terça-feira, 16 de novembro de 2021

Filmes parte 19

12/10/2021

1.    Headhunters, Hodejegerne, 2011, Morten Tyldum
2.    O Mais Bandido dos Bandidos, Dirty Dingus Mage, 1970, Burt Kennedy
3.    A Dama de Preto, Park Row, 1952, Samuel Fuller
4.    Round 6, Squid Game, TV Mini Series, 2021, Hwang Dong-hyuk
5.    Capacete de Aço, The Steel Helmet, 1951, Samuel Fuller
6.    As Calçadas de Londres, St. Martin's Lane, 1938, Tim Whelan
7.    Gatilho Relâmpago, The Fastest Gun Alive, 1956, Russell Rouse
8.    Quatro Confissões, The Outrage, 1964, Martin Ritt
9.    My Name, Undercover, TV Series, 2021, Jin-min Kim
10.    O Falcão dos Mares, Captain Horatio Hornblower, 1951, Raoul Walsh
11.    Rapsódia, Rhapsody, 1954, Charles Vidor
12.    Garras Amarelas, Across the Pacific, 1942, John Huston, Vincent Sherman (final scenes)
13.    Duna, Dune: Part One, 2021, Denis Villeneuve
14.    Anjos do Sol , 2006, Rudi Lagemann
15.    Vingança & Castigo, The Harder They Fall, 2021, Jeymes Samuel
16.    Colette, 2018, Wash Westmoreland
17.    O Pirata dos Sete Mares, The Spanish Main, 1945, Frank Borzage
18.    O Matador, The Gunfighter, 1950, Henry King
19.    Caçada Humana, From Hell to Texas, 1958, Henry Hathaway
20.    A Fuga de Tarzan, Tarzan Escapes, 1936, Richard Thorpe
21.    Refém Assassino, The Killing Jar, 2010, Mark Young
22.    Paprika, Papurika, 2006, Satoshi Kon
23.    7 Prisioneiros, 2021, Alexandre Moratto

Headhunters, Hodejegerne, 2011, Morten Tyldum


É sempre bom se deparar com uma obra que supera as expectativas, ainda que não seja em muito. Mesmo por meio de uma linguagem convencional que imprime suas formalidades, muitas vezes presas ao gênero, “Headhunters” ainda consegue oferecer algo fora da caixa. Tanto pela história como pelas imagens, este é um filme que deixa suas tímidas marcas após a exibição.

O longa acompanha Roger Brown (Aksel Hennie), funcionário de uma empresa de recrutamento que nas horas vagas rouba e revende quadros valiosos para manter um nível de conforto e sofisticação ao lado de sua esposa, Diana (Synnøve Macody Lund), dona de uma galeria de arte recém inaugurada que desconhece as práticas criminosas do marido. À beira da falência, visto sua ambição maior do que seu bolso, Roger encontra a oportunidade que pode lhe garantir uma vida isenta de preocupações financeiras, mas acaba se deparando com uma estranha teia de relações da qual ele é o alvo.

Adaptado do livro homônimo de Jo Nesbø, o roteiro de Lars Gudmestad e Ulf Ryberg é extremamente sucinto. Ao mesmo tempo em que consegue atribuir a pequenos momentos uma importância fundamental para a evolução da trama, também é descritivo quando necessário, não se atendo a questões que, se expostas de outra maneira, tomariam um considerável tempo e desviariam o foco. As motivações dos personagens não ficam muito claras até o terceiro ato, mas o desenrolar dos fatos entretém o bastante para que as prováveis dúvidas do espectador fiquem suspensas até a hora correta de serem sanadas – mesmo que algumas respostas genéricas revelem maior preocupação com o fechamento de buracos do que com o significado delas para os personagens.

A direção de Morten Tyldum trabalha bem com as diferentes atmosferas do filme, passeando entre o drama romântico e a violência gráfica em uma desenvoltura que mantém o naturalismo e a fluidez das situações. Os movimentos de câmera e os tipos de planos similares em cada sequência dão coesão às imagens, formando uma unidade a cada bloco de ações – como na sequência em que vemos a dinâmica do roubo de quadros, onde grande parte dos planos apresenta um movimento de câmera que rima na trajetória e na velocidade. Esta direção precisa é acompanhada pela montagem de Vidar Flataukan, que se utiliza frequentemente de pequenos saltos temporais (elipses) para definir o ritmo do longa e corroborar com a síntese do roteiro, sem perder a continuidade do clima imposto à cena.

É interessante como o desenvolvimento do enredo propõe um gradual rebaixamento do protagonista – física, psicológica e moralmente. Embora esta abordagem não seja novidade, há brechas que sugerem um trabalho simbólico neste sentido, o que merece reconhecimento. Além da clara metáfora na cena das fezes, isto também pode ser observado nas frequentes mudanças de vestimentas que Roger tem que fazer para evitar seu rastreamento. Tal prática é coerente no contexto da trama, mas também pode representar uma vulnerabilidade necessária ao processo de maturação do personagem. Roger fica nu de corpo e alma para que possa remodelar sua postura e suas ideias. Isto se dá sempre em frente a um rio, que carrega nas águas uma simbologia inerente de renovação.

A expressiva atuação de Hennie contribui muito para esse entendimento. Fornecendo um teor satírico coerente ao espanto e ao despreparo de seu personagem diante das circunstâncias que o cercam, o ator contrasta bruscamente duas imagens do protagonista. Primeiramente apresentado como um playboy esnobe, controlador e seguro de si, logo depois está desesperado e totalmente exposto pela queda de suas máscaras, evidenciando o medo da morte, a falha do plano, a crise amorosa, etc. – não é à toa que há uma atenção especial na retirada da aliança durante uma de suas despidas.

“Headhunters” é um daqueles filmes que nos faz torcer pelo bandido. Dito isso, uma discussão mais aprofundada sobre valores morais é totalmente viável nesta obra, mesmo que as convenções do gênero se imponham em certo nível. Com roteiro objetivo, direção rica e atuações competentes, o longa norueguês surpreende aparentemente sem querer. A simplicidade quase despretensiosa tanto garante um bom divertimento temporário quanto oferece possibilidades para maiores reflexões.

Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.

13/10/2021

O Mais Bandido dos Bandidos, Dirty Dingus Mage, 1970, Burt Kennedy

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 Sobre Jack Elam (1920–2003), 207 créditos 

O Mais Bandido dos Bandidos (Dirty Dingus Magee). Homem está a procura de um trem com ouro. Fora-da-lei que poucos levam a sério tenta melhorar de vida, mas há sempre alguém impedindo: o xerife trapalhão, os índios e até a cavalaria. Sinatra à vontade num faroeste cômico.

14/10/21

A Dama de Preto, Park Row, 1952, Samuel Fuller

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A Dama de Preto, Eduardo Kaneco

A Dama de Preto é um dos melhores filmes sobre jornalismo já realizados no cinema. A estória se passa em 1880, em Nova York, na rua do título original, Park Row, onde se localizavam os mais importantes jornais da cidade.

Phinneas Mitchell trabalhava no The Star, mas seu espírito rebelde, incapaz de aceitar qualquer tipo de censura ou manipulação de notícias, o faz ser despedido pela impiedosa herdeira que comanda o jornal, Charity Hackett. Logo, um empreendedor do ramo aproveita a oportunidade para oferecer a Phinneas que funde seu próprio jornal, o pequeno The Globe, de tiragem limitada e fundamentado em preservar a ética da profissão.

Porém, Charity se incomoda com a concorrência, tanto profissional como pessoalmente porque surge um clima romântico entre ela e Phinneas. Por isso, tenta acabar com o The Globe, empregando práticas inescrupulosas. Para piorar, seu gerente chega ao extremo de ataques físicos aos empregados do The Globe e até jogar bombas em sua sede.

Samuel Fuller e o jornalismo

Samuel Fuller foi repórter do New York Journal quando jovem, e A Dama de Preto representa sua homenagem ao jornalismo norte-americano, como ele afirma graficamente na tela no início do filme. Ele também é roteirista deste seu quinto longa-metragem, e sua experiência na profissão foi fundamental para escrever essa contundente estória sobre o nascimento de um jornal independente. Além disso, o filme também conta a criação do formato tabloide, um jornal com menos páginas e estrutura menos formal.

Por outro lado, A Dama de Preto serve também como uma metáfora de Samuel Fuller como cineasta independente, capaz de filmar rapidamente com baixo orçamento, o que lhe garantia controle da produção e, daí, liberdade de expressão. Neste filme especificamente, Fuller adota um estilo diferenciado.

Logo no início, coloca o nome de sua produtora, Samuel Fuller Productions, na mão da estátua de Gutenberg, o criador da tipografia. Depois, emenda esse trecho com um plano sequência longo que apresenta o protagonista Phinneas Mitchell.

Aliás, o filme possui vários desses planos longos, além de muita movimentação da câmera em travellings, chicotes e zooms. E esse estilo livre combina com a própria estória do The Globe contada no filme.

O ponto fraco de A Dama de Preto é o ator principal Gene Evans, que interpreta Phinneas Mitchell. Não que sua atuação comprometa, mas ele não possui a presença necessária para o papel. Sua carreira é predominantemente marcada por papéis coadjuvantes, justamente porque lhe falta o brilho que um protagonista necessita para atrair a empatia do público. Em muitas cenas de A Dama de Preto, fica até difícil distingui-lo dos demais atores.

Dureza

Apesar da dureza exposta durante todo o filme, Fuller se espelha em Frank Capra para concluir A Dama de Preto em tom otimista. Afinal, o cineasta deixa claro seu agradecimento por poder trabalhar independentemente na indústria do cinema americano.

Enfim, é uma obra obrigatória para jornalistas.

Ficou interessado? Então, saiba que A Dama de Preto foi lançado em DVD pela Versátil Home Video dentro da caixa Jornalismo no Cinema.

Ficha técnica:

A Dama de Preto (Park Row, 1952) EUA. 83 min. Dir/Rot: Samuel Fuller. Elenco: Gene Evans, Mary Welch, Bela Kovacs, Herbert Heyes, Tina Pine, George O’Hanlon, J.M. Kerrigan, Forrest Taylor, Don Orlando, Neyle Morrow, Dick Elliott, Stuart Randall, Dee Pollock, Hal K. Dawson.

16/10/21

Round 6, Squid Game, TV Mini Series, 2021, Hwang Dong-hyuk

Sobre Jung Hoyeon 

Aqui pelo menos tenho uma chance. Mas lá fora? Não tenho nada lá fora

Espetacular, Round 6 é horror com substância e arte

Produção usa os códigos do cinema de tortura de uma forma catártica e inesperadamente filosófica.

