Mussolini é mais audacioso e cínico”. Por fim, o parágrafo conclui: “(…) a análise científica das relações de classe, destinada por seu autor a mobilizar o proletariado, permitiu a Mussolini, quando ele passou para o campo adversário, mobilizar as classes intermediárias contra o proletariado. Hitler realizou o mesmo trabalho, traduzindo na língua da mística alemã a metodologia do fascismo”. Cf. Léon Trotsky, “Qu’est-ce que le national-socialisme”, in idem, Comment Vaincre le Fascisme/ Écrits sur l’Allemagne 1930-1933, traduit du russe par Denis et Irène Paillard, Paris, Les Editions de la Passion, 1993, p. 227.

[xiv] “Deu-me prazer ler (…) que raramente o fascismo tinha sido representado com tanta verdade como no meu filme”. Cf. Federico Fellini, Fare…, op. cit., p. 153. Sobre a visão de Fellini acerca da persistência do fascismo na vida italiana, e a importância primordial disto em Amarcord, ver idem, ib., pp. 151‑157.

[xv] A passagem é conhecida mas vale recordá-la por inteiro pela sua contiguidade com a perspectiva analítica de Amarcord, penso eu: “O Estado totalitário busca organizar as massas proletarizadas recentemente constituídas, sem modificar as condições de propriedade que elas, as massas, tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua ‘natureza’, mas certamente não aquela dos seus direitos*. As massas tendem à transformação das condições de propriedade. O Estado totalitário procura dar uma expressão a essa tendência, porém resguardando as condições de propriedade. Noutros termos: o Estado totalitário leva necessariamente à estetização da vida política [grifos do autor] ». Cf. W. Benjamin, “L’oeuvre d’art…” [versão francesa], op. cit., pp. 217-28; trad. bras. [da segunda versão alemã]: « A obra de arte…. », op. cit., p. 117.

[xvi] Vittorio Mussolini planejou inclusive fundar, com Hal Roach, uma casa produtora ítalo-norte-americana, a RAM (Roach and Mussolini), e foi a Hollywood, em setembro de 1937, para tratar disso.

[xvii] Para mais detalhes, ver L. R. Martins, Conflito e…, op. cit., notas 35 e 36, pp. 68-70.

[xviii] O combate de Fellini a Berlusconi é antigo; inclui processos judiciais e comentários como: – “Não se deve falar dele (Berlusconi) numa atmosfera de salão. Berlusconi deveria ser convocado diante dos magistrados…”. Cf. Tatti Sanguinetti, “Fellini, intervista”, in Cahiers du Cinéma, n. 479/480, Paris, 1994, pp. 71-73 (publicado originalmente in Europeo, 05.12.1987).

02 12/23

Os Dois Indomáveis, Wild Rovers, 1971, Blake Edwards

No iutubi aqui 

Dois cowboys, Ross Bodine (William Holden) e Frank Post (Ryan O'Neal), são amigos que trabalham no rancho R-Bar-R, de Walter Buckman (Karl Malden). Bodine é um veterano que está ficando muito velho para ser vaqueiro, já Post é jovem e ambicioso e espera da vida algo mais do que tocar gado. Quando um vaqueiro morre num acidente no curral, Ross e Frank recebem de Walter a tarefa de levar o corpo da vítima até uma cidade próxima. Durante o trajeto Post sugere que o melhor jeito deles melhorarem de vida é roubando um banco. Após relutar, Bodine concorda com o plano e os dois roubam o banco local. Eles conseguem fugir com o dinheiro, mas isto provoca a ira de Walter e seus dois filhos, John (Tom Skerritt) e Paul (Joe Don Baker), que se sentem traídos, pois consideravam Bodine e Post homens de confiança. Assim John e Paul recebem a missão de capturar ou matar Ross e Frank. Adorocinema https://www.adorocinema.com/filmes/filme-5439/

06/12/23

Veneno Para As Fadas, Veneno para las hadas, 1986, Carlos Enrique Taboada

Flavia e sua família rica se mudam para uma nova cidade, onde a jovem conhece uma estranha estudante chamada Verónica, que conta para Flavia que ela é uma bruxa. As duas meninas tornam-se amigas, mas a influência negativa de Verónica sobre Flavia logo se manifesta quando elas viajam juntas.

