quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Filmes parte 43

A Última Gargalhada, Der letzte Mann, 1924, F.W. Murnau

O Rito da Dança, Fancy Dance, 2023, Erica Tremblay

Mahalia Melts in the Rain, 2018, Emilie Mannering & Carmine Pierre-Dufour (curta)

À mort le bikini!, 2023, Justine Gauthier (curta)

Três Mulheres, 3 Women, 1977, Robert Altman

Voar é com os pássaros, Brewster McCloud, 1970, Robert Altman

Homem Morto, Dead Man, 1995, Jim Jarmusch

Retratos de uma Mulher, The Portrait of a Lady, 1996, Jane Campion

O Menino e a Garça, Kimitachi wa dô ikiru ka, 2023, Hayao Miyazaki

Vidas ao Vento, Kaze tachinu, 2013, Hayao Miyazaki

O Mensageiro do Diabo, The Night of the Hunter, 1955, Charles Laughton

Memórias Póstumas de Brás Cubas, 2001, André Klotzel

Os Homens Violentos do Klan, The Klansman, 1974, Terence Young

O Caso Mattei, Il caso Mattei, 1972, Francesco Rosi

Love Lies Bleeding - O Amor Sangra, 2024, Rose Glass

Fedora, 1978, Billy Wilder

Café Society, 2016, Woody Allen

Gerônimo: Uma Lenda Americana, Geronimo: An American Legend, 1993, Walter Hill

Wild Bill - Uma Lenda no Oeste, Wild Bill, 1995, Walter Hill

Hyakuen no koi, 2014, Masaharu Take (100 Yen Love)

Aqui é o Meu Lugar, This Must Be the Place, 2011, Paolo Sorrentino

Amor Até as Cinzas, Jiang hu er nü, 2018, Zhangke Jia

Perdidos na Tormenta, The Search, 1948, Fred Zinnemann

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom, 2003, Kim Ki-duk

O Mal Não Existe, Aku wa sonzai shinai, 2023, Ryûsuke Hamaguchi

O Espírito da Colméia, El espíritu de la colmena, 1973, Víctor Erice

Carol, 2015, Todd Haynes

O Comboio do Medo, Sorcerer, 1977, William Friedkin

Gente di Roma, 2003, Ettore Scola

Identificação de uma Mulher, Identificazione di una donna, 1982, Michelangelo Antonioni

Elle, 2016, Paul Verhoeven

A Lei dos Marginais, Underworld U.S.A., 1961, Samuel Fuller

Terra Sem Pão, Las Hurdes, 1933, Luis Buñuel

Manglehorn, 2014, David Gordon Green

O Homem que engarrafava nuvens, 2009, Lírio Ferreira

 

 08 /07/24
A Última Gargalhada, Der letzte Mann, 1924, F.W. Murnau

 
Georges Sadoul, Dicionário de filmes, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, L&PM, 1993
 

Em tempo: o tema correlato ao deste filme está em  O espelho, Machado de Assis

09/07/24

O Rito da Dança, Fancy Dance, 2023, Erica Tremblay

Crítica: O Rito da Dança, por Wanderley Teixeira quarta-feira, 3 de julho 2024

Na carreira da recém indicada ao Oscar de melhor atriz Lily Gladstone, O Rito da Dança representa aquele pequeno drama indie lançado logo depois da temporada de premiações em um esforço de conseguir aproveitar o momentum na carreira da artista. No entanto, apesar de ser um projeto visivelmente mais modesto do que o drama monumental Assassinos da Lua das Flores, O Rito da Dança é um projeto completamente coerente com a trajetória de Gladstone, tento semelhante força política e dialogando com as raízes da atriz tanto quanto a super-produção dirigida por Martin Scorsese. Não é à toa que Lily Gladstone tentou encontrar um jeito de rodá-lo paralelamente às gravações de Assassinos da Lua das Flores e co-assina a sua produção executiva. 

Em O Rito da Dança, Lily Gladstone interpreta Jax, uma jovem à procura da irmã desaparecida e que assume a responsabilidade de cuidar da sobrinha adolescente Roki. Até o momento, Jax vive de algumas contravenções e quando o seu drama familiar se intensifica ela passa a ser o centro de diversas pressões do seu pai distante e da polícia. Em meio a todo esse turbilhão, Roki está fazendo a delicada transição da adolescência para a vida adulta, tentando, junto com a tia, preservar as raízes da sua cultura, o que inclui os preparativos para o powwow, uma manifestação da sua etnia indígena vista com menosprezo por brancos.    

O Rito da Dança é um filme que tem muita força política. Toda a trama do longa da diretora Erica Tremblay é dedicada a dimensionar para as plateias os inúmeros obstáculos sofridos por indígenas nos EUA, incluindo aqui uma observação certeira a respeito de uma estrutura institucional e social que marginaliza essas pessoas e tenta apagar os seus traços culturais. Há também uma preocupação do longa em frisar a experiência feminina nesses contextos, abordando a triste falta de perspectiva de ascensão social de muitas mulheres, que muitas vezes não encontram meios de sobrevivência distintos de uma marginalidade do comércio de drogas e do sexo.

É uma pena que o longa de Tremblay se perca no redundante plot da irmã desaparecida da personagem de Lily Gladstone, algo que traz para o filme uma ideia fixa improdutiva. Aqui, o roteiro faz a história do longa perder o fôlego e gera no espectador um gradual desinteresse pelo arco das suas personagens, o que é uma pena pois novamente Lily Gladstone está brilhante em cena. Como exibido em Assassinos da Lua das Flores, mas em uma "chave" de comunicação diferente, já que estamos falando de outro projeto e de outra personagem, a atriz tem uma precisão invejável na maneira como modula os sentimentos intensos de Jax ao longo da história: do seu desespero pela falta de respostas a respeito do desaparecimento da irmã à força com que se impõe diante de uma estrutura machista e racista extremamente opressora. 

Em meio ao mistério sobre a personagem desaparecida, até mesmo um dos elementos mais interessantes de O Rito da Dança perde o fôlego. O uso dramático do powwow concomitantemente com a jornada de amadurecimento de jovem Roki e a ideia de ancestralidade representada na relação de sororidade entre tia e sobrinha também não é explorado com muita veemência pelo filme. É um longa que, de maneira geral, deixa boas oportunidades para trás na medida em que insiste naquele que vem a ser o elemento mais banal da sua sinopse: o mistério sobre o sumiço de um personagem.  

11/07/24

Mahalia Melts in the Rain, 2018, Emilie Mannering & Carmine Pierre-Dufour (curta)

Mahalia, uma tímida menina negra de 9 anos, se sente diferente das outras meninas em sua aula de balé. Esperando aumentar sua confiança, sua mãe a leva ao salão de cabeleireiro para alisar seu cabelo pela primeira vez.
Dirigido por Carmine Pierre-Dufour e Émilie Mannering e com uma atuação comovente de Kaiyonni Banton-Renner, "Mahalia Derrete na Chuva" retrata os impactos do racismo na infância. filmicca 

11/07/24

À mort le bikini!, 2023, Justine Gauthier (curta)

Mili é uma menina de dez anos que adora brincar com seus amigos. Até que um dia seus pais a forçam a usar um top de biquíni para ir ao parque aquático. Lili, então, se rebela. Afinal, seus amigos, que são todos meninos, não precisam usar.
"Morte ao Biquíni!", da diretora Justine Gauthier, é uma doce obra punk sobre amadurecimento, que nos faz refletir sobre as regras do mundo dos adultos. filmicca

12/07/24

Três Mulheres, 3 Women, 1977, Robert Altman

Crítica: 3 Women (1977), dezembro 23, 2017, Larissa Oliveira

O  norte-americano Robert Altman, consagrou-se como um dos mais controversos e singulares cineastas do seu tempo. Seus trabalhos fugiam a convenções, à dinâmica narrativa clássica de Hollywood. Em 1977, Altman lançaria aquela que seria uma das suas melhores obras. Três Mulheres surgiu a partir de um sonho que ele teve com as protagonistas do filme, Sissy Spacek (Carrie, a Estranha) e Shelley Duvall (O Iluminado) em um lugar desértico da Califórnia. Para construir o seu filme, o diretor utilizou referências também oníricas e contou com a improvisação de suas protagonistas para desenvolverem suas personagens. 