HENRIQUE HADDEFINIR, 23.09.2021

Muito antes dos dias de hoje, George Romero já falava sobre a fascinação do ser humano pelo espetáculo da violência. O torture porn nem mesmo tinha esse nome. Chamado de cinema splatter (ou gore), ele começou como apenas uma representação gráfica da violência com que as vítimas eram dilaceradas, não necessariamente por alguma razão justificada, mas pelo prazer da perversidade. Os zumbis de Romero e seu apetite incontrolável por carne humana, pintavam o cenário perfeito para garantir aos espectadores alguns engulhos durante a exibição das películas. Contudo, as fronteiras entre slasher (sub-gênero com assassinos mascarados) e splatter eram tênues, já que o resultado final – pessoas evisceradas – era sempre o mesmo.

Em 2004 o diretor James Wan sofisticou o tema com seu Jogos Mortais. A ordem ainda era a de mostrar pessoas sendo destrinchadas, mas havia algo especialmente pérfido na forma como a história foi montada. Na trama, pessoas que não valorizavam a vida ou a desperdiçavam com falta de caráter, eram confinadas e desafiadas a um jogo: preso a alguma geringonça, você tinha a opção de se salvar, desde que matasse com requintes de crueldade alguma outra pessoa ou promovesse em si mesmo algum tipo de mutilação. A ideia era acordar no confinado o anseio pela sobrevivência e aproveitar a violência para discutir culpabilidade.

Round 6, nova produção sul-coreana da Netflix, se apoia em bases muito parecidas com as de James Wan, mas consegue construir sua própria identidade a partir de diferenças que só aumentam o senso de crueldade da história. Enquanto na trama de Jogos Mortais as pessoas não tinham escolha e eram obrigadas a entrar no jogo, em Round 6 sempre há uma saída, embora não seja com surpresa que encaramos a disponibilidade do indivíduo para jogar com os limítrofes da morte, desde que escapando dela, você ganhe alguma coisa com isso. E que vetor mais poderoso poderia haver além do dinheiro?

O diretor de Round 6, Hwang Dong-Hyuk, teve a ideia para a série quando ele mesmo passou por muitas dificuldades financeiras. Assim nasceu a história de Gi-hun (Jung-Jae Lee), um loser de carteirinha, que fracassou em todos os negócios que tentou, perdeu casamento, voltou a morar com a mãe e ainda tem um fraco por apostas. Ele é o candidato perfeito para um estranho tipo de recrutamento de uma empresa que oferece a solução para todos os seus problemas financeiros, desde que você tope participar de um jogo do qual não sabe absolutamente nada a respeito.

Mais de 400 pessoas são reunidas numa ilha deserta e assinam suas autorizações sem saber qual será o primeiro jogo. Quando a brincadeira de “Batatinha frita 1, 2 ,3...” termina com metade dos jogadores mortos, a trama revela sua reviravolta mais inusitada: não é só o fato de que as pessoas “eliminadas” são, na verdade, assassinadas, mas também a de que mesmo sabendo disso, metade dos sobreviventes aceita seguir no jogo. De forma inteligente, o roteiro solta os personagens no mundo exterior por algumas horas depois que eles sobrevivem ao primeiro massacre, apenas para provar que a vida moderna e a suas pressões podem parecer muito piores que entrar num jogo mortal. E você entende, você acredita, o que só reforça o poder que a história de Round 6 tem logo em seus primeiros momentos.

Carniças

Os 9 episódios dessa primeira temporada da série se arrumam em torno dos 6 jogos a que o título se refere. Acabamos sendo levados até parte da mitologia de Jogos Vorazes, já que é evidente que cada jogo e cada morte está sendo acompanhada, registrada e transmitida. O “torneio” dessa vez tem como “tema” o universo das brincadeiras infantis, deixando tudo ainda mais enervante. Imaginem se no clássico “cabo-de-guerra”, o time que perdesse caísse num abismo? E se na “amarelinha” o pulo na casa errada te levasse a um mergulho mortal? Cada etapa tem seu requinte de crueldade, suas regras e – é claro – seu “macete”. Como em todo jogo, é possível vencer se o jogador conhecer aquele simples “detalhe”.

Jung Hoyeon

Entre os jogos, os roteiros vão organizando seus personagens dentro de modelos clássicos do gênero: o heroi que se redime, o vilão desalmado, o quietinho que se corrompe, o jogador sem potencial para vencer que vai longe, e por aí vai... Mas, apesar de todos os personagens estarem encaixados em impressões recorrentes, nenhum deles é desperdiçado ou negligenciado. Todos encontram seus momentos de enfoque, são poupados ou sacrificados nas horas certas e oscilam entre nos conquistar com carisma e nos enojar com seus quilos de primitivismo.

Cada novo jogo é uma catarse. A direção de arte da série é impecável, com cada um dos eventos principais situados em contextos pseudo-infantis que conseguem ser nostálgicos e assustadores ao mesmo tempo. Os episódios alternam desafios de resultados violentos rápidos com desafios que torturam seus jogadores com o extremo da simplicidade; como no impressionante episódio em que eles ocupam as ruas de uma pequena vila fictícia para jogarem bolas-de-gude. Eles podem jogar como quiserem, desde que haja um vencedor. O perdedor leva um tiro, à queima-roupa. Então, por longos 30 minutos e divididos em duplas, os jogadores sabem que alguém precisa vencer para o outro morrer. É angustiante, fascinante e revelador.

Infelizmente, ainda há arestas soltas. Todo o arco envolvendo o policial infiltrado acabou se revelando deslocado, justamente por não afetar direta ou indiretamente o andamento da trama principal. Quando chegamos até o episódio final, toda a ansiedade para descobrir como terminam os jogos deixa qualquer outro aspecto da narrativa em segundo plano. As transformações até ali, as perdas, os enganos... Existe algo de perturbador até na maneira como nos comportamos enquanto espectadores. O horror da morte pouco a pouco vai dando lugar às nossas apostas pessoais. Nos pegamos torcendo para que nossos favoritos subjuguem os rivais, que passamos – tal qual os donos do jogo – a ver como simples números.

É cedo para dizer se Round 6 vai acabar perdida no miolo das próprias sequências (como aconteceu com Jogos Mortais), mas já é possível dizer com plena segurança que o trabalho da série é quase impecável. O horror, o gore, o torture porn, está tudo ali na lista de ingredientes necessários para o sucesso de um produto do gênero. Mas, poderosa mesmo é a forma como a mira se volta para nossa própria direção. Quem eu seria nesse jogo? Eu seria aquele que perdura porque entende que a morte é regra do jogo ou eu seria mais um na estatística do fracasso? É justo colocar as coisas nesses termos? Mas, não foi a engrenagem implacável da vida em sociedade que estabeleceu que termos eram esses? Eu giraria a roda ou eu seria descartável, uma sobra, uma carniça?

Round 6 está disponivel na Netflix e em pouco tempo já conquistou as primeiras posições entre os mais vistos. O negócio da dor rende e prospera. Ao menos aqui, ela tem substância e arte.

TÉDIO [ROUND 6] [Análise 3] 

18/10/21

Capacete de Aço, The Steel Helmet, 1951, Samuel Fuller

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Guerra da Coreia (25 de junho de 1950 – 27 de julho de 1953)

O capacete com furo de bala é apenas uma peça de figurino. O capacete com furo de bala não passa de um objeto de cena. Mas este objeto singular absorve em sua pele de aço todas as tensões. Não resiste por igual a todos os golpes: é vazado por um projétil. Mas continua lá, carregando da guerra a marca; ele mesmo apresentando-se como estigma. O capacete metálico é uma coisa que se coloca com a clareza e a força fotogênicas de sua materialidade. E ainda assim, encontra espaço dentro de si para forrar-se de símbolo.

William Chun, Gene Evans

O capacete de aço está lá para mostrar que algo vai errado, que algo fugiu da ordem; ou que algo jamais se enquadrou na ordem; ou ainda que algo deveria sair da ordem, urgentemente. O capacete furado sinaliza que o seu usuário é um fantasma, um zumbi. O soldado deveria ter morrido; é muito estranho alguém sobreviver a essa circunstância, não? Mas é de estranhezas que se alimenta o cinema de Samuel Fuller. É estranho o sargento Zack, profissional da guerra.

É estranho o menino sul-coreano que anda com orações a Buda pregadas nas costas. São estranhos o paramédico negro, o tenente “virgem” de guerras, o cabo aspirante a padre, o sargento nipo-americano (lembremos que este filme é de 1951 e trata da Guerra da Coréia), o jovem soldado irremediavelmente careca e o soldado incondicionalmente calado. É estranho essas pessoas acabarem se juntando em um grupo. E é estranho esse grupo abrigar-se num templo budista em pleno campo de batalha.

É mais estranho ainda o sorriso – quase irônico – da estátua gigante do Buda que testemunha a agonia e glória que só a guerra pode proporcionar. É estranhíssimo – quase burlesco – o inimigo capturado: homenzinho de ínfima estatura que ostenta a patente de major e um discurso provocativo de intensidade inversamente proporcional à sua compleição física: a segregação dos negros e o confinamento de nipo-americanos em campos de concentração durante a II Guerra são lâminas agudas que o militar comunista

– e o próprio Fuller, logicamente – usa para espetar seus oponentes. Os Estados Unidos da América são uma grande e óbvia contradição. O patriotismo de Fuller é como o de um Camões (pensando nos “Lusíadas”): a nação que se ama possui uma responsabilidade para com os seus membros. O errado, o estranho, o contraditório: o incansável sargento Zack do capacete furado a tiro é a encarnação de todas as incoerências. E o cinema virtuoso de Sam Fuller é o seu perpétuo veículo.

André Renato 

"A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte." André Bazin.

20/10/21

As Calçadas de Londres, St. Martin's Lane, 1938, Tim Whelan

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Calçadas de Londres, no original St. Martin’s Lane, não é lá um grande filme, na minha opinião. Mas, para quem gosta de cinema, é interessantíssimo de se ver, por vários motivos.

Pela época em que foi feito – é uma produção de 1938, o último ano antes da Segunda Guerra, pouco antes dos bombardeios nazistas sobre Londres. É absolutamente fascinante ver as imagens das ruas de Londres daquela época.

Pelo elenco. Que maravilha ver Charles Laughton, Vivien Leigh e Rex Harrison jovens. Não me lembro de ter visto nenhum deles tão jovem. Vivien Leigh, de 1913, estava com 25 aninhos. Laughton estava com 39 anos (ele é de 1899), exatamente como seu personagem – e já era bem gordão. Rex Harrison, de 1908, estava com 30. É também fascinante pensar que esse aqui deve seguramente ter sido um dos filmes que convenceram o produtor David O. Selznick a dar para essa inglesinha o papel que todas, absolutamente todas as atrizes de Hollywood, Bette Davis à frente, queriam desesperadamente – o de Scarlett O’Hara, a orgulhosa dama sulista de … E o Vento Levou, que seria lançado no ano seguinte ao deste St. Martin’s Lane aqui, 1939.