Um clássico absoluto do cinema mexicano e do horror, “Veneno para as Fadas” foi o último filme lançado do mestre do gênero Carlos Enrique Taboada. Um conto gótico através do ponto de vista de uma criança, o filme cria uma atmosfera de suspense envolvente sem realmente mostrar nada definitivamente sobrenatural, transformando a imaginação de uma criança em um lugar de terror profano. FILMICCA

07 12/23

Arco do Triunfo, Arch of Triumph, 1948, Lewis Milestone

Em Paris, pouco antes da invasão nazista, Ravic (Charles Boyer), um médico refugiado que pratica medicina ilegalmente, evita Joan Madou (Ingrid Bergman) de cometer suicídio, após a morte repentina do seu amante. Ele consegue para Joan um emprego de cantora em uma casa noturna, onde seu único amigo, Boris Morosov (Louis Calhern), é o porteiro. Joan se apaixona por Ravic, mas ele é deportado e ela se torna amante de Alex (Stephan Bekassy), um milionário. Filmow https://filmow.com/o-arco-do-triunfo-t5540/

08/12/23

Texas 1867, 7 winchester per un massacro, 1967, Enzo G. Castellari

No iutubi aqui

SETTE WINCHESTER PER UN MASSACRO, TEXAS 1867 (1967) 

A princípio, o mais legal em percorrer a carreira do Castellari está sendo descobrir e escrever sobre alguns Spaghetti's que eu demoraria décadas para ver. Eu nunca tinha ouvido falar de SETTE WINCHESTER PER UN MASSACRO, um bom exemplar que, dessa vez sim, trata-se da oficial estréia de Enzo G. Castellari como diretor, assinando com um pseudônimo americanizado, E. G. Rowland.

O filme é sobre um ex-coronel sulista, Thomas Blake (Guy Madison), que não aceita a derrota na guerra de secessão e reúne um grupo de peculiares bandidos para tocar o terror pelos territórios por onde passa. Até que um dia, um misterioso pistoleiro, Stuart (Edd Byrnes) se junta ao bando e propõe a todos a ir recuperar um tesouro de duzentos mil dólares enterrado num cemitério indígena.

O tema caça ao tesouro seria abordado por Castellari em seu filme seguinte também, VOU, MATO E VOLTO, que já comentei aqui no blog. E parece que VOU, VEJO E DISPARO também tem esse mote, formando uma espécie de trilogia… este último eu preciso ver ainda. Mas suspeito de que este aqui seja o melhor deles! É um filme bem cuidado e que me fisgou logo de cara, nos créditos iniciais, com aquelas telas com uma cor predominante, mesmo estilo de TRÊS HOMENS EM CONFLITO e outros, com imagens da guerra civil americana e a trilha sonora composta por Francesco De Masi.

Depois disso há um prólogo inspirado, violento e cheio de ação (algumas cenas reaproveitas de POCHI DOLLARI PER DJANGO) que apresentam os personagens do bando, cada um com suas habilidades especiais, como o uso da faca, chicote, um deles dá uma voadora e corta a garganta de um sujeito com as esporas!!!

SETTE WINCHESTER já demonstra também um Castellari mais à vontade na direção, experimentando na edição e em alguns enquadramentos interessantes, como a cena em que o coronel Blake aparece pela primeira vez em seu esconderijo em território mexicano, mostrado em super closes de partes da face, como a boca ou os olhos, antes de mostrar seu rosto. Na sequência da ação no final, no cemitério indígena, Castellari faz um belo jogo de sombras e incrementa com elementos de horror.

Como Peckinpah ainda não havia mostrado ao mundo o que se pode fazer com tiroteios filmados poeticamente em câmera lenta, Castellari ainda filmava ação de modo convencional, o que não quer dizer que seja ruim. A cena do massacre de sherifes é um belíssimo exemplo disso.

O filme sofre um pouco com o ritmo, tem alguns momentos de marasmo e alguns personagens são bem desinteressantes. Outro problema é que não consigo ver o ator Edd Byrnes na pele de herói de Spaghetti Western, como é o caso aqui... embora grande parte do elenco esteja ótimo, especialmente Guy Madison. Apesar disso, ainda acho obrigatório para os fãs do gênero e do diretor.

E Castellari ainda iria melhorar muito na direção. Assisti essa semana a JOHNNY HAMLET e estou petrificado, impressionado, embasbacado com o primor que é a direção deste filme, os enquadramentos, a precisão dos movimentos de câmera, é algo absurdo! Mas é assunto para o próximo post! Até lá, muchachos!!!