O resultado desse trabalho distinto no cinema hollywoodiano do século XX é um amplo leque de análises. Para entender melhor porque Três Mulheres  é uma obra valiosa, o espectador deve se desprender da linguagem objetiva cinematográfica. Por apresentar uma lógica onírica, somos mergulhados no mundo dos sonhos, com simbolismos e pouco espaço para uma racionalização imediata. É uma experiência única de como a subjetividade permeia o mundo de três mulheres opostas, que se fundem, se estranham e se unem, formando uma só. 

A primeira mulher a que somos apresentados é a imatura Mildred, que adota Pinky Rose como um pseudônimo compatível com a sua personalidade ingênua. Ao chegar na cidade desértica, ela procura uma vaga de emprego em um spa para idosos. Sua guia é a profissional Millie Lammoreaux, que curiosamente tem o mesmo nome que a jovem iniciante, porém o modifica a fim de estabelecer um  status quo, construído ilusoriamente com base numa sociedade consumista e voraz, que centraliza o homem como o espelho do poder e sucesso. Sendo assim, Millie fala incessantemente sobre como conquistou homens poderosos, e ninguém a ouve, a sua inadequação pode ser percebida por conta de sua beleza não padrão e subentendida quando sua longa saia constantemente fica presa na porta do carro sem que ninguém a note. Porém, Pinky Rose é um tanto inexperiente e assim, se deslumbra com tudo sobre a vida de Millie. As colegas de trabalho logo se tornam colegas de quarto, e é a partir desse convívio que presenciaremos um trabalho enigmático com personalidades efêmeras, que se estruturam e se desestruturam em simbolismos. 

As duas mulheres se mudam para um apartamento, cujo proprietário, Edgar Hart (Robert Fortier) é um ex-cowboy e típico estereótipo do que se convenciona como homem viril, e a sua esposa grávida, Willie (Janice Rule) é uma artista local. Willie passa o dia trabalhando numa pintura mitológica de dois seres femininos lutando com um terceiro no piso da piscina do apartamento. Esta imagem aparece constantemente ao longo do filme, como se fosse uma representação repetitiva de algo dentro de um sonho. A relação entre Pinky e Millie é como de irmãs. Pinky se comporta como caçula ao ler o diário de Millie quando está ausente e ao pedir roupas emprestadas. Millie se mostra incomodada com o comportamento infantil de Rose e acredita que seus planos não dão certo por conta de sua presença. Quando as duas saem para o bar de Edgar e Willie Hart, estilo western, elas conversam sobre a misteriosa Willie. Seu olhar pávido e seu silêncio nos instigam a entender a sua relevância na vida das outras mulheres. Quando seus olhares se encontram, Willie parece conhecer muito sobre Pinky e Millie do que elas sobre aquela. Edgar demonstra ser então, o que vai unir as personagens. Ele tem um caso extraconjugal com Millie durante a noite, enquanto se encanta por Rose. No mesmo bar, as três praticam tiro ao alvo, mas apenas Millie e Pinky são assistidas por Edgar, traduzindo a maturidade e independência  de Willie em relação ao seu marido. 

Millie chega ao seu limite com Rose e  a expulsa do seu apartamento. A jovem então, joga-se da varanda para a piscina e o filme ganha uma reviravolta. Ao se recuperar do coma, Pinky assume outra personalidade, similar à de Millie, adotando seu nome original, Mildred, porém, mais sexualizada e notada por todos ao seu redor. Seu novo estilo de vida é o que Millie idealizava. Podemos interpretar esse plot twist  como o amadurecimento da personagem, que se funde à aquela que representa o espelho a se seguir. Assim como acontece em uma família, quando uma irmã adota traços da mais velha. Porém, as atitudes de Pinky, agora Mildred, são ainda inconscientes, ao não reconhecer a sua vida anterior. Tal aspecto revela uma característica dos sonhos, quando assumimos particularidades independentes de um passado. Outra analogia que foi trabalhada de forma exemplar é a de que Mildred representa o id, por exibir tendências instintivas (toma-se como exemplo quando ela se permite tornar objeto sexual) , Millie é o super-ego, pois suas condutas obedecem valores morais, reprimindo o que Mildred se tornou, ou seja a realização do seu id. 

E por fim, Willie é o ego, pois ela intermedeia os impulsos do Id,  é mais realística e madura, é como se Willie assistisse em Mildred a sua juventude. É também por esse motivo que não vemos Willie interagir fisicamente com as demais personagens até o final do filme. Millie e Pinky seriam as representações da imaturidade, do descontrole juvenil e o momento em que as três se unem é quando Willie dá luz a seu filho, simbolizando o início de uma nova fase nas vidas de todas elas, que acabam morando juntas e desempenhando papéis de mãe e filhas. O ego de Willie foi capaz de assumir o controle total de si mesma, e isso fica mais evidente quando sabemos que Edgar está morto. As amarras que ele atribuiu na vida de sua esposa são reflexo da sociedade patriarcal que submete a mulher a não pensar por si mesma, e a ser um mero objeto de controle masculino, encolhendo suas possibilidades de se moldar fora das amarras masculinas. Willie externiza as mulheres que viveu a fim de dar o tiro certeiro para uma vida em que possa ser dona de si mesma, e sem que seu passado a perturbe nesse novo caminho.

12/07/24

Voar é com os pássaros, Brewster McCloud, 1970, Robert Altman

Robert Altman (1925-2006) 

Voar é Com os Pássaros (Brewster McCloud – 1970) por Octavio Caruso

O maior desejo do jovem Brewster é poder voar. Para isso, constrói enormes asas, mas, quando se prepara para voar, é surpreendido pela polícia.
Robert Altman não gostou do roteiro de Doran William Canon, do fraquíssimo “Skidoo Se Faz a Dois”, o pior filme da fase final do grande diretor Otto Preminger. E, numa mostra de seu brilhantismo inegável já em início de carreira, ele decidiu desprezar o texto, criando as falas e muitas das situações, algo que ele também havia feito em “MASH”, ensaiando as modificações com o elenco no dia das filmagens, neste que era sempre citado por ele como o seu projeto favorito.

O resultado, ainda que, por contrato, carregue no crédito o nome de Doran como o único roteirista, não representa sequer 10% do material original. A trama é puro Altman, corajoso em seu senso de humor e com um tom diferente de tudo o que se fazia na época. E você percebe várias referências divertidas ao sucesso do ano anterior, de um óbvio pôster do filme em cena até uma sutil reação de Sally Kellerman, ao se banhar numa fonte, muito similar à reação da atriz em uma sequência famosa de banho em “MASH”, quando ela descobre que está sendo observada por um grupo de homens.