Vivien Leigh and Charles Laughton in St. Martin's Lane (1938)

Aliás, como bem observou Leonard Maltin, o personagem interpretado aqui por Vivien Leigh é bastante parecido com Scarlett O’Hara: uma mulher independente, cheia de confiança em si mesma, disposta a fazer de tudo para obter sucesso na vida – inclusive passar por cima dos outros.

Maltin deu ao filme – que nos Estados Unidos teve o título mais, digamos, palatável, compreensível para as platéias não inglesas de Sidewalks of London – 3 estrelas em 4: “Laughton está soberbo como um busker (artista de rua), com Leigh quase tão boa quanto ele como sua protegée, que usa e abusa de tudos em sua jornada rumo ao sucesso como uma estrela de teatro (um personagem não diferente de Scarlett O’Hora!). Entretenimento de primeira… até a pessimamente concebida sequência final. Título britânico original: St. Martin’s Lane.”

A jovem belíssima rouba o dinheiro suado do gorducho de muitas artes

Os buskers! Há buskers em todas as grandes cidades do mundo. São Paulo está cada vez mais cheia de buskers: eles tomam conta das calçadas da Avenida Paulista, em vários trechos, mas em especial perto da esquina com a Augusta, na região do Conjunto Nacional.

Existem em todos os lugares, mas a palavra só existe mesmo no inglês britânico – tanto que Maltin teve que, entre parênteses, traduzir para os americanos: street entertainers. Seria esquisito usar entretenedores de rua, então são mesmo artistas de rua. Cantores, instrumentistas, dançarinos, mágicos, equilibristas, o escambau.

Um texto em letras garrafais informa o espectador, logo após os créditos iniciais, antes do início da ação:

“Em Londres, a diversão noturna começa nas ruas. Do lado de fora dos cinemas e teatros, os buskers, como Londres chama os artistas de rua, ganham seu sustento apresentando-se para as multidões que estão nas filas.”

E então a câmara dá um passeio por ruas agitadas de Londres à noite. Longas filas diante dos teatros – e, disputando a atenção (e as moedinhas) de quem está nas filas, hordas de artistas de rua. Um carrão enorme pára perto de um teatro, e dele desce o ator principal da peça que está em cartaz ali, um tal Jan Duchesi (Romilly Lunge). Ele é imediatamente cercado por uma multidão de fãs que pedem autógrafos, querem vê-lo de perto, tocar nele. Vemos uma jovem de rosto lindíssimo se aproximar do grupo. Veremos depois que ela se apresenta como Libby, forma carinhosa de Liberty, seu único nome – o papel, é claro, de Vivien Leigh, em seu oitavo filme.

Libby dá uns cotovelões, consegue chegar perto do astro, mas não tem caneta, e, assim, perde a chance de pegar seu autógrafo. E Duchesi finalmente escapa dos fãs e entra pela porta lateral do teatro.

A câmara volta a percorrer a rua principal em frente ao teatro, passa por vários buskers, e acaba se fixando num sujeito bastante gordo, com a silhueta bem redonda, o barrigão proeminente tornado mais óbvio pelo paletó dois números menor. O personagem de Charles Laughton se chama Charles Saggers, e ele dança, canta, coreografa, compõe cançonetas, faz um pouco de tudo, mas gosta mesmo é de declamar poemas. Tem especial predileção por “If…”, de Rudyard Kipling (aquele que começa assim, na tradução de Guilherme de Almeida: “Se és capaz de manter a tua calma quando / Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa; / De crer em ti quando estão todos duvidando, / E para esses no entanto achar uma desculpa…”) e por “The Green Eye of the Little Yellow Dog”.

E então Charles Saggers faz uma pequena introdução, dizendo que recitará em seguida um poema que ficou famoso na voz do ator Bransby Williams e mais tarde também na voz de John Gielgud.

Achei fascinante ver que já era famoso, em 1938, o grande ator de teatro e cinema que eu veria em tantos bons filmes, como Júlio César (1953), Providence (1977), O Homem Elefante (1980), Gandhi (1982), Shine – Brilhante (1996).

E então aquele senhor rotundo começa a declamar, a plenos pulmões, “The Green Eye of the Little Yellow Dog”. Nunca tinha ouvido falar nele; vejo agora que é um poema escrito em 1911 por J. Milton Hayes, um típico exemplo do “monólogo dramático” que fazia muito sucesso no music hall londrino no início do século XX.

Está ainda no início do poema quando Libby passa por ali, observa o recitador, olha em volta – e rouba a única moedinha que já havia sido depositada no chapéu que Charles Saggers havia colocado no chão, diante de si!

Charles continua declamando o poema e consegue segurar a moça pelo braço, mas ela é arisca, tasca-lhe um tapa forte na cara, e, ágil, escapa e some no meio da multidão. A ladrazinha ágil sabe imitar o declamador – e sabe dançar lindamente

Agora munida de uma moedinha, Libby vai a um food truck ali perto. Em 1938, Londres já tinha food truck, sim, senhor. Pede a seu velho conhecido Doggie (Alf Goddard), o dono do estabelecimento, um café e uma informação: quem são aqueles dois desconhecidos ali, do outro lado, junto ao balcão? Doggie informa que o de chapéu é um famoso jornalista americano, e o outro é um compositor, Harley Prentiss (o papel de um Rex Harrison 36 anos mais moço do que o Professor Higgins de My Fair Lady).

Libby logo se aproxima dos dois. – “Você é compositor? Já publicou alguma coisa?” Apresenta a si mesma como dançarina, entre outras coisas – e começa a imitar Charles recitando “The Green Eye of the Little Yellow Dog”.

É falar no Diabo que ele aparece. Charles vem chegando e vai observando a moça que recita como se fosse ele. Chega perto do grupo, quer tomar satisfação com a moça que roubou sua moeda, Harley e Doggie se intrometem para impedir que haja briga, chega um policial. Harley estende o cachimbo da paz – cigarros para todos, saídos de sua belíssima cigarreira que é uma jóia, e que ele, distraidamente, coloca no balcão do food truck. Libby vê a cigarreira, bota embaixo do braço, diz que precisa ir andando. Só Charles vê o movimento rápido da ladrazinha linda.

Ele vai atrás da moça. Ela é mais jovem e bem mais ágil, e consegue se esgueirar para dentro de uma grande mansão que está para alugar. O gordo Charles chega depois, mas também consegue entrar lá. A casa está às escuras, é claro; Charles vai acendendo fósforos para enxergar alguma coisa – e aí temos a mais bela sequência deste filme.

Num amplo salão em que penetra luz vinda de fora, Libby - Vivien Leigh dança.

Dança para si mesma, de pura alegria de viver. Vivien Leigh, como já disse, estava com 25 anos, mas seu personagem, como dirá mais tarde Harley Prentiss, o compositor rico, está então com 18, 19 anos. É quase uma criança ainda, e então dança com a alegria de uma criança no amplo salão da casa de gente rica.

Charles chega devagarinho, sem fazer barulho, e, como o espectador, observa aquela jovem de beleza fantástica dançando.

“Você está atrás de justiça e lógica. Isso não existe. O mundo não é assim.”

Depois de algum tempo, Charles anuncia sua presença. Os dois travam então um diálogo fascinante.

Charles a recrimina por roubar. Libby diz que viveu a vida toda num orfanato. Havia saído dele há pouco, e tinha direito a ter o que as demais mulheres têm. Ela: – “Eu também tenho direito a uma manicure.”

Ele: – “Você está falando tolices.”

Ela: – “Por quê? Por quê? Você não vai me responder?

Ele: – “Não existe resposta. Você está atrás de justiça e lógica. Isso não existe. O mundo não é feito assim. Tudo depende de sorte. E também do temperamento. E ser capaz de acertar uma piada. A vida toda é uma piada.”

Ela: – “Uma piada? Então é uma piada que eu não aceito.”

Começa a chorar, logo está chorando convulsivamente.

Daí a pouco, um policial percebe que há gente na casa que deveria estar vazia; apita, chama reforço. Imediatamente, Charles e Libby, que até um minuto atrás discutiam, um com raiva do outro, se unem para fugir do inimigo comum. Charles a leva para dormir em seu quartinho muito simples no último andar de um casarão de vários andares, cujos donos transformaram numa espécie de pensão.

Libby é a ambição em estado puro. Compara-se a ninguém menos que Garbo 

Embora a ação se passe na época em que o filme foi feito, 1938, senti uma certa influência de Charles Dickens sobre a história que mostra pobres muito pobres numa cidade de gente muitíssimo rica. Não há uma miséria tão absolutamente miserável quanto na Londres do início do século XIX dos romances de Dickens, mas há muita pobreza, e um gigantesco fosso, um Amazonas, um Grand Canyon separando uma classe da outra. Nisso, o filme faz lembrar também um pouco o clima de My Fair Lady – e não apenas porque nos dois Rex Harrison interprete personagens da classe alta. Há um pouco de Professor Higgins na história do quase quarentão Charles ensinando a arte para essa Libby que é uma espécie de Eliza Doolittle de 18, 19 anos.

E haverá também algo de Luzes da Ribalta e de Nasce uma Estrela, quando, a partir de pouco além da metade do filme, a garotinha Libby deixa para trás seu benfeitor pobretão e vai escalando a ladeira do sucesso.

Libby é ambição em estado puro. Não à toa, ela se compara a ninguém menos que a maior estrela do cinema mundial nos anos 30. O diálogo é gostoso. Harley Prentiss se finge de jornalista e faz uma entrevista de mentirinha com ela. – “Miss Liberty… Liberty de quê?” E ela, espevitada: – “Só Liberty. Como Garbo. Fica melhor nos letreiros.”

O roteiro é assinado por Clemence Dane, com base em uma história de autoria dela mesma. Esse era o pseudônimo de Winifred Ashton (1888-1965), novelista e dramaturga inglesa que também escreveu roteiros para o cinema, como o da Anna Karenina de 1935 – a versão estrelada exatamente por Greta Garbo! Algumas de suas peças também foram levadas para o cinema, como Vítimas do Divórcio/A Bill of Divorcement (1932) e Wild Decembers (1956).

Segundo o IMDb, no entanto, várias outras mãos mexeram no roteiro que é assinado apenas por Clemence Dane: o site cita Bartlett Cormack, Charles Laughton, Erich Pommer e Tim Whelan. Este último foi o diretor do filme. Pommer assina como produtor, era um dos donos da produtora Laughton-Pommer.