09/12/23

O Mundo Depois de Nós, Leave the World Behind, 2023, Sam Esmail

Julia Roberts lida com os prenúncios do fim do mundo em filme da Netflix

Atriz repete parceria com o diretor Sam Esmail para 'O Mundo Depois de Nós', suspense com Ethan Hawke e Mahershala Ali 

Teté Ribeiro, FSP, 07/12/2023

"Obrigada, foi ótimo falar com você", diz Julia Roberts, com aquele sorriso absurdo de imenso e lindo, no final da entrevista com ela e com o diretor e roteirista Sam Esmail, por Zoom, no último final de semana. Ufa.

A atriz de 56 anos, uma das mais famosas, célebres, premiadas, ricas, lindas, bem cuidadas, bem nascidas, bem casadas de Hollywood pode ser uma peste com jornalistas. Com fãs também. Tudo que ela é amada pelo público e pela crítica, por diretores, roteiristas e colegas em geral, é temida por quem, por escolha profissional, tem que entrevistá-la cada vez que ela se compromete a divulgar um trabalho.

Entrevistas com celebridades de Hollywood não são exatamente coisas que acontecem de tanto um repórter raçudo insistir. Esses encontros são de outra natureza, e em geral estão descritos no contrato assinado entre quem quer que seja que pague os milhões de dólares pelo serviço dessas estrelas. Ou seja, é trabalho para todos os envolvidos.

Mas claro que, muitas vezes, quem opta por dedicar a vida profissional a escrever sobre cinema, música, teatro, arte, moda, admire e acompanhe o trabalho de atores, atrizes, cantores, estilistas etc. E aí acaba ocorrendo um descompasso, um degrau invisível entre quem faz as perguntas e quem dá as respostas.

E Julia Roberts costumava deixar bastante evidente que os encontros com a imprensa era a parte do trabalho que ela mais desprezava. No ano 2000, quando estava dedicada ao lançamento do filme "Erin Brockovich - Uma Mulher de Talento", pelo qual ganhou seu único Oscar de melhor atriz, destratou um colega brasileiro, então correspondente em Nova York.

"Quando entrei para entrevistá-la, em uma suíte do hotel Four Seasons, em Los Angeles, ela me perguntou: ‘Cadê meus presentes? Aqui é assim’.", conta Marcelo Bernardes. "Fiquei sem jeito, mas segui com a entrevista e ela respondeu às minhas perguntas todas com muito sarcasmo, foi tudo bem desconfortável".

No mês seguinte, na revista americana Rolling Stone, que trazia o rapper DMX na capa, uma chamada dizia "Julia Roberts Talks Trash" — Julia Roberts fala besteira, em tradução livre. Na matéria, o repórter americano revela que a atriz o havia escondido no quarto da suíte em que deu a entrevista, para ele "testemunhar" o jeito como ela maltratava os jornalistas.

"O repórter contou da minha entrada sem presentes, mas exagerou a história, disse que eu tremi. Não foi exatamente assim, só fiquei muito sem jeito. E, depois, com muita raiva", conta Bernardes, que hoje em dia ri da história. Talvez o Oscar tenha amansado Julia Roberts. Ou a vida. Ou, ainda, talvez seja por isso que nos últimos anos ela tem dado entrevistas sempre ao lado de outra pessoa, ou um outro ator do mesmo elenco, ou, como foi desta vez, o diretor do filme, Sam Esmail.

"Quando eu sinto a afinidade criativa que tenho com o Sam, em quem confio totalmente e que sempre me inspira, me desafia, tendo a aceitar os trabalhos. Temos o tipo de alquimia que procuro em um diretor", diz a atriz.

"Fazer um filme ou uma série de TV é incrivelmente difícil", diz Esmail. "Quando você encontra esse tipo de entendimento que temos entre nós, é como se tivéssemos um salva-vidas no set, alguém em quem podemos confiar completamente. Fora isso, o trabalho vira uma alegria todos os dias", completa o diretor.

Com 46 anos, Esmail está se estabelecendo como um criador e produtor cada vez mais poderoso em Hollywood, onde foi revelado em 2015 com o enorme sucesso da série "Mr. Robot", com Rami Malek, que durou até 2019.

Roberts e Esmail ficaram próximos quando fizeram a série de suspense "Homecoming", que estreou em 2018. Julia protagonizou a primeira temporada, de 10 episódios, em um papel que se desdobra em duas versões da personagem.

No ano passado, estreou a série "Gaslit", de oito episódios, produzida por ele e estrelada por ela, baseada em uma personagem real, Martha Mitchell, casada com o procurador-geral dos Estados Unidos no governo do presidente Richard Nixon, John Mitchell, interpretado por Sean Penn.