O tema da desconstrução do molde cinematográfico, algo recorrente em sua filmografia, já se mostra presente no início, com uma correção dos créditos sendo feita na busca pela subjetiva perfeição da técnica, um esmero exagerado que intenciona reproduzir cópias em escala industrial.
A sua arte não segue padrões, os personagens do diretor não respeitam qualquer código predeterminado, a estranheza é uma constante, o vômito da personagem de Shelley Duvall pode ser sucedido por um beijo apaixonado dela em seu namorado, o que garante o frescor atemporal de seus filmes.

Este risco necessário no trabalho de um artista, representado na parábola com traços de Ícaro protagonizada por Bud Cort, que faria no ano seguinte o adorável “Ensina-me a Viver”, é o leitmotiv nesta subestimada brincadeira séria do diretor.

13/07/24

Homem Morto, Dead Man, 1995, Jim Jarmusch

No iutubi aqui  

Crítica | Homem Morto por Luiz Santiago 6 de dezembro de 2014

Em meados dos anos 1990, o western já não era mais um gênero cinematográfico sagrado, como fora até o final de sua segunda renovação clássica, com a chegada de obras do porte de O Matador (1950) e Winchester ’73 (1950). Embora não fossem filmes que pisoteassem o faroeste e toda a sua mitologia, havia um tratamento temático nessas obras que denotavam um olhar diferente para o gênero, elemento que se tornou cada vez mais forte na década seguinte, com as temáticas de decadência e o cansaço do gênero encontrados em O Homem Que Matou o Facínora (1962), Meu Ódio Será Sua Herança (1969) e Butch Cassidy (1969). 

Com a perda da importância do gênero, o pessimismo, os revisionismos e as constantes modificações de abordagem para o Velho Oeste, chegamos aos anos 1990 com o western letárgico, vivendo o fim de um tipo de abordagem que denominamos de “segunda travessia do deserto” (do qual Dança com Lobos é um excelente representante) e o início dos chamados “retornos esporádicos”, onde temáticas clássicas se veriam misturadas com elementos históricos, filosóficos e discussões contemporâneas, a exemplo de Tombstone – A Justiça Está Chegando (1993) e Homem Morto  (1995).

Visto como uma jornada física e espiritual de um homem ou como uma visão ácida e nada convencional para os arquétipos do western, Homem Morto traz Johnny Depp vivendo William Blake, um contador que vai à cidade de Machine assumir um emprego que lhe fora oferecido, mas que não está mais disponível quando chega ao local. Sem dinheiro e sem saber o que fazer, Blake se vê acusado de dois assassinatos, embora tenha cometido apenas um deles. Em sua fuga e com a cabeça a prêmio, ele encontrará um índio chamado Ninguém, e é nesse momento que vemos a verdadeira caminha tomar forma.

Filmado nos Estados de Nova York, Nevada, Arizona, Oregon, Washington e Califórnia, o filme conta com uma diversidade imensa de paisagens, desde os takes sonolentos de Blake na abertura do longa até a conclusão de sua jornada, no mar. Capturadas em belo preto e branco pelo fotógrafo Robby Müller, estas paisagens ganham importância vital para a construção da atmosfera mística que se arquiteta no decorrer do longa. Adicionemos também a eficiente troca de lentes para diferentes espaços cênicos (dependendo do cenário é possível ver os personagens maiores ou menores em relação à paisagem; “pressionados” ou contextualizados nele; uma troca de dimensões e localização que torna a viagem ainda mais viva e dinâmica) e a alternância de foco e fora-de-foco que observamos em algumas cenas, escolhas de tratamento de imagem, aproximação e distanciamento cuja importância narrativa chega a ser maior do que a estética.

Jarmusch traz elementos de filmes como Meu Nome é Ninguém (1973) e Duelo de Gigantes (1976) para seu roteiro e para suas imagens, referências que fazem de Homem Morto um filme com fortíssima identidade própria mas, ao mesmo tempo, uma interessante reverência a outros momentos do gênero que ousa rever. Entre cidades enlameadas, trapos, canibalismo, bandidos asquerosos, morte e miséria, o texto de Homem Morto traz à tona o que é importante para o homem, o que está além da aparência e o que cada indivíduo pode conquistar em momentos de crise.

O empresário John Dickinson parece se importar muito mais com seu cavalo malhado do que com o filho morto. William Blake, inicialmente usando óculos, torna-se um excelente atirador após deixar as lentes de lado e assumir-se poeta, mesmo não sendo (ou será que era?). Perceba que, ao passo que chegamos próximos ao final do filme, mergulhamos nas motivações e na psicologia dos personagens, encontrando bandidos ou pessoas cada vez mais estranhos pelo caminho. Neste mundo de Jim Jarmusch não existem pessoas normais ou lugares onde se é bem-vindo. A civilização não existe em Homem Morto.

Jarmusch deixa alguns pequenos vazios no roteiro, talvez com a justificativa de que tais passagens deveriam ser completadas pela subjetividade do espectador. Ao final, após a canoa ser enfim posta para navegar, essa justificativa encontra sua maior falha, que é o vazio que a reticência daquela cena nos traz. Não chega a ser algo ruim e nem é algo fora do padrão espiritual ou existencial que o longa trabalhou, mas ainda assim é insatisfatório se olharmos a forma sólida como os personagens e suas andanças foram abordadas no filme.

Mas as reticências finais do roteiro não são o maior ponto fraco de Homem Morto. Este pertence — pasme! — a Neil Young, responsável pela trilha sonora da fita. O compositor faz um excelente tema de abertura e engana o público, que acredita que este será um padrão para o filme. Mas pelas duas horas seguintes ouvimos apenas harmonias dedilhadas a esmo, ressonâncias e pequenos sons trabalhados pela mixagem na pós-produção, uma verdadeira pobreza musical considerando o artista em questão e a necessidade de um corpo musical ou harmônico mais bojudo para o filme. É claro que se olharmos apenas para a questão imaterial do roteiro, veremos uma justificativa narrativa para o uso de trastejados e acordes soltos ad infinitum, mas tal justificativa acaba sendo tão incompatível com o projeto de Jarmusch quanto o resultado final de sua trilha sonora.

Ousado, ácido e com um personagem raramente visto em westerns, Homem Morto é uma realização notável de Jim Jarmusch, um filme que não se conforma com a simples história de vingança ou fuga e que coloca em alvo, além do corpo, a alma de seus personagens, todas vagando em busca de alguma coisa, todas marchando, mesmo sem saber, para o dia em que seus corpos serão levados pela canoa para o grande mar, “para o lugar onde a água encontrará o céu“. E o mais interessante é que a “canoa” e o “mar” são símbolos diferentes para cada homem morto do filme e da realidade e chegam para cada um de forma diferente, uma verdade desalentada e crua com a qual todos temos que lidar.

14/07/24
Retratos de uma Mulher, The Portrait of a Lady, 1996, Jane Campion

Crítica: terça-feira, 8 de abril de 2014, The Portrait of a Lady

Crítica: Adaptar livros de grandes dimensões para o cinema é sempre algo problemático. Há sempre cedências que têm de ser feitas, ou ao nível da história ou a nível emocional. Ainda há pouco tempo vi a interessante adaptação dos estúdios Ealing (os famosos estudos britânicos da década de 1940) do romance de Dickens ‘Nicholas Nickelby’, depois de ter terminado o livro. O livro tem 700 páginas, o filme 90 minutos. Algo tem que ceder. E embora o filme seja divertido, ritmado, bem construído e segue a linha da história, não mergulha nas personagens (não tem tempo!), especialmente nas personagens secundárias, que são o cerne do universo dickensiano. 