É uma figura de imensa importância, esse Erich Pommer (1989-1966). Alemão da Saxônia, ele produziu mais de 200 filmes, inclusive alguns dos maiores clássicos de todos os tempos, Metrópolis (1926), a ficção-científica de Fritz Lang, e O Anjo Azul (1930), o filme que transformou Marlene Dietrich em uma das maiores estrelas que já existiram. Pommer fugiria do nazismo e se instalaria na Inglaterra, onde prosseguiu sua carreira gloriosa. De repente, Libby muda de personalidade. É o maior defeito do filme

Alguém, no meio daquelas cinco pessoas citadas logo acima, resolveu que Libby estava ambiciosa demais, e, afogada pela ambição, havia perdido a ternura e todos os bons sentimentos. E então decidiram que, aos 43 minutos do segundo tempo, tudo iria mudar radicalmente. E então, no final, a história muda de rumo, dá um cavalo de pau, faz uma curva em U, e Libby muda totalmente seu comportamento.

É a isso que Leonard Maltin se refere em sua sinopse-crítica, e ele está certo.

É o defeito mais grave do filme, mas não é o único. Ator extraordinário, Charles Laughton no entanto em alguns momentos exagera demais da conta, me pareceu. Vivien Leigh também exagera na caricatura, especialmente no início, quando ainda é uma pobretona sem eira nem beira.

Aparentemente, o filme não foi lançado no circuito comercial no Brasil. O IMDb não traz título brasileiro para ele. Não há título brasileiro para ele na edição brasileira do Dicionário de Cinema – Os Cineastas, de Jean Tulard. E o Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho, a melhor e mais completa obras no quesito títulos dos filmes no Brasil, não traz sequer verbete para o diretor Tim Whelan.

Não que isso seja uma lacuna no importante livro do Rubinho. Ao que tudo indica, esse Tim Whelan, que aliás é americano, e não inglês, não teve mesmo importância. O Dicionário de Cinema – Os Diretores de Tulard sequer traz uma minibiografia dele – apenas a relação dos muitos filmes que dirigiu, vários deles não lançados comercialmente aqui.

Saiu agora em DVD no Brasil pela Cult Classic, uma dessas várias empresas que se aproveitam das obras que, por um motivo ou outro, não têm detentor de direitos autorais. Usaram a mesma arte da capa de um lançamento do filme no mercado americano, e fizeram a tradução do título de lá, de Sidewalks of London para As Calçadas de Londres.

A imagem está excelente: a empresa brasileira seguramente se valeu de uma edição americana em que o filme havia passado por bom processo de restauração.

E então é isto, em suma: pode não ser um filme muito bom, e de fato não é. Mas, repito, é muito interessante de se ver. 

Por Sérgio Vaz

25/10/21

Gatilho Relâmpago, The Fastest Gun Alive, 1956, Russell Rouse

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“Gatilho Relâmpago”, o faroeste psicológico de Russell Rouse

Por Octavio Caruso

Aposentado como o atirador mais rápido do Oeste, George Temple (Glenn Ford) agora busca um pouco de paz ao lado de sua esposa Dora (Jeanne Crain). No entanto, um dia ele bebe além da conta e acaba exibindo suas surpreendentes habilidades no gatilho. Eu tinha vívida lembrança de ter visto este filme na infância em alguma sessão televisiva, com o Glenn Ford dublado pelo Jardel Mello, mas não me recordava da trama. Graças ao resgate da “Classicline”, pude rever agora em DVD, uma experiência surpreendentemente prazerosa. É uma pérola usualmente ignorada em textos sobre o gênero, mas merece constar em qualquer lista de melhores faroestes psicológicos.

Além de contar com uma trilha sonora poderosa de André Previn e uma excelente sequência de dança acrobática de Russ Tamblyn, que vinha do sucesso de “Sete Noivas Para Sete Irmãos”, o projeto trazia na linha de frente duas feras, Ford e Broderick Crawford, que conquistou a crítica como o protagonista de “A Grande Ilusão”, de 1949. Vale salientar que a cena de dança quase foi excluída, já que o protagonista não se sentia confortável em dividir a atenção do público com o jovem das piruetas. Anos depois, os dois ficaram amigos. Por mais que contraste bastante com o tom de suspense dominante, é difícil imaginar o filme sem o interlúdio musical, coreografado por Alex Romero, verdadeiramente empolgante e, ainda hoje, eficiente. 

Apesar do baixo orçamento, obstáculo superado na mão firme de Russell Rouse, um diretor com pouca experiência, que só teria mais destaque em 1959, como responsável pela história de “Confidências à Meia-Noite”, melhor momento da dupla Doris Day e Rock Hudson, “Gatilho Relâmpago” entrega um desfecho espetacular, uma reviravolta surpreendente, a desconstrução do mito das disputas de pistoleiros, inserindo na equação o fator do medo.

Por outro lado, como insinua o comparsa do antagonista, o fraco desempenho romântico é o que motiva seu chefe a provar que é o gatilho mais rápido, um conceito ousado para a época. O medo e a insegurança, forças motrizes destruidoras em homens movidos pela vaidade. 

01/11/21

Quatro Confissões, The Outrage, 1964, Martin Ritt

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Sobre Claire Bloom, 1931

Claire Bloom

Sobre  Paul Newman (1925–2008) 

Por volta de 1870, três viajantes se encontram numa estação ferroviária em ruínas no sudoeste dos Estados Unidos: um padre desiludido, um garimpeiro fracassado e um vendedor e jogador trapaceiro. O trem está atrasado então os três começam a conversar sobre um julgamento que houve na cidade. O padre e o garimpeiro assistiram ao ocorrido e aos poucos contam o que viram ao vendedor: o bandido mexicano Juan Carrasco confessou ter atacado um casal de viajantes sulistas, o ex-coronel confederado arruinado pela guerra Wakefield e sua esposa Nina, e depois estuprou a mulher e matou o homem. Quando sua condenação é certa, a mulher dá um depoimento com uma versão diferente, dizendo ter sido ela que matara o marido. Um pajé índio pede para depor e diz que foi possuído pelo espírito do marido que conta uma terceira versão da história, dizendo que na verdade ele se suicidara. Ao ouvir as três versões, o vendedor conclui que todas são mentirosas e que apenas o garimpeiro, que diz ter encontrado o corpo do coronel e avisado ao xerife, sabe o que aconteceu realmente e guardara segredo. WikAnt 

VERSÕES E DIVERSÕES

Ainda que com novas nuances, voltamos aos temas da cópia e do original, que nos entreteve em vários "posts" anteriores deste blog.

As novas nuances, são as deliberadas versões cinematográficas, mas poderiam ser teatrais ou até literárias, de obras anteriores, com intuitos à partida não fraudulentos, pretendendo ver os mesmos assuntos sob outras perspectivas e desta forma contribuir para um enriquecimento e aprofundamento dos conhecimentos humanos e artísticos e até para uma maior aproximação à "verdade". 

São muito curiosos os dois filmes que se revêem em seguida, porque primeiro o "original" e depois a "cópia", falam desta dispersão de pontos de vista, com que os mesmos acontecimentos são vistos e lidos por vários observadores da realidade e das razões objectivas ou subjectivas que sustentam essas leituras. E novas perspectivas emergem no acto da passagem da vida à arte, nesse milagre que faz de nós observadores privilegiados, porque estamos colocados num posto de observação, diria quase divino, donde podemos topar todos os personagens e suas ações, deduzindo os seus pensamentos e emoções, coisa vedada aos outros personagens que apenas dominam parte da "realidade", num dado momento.

Mas atenção porque nem sempre, essa visão de "anjos", nos impede também de sermos "enganados" e induzidos em erro. Basta pensar na génese e desenvolvimento de um filme.

O filme como produto final, é como se fosse um ser vivo, com a sua identidade própria e valendo-se por si próprio, mas como nas pessoas muitas vezes temos que regredir à sua "genética", para explicar certas características e comportamentos. E num filme essa génese, parte de uma ideia seminal, passa pela escrita de um argumento - a adaptação de uma obra literária, no nosso caso concreto - e depois a sua implementação com a escolha do "cast" e de todos os meios humanos e técnicos de suporte, terminando com a obtenção e edição dos fotogramas em rápida sequência, ou seja o nosso filme.

A "realidade" num filme é basicamente aquilo que vemos e sentimos e isso depende de nós e do filme. O que precede isto na escala evolutiva, de um e de outro lado, pode ter importância mas o decisivo é esta "realidade" nova, que resulta do nosso encontro com o filme. Sejamos claros, a realidade objectiva não existe no cinema, mesmo que seja documental ! O que existe, são versões ou expressões de subjectividade.

Se isto já define um filme de per si, imagine-se uma cascata de filmes sobre o mesmo assunto.

O "remake" cinematográfico, à priori, acrescenta um novo ponto de vista e no caso concreto que nos traz aqui, a complexidade é multiplicada, uma vez que o tema é precisamente "o ponto de vista". Ou seja, quem faz a nova versão, não só acrescenta um ou mais pontos de vistas diferentes sobre o filme em geral, na forma como é concebido, escrito e realizado, mas também revendo as "versões" dos personagens sob novos prismas, alarga os horizontes de análise.

A Akira Kurosawa (1910-1998), autor japonês de "Rashomon", pertence o mérito de ter concebido a obra original, em 1950, 14 anos antes do americano Martin Ritt (1914-1990), se ter atrevido a voltar à obra do mestre japonês, com o seu "The Outrage", de 1964. Obra verdadeiramente superlativa, "Rashomon" é um verdadeiro tratado psicológico -" O efeito Roshomon", entrou mesmo no léxico da disciplina - e um legado artístico colossal.

Num clima de tragédia grega e com laivos de Shakespeare, Kurosawa faz uma sagaz incursão nas motivações mais recônditas dos comportamentos humanos. O que leva o ser humano a mentir ou a distorcer os factos ? Porque motivos a imagem que temos de nós próprios e a que "vendemos" aos outros, nem sempre se coaduna com a realidade das nossas ações ? Até que ponto nos importamos com os outros e as suas razões ?

Com uma narrativa sólida e coerente, uma direção artística e interpretações convincentes e uma fotografia magistral de Kazuo Miyagawa, o mestre japonês, construiu um clássico  imperecível. Martin Ritt estava portanto consciente da tarefa hercúlea que tinha pela frente e sem medo ousou compôr uma versão ocidentalizada e mais contemporânea, que embora sem o fulgor do original, concede-nos um inesperado prazer em revisitá-la, desde que seja sem redutores e tolos preconceitos.