Martha era uma figura controversa e sincerona que gostava de aparecer, dava entrevistas e participava de programas de TV em que fazia comentários sem nenhuma censura a respeito do que sabia sobre os bastidores do escândalo de Watergate, e que acabou sequestrada por homens de confiança de seu marido para que ficasse finalmente quieta.

O filme que uniu os dois pela terceira vez, "O Mundo Depois de Nós", é uma adaptação do livro de mesmo nome de Rumaan Alam, lançado em 2020, e que conta a história de uma família que passa um fim de semana de férias enquanto o mundo parece entrar em colapso.

Julia Roberts interpreta Amanda, uma mulher bem-sucedida, mas eternamente irritada, casada com o folgadão Clay, papel de Ethan Hawke, e mãe de dois adolescentes, que, numa noite de insônia, aluga uma casa próxima a Nova York, faz as malas de todos os membros da família e só apresenta seu plano quando é tarde demais para que qualquer um deles tenha tempo de fazer alguma objeção.

"Imaginei a Julia neste papel assim que li o livro", afirma o diretor. "Não porque ela tenha alguma coisa a ver com a personagem, mas porque eu sabia que, para retratar uma situação tão complicada como a do filme eu precisava da melhor atriz possível, e Julia Roberts é o meu Michael Jordan da atuação, não tem ninguém igual".

A situação complicada a que o diretor se refere é, basicamente, o fim do mundo. Ou os sinais de que ele está muito próximo que começam a surgir e ficam cada vez mais estranhos. O primeiro deles é a falta de internet, que gera um incômodo geral, principalmente na filha de 12 anos do casal, que está no final da série vintage "Friends" e não consegue conexão para assistir justamente o último episódio.

Assim que a família se instala na casa paradisíaca alugada em Long Island, à beira-mar, decide fazer um piquenique na praia para se distrair do fato de que está todo mundo sem celular. Então, um enorme petroleiro surge em alto mar e vem navegando em direção ao lugar exato em que a família botou suas cadeiras e toalhas e simplesmente não para nunca, até que fica entalado na areia.

Nesta mesma noite, bate na porta um homem negro, papel de Mahershala Ali, e sua filha de 20 e poucos anos, interpretada por Myha’la. Ele veste um smoking, dirige um carro de luxo e diz que é o dono daquela casa, que eles trocaram e-mails para acertar o aluguel, e ele decidiu arriscar a sorte e tentar passar a noite na casa porque um apagão deixou Nova York sem energia e eles moram no 16º andar de um prédio de luxo na Park Avenue.

Isso tudo está nos primeiros 10 minutos de filme, e o suspense instalado só toma proporções cada vez mais terríveis, com subtramas que tocam no racismo, nas teorias da conspiração, na nossa dependência cada vez maior na tecnologia, na fragilidade das relações humanas e no que cada um de nós se torna, ou revela, quando está diante do maior de todos os medos.

"Acredito que, quando as pessoas enfrentam uma crise, suas características mais intrínsecas, aquelas que costumamos manter em sigilo, acabam se intensificando. Isso acaba se manifestando na maneira como tratamos outras pessoas, pessoas que não conhecemos ou que não são tão próximas", diz Roberts. "É uma maneira de nos proteger e defender as pessoas que amamos de verdade".

Ou seja: em caso de perigo iminente, não conte com Julia Roberts. Mas ela está ótima em "O Mundo Depois de Nós", uma das boas surpresas deste final de ano.

"O Mundo Depois de Nós": a humanidade é o apocalipse 

O filme "O Mundo Depois de Nós", Netfix, tem a premissa de provocar o caos com a meta de um golpe de estado por militares estadunidenses. Nada de apocalipse e fim do mundo. Estratégia digna de um Donald Trump.

Filmes com a mesma temática:.

Minority Report: A Nova Lei, Minority Report, 2002, Steven Spielberg

Roteiro Scott Frank &Jon Cohen&Philip K. Dick

Sete Dias de Maio, Seven Days in May, 1964, John Frankenheimer

Roteiro: etcher KnebelCharles&W. Bailey II&Rod Serling

No filme "Minority Report" não aparece a tentativa de golpe como está no conto de Philip K. Dick. Coisas de Steven Spielberg.

Já no filme "Sete Dias de Maio" a tentativa de golpe ´pelos militares é explícita.















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