Agora se a riqueza do livro está na construção psicológica das personagens, das emoções e das tensões sub-reptícias, ou seja, está mais naquilo que é descrito, e menos naquilo que é dito, então a tarefa é ainda mais ingrata, e só está ao alcance de um punhado de argumentistas, que devem estar muito bem articulados com os respetivos realizadores. Há emoções que não podem ser transmitidas por diálogos, que têm de ser transmitidas visualmente. Portanto é ainda pior quando as 600 páginas do livro são convertidas em 140 minutos assentes quase unicamente em diálogos. Aí a tarefa passa de ingrata e difícil a completamente impossível. Pode-se escrever e fazer o maior filme de todos os tempos, mas será sempre um produto novo, original. Nunca se conseguirá reproduzir uma décima, ou uma centésima parte, da essência do romance. E isto é precisamente o que se passa com o filme ‘The Portrait of a Lady’ (Retrato de uma Senhora) realizado por Jane Campion em 1996 e baseado no romance com o mesmo nome de Henry James (que li há uns anos, antes de ver o filme). Verdade que ‘The Portrait of a Lady’ bem que poderá ser o melhor filme que poderia ser feito a partir de um material de base tão complexo e difícil de adaptar, mas mesmo se o for não será maravilhoso, nem poético, nem belo, nem encantado como o livro, ou seja, nunca lhe chegará aos calcanhares. 

A história poderá ser igual na superfície (pelo menos as suas linhas gerais), mas nunca terá o poder que o romance transmite. É difícil não gostar de ‘The Piano’, o filme de 1993 que tornou a australiana Jane Campion famosa, e lhe deu a honra de ser a segunda mulher (a primeira num filme em inglês) nomeada para o Óscar de Melhor Realizador. Até ao aparecimento de Kathryn Bigelow, Campion era provavelmente a realizadora mais importante da historia do cinema anglo-saxónico, rivalizando talvez só com Ida Lupino (?! – não sei, o leitor que se pronuncie). 

‘The Piano’ é artístico, profundo, convincente e tem significado. Portanto foi com grande interesse que a comunidade cinematográfica e o público aguardou o seu projecto seguinte. E como de costume, após um grande sucesso, os realizadores podem basicamente fazer o que lhes apetece, os seus projetos de sonho, o que muitas vezes dá para o torto. Recordo-me sempre do filme que Roberto Benigni fez após ‘La Vita é Bella’ (1997), ‘Pinocchio’ (2002), um projecto que ele queria fazer há décadas e que os produtores não hesitaram em financiar após o grande sucesso do filme da segunda guerra mundial. Para bom entendedor meia palavra basta, e quem viu esta aberrante versão de ‘Pinocchio’ sabe o que eu quero dizer. Do mesmo modo, este era um dos romances preferidos de Campion, do qual ela sempre quisera fazer uma adaptação. Mal teve a oportunidade, fê-lo. E muito embora a escolha deste romance ‘feminino’ de Henry James tenha sido ousada, de alguma forma pareceu natural após ‘The Piano’ e perfeitamente adequada ao gosto de Campion e ao seu óbvio talento.

Mesmo assim, Campion e o resto da equipa puseram-se na boca do lobo. Como disse no início, adaptar este livro é colocar-se na rota de inúmeros obstáculos. Mesmo que muitas das personagens e histórias secundárias do romance sejam descartadas sem pensar duas vezes (como aquelas envolvendo as personagens de Henrietta ou Warbuton), simplesmente não há tempo suficiente de película para conseguir transmitir ao público na perfeição a delicada construção emocional que Henry James tão cuidadosamente trabalhou em crescendo ao longo de 500 páginas. O filme faz o óbvio. Numa tentativa de contar a história de base o mais depressa possível para chegar ao âmago das personagens, retira muito da sua construção. Todo o background da personagem principal, Isabel Archer (interpretada por Nicole Kidman), bem como a sua relação inicial com a família Touchett é completamente descartada (se o espectador quer saber, que leia o livro!) e o filme abre logo com o pedido de casamento de Warburton, que surge de uma forma muito pouco justificada. Da mesma forma, quase duas horas depois de ter começado o filme, outra personagem, Ralph, diz a Isabel “és a minha melhor amiga”. 

No livro acreditamos. No filme não, pois estas duas personagens tiveram pouco mais de 2 cenas juntas, portanto a sua conexão emocional é quase nula. Este tipo de incongruências, de forçar emoções que realmente existem na história mas que o filme não torna credíveis, acontecem durante toda a película.
‘The Portrait of a Lady’ conta a história de Isabel Archer, uma mulher Americana que é uma parente afastada e pobre de uma rica e respeitada família britânica, os Touchett. Quando os visita por uma temporada, toda a família (e os amigos da família) ficam seduzidos pela sua beleza e personalidade, e ela torna-se o centro de todas as atenções. Ralph (interpretado por Martin Donovan), o filho do patriarca Touchett (interpretado por John Gielgud), é doente e caminha lentamente para a morte, e silenciosamente adora e idolatra a prima. Warbuton, um amigo da família interpretado por Richard E. Grant, pede a mão de Isabel em casamento e é recusado pois ela, apesar de pobre, não quer casar sem amor, por um lado, nem perder a liberdade, por outro. Da mesma forma, o seu pretendente americano, interpretado por Viggo Mortensen, segue-a até Inglaterra e volta a oferecer a sua mão, para voltar a ser recusado.

E então acontece o primeiro ponto de viragem. Quando o velho Touchett está a morrer, Ralph convence-o a deixar a sua fortuna, não a ele, pois cedo seguirá o pai na morte, mas a Isabel. De repente, Isabel vê-se livre e com uma enorme fortuna, livre da pressão de escolher um marido. Muda-se para Itália para viver a vida, e lá trava amizade (que poderá ser interesseira) com Madame Merle (interpretada pela sempre fascinante Barbara Hershey, nomeada para o Óscar neste papel). Quando Isabel se apaixona por Gilbert Osmond (John Malkovich), um aristocrata sem vintém e com uma filha pequena, Merle convence Isabel a casar com ele. Os papéis trocados, Isabel só pensa no seu amor e na sua liberdade e não se apercebe que a posição de Osmond foi a sua, há bem pouco tempo. Casam e os anos passam.
O filme salta uma década. A filha de Osmond agora pretende casar com um jovem interpretado por Christian Bale (como é engraçado ver os filmes da adolescência de Bale, sempre munido do seu beicinho). Mas Osmond, que sempre viveu às custas da mulher, não aceita este casamento. Mas Isabel vê na filha um pouco da sua antiga personalidade e o desejo de liberdade que nela se abateu ao longo dos anos, presa num casamento que cedo descobriu ser sem amor, e onde nunca alcançou a felicidade que pretendia. Perante estes eventos, a forte personalidade de Isabel, que a permitiu manter-se à tona durante todos estes anos, finalmente vacila, e ela quebra, física e emocionalmente, algo que é ainda mais acelerado pela iminente morte de Ralph (o seu único amigo?). 