Nesta versão ocidentalizada descomprometida e adaptada ao Oeste americano, ainda que inteligentemente não se submetendo às convenções de um género marcado por dogmas pouco abertos a olhares alternativos, Ritt consegue passar a sua mensagem e tornar credível a sua "versão". Para o prazer que o filme proporciona, conta muito uma fotografia verdadeiramente genial de James Wong Howe. Como contam as soberbas interpretações de Paul Newman, Claire Boom (com a mais valia de ter estado antes na versão teatral) e Edward G. Robinson, não desfazendo de todo o "cast", que é irrepreensível.

02/11/21

My Name, Undercover, TV Series, 2021, Jin-min Kim 

The Ending of My Name Was Killer — Literally. Here's What Happened.

The Netflix K-drama arrived at a fittingly dark end for its main character

By Justin Kirkland, Oct 20, 2021, Esquire

She came in fighting and she went out fighting, damn it. ***Hereby ends the non-spoiler portion of this post, FYI. So if you haven't finished all eight episodes of My Name, the addictive new K-Drama that's currently taking off on Netflix, but have found yourself searching for answers, turn away from this webpage now.

For those who, like me, have arrived at the end, you'll agree that the final notes were as heartbreaking as the series' premise itself. Our main character, Yoon Ji Woo, was on a mission of revenge. And even though you know that sort of quest so rarely ends well, as the series is wrapping up, it seems like Ji Woo might, just maybe get a happy ending. Or, at the very least, a noble one. But you know what they say about assumptions: it makes an ass out of you and me and also a beautiful policeman partner dies.

Han So-hee

Ji Woo, the daughter of a "known" gangster (slash undercover cop), is an outsider to everyone around her. On her darkest day—her birthday, no less!—her father is shot and killed right in front of her. She witnesses the murder via a door peephole, which her father is holding closed so she can't get hurt. Devastating, right?

But the most brilliant plot parallel in the series actually goes back further than that Episode One murder. For that, we head back to the opening credits. There, we see as Ji Woo is effectively kicked out of her school, she makes it known that she's one hell of a fighter, knocking out the school's knife-wielding bully. We don't see that badass of a fight sequence again until the end, but for all the police training and mob trials Ji Woo had to go through to infiltrate the underworld ranks and avenge her father's death, there was this suggestion that she already had all the skills she needed.

The series culminates in Ji Woo facing off with Mu-jin, her father's former best friend and the drug lord responsible for her father's death. After sleeping with her partner (and genuine good guy), Pil do, Ji Woo considers what it might be like to give up her double life, to let go of her determined plan to avenge her father. But while driving down the street, Pil do is shot squarely in the head at a traffic stop with Ji Woo in the passenger seat. A hit job orchestrated by the very gangsters she's working with. The beloved police officer dies in her lap. Ji Woo takes his gun and sets off to finish what she nearly gave up.

And here begins the bloodbath. In a nearly overwhelming montage, Ji Woo singlehandedly takes down an army of henchmen defending Mu-jin. Blood, bullets, knives—gang's all here. Literally, a gang is all here. She takes an elevator up to Mu-jin, who is waiting for her, ready to give her a speech about how her father was someone who hesitated. He says she's become the same, and that's when Ji Woo gives the speech of the series. Putting down the same type of gun used to kill her father, she explains that her hesitancy to kill Mu-jin stems from her hope to live like a human, with legitimate relationships. But by taking the one person who showed her grace and love, he forced her hand. Now she, she says, she'd rather live as the monster who kills him than anything else.

After a grueling knife fight, Ji Woo seems all but left for dead until she turns Mu-jin's own knife on him, plunging it into his gut. He tries to fire the gun at her, but there are no more bullets in the chamber. Ji Woo stabs him in the chest one final time and watches him die. In the epilogue, we see that she has lived her visit her parents, who can now both be honored for the legitimate police officers they were. In the final moments of the series, Ji Woo remembers the joy she had with Pil do before turning away and leaving the cemetery.

In short, it turns out there is incentive in bringing a knife to a gun fight. And for your own protection, do not pick a fight with Ji Woo because you will not win. All eight episodes of My Name are currently streaming on Netflix.

Justin Kirkland 

03/11/21

O Falcão dos Mares, Captain Horatio Hornblower, 1951, Raoul Walsh

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Sobre Virginia Mayo (1920–2005) 

Uma fiel adaptação do livro de C. S. Forrester sobre o capitão Horatio Hornblower (Gregory Peck) da marinha inglesa as Guerras Napoleônicas. Hornblower é enviado à uma missão com destino secreto, mas com a Espanha e a França mobilizadas a favor de Napoleão, têm logo sua rota alterada para a distante América Central permanecendo em alto mar durante 7 meses sem terra à vista. Após longa viagem o capitão cumpre sua missão a entregar a mercadoria a Don Julian Alvarado (Alec Magno), líder rebelde megalomaníaco contra as forças espanholas. No entanto, ao regressar, descobre que a Espanha reatara sua aliança com a Inglaterra, tornando-se automaticamente inimigos de Julian e seus seguidores. Hornblower e seus homens ainda são forçados a aceitar como passageira a bela Lady Bárbara Wellesley (Virginia Mayo), irmã do Duque de Wellington, que estava tentando fugir de uma epidemia de febre amarela. A presença da jovem altera um pouco o capitão, que, mesmo batalhando, não a tira de seus pensamentos. Uma trama perfeita, repleta de ação, batalhas navais e uma pitada de romance. Filmes Épicos 

04/11/21

Rapsódia, Rhapsody, 1954, Charles Vidor

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Comentários

Baseado no romance “Maurice Guest” de Henry Handel Richardson, adaptado para o cinema por Ruth e Augustus Goetz, e roteirizado por Fay e Michael Kanin, “Rapsódia” é um filme em que a personagem de Elizabeth Taylor vive um triângulo amoroso com dois homens do mundo da música clássica.

Realizado pelo cineasta Charles Vidor, que apresenta um bom trabalho de direção, o filme pode ser resumido como se tratando de um melodrama que enche os ouvidos com maravilhosas e inesquecíveis peças de Tchaikovsky e Rachmaninoff. Apresentadas por Vittorio Gassman e John Ericson, na realidade tais músicas são maravilhosamente interpretadas por Michael Rabin ao violino e Claudio Arrau ao piano.

A fotografia de Robert H. Planck consegue capturar com maestria as belezas dos Alpes suíços, assim como, da estonteante Elizabeth Taylor em seus 22 anos. No elenco, todos os três principais atores apresentam boas atuações.

Enfim, “Rapsódia” merece ser visto por sua maravilhosa música clássica e pela beleza da jovem Elizabeth Taylor.

Elizabeth Taylor

Sobre  Michael Chekhov (1891–1955) 

Sobre  Elizabeth Taylor (1932–2011) 

 John Ericson (1926–2020) 

 Sobre Vittorio Gassman (1922–2000) 

Música final do filme: Rachmaninoff - Piano Concerto No. 2, Op. 18 (Rubinstein) 

05/11/21

Garras Amarelas, Across the Pacific, 1942, John Huston, Vincent Sherman (final scenes)

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Sobre  Mary Astor (1906–1987) 

 Sobre John Huston (1906–1987)

As filmagens aconteceram durante a entrada dos EUA na Guerra.

MALICIOSO, RACISTA E INTRIGANTE, “GARRAS AMARELAS” MARCA O CINEMA DE GUERRA DOS EUA.

Por Celso Sabadin 

Valendo um milhão de dólares: em qual filme estreado em 1942, Humphrey Bogart interpreta o personagem Rick? Quem disse “Casablanca”, acertou. Quem respondeu “Garras Amarelas” também.

Naquela época em que o cinema era literalmente uma fábrica (de sonhos ou não) e que seus astros, estrelas, diretores e técnicos eram funcionários contratados e pagos por semana, a máquina não podia parar. Assim, Bogart mal teve tempo de tirar umas feriazinhas entre o último dia de filmagens de “Garras Amarelas” (2 de maio de 1942) e o primeiro de “Casablanca” (25 do mesmo mês). Mal trocou de figurino… e de nome de personagem.

Humphrey Bogart e  Mary Astor

A Segunda Guerra já corria solta, e o público tinha na sala escura do cinema o refúgio ideal para suas aflições. Neste cenário misto de medo e patriotismo inflamado, “Garras Amarelas” estreia na esteira do histórico episódio de Pearl Harbor. A ação se inicia ambientada em 17 de novembro de 1941, momento em que Rick (Bogart, claro) é expulso do exército americano por algum motivo que só será esclarecido mais tarde. Deprimido, ele embarca em um navio japonês rumo ao Oriente, onde se encontra com um pequeno grupo de intrigantes personagens que desenvolverão uma trama de espionagem tão em voga naquele momento. Entre eles, a disponível Alberta (Mary Astor) e o misterioso Dr. Lorenz (Sydney Greenstreet). Como só poderia acontecer, o desfecho da história só acontecerá no fatídico 7 de dezembro de 41.

Repleto de diálogos espirituosos, o roteiro de Richard Macauley foi adaptado do folhetim “Aloha Means Goodbye”, de Robert Carson, publicado no Saturday Evening Post entre junho e julho de 1941. Ironicamente, o texto original advertia sobre a possibilidade de um ataque japonês aos Estados Unidos, o que de fato aconteceu, obrigando o filme a alterar sua ação dramática para o Panamá. Trata-se, aliás, de um roteiro carregado de racismo contra os então inimigos orientais. “Eles são todos iguais, se você não olhar de perto”, “É um povinho interessante”, “Será que eles têm sentimentos iguais aos nossos?” e “É um povo que fornece bons empregados” são alguns dos ataques verbais desferidos contra os nipônicos, durante a narrativa.

Não faltam também insinuações maliciosas que contribuíam para driblar a feroz censura que o infame Código Hays impunha ao cinema norte-americano desde a década anterior. Entre elas, Rick se orgulhando diante de Lorenz ao dizer que “o meu é maior que o seu” (teoricamente eles falavam de revólveres).

Há também citações e/ou piadas internas com os nomes dos personagens. Além dos já citados “Ricks”, o sobrenome da personagem Alberta é Marlow, que remete diretamente a Philip Marlowe, o detetive criado pelo escritor Raymond Chandler em “The Big Sleep”, publicado em 1939 (e que viraria filme em 1946 estrelado justamente por Bogart). E o nome do personagem interpretado por Lee Tung Foo, uma espécie de protetor de Rick, é nada menos que Sam, nome do famoso pianista amigo do outro Rick, o de “Casablanca”. Além disso, Mary Astor e Sydney Greenstreet já haviam contracenado com Bogart no clássico “Relíquia Macabra”, do ano anterior.

Tudo isso dirigido por John Huston, que teve de abandonar o filme pouco antes de concluí-lo para dirigir documentários promocionais do governo estadunidense, como parte do esforço de guerra. Com a ida de Huston ao front, as cenas finais de “Garra Amarela” ficaram a cargo de Vincent Sherman, não creditado.

“Garras Amarelas” estreou em setembro, e “Casablanca” em novembro de 1942, um ano depois de “Relíquia Macabra”. Que safra!

06/11/21

Duna, Dune: Part One, 2021, Denis Villeneuve

Ver resenha sobre Duna aqui 

07/11/21

Anjos do Sol , 2006, Rudi Lagemann

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ANJOS DO SOL - UM FILME DEVASTADOR E MUITO REAL

07/11/21

Vingança & Castigo, The Harder They Fall, 2021, Jeymes Samuel


"Vingança & Castigo", na Netflix: Idris Elba no Velho Oeste, Isabela Boscov


08/11/21

Colette, 2018, Wash Westmoreland

Colette (2018)

Por Ana Beatriz em Elas Indicam, dezembro 17, 2018 

Estamos na França, um dos países mais culturais da Europa, durante a Belle Époque, era em que a efervescência da arte estava no seu auge; é em 1873, no interior da França, que nasce Sidonie Gabrielle Colette, uma garota do interior, que gosta da natureza e do clima pacato, longe da cidade. Colette (Keira Knightley) se casa ainda jovem com Henry Gauthier-Villars (Dominic West), também conhecido como Willy, um crítico de música e aspirante a escritor, e se muda para Paris com ele. A capital francesa é diferente de tudo que ela já viu, e desempenha papel importante na mudança e crescimento de Gabrielle.

Inspirado em uma história real – como você já deve ter notado -, o longa nos transporta para o final do século 19, na pele da protagonista, que está tentando se adequar aos primeiros anos do seu casamento. No início ela é apaixonada pelo marido – que é visto quase como um “mentor”, por ela -, um homem egocêntrico e que, apesar de afirmar amá-la, é extremamente controlador. Gabrielle, como uma escritora nata, começa os rascunhos do seu primeiro livro, com inspiração nas suas experiências da infância. Claudine à l’école é lançado em 1900, se tornando um romance de grande sucesso na França –  e considerado polêmico, por falar de desejos de uma personagem adolescente pela primeira vez -, porém o livro é publicado pelo nome de Henry e não de Colette, ou seja, ele leva todos os créditos da história escrita pela esposa. Com o sucesso de vendas instâneo, o marido a obriga a produzir mais livros. É da inspiração de Gabrielle – que por fim se torna Colette – que origina-se mais sucessos franceses: “Claudine em Paris”, também lançado em 1900, “Claudine e Anne”, dentre outros. O filme tem um ritmo mais lento, o que é positivo para abordar de maneira profunda as diversas fases da protagonista. Mesmo no início, sendo tímida e sem expressar sua voz, Colette já não se adequava aos padrões impostos pela sociedade francesa. Ela descobre, por meio do empoderamento da sua escrita e do sucesso, que é uma mulher capaz de se descobrir. 

A experiência de uma mulher queer é o ponto alto do filme: Gabrielle descobre o seu interesse pelo mesmo sexo – algo que aparece de maneira sútil no início do filme -, e tem casos com mulheres durante o longa. O seu marido sabe e aceita; temos cenas interessantes, como as que Willy afirma que se ela tivesse um caso com o homem, ele não aceitaria, e Colette responde: “então o problema é com o gênero?” 

Colette nunca quis se adaptar aos moldes que eram impostos às mulheres: um dos grandes amores de sua vida – do qual ela viveu em companhia de 1906 à 1910 – também ganha presença no filme; Matilde de Morny (Denise Cough), conhecida como Missy, possui uma presença assídua em grande parte da vida da escritora. As duas se apaixonam, e o diretor do longa, Wash Westmoreland, dá atenção devida ao tema. Missy veste roupas masculinas e é uma personagem genderfluid. Em uma das cenas, Willy insiste em chamar Missy de “ela”, e Colette o corrige várias vezes, dizendo “ele”. O casal inclusive trabalhou junto em uma peça em Moulin Rouge, não escondendo o seu relacionamento; a cena ganha destaque no filme, quando se beijam no palco e sofrem ataques do público parisiense.

A representatividade também não ocorre só na ficção em Colette. Dois atores do filme são transsexuais interpretando personagens cisgêneros. Rachilde (Rebecca Root), personagem que prende a atenção de Colette em uma festa, e o seu marido, Gaston de Caillavet (Jake Graf), que torna-se próximo da personagem. As quase duas horas de filme em alguns momentos se tornam lentas, mas o foco da descoberta e do amadurecimento de Colette, unidos da luta para ser reconhecida pelo seu próprio trabalho – do qual o marido se apossou durante anos -, são o ponto alto dessa biografia com clima de belle époque; posteriormente, a autora conseguiu provar a autoria dos livros de Claudine, e publicou mais de 30 romances durante toda sua carreira como escritora. Alguns deles polêmicos por retratarem sua vida e suas relações, que eram a inspiração principal na hora de escrever seus livros.

Sidonie-Gabrielle Colette

10/11/21

O Pirata dos Sete Mares, The Spanish Main, 1945, Frank Borzage

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Comentários 

Realizado pelo cineasta Frank Borzage a partir de um roteiro escrito por George Yates e Herman Mankiewicz, “O Pirata dos Sete Mares” é um razoavelmente bom filme de capa e espada. Sua trama gira em torno da vida de um famoso pirata, Capitão Laurent Van Horn, principalmente no que tange à disputa de uma mulher com o poderoso Governador de uma cidade caribenha.

No papel principal, Paul Henreid não mostra o mesmo carisma de um Errol Flynn ou de um Tyrone Power. Maureen O’Hara, por outro lado, nos brinda com uma ótima atuação. Os duelos à espada não se mostram tão brilhantes como na maioria dos filmes do gênero.

Sobre Maureen O'Hara

Maureen O’Hara

12/11/21

O Matador, The Gunfighter, 1950, Henry King

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A simplicidade com que Henry King dirigiu O Matador o aproxima bastante do modo como William A. Wellman dirigiu Consciências Mortas alguns anos antes, tendo também com este filme uma aproximação de conteúdo, a saber, a abordagem psicológica do western.

O roteiro partiu de um relato verídico, o do famoso boxeador Jack Dempsey, que, após afastar-se do ringue, era quase obrigado pelos clientes do restaurante que abrira em Nova York a contar detalhes de suas lutas e, não raramente, tinha que lidar com indivíduos que o desafiava, dizendo que podiam vencê-lo facilmente e que eram melhores do que ele.

Ao ouvir um desses relatos, o roteirista William Bowers começou a trabalhar na ideia de um roteiro, adaptando o cenário do ringue para o Velho Oeste e tendo como estrutura um enredo de André De Toth (com quem já tinha trabalhado em Caminho da Tentação, 1948), inclusive, o primeiro diretor cotado para dirigir o longa. Quando o projeto ganhou forma, a diretoria da Fox percebeu que o melhor nome para filmar o texto era Henry King, que acabou faturando a cadeira da direção.

Mas estava claro que O Matador não seria um western comum, a começar por um desglamourizado Gregory Peck, que dava vida ao lendário Jimmy Ringo, o pistoleiro mais rápido do oeste. Diferente da abordagem vista nos personagens do ator em Duelo ao Sol e Céu Amarelo, seu papel em O Matador foi de um homem do qual pouco se espera à primeira vista: bigode ridículo, roupas puídas e muito simples, nenhum adorno, pouco contato visual, silencioso a maior parte do tempo e, estranhamente, procurando distanciar-se de problemas.

Nesse momento começa a construção da dourada trilha de O Matador. O filme tem ingredientes que de certa forma antecedem a abordagem revisionista da década seguinte, mostrando as fraquezas e desejos comuns de um homem cuja fama o impede de viver. Nesse ponto, o filme se afasta do núcleo psicológico de Consciências Mortas, cuja foco era a discussão moral e aspectos de justiça. Em O Matador, temos dois caminhos que se encontram: o primeiro, a colheita dos frutos de um passado desregrado; o segundo, a discussão da inglória fama que precede o indivíduo e que faz com que todos o tratem de maneira diferente, que ele seja odiado antes mesmo de conhecido e que ele seja constantemente desafiado por alguém que julga ser melhor.

A forma que Henry King encontrou para melhor retratar essa situação foi uma abordagem claustrofóbica do roteiro. Repare que a essência do filme está nas tomadas internas ou espaços muito limitados, indicando algum tipo de prisão para cada um dos personagens: a mulher de Ringo, “presa” à sua sala de aula; o homem que acreditava ser Ringo o matador de seu filho, preso à casa e posteriormente preso de verdade; e Ringo, preso ao Palace Saloon, esperando que algo externo viesse mudar sua vida e, ao mesmo tempo, fugindo de algo externo — momento do filme com excelente marcação narrativa e formal dada pelo relógio, recorrência simbólica em inúmeros westerns dali pra frente.

Uma das cenas que melhor retratam essa dualidade “liberdade X prisão” é quando um jovem cowboy de Cayenne entra no Saloon para tomar um único trago no bar. Ele conversa rapidamente com Ringo a respeito de sua vida ao lado da esposa, suas conquistas como homem que começava a “crescer na vida” e sua responsabilidade como esposo. O texto é simples mas o significado é poderoso e filmado de maneira muito bonita por Henry King, imediatamente nos dando a entender que Ringo também assume a ideia de casar-se com sua amada e construir uma vida, fugindo dele mesmo.

A trama caminha para um desfecho trágico que não demora a acontecer.

Então surge o ciclo vicioso da fama como maldição. O jovem que matou Ringo ganha como brinde um título que não merecia e é condenado a protagonizar a si mesmo como uma lenda do Oeste, automaticamente gerando tudo aquilo que afastou Rindo da felicidade e lhe tirou a vida. De fato, não poeria haver maior maldição para um jovem, o que torna o final de O Matador ainda mais trágico e denso, uma sensação reafirmada pela escolha do diretor em filmar o longa em preto e branco (na contramão da maioria dos westerns da época) e pela bela e econômica música de Alfred Newman, seguindo com perfeição a ideia de ciclo vicioso apontada no roteiro e executada na direção.

O Matador mostra o lado sensível, trágico e inglório do homem do oeste, o lado da vontade negada por uma vida que procurou ação, riqueza e fama durante muitos anos, mas que no momento em que percebe o caráter fugaz e solitário de todas essas coisas, não consegue mais voltar.