‘The Portrait of a Lady’ desenrola-se como uma batalha de personalidades entre as personagens principais, e de como elas ascendem ou caem, vitimas dos próprios jogos que jogam. São estes jogos, estas intrigas de sociedade que lhes tiram o tédio e que os mantêm vivos, pelo que é mais que justo que sejam também estes jogos psicológicos que acabem por os destruir a todos, por lhes vergar o espírito e por levar até alguns à morte. O filme, tal como o romance (e acertadamente, diga-se), mostra todo este intrincado xadrez emocional da perspectiva de Isabel. Mas o romance explica ao leitor a personalidade e a perspectiva de Isabel, o que está por trás das suas escolhas, e porque motivo as faz. Já o filme não. Não existe praticamente nenhum desenvolvimento de personagem, em ponto algum do filme. Portanto as suas escolhas são basicamente impingidas ao espectador, só porque “o livro diz que tem que ser assim”, e várias não se adequam à personagem que o filme (não o livro, note-se) criou.

O leitor poderá eventualmente argumentar que eu, por não ser mulher, não entendo a verdadeira essência da história, e que as mulheres compreenderão as escolhas de Isabel. Se estivermos a falar do livro até poderei concordar, mas não o posso fazer se estivermos a falar do filme. É difícil, muito difícil de acreditar, por exemplo, como é que todas as personagens masculinas imediatamente se perdem de amores por Isabel, porque ela, pelo menos no ecrã, não faz absolutamente nada para o justificar. Tirando o facto óbvio de Isabel herdar as feições e o corpo laroca de Nicole Kidman, não há uma única cena que nos revela a sua inteligência, o seu humor, o seu poder sedutor. Depois o filme tem outra grande falha; a gravitação de personagens em torno de Isabel é altamente artificial. Porque a história do livro é condensada e dada em estilo telegráfico, as personagens secundárias também carecem de desenvolvimento e parecem pop-ups. Aparecem nas cenas só para dar a contribuição necessária para a história poder avançar e depois desaparecem sem deixar rasto. No meio de tudo isto, achei que a única personagem credível era mesmo a de Malkovich. Como ele não é o único actor bom deste filme, então não creio que seja uma questão de personalidade. Suponho que seja apenas um acaso do argumento.

Campion procurou, acertadamente, tentar compensar a falta de profundidade emocional das personagens que o argumento continha com alguns recursos visuais. Mas mesmo assim não creio que a sua escolha tenha sido a mais acertada, pois não é nada subtil. Em vez de optar por alguma ponderação fílmica, por algum close up mais contemplativo, a realizadora tenta revelar ao público os demónios interiores de Isabel através de slow motions artísticos ou então sequências sonhadas. Se por um lado estas até cumprem o seu objectivo até certo ponto e acabam por saber a pouco, ou seja, são em menor número do que aquele que o filme devia ter, por outro, infelizmente, estas cenas têm pouco conteúdo, ou melhor, são feitas para chocar, forçar a mensagem da emancipação da mulher moderna (os paralelismos para o presente são óbvios e banais) e tentar tornar o filme menos, digamos assim, enfadonho para o público moderno (variando das cenas de interiores comandadas principalmente por diálogos). 

Que outro motivo poderá haver senão estes para fazer a cena dos créditos iniciais no presente, na qual mulheres dos anos 1990 falam das suas experiências a beijarem? Que outro motivo poderá haver senão estes para inventar uma cena em que Isabel tem um sonho no qual está a ter um ‘foursome’ com os seus três pretendentes? Que outro motivo poderá haver senão estes para fazer com que a cena da viagem de Isabel pelo Mundo, quando herda a fortuna, se assemelhe a um filme mudo dos anos 1920? Se pensarmos bem, esta viagem ocorreu 100 anos antes dos filmes mudos, portanto não tem lógica nenhuma. É apenas um artifício fílmico, extremamente artificial, mas que tenta colmatar uma falha emocional do argumento. A verdade é que algumas destas cenas realmente resultam para transmitir uma mensagem (a cena de amor a quatro é uma destas… a sério!), mas a maior parte destas cenas sonhadas não resulta muito bem. O que resta é um monte de cenas que se amontoam umas por cima das outras a uma velocidade vertiginosa, com carradas de diálogo, que é dito no menor tempo possível, sem as pausas adequadas para assentar emoções. 

O objetivo ao longo do filme parece ser sempre não contar a história, mas sim chegar à cena seguinte. Mesmo que os diálogos sejam fortes e emotivos (são), e mesmo que os actores os digam de uma forma quase perfeita (dizem), não há tempo algum para assentar as ideias, pois há ainda muita história que o filme precisa de cobrir, apesar dos cortes, e portanto é como um dínamo, avançando sempre, non-stop.  
Tudo somado, ‘The Portrait of a Lady’ tenta ser fiel à narrativa do romance, e como é bem sucedido em fazê-lo poder-se-á dizer que isso é o seu grande trunfo. Para além do mais, o design de produção, a fotografia, e o trabalho de câmara são todos excelentes. Mas ao mesmo tempo a maior parte dos elementos da narrativa são adicionados artificialmente só porque têm de lá estar, as personagens não estão desenvolvidas e o público é obrigado a acreditar em sentimentos que não cresceram no filme, apenas no livro. Portanto o filme é um bom complemento do livro (venham ver as cenas principais do livro representadas por um monte de actores famosos, e os penteados estranhos de Kidman!!), mas como ente isolado tem muito pouco para oferecer, ou seja, não é um filme que se consiga suster sozinho. Tentaram condensar demasiado num tempo muito limitado (apesar do filme ter mais de duas horas), e por causa disso todos os gramas de sentimento foram sugados da história, isto apesar dos actores darem o seu máximo (e isso é perceptível) para tentar manter esses sentimentos lá (bem, todos menos Mary-Louise Parker no papel de Henrietta, que é, sinceramente, péssima!)

E por falar em actores, quase não mencionei Kidman. Supostamente este papel foi-lhe prometido por Campion nos anos 1980, quando ambas eram ilustres desconhecidas na Austrália. E verdade que por esta altura Kidman pouco mais era que a mulher de Tom Crise, entrando nalguns blockbuster mas em poucos filmes relevantes. Sinceramente Kidman é quase sempre Kidman, e neste filme não é exceção, embora seja, a meu ver, uma convincente Isabel Archer. Pelo menos a sua beleza, por vezes distante, pode justificar muita coisa do filme, mesmo que a sua expressão e a forma como diz as frases não o justifiquem completamente. A sua cara bonita ajuda muito mas em sua defesa não é tudo o que ela tem para oferecer. Contudo se me perguntarem se a mulher dos anos 1990 se consegue identificar com Nicole Kidman e Isabel Archer (afinal, parece ser esse o objectivo desta adaptação) então eu tenho de responder: com Archer não me parece, mas com Kidman é provável que sim… mas não neste filme!

15/07/24

O Menino e a Garça, Kimitachi wa dô ikiru ka, 2023, Hayao Miyazaki

Crítica | O Menino e a Garça por Ritter Fan 21 de fevereiro de 2024
O grande legado de Hayao Miyazaki.