Dirigido de uma forma levemente episódica e com ótimas atuações em cena, O Matador faz parte de uma lista de westerns amargos e reflexivos cuja simplicidade os tornam ainda melhores. Sua mensagem final funciona não só dentro da obra mas também encontra reflexos na vida comum, de onde, aliás, veio a ideia para sua concepção.

Luiz Santiago 

13/11/21

Caçada Humana, From Hell to Texas, 1958, Henry Hathaway

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Sobre Don Murray, 1929

Don Murray

O ingênuo cowboy Tod Lohman mata acidentalmente o filho de um poderoso dono de vastas extensões de terra, Hunter Boyd. O cowboy Tod agora é um fugitivo perseguido pelos irmãos do falecido, cheios de ódio e sede de vingança. Tod se protege no rancho de Amos Bradley e se apaixona por sua filha Juanita. Contudo, Tod está preocupado pois a qualquer momento pode ter que deixá-la e fugir dos seus sequazes. Muito tiroteio, muitos índios contra cowboys, cenas de cavalos, figurino bem adaptado. Um clássico do Western. Baseado na obra de: Charles O. Locke  "The Hell-Bent Kid"

13/11/21

A Fuga de Tarzan, Tarzan Escapes, 1936, Richard Thorpe

No iutubi aqui 

Sobre  Maureen O'Sullivan (1911–1998) 

Johnny Weissmüller 

A fuga de Tarzan 

Tarzan de Johnny Weissmüller

Tarzan, o Filho da Selva,Tarzan the Ape Man, 1932 

A Companheira de Tarzan, Tarzan and His Mate, 1934 

 A Fuga de Tarzan, Tarzan Escapes, 1936 

O Filho de Tarzan, Tarzan Finds a Son!, 1

O Tesouro de Tarzan, Tarzan's Secret Treasure, 1941

Tarzan Contra o Mundo, Tarzan's New York Adventure, 1942

Tarzan sem Jane (Maureen O'Sullivan): 

Tarzan, O Vingador, Tarzan Triumphs, 1943  

Tarzan em Terror no Deserto, Tarzan's Desert Mystery, 1943 

Tarzan e as Amazonas, Tarzan and the Amazons, 1945 

Tarzan e a Mulher Leopardo, Tarzan and the Leopard Woman, 1946 

Tarzan e a Caçadora, Tarzan and the Huntress, 1947

Tarzan e as Sereias, Tarzan and the Mermaids, 1948

14/11/21

Refém Assassino, The Killing Jar, 2010, Mark Young

No iutube aqui 

Sobre Amber Benson, 1977  

Sobre Michael Madsen, 1957, Actor (321 credits) 

Sobre Danny Trejo, 1944, Actor (414 credits)

Danny Trejo (414 créditos) e Michael Madsen (321) são atores - máquinas de fazer filmes e séries e curtas. Batem record.

Um estranho armado faz sete reféns num restaurante. Mas à medida que a contagem de mortos vai aumentando, os sobreviventes descobrem que um dos reféns pode ser ainda mais perigoso que o raptor!

Madsen é o psicopata que invade um restaurante daqueles de beira de estrada, perdido no Cafundó do Judas dos Estados Unidos. Pra variar, mata dois caras só de entrada, como aperitivo. Infelizmente, o segundo a levar um balaço é o Danny Trejo, dono do pulgueiro. Mais um filme em que Trejo morre logo de cara, coitado. Vou escrever para Hollywood protestando.

Antes de o Michael Madsen chegar, todos no bar haviam ouvido a notícia de que um sujeito havia chacinado uma família nas redondezas. Quando ele mata o xerife e o Danny Trejo, todos pensam que o assassino é ele. Logo aparece um sujeito com uma mala de dinheiro. Ele tinha que encontrar o assassino naquele bar e fazer o pagamento. Ele não conhecia o assassino pessoalmente. O sujeito também acha que o Michael Madsen era o assassino e dá o dinheiro pra ele.

Michael Madsen diz a ele que não era o assassino e mata o sujeito, explodindo os miolos dele só pra não perder o costume. Na sequencia do filme o Michael Madsen acaba matando quase todo mundo, já que ele sempre mata todo mundo nos filmes que faz, desde Reservoir Dogs. Mas no fim acaba morto com um balaço no meio da testa.

Sobram só o verdadeiro assassino e uma garçonete, daquelas do interior que sonham em ir pra Nova Iorque. E você acha que ela ia perder essa oportunidade? Claro que não, né? Ela mata o perigoso assassino e cai fora com a grana que o outro sujeito tinha dado pro Michael Madsen.

Carlos Tonet 

15/11/21

Paprika, Papurika, 2006, Satoshi Kon

Paprika, de Satoshi Kon, é bom? Vale a pena ver o filme? | Crítica
Lucy in the Sky with Diamonds e Paprika: tudo a ver.
Helena Nunes, 04/06/2021

Paprika é o terceiro trabalho de Satoshi Kon em que eu coloco as mãos para recomendar. Sinto ter visto todas essas obras tão tardiamente, pois deveria tê-las conhecido muito antes. Muito embora também ache que não teria a mesma impressão delas, certamente seria algo que eu veria mais de uma vez (e continua sendo).

Preliminarmente, se você quiser ver as duas outras, fiz uma análise de Perfect Blue e recomendei Tokyo Godfathers (meu primeiro encontro com Kon) em um de nossos listões. Por vezes, sinto como se estivesse tendo algum tipo de conversa com um amigo quando vejo os filmes dele; lamentável, claro, que ele tenha partido já há algum tempo (2010), mas as obras ainda falam por si.

Eu tenho quase certeza de que escolhi os filmes na ordem certa. Tokyo Godfathers, apesar de se tratar de um assunto sério, é leve e divertido. Perfect Blue é instigante e assustador, e puxa o espectador a outro patamar. Paprika mistura diversas dessas referências, transformando o divertido em instigante e o sonho em realidade. É absurdo como todos os filmes são de alta qualidade! Enfim, é claro que eu recomendo. Não preciso pensar duas vezes.

Agora só falta, para completar o quarteto maravilhoso de filmes do Kon, o Millennium Actress. Devo assistir qualquer dia desses, quem sabe? Mas, voltando ao nosso assunto, eu poderia xingar (de maneira positiva) milhares de vezes (como faço dentro da minha cabeça), porque esse troço aqui é GENIAL. Com todas as letras. E vamos ver o porquê!

Uma breve síntese da história

Tokita, gênio da informática, cria um dispositivo chamado “DC mini“, capaz de fazer com que as pessoas compartilhem sonhos. Ou seja, assim que forem dormir, basta colocarem os aparelhos ao mesmo tempo, e estarão juntos, compartilhando mentes. O próprio conceito, em si, já parece complicado.

                                                                    Olha o gênio aí!

Com a ajuda de sua parceira, Dra. Chiba Atsuko, utiliza o DC Mini a um bom propósito: tratamento de pacientes. Se pensarmos que, nos sonhos, temos diversos medos e traumas sendo expostos, seria de muito valor a um profissional de saúde mental. E é aí que entra o nosso nome: assim que Chiba adentra o mundo dos sonhos, ela assume um alter ego – Paprika.

Veja bem, utilizei as palavras alter ego de propósito, porque o filme considera concepções Freudianas. Id, ego, superego e alter ego; tudo é levado em consideração ao estabelecer o enredo e a motivação dos personagens. Mas, antes de começarmos a falar sobre isso, vejamos o verdadeiro problema da história.

Roubaram o DC Mini, e eles não sabem quem o pegou. Contudo, isso cria um grande caos quando, o ladrão, ao se conectar com qualquer máquina de psicoterapia, consegue colocar alguns dos trabalhadores da clínica em estado de sono. Um dos trabalhadores, neste estado, começa a sonambular, e se joga do prédio, com as ilusões que são formadas em sua cabeça.

Tokita chama isso de anafilaxia, que seria uma reação alérgica, ao uso do DC Mini, que atingiria principalmente aqueles que já usaram mais vezes. Com vários casos, Chiba e toda a equipe precisam descobrir o que está acontecendo e quem roubou o aparelho. Então, Paprika entrará em cena para a investigação!

Paprika e Chiba

As duas são completamente diferentes. Vê-las é como observar Mima Kirigoe, em suas duas faces, de idol e de atriz, em Perfect Blue. Enquanto Paprika é alegre, destemida e impulsiva; Chiba é séria, ponderada e racional. São exatamente como dois lados de uma moeda, não fosse o fato de que Paprika é a própria Chiba, só que no mundo dos sonhos.

E é exatamente isso que é o alter ego: é a sua versão alternativa, aquela que está dentro de você, mas que você não consegue enxergar. Justamente porque é muito diferente de você mesmo(a). Em suma, a própria expressão alter ego significa “outro eu”.

Puxando um pouco de sardinha para o Freud, Kon estabelece os sonhos exatamente como ele considera. Naquele mundo alternativo, as pessoas liberam o seu “eu interior” reprimido, impulsivo e inconsistente, que é a base do id Freudiano. Todos os desejos, ímpetos e ações liberam-se, porque nele não há limites. Esta falta de amarras dá vida a Paprika e torna o filme um emaranhado de situações nas quais precisamos prestar muita atenção.

Então, vamos com calma. 1. Cada ser humano possui desejos reprimidos, e, ao sonhar, ele os libera. 2. O DC Mini foi feito para compartilhar sonhos. Bem, não parece que vai dar certo! Tokita com certeza não pensou muito nisso (até porque é um personagem bem bobo e fofo), mas rolou um problemão.


Fato é que toda essa ambientação traz um jogo mental e psicológico muito bem narrado, com cortes de cena que parecem surreais, e combinam com toda a estética também surreal do filme.

Peter Pan? Tarzan?

São tantos filmes e tantas referências ao longo do caminho que a gente mal consegue identificar todas. Elas obviamente não precisam ser faladas: um cara pelado com uma mulher nos braços se agarrando em cipós no meio da floresta só pode ser o Tarzan.

E isso também faz parte dos sonhos: aquilo que vemos se incorpora lentamente ao nosso estágio R.E.M (rapid eye movement). O R.E.M é o momento de sono mais profundo, e também aquele de maior atividade cerebral, no qual os sonhos são formados. E isso é muito legal, porque eles também consideram esse pico de atividade cerebral no filme, explicando que o DC Mini se alimentaria de energia cerebral.

Voltando ao assunto, as referências são gigantescas. Além de todos os filmes, ainda coloca, ocasionalmente, borboletas azuis a passearem na tela. Remonta, claro, a lenda oriental da borboleta azul, ao indicar: o destino e as decisões se entrelaçam; o futuro, a nós pertence.

 
Se parece com algo que você já viu antes?