Quando Vidas ao Vento foi lançado em 2013, Hayao Miyazaki convocou uma coletiva de imprensa e anunciou sua aposentadoria. Não foi a primeira vez que ele disse que se aposentaria, mas, por toda a pompa e circunstância ao redor do evento midiático em Veneza, além de seus 72 anos bem vividos, imaginava-se que o grande mestre realmente recolher-se-ia em alguma confortável casa no arquipélago japonês para viver seus anos crepusculares. Corta para 2016 e eis que Miyazaki retorna para a animação com o roteiro e direção do curta-metragem Boro, a Lagarta, que seria lançado em 2018 exclusivamente no Museu Ghibli e, depois, no Parque Ghibli, contraindo, com isso, o grave vírus normalmente conhecido como “aposentadoria, que aposentadoria?”, logo iniciando os trabalhos no que viria a ser O Menino e a Garça.

 Apesar de Miyazaki ser Miyazaki, a produção do que talvez seja seu último longa (impossível afirmar qualquer coisa com certeza mesmo com ele agora com 83 anos, vide Clint Eastwood fazendo filmes aos 93…) não foi tranquila mesmo internamente, já que ele realmente teve que convencer seus pares de que seu retorno valia à pena, que ele ainda tinha mais uma grande história para contar. Mas, ultrapassados esses obstáculos iniciais, o estúdio então embarcou de coração no projeto, investindo muito dinheiro nele, dinheiro obtido também por meio do licenciamento dos longas anteriores do estúdio para o Netflix (um efeito colateral ótimo, aliás), o que o fez ser uma das mais caras animações já feitas no Japão, algo que se deu também pelos atrasos seguidos sofridos antes e depois da pandemia de COVID-19 pelos mais diversos fatores, um dos mais importantes sendo o cuidado dito excessivo de Miyazaki com basicamente cada etapa da produção.

E, se O Menino e a Garça talvez não seja o melhor filme deste grande nome da animação mundial – um dos últimos grandes nomes da animação mundial, na verdade! -, o que não é problema algum já que a carreira de Miyazaki é pontilhada de obras-primas, ele certamente é uma magnífica forma de encerrar uma vida profissional irretocável e revolucionária, isso se ele a encerrar por aqui, claro. Trata-se de um longa com elementos autobiográficos, notadamente sobre a perda de sua mãe e o relacionamento com seu pai, algo que Miyazaki nunca explicitamente abordou em suas obras, e que bebe de variadas fontes literárias, talvez mais destacadamente de O Livro das Coisas Perdidas, do irlandês John Connolly, Torre Fantasma, do japonês Edogawa Ranpo e de Como Você Vive?, do também japonês Genzaburo Yoshino e de onde o cineasta tirou seu título original. Mas tanto a vida de Miyazaki quanto os romances são como inspirações, panos de fundo sobre os quais o cineasta erigiu uma obra completamente independente do material fonte, que, para mim, bebe muito mais de toda sua filmografia, criando uma amálgama do que veio antes e que chega até mesmo a ser uma espécie de auto-homenagem, mas que, em se tratando de quem é, não é absolutamente demérito algum.

Todo o marketing de O Menino e a Garça ficou em cima do anti-marketing, o que, pessoalmente, para mim, é uma maravilha nesta época absolutamente ridícula em que os filmes, quando lançados, já tiveram todos os seus detalhes divulgados, comentados, estudados e criticados internet afora. Quase nada foi divulgado sobre o longa antes de seu lançamento, nem mesmo uma sinopse, pelo que eu farei o mesmo aqui. Em linhas amplas, o longa, que se passa durante a Segunda Guerra Mundial, lida com o jovem Mahito Maki (Soma Santoki) que, depois de perder sua mãe no incêndio do hospital em que ela trabalhava, muda-se para o campo com seu pai que se casara com a irmã de sua esposa, engravidando-a. Tendo que lidar com trauma e com sua nova vida, Mahito acaba conhecendo uma grande garça que o leva a uma viagem a um mundo fantástico, em uma abordagem que lembra talvez de maneira mais proeminentemente o clássico A Viagem de Chihiro, com toques de Meu Amigo Totoro, ainda que, como já disse, o resultado final seja um filme com características muito próprias, inconfundíveis e inesquecíveis.

Trata-se, talvez, da animação mais fantástica – ou tão fantástica quanto Nausicaä do Vale do Vento – e ao mesmo tempo mais adulta de Miyazaki, características que nem sempre funcionam juntas, mas que o cineasta faz funcionar se e apenas se o espectador comprar o conceito geral do longa que, mais do que uma história linear contada de forma padrão, é longa e variada jornada de amadurecimento de um jovem garoto que é visualmente arrebatadora e original, com criaturas mágicas que podem ser maléficas e boas, além de engraçadas e assustadoras. Se Alice, quando entrou pela toca do coelho encontrou um mundo peculiar que é ao mesmo tempo fascinante e perigoso, Mahito encontra uma montanha-russa imaginativa que parece vir de um colegiado de mentes sob fortes efeitos de substâncias alucinógenas. Diria até que, para todos os efeitos, O Menino e a Garça exerce seu próprio efeito alucinógeno na plateia na medida em que a minutagem avança e os acontecimentos de antes passam a ser amplificados por novos e ainda mais exotéricos acontecimentos, criando até uma espécie de “competição interna” para ver que criatura, que evento, que manifestação audiovisual é a mais bizarra.

E essa completa falta de freios é o que faz do longa uma bela despedida de Miyazaki. O criativo cineasta não tem interesse algum em entregar uma narrativa tradicional, o que óbvia e compreensivelmente pode incomodar muita gente, mas sim o equivalente audiovisual do fluxo de consciência, levando seu Mahito a um frenético delírio multicolorido que parece ser a soma de tudo o que o cineasta colocou nas telas ao longo de toda sua vida. Diria que o cineasta talvez vá um pouco além do que deveria em seus devaneios, de certa forma estendo a obra desnecessariamente, mas essa gana por mostrar mais e mais é perfeitamente compreensível e ainda mais aceitável quando notamos que a técnica de animação, encabeçada pelo também lendário diretor de animação Takeshi Honda, é irrepreensível. 

Tudo se movimenta em O Menino e a Garça e tudo se movimenta como deveria se movimentar, mesmo as criaturas que inexistem no mundo real, algo que vai desde as lâminas de grama na pradaria em que uma misteriosa torre fica, até os enormes e sinistros periquitos lá pelo final da projeção. E a paleta de cores tendente ao infinito, mas focando nas cores básicas é puro Miyazaki fazendo “mágica da Pixar de outrora que por sua vez fez o que fez inspirando-se no próprio Miyazaki, dentre outros”, só que com animação 2D, deixando muito claro que o mundo do audiovisual ainda tem espaço e, mais ainda, quer a animação clássica da mesma forma que ainda quer produções capturadas em celuloide e efeitos especiais sem computação gráfica.

No entanto, em meio a toda essa mágica alucinógena, O Menino e a Garça traça uma jornada repleta de dor, de dúvidas, de decisões que andam na corda bamba entre a juventude e a vida adulta, entre a inocência e sua perda. A própria garça é um símbolo quase grotesco dessa invisível linha divisória com sua beleza natural transmutando-se para algo estranho, humanoide e, portanto, manchado por impurezas. Deixando a ambientação realista da Segunda Guerra apenas realmente como algo que fica na lembrança, Miyazaki traz para o fantástico as perdas que uma guerra causa e cria um mundo que é lindo em sua superfície, mas que esconde as mais variadas fraquezas humanas logo abaixo, com a torre que Mahito explora funcionando como uma lente que permite a observação do que está além do arco-íris da inocência. O mundo de fantasia que é construído com extremo cuidado, é um mundo essencialmente corroído que o jovem protagonista precisa cruzar e desbravar para entender a si mesmo e, eventualmente, aceitar o que aconteceu com sua  vida do lado de fora da qual ele quer fugir. É, para todos os efeitos o que todos nós – ou muitos de nós – dejesa lá no fundo e Miyazaki, com seu lirismo quase absurdista entrega de sua maneira tão deslumbrante quanto assustadora.

Marcando ou não o verdadeiro fim da carreira de Hayao Miyazaki, O Menino e a Garça é outra estupenda animação na filmografia desta lenda viva que une uma abordagem de cunho pessoal com uma invejável criação de mundo que leva Mahito e os espectadores a uma jornada inesquecível. Experimentar o longa em toda sua grandeza é como viajar por um mundo ao mesmo tempo desafiador e deslumbrante que assusta e faz sorrir, choca e afaga. E, quando os créditos começam a subir, o que fica, dentre as lembranças multicoloridas e dinâmicas, é aquela sensação gostosa de ter visto um grande mestre fazendo aquilo que nasceu para fazer.

15/07/24

Vidas ao Vento, Kaze tachinu, 2013, Hayao Miyazaki

Ver a crítica deste filme num link da crítica do filme anterior (O Menino e a Garça)

16/07/24

O Mensageiro do Diabo, The Night of the Hunter, 1955, Charles Laughton

Crítica | O Mensageiro do Diabo, por Rafael W. Oliveira 3 de junho de 2019

Não é de hoje que o cinema americano demonstra tanto apreço em construir suas obras de horror em cima dos temores mais primários do ser humano: a solidão do mundo, o medo do desconhecido, o enfrentamento iminente da morte. São medos que atravessam nosso imaginário desde a infância, e é com base neles que Charles Laughton, em seu único trabalho atrás das câmeras, dá vida ao seu conto lúdico que perpassa por temas como feminicídio, religiosidade e ganância.

Vítima de um fracasso comercial motivado, muito provavelmente, pela difícil aceitação do enredo em plenos anos 50, O Mensageiro do Diabo é ambientado nos EUA dos anos 30, ainda se recuperando dos efeitos da recessão econômica (e isso jamais é verbalizado pelo filme, as imagens deixam claro por si só), Ben Harper (Peter Graves, de Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu!) é um pai de família que após um fatídico assalto a um banco, esconde a quantia roubada na boneca de sua filha Pearl (Sally Jane Bruce), fazendo ela e seu irmão jurarem jamais revelar a localização da quantia. Condenado a execução, Ben conhece na cadeia o inescrupuloso Harry Powell (Robert Mitchum, de Fuga do Passado), que após a execução de Ben, se disfarça de pregador religioso para se aproximar da família Harper e descobrir onde está o dinheiro, aproveitando a oportunidade para casar com Willa (Shelley Winters, de Winchester’ 73), viúva de Ben.

Ao mesmo tempo em que Charles Laughton se sentiu tão decepcionado com a recepção negativa ao ponto de prometer nunca mais dirigir outro filme (mas seguiu atuando em grandes títulos como O Corcunda de Notre Dame, Testemunha de Acusação e Spartacus), é compreensível a recusa do público em relação ao projeto, uma vez que nossos tempos são muito mais suscetíveis a encarar o cinismo extremo de Henry Powell do que os frágeis anos 50, mesmo com uma história que dispensa a violência gráfica, mas desnorteia com um tom lúdico e fantasmagórico, mesmo não havendo nada de sobrenatural, que muito aproxima O Mensageiro do Diabo de um autêntico pesadelo.

A identidade estética de Laughton ao lado do diretor de fotografia Stanley Cortez ressaltam isso com gosto. Tomando para si a escola do expressionismo alemão, Laughton e Cortez apostam em enquadramentos inusitados, que brincam com a sombra e a luz de forma ressaltar não somente o perigo da presença de Powell, mas a própria dicotomia entre o bem e o mal, algo que o roteiro de James Agee jamais nos permite esquecer (e talvez faça isso mais que o necessário) ao enfatizar a religiosidade cega dos que acreditam na suposta devoção extrema de Powell, se entregando ao mastigado “providência divina”. E nisto, as imagens de O Mensageiro do Caminho caminham num prazer estético valioso, como a figura de Robert Mitchum iluminada por um lampião que agiganta sua sombra ou o momento em que um corpo é revelado no fundo de um rio, talvez o frame mais catártico do filme. Nada mais completo, porém, que a sequência onde as crianças fogem num barco enquanto elementos “gigantes” da natureza as observam.

Mitchum, aliás, é responsável por uma das caracterizações vilanescas mais idolatradas e temidas do imaginário popular americano. Dono de bom porte, voz mansa, rosto bondoso e repleto de discursos que condizem com a moral cristã daquele lugar, Henry Powell atinge um nível de ganância e crueldade que certamente assustaram a classe média americana, em especial pela imposição assustadora de Mitchum em cena. Reparem, por exemplo, na cena em que o vilão chega ao ponto de insultar a pequena Pearl, um momento difícil de encarar. E Mitchum se faz tão imponente que, querendo ou não, ofusca o trabalho de quase todo o elenco, algo quebrado somente perto do clímax quando a senhora Rachel Cooper (Lilian Gish, de Intolerância) entra em cena e se digladia, quase literalmente, com Powell. Uma das grandes cenas (mais uma) do filme é protagonizada por Gish e Mitchum, num misto de tensão e lirismo que o cinema americano raramente atingiu novamente.

Por ter construído uma carreira notável como ator, é lamentável que O Mensageiro do Diabo fique tão relegado ao último plano na carreira de Laughton, mesmo que o passar dos anos tenham aberto os olhos da crítica sobre o valor e a influência do filme (a Cahiers du Cinèma o elegeu, em 2015, como um dos mais belos 100 filmes da história, ficando atrás somente de Cidadão Kane). Houve uma refilmagem televisiva nos anos 90, e que claramente não chegou aos pés da importância artística da obra original de Charles Laughton.

17/07/24

Memórias Póstumas de Brás Cubas, 2001, André Klotzel

Crítica | Memórias Póstumas (2001) por Leonardo Campos 16 de agosto de 2016

Adaptar Machado de Assis para a linguagem cinematográfica não é uma tarefa fácil, principalmente se tratando de Memórias Póstumas, um romance denso, produzido por um autor preocupado em inserir uma linha de problematizações em nossa literatura, tendo a visão crítica e reflexiva como carro-chefe das produções.

Foi com coragem e determinação que José Roberto Torero e André Klotzel juntaram as suas mentes criativas para desenvolver um roteiro interessante para o ponto de partida cheio de desafios. Além do tom cáustico, o livro intercala muitos gêneros: carta, epístola, novelas, tipos embutidos que tornam a escrita do roteiro algo bastante desafiador.

No filme, após a sua morte em 1869, Brás Cubas (Reginaldo Faria, ótimo) decide narrar as suas aventuras através de um divertido e audacioso mergulho memorialístico. Revisita os principais fatos que ajudaram a compor a sua vida, entre eles, a sua relação com Quincas Borba (Marcos Caruso), a sua formação acadêmica irregular (na juventude, sendo interpretado pelo competente Petrônio Gontijo), além do privilégio de nunca ter precisado trabalhar em toda a sua vida.