Os sonhos são absurdos e completamente psicodélicos (igualzinho ao que acontece na vida real). Afinal, a gente sonha umas coisas bem esquisitas de vez em quando. Voar, cair, ser comido por bichos, ser atacado, estar correndo de algo que a gente nem sabe, falar com pessoas que a gente nunca viu… ah, que gostoso! Dormir é bom demais…

Só não é tão bom quando temos pesadelos. E, claro, é o caso. Todas essas figuras psicodélicas e surrealistas se juntam quadro a quadro, em cenas completamente perturbadoras, com uma trilha sonora igualmente perturbadora. É para incomodar, e funciona. Os cortes de cena são tão bem feitos que você também, junto com os pesquisadores, fica a se perguntar por alguns segundos: espera, é o sonho ou a realidade?

A metalinguagem também está presente!

Para quem não sabe o que é metalinguagem, é quando a obra fala de si mesma. Por exemplo, quando um pintor pinta um quadro sobre a arte de pintar; ou quando um poeta escreve um poema sobre escrever um poema. Deu para entender? É isso. Aqui, Satoshi Kon não somente faz todas as costumeiras barbeiragens dele com a direção (que fica lindo demais), como também explica!

Um tempo do filme curto, mas precioso, é dedicado a explicar o que se chama de “Deep Focus“, que é o estreitamento do ângulo da câmera para a captura de toda a cena, na qual você mostra tudo ao seu espectador. Você quer que ele tenha dimensão do espaço, que perceba tanto o que está perto como o que está longe, trazendo profundidade à cena.


Toda a genialidade foi colocada em diversos cortes de cena, que transitavam de um tempo a outro, de uma pessoa a outra, de um movimento a outro: tudo é dinâmico, vivo e consistente. Satoshi com certeza desponta nesse filme; e, nesse quesito, ultrapassa o meu tão amado Perfect Blue. Não há tempo de olhar para os lados, pois seus olhos devem estar grudados na tela. Se não o fizer, você não conseguirá distinguir a realidade da fantasia.

Vale ressaltar que este filme foi inspiração direta ao filme Inception, do diretor Christopher Nolan. Eu não sei explicar tão bem, mas este vídeo abaixo demonstra e compara os dois filmes, indicando o que Nolan aproveitou do trabalho de Kon. Se você quiser saber mais sobre, é bem informativo!

Satoshi Kon - Editing Space & Time


Finalizando a crítica de Paprika

Apesar de eu ter falado bastante, eu não falei nada que comprometesse a sua experiência com esse maravilhoso filme. Não quis falar. Diferentemente de Perfect Blue, que é um pouco mais confuso e interpretativo, Paprika tem menos abas à interpretação, mas nem por isso deixa de ser genial.

É uma viagem pelo surreal, que traz consigo diversos importantes questionamentos a respeito de identidade e realidade, sem deixar de lado o entretenimento. Se eu tivesse que fazer alguma ressalva, seria apenas a respeito da revelação de quem é o ladrão, porque seu papel poderia ter mais explicações. Ainda assim, acredito que o fechamento foi ótimo! De fato, ele não era o foco da história.

Resumindo, por que assistir Paprika?

Em suma, por que você deveria assistir Paprika? Bem, então vamos listar: é um filme com direção que dá origem (trocadilho, hehe) a vários filmes nortes-americanos, bem como inspira diversos diretores. É, também, apesar de um amontoado de técnicas já usadas antes por Kon, a junção de todas elas; é genial que tudo o que tenha sido bom nos filmes anteriores (pelo menos que eu tenha visto) ele tenha reaplicado aqui, com força e clareza.

Ademais, Paprika é também uma coletânea de concepções cinematógraficas, filosóficas e folclóricas, com diversas referências. Se até eu, que não tenho muito conhecimento a respeito de cinema, consegui captar uma coisa ou outra, você aí que está lendo (e sabe) com certeza verá bem mais do que eu!

E, por fim, vale ressaltar a capacidade criativa de demonstrar como o real e o surreal podem se misturar. Em uma proposta que não tem tanto potencial quanto parece, o filme se expande – e cria em você a sensação de que é algo completamente novo. Ele me lembrou da sensação de quando, vários anos atrás, assisti ao filme Waking Life, e senti que o mundo real de fato poderia ser uma farsa. Como diria o Sharkboy: “sonhe, sonhe, sonhe, sonhe, sonhe!”

De todos os três filmes que vi do Kon, esse é o que tem a melhor trilha sonora (e está tocando na minha cabeça até agora, umas 6 horas após assistir ao filme). Quem sabe até amanhã eu já tenha esquecido. Enfim, você está perdendo o seu tempo aí por quê? Aproveita e assiste logo!

PAPRIKA - UMA OBRA-PRIMA COMPLEXA E MUITO BIZARRA

16/11/21

7 Prisioneiros, 2021, Alexandre Moratto

'7 prisioneiros': Filme com Rodrigo Santoro e Christian Malheiros traz reflexões sobre poder, desigualdade, exploração e conflitos morais. 'Era uma sensação de atração e repulsa', diz Rodrigo, sobre o papel de administrador do ferro-velho que coloca jovens em situação análoga à escravidão

Talita Duvanel, 26/10/2021

Rodrigo Santoro não tinha planos de trabalhar no começo de 2020, mas não conseguia tirar da cabeça o papo que tivera com o diretor e roteirista Alexandre Moratto. A sensação foi de ter sido atropelado pela história que tinha nas mãos.

— Fiquei muito abalado, comovido. Comecei a pesquisar imediatamente — diz Rodrigo.

O ator, então, organizou a agenda para entrar no filme “7 prisioneiros”, que estreia no próximo dia 11. O longa, vencedor do prêmio de melhor filme estrangeiro Sorriso Diverso do Festival de Veneza (uma das premiações paralelas do evento), conta a história de Mateus, um jovem pobre do interior de São Paulo que aceita um emprego na capital. Ele e outros colegas chegam a um ferro-velho, têm os documentos confiscados pelo administrador, Luca, se veem cheios de dívidas por conta de despesas com transporte, alojamento e comida e começam a viver numa situação análoga à escravidão.

Rodrigo Santoro e Christian Malheiros

O rapaz passa a bolar estratégias para sair dessa condição, o que lhe rende uma série de conflitos éticos. O protagonista do filme, que chega aos cinemas e também à Netflix, é vivido por Christian Malheiros, estrela de “Sócrates” (2018), o primeiro filme de Alexandre Moratto. A produção, aliás, lhe rendeu uma indicação ao prêmio de melhor ator no Independent Spirit Awards, o Oscar do cinema indie. A Rodrigo coube o papel do algoz Luca.

— É aquele tipo de história que te persegue. Tenho cada vez mais oportunidades de trabalhar no mercado internacional, mas sempre estive conectado às histórias, onde quer que elas estejam. Independentemente de eu estar contando essa narrativa no Brasil, até porque ela poderia acontecer em qualquer lugar do mundo. Os dados dizem que são 40 milhões de pessoas hoje no planeta nessa situação (análoga à escravidão) — diz Rodrigo. — E o personagem me fisgou. Era uma sensação de atração e repulsa.

Rodrigo Santoro

Ferida aberta

Christian, ator que Rodrigo diz ter enorme “ força e carisma no silêncio”, também teve os mesmos sentimentos. Quando foi apresentado a Mateus, logo topou embarcar no projeto por enxergar que na exploração atual no Brasil há o agravante da herança colonial escravocrata. À medida que o trabalho foi se desenrolando, a aflição foi crescendo.

— Quanto mais entramos nesse processo, vemos o quanto é cruel. Às vezes, dá vontade de desistir. Será que quero tocar nessa ferida? Será que dou conta? — diz Christian, cujo personagem toma decisões que o aproximam do algoz e incrementam as discussões do filme sobre moral e relações de poder. —Porque não sou uma pessoa que foi escravizada, estou me emprestando para aquilo. Será que tenho estofo? Foram vários questionamentos. Alexandre Moratto começou a pensar nesse filme antes mesmo de terminar “Sócrates”. Viu uma reportagem e ficou obcecado com o tema. Dali, saiu o roteiro do longa, em parceria com Thayná Mantesso. A produção ficou a cargo de Fernando Meirelles, da O2, que tinha finalizado “Sócrates” e esperava outras oportunidades para trabalhar com Moratto mais a fundo. Uma ironia do destino, diante da forma como se deu o primeiro encontro dos dois.

— Conheci o Fernando quando eu tinha 14 anos. Estava no ensino médio em São Paulo, e a filha dele estudava no mesmo colégio. Ele exibiu “Cidade de Deus” na escola e conversou sobre o filme. Depois, tinha uma multidão de jovens em volta dele. Fiquei esperando a minha vez e falei: “Sou Alexandre Moratto e vou ser um cineasta.” Ele deu um sorriso simpático, ficou uns dez minutos me dando dicas. Esse sonho de infância acabou se tornando realidade 15 anos depois — conta o diretor, que hoje vive nos Estados Unidos. 

Unidos na questão ambiental

O fato de o filme “7 prisioneiros”abordar um aspecto da desigualdade faz com que ele se encaixe perfeitamente no portfólio da O2, diz Fernando Meirelles, o diretor por trás de “Cidade de Deus”.

— Fizemos e ainda estamos fazendo muitos projetos sobre desigualdades e temas correlatos. É um universo que nos incomoda. Mas gosto muito de “7 prisioneiros” porque ele não é só sobre oprimidos e opressores, mas também sobre dilema moral. Grande parte dos políticos brasileiros vai se identificar muito com o Mateus (personagem de Christian Malheiros). O poder nos faz flexibilizar ideias e princípios. E essa discussão é um grande trunfo do filme.

Meirelles tem trabalhado a temática do meio ambiente (“Estou terminando um roteiro sobre a crise do clima, é um projeto internacional grandão”), algo que, para ele, não deixa de estar conectado com as desigualdades.

— Nos próximos anos, vai ter muito mais gente vulnerável por causa de seca, enchente. Quando se está vulnerável, você está sujeito a ser explorado. Não necessariamente colocado atrás de uma grade, mas a trabalhar por US$ 2 ao dia. Infelizmente, vai acontecer uma “mateusização” do mundo — reflete Meirelles.

No mesmo embalo segue Alexandre Moratto, que voltou seus esforços criativos para retratar o desmatamento da Amazônia e as iniciativas comunitárias para enfrentar o problema sem a ajuda do governo. O roteirista e diretor passou seis meses em Manaus para pesquisar e desenvolver um argumento sobre o assunto.

— Eles estão em defesa de suas casas, famílias e comunidades — diz Moratto. —Essas questões do aquecimento global e do desmatamento na Amazônia, algo totalmente horripilante, são assuntos que me interessam muito e estou correndo atrás para roteirizar. (Talita Duvanel)

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