Os amores não ficam de fora da história. Há um espaço generoso para as mulheres da sua vida: a cortesã Marcela (Sonia Braga) e Virgília (Viétia Rocha). A interpretação de Sônia Braga não é das melhores, tamanha a caricatura em torno do personagem, assim como o desempenho de Viétia Rocha: apesar de entregar uma interpretação certinha para o seu personagem, falta um tempero a mais. Assim, a presença feminina no filme é eclipsada pelos ótimos trabalhos de Reginaldo Faria e Petrônio Gontijo, ambos brilhantes nas performances do mesmo personagem: o astuto Brás Cubas.

Um destaque metalinguístico importante para o roteiro está na relação com o seu pai se estabelece numa aproximação com os aspectos críticos do conto Teoria do Medalhão, publicado por Machado de Assis em 1881. No texto, o autor utiliza-se da sua figura de linguagem predileta, a ironia, para nos apresentar uma história onde o “parecer” importa mais que o “ser”, criticando as aparências de uma sociedade hipócrita e inescrupulosa quando o foco é a ascensão social. Há, portanto, um deslocamento importante: no conto, o filho quer seguir os passos do pai, pois a sua postura passiva permite que o mesmo siga os caminhos socialmente construídos pelo patriarca da família.Brás Cubas, entretanto, é mais desafiador. Segue os seus instintos e consegue dar outro rumo para a sua vida. Durante a navegação neste mar de intertextualidades, é possível relacionar o conteúdo de Memórias Póstumas com os contos O Espelho e O Segredo do Bonzo, também de Machado de Assis, ambos sobre a aniquilação do indivíduo em prol do status social.

O resultado, entretanto, foi primoroso. Memórias Póstumas consegue captar o audacioso jogo metalinguístico de Machado de Assis, bem como as suas ironias, graças ao roteiro, aliado à direção segura e a montagem eficiente.  Na seara estrutural não há como negar o excelente trabalho de fotografia de Pedro Farkas, a direção de arte de Adrian Cooper e a trilha sonora “funcional” de Mário Manga.

Com 101 minutos de duração, Memórias Póstumas cumpre o seu papel como boa adaptação. É um filme que consegue radiografar de forma divertida a sociedade brasileira urbana nos idos do final do século XIX. Com um enredo envolvente e personagens carismáticos, a produção deve ser consumida além das leituras para vestibular ou substituição da obra literária para trabalhos escolares: repleto de questões filosóficas importantes, o filme deve ser visto por todos que amam diálogos afiados e sequências adornadas por ironia, figura de linguagem em decadência no discurso cultural contemporâneo.

18/07/24

Os Homens Violentos do Klan, The Klansman, 1974, Terence Young
Roteiristas: William Bradford Huie, Millard Kaufman, Samuel Fuller

No iutubi aqui 


Klansman 1974
Small town Alabama in the late '60s: rape, murder and rampant racism tear apart a sordid little community under the watchful, apathetic eyes of sheriff Marvin. Young directs with an alarming lack of subtlety, concentrating purely on (voyeuristically portrayed) action and rarely investigating the gradations in morality that inform the various characters. A pity, because the script by Sam Fuller and Millard Kaufman suggests the potential for something far better, a study in universal corruption pitched somewhere between Arthur Penn's The Chase and the inbred psychoses of Jim Thompson's novels.

The Klansman (1974) Review

Benjamin May, Jul 7, 2023

A famous Hollywood story goes that sometime in the mid-to-late 70's, Richard Burton was at a party and got talking to Lee Marvin, whom he thought he had never met. Eventually Burton remarked that the two men should work together at some point, to which Marvin simply stated, "we have."
That Burton forgot making 'The Klansman' is unsurprising, considering his unintentionally hilarious and obviously intoxicated performance in the film. He stars as a liberal Southern landowner named Breck Stancill, who is brought into the local furore after a white girl makes allegations of assault against a black man. Marvin co-stars as the town Sherriff, Track Bascomb, who tries in vain to quell the uprising of racially motivated violence that ensues. Also, in his first credited role, OJ Simpson plays a vigilante who uses the situation to start a one-man revolt against the Ku Klux Klan.

An adaptation of the 1967 William Bradford Huie novel of the same name, the film had a troubled production history. Adaptation rights were first purchased that same year, but were then passed around for the next couple, with no projects ever getting off the ground. At one point Samuel Fuller was attached to write and direct, but that too never transpired. His screenplay was eventually rewritten by Millard Kaufman and Terence Young took over as director. Burton and Marvin were then brought in and proceeded to drink their way through the shooting process.

The finished film is a tonally confused, visually unexciting and oftentimes very funny concoction that doesn't have a lot going for it on paper. Huie's hard-hitting story about racial violence is diluted and obfuscated by camp moments like a strange fight scene where Burton drunkenly karate chops people, throwing many through doors. The dialogue sounds stilted and preacherly when it isn't hilariously over the top.

The movie is cheap looking, even for something billed as a work in the exploitation genre, looking like cinematographer Lloyd Ahern forgot to clean his camera lens before shooting began. As well as all that, many of the supporting actors have had their voices dubbed in post-production and it's not a subtle or decent piece of work (with the dubbing of Luciana Paluzzi being the most notably inept).
Which is not to mention Burton's performance at all. In every scene it is obvious he's four sheets to the wind and clearly has no interest in the material. Struggling with his Southern accent, he's like a poorly drawn, very funny caricature. Though reports say he was doing an equal amount of drinking, Marvin actually delivers a steady, interesting performance as the Sheriff, not once appearing intoxicated. There is much pleasure that can be drawn from watching Burton act in 'The Klansman', but none of it was intentional.

Having listed all those detractions, it may surprise you that 'The Klansman' is actually a very entertaining movie. There are moments where the themes and sequences from Huie's novel are treated with a measured hand, like the rape scene and some of the locals' ignorant conversations, as well as the finale. These are visceral, powerful and neatly directed by Young.
Burton and Marvin's characters are well drawn, with the Sherriff being one of surprising depth- again, thanks in large part to Marvin's performance. The OJ Simpson character is intriguing, even if his story is not fully explored, and the local racists- led by David Huddleston- have some great scenes that are genuinely affecting.

At the end of the day- whether they wanted it to be or not- the film is funny, and anything that makes you belly laugh in these dark times is a positive experience. 'The Klansman' is not a hard-hitting story about racial prejudice and violence in a small town, nor is it a good adaptation of William Bradford Huie's source material. It has dark elements that are well realized for the screen, and are quite difficult to watch- brutal racism is never palatable- but, overall, it's a joyride piloted by a drunken Welshman that's very entertaining.


19/07/24

O Caso Mattei, Il caso Mattei, 1972, Francesco Rosi

Francesco Rosi (1922-2015)

Georges Sadoul, Dicionário de filmes, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, L&PM, 1993
 

35 ANOS DEPOIS

Máfia explodiu avião de empresário em 1962; morte foi tema de filme premiado
Itália admite atentado no caso Mattei

fsp, da Redação, São Paulo, sábado, 22 de novembro de 1997

A Itália é um país cheio de mistérios, costumam dizer os italianos. Desde ontem, porém, passou a ter um mistério a menos. A Justiça confirmou que foi um atentado a bomba que matou, em 1962, o empresário Enrico Mattei.

Nascido em uma família pobre, Mattei fez carreira em empresas do setor petrolífero e chegou à presidência do ENI, o conglomerado energético estatal italiano. Considerado o melhor administrador da Itália à época, ele passou a denunciar o virtual monopólio de empresas norte-americanas no comércio do petróleo com os países do Oriente Médio.

Em 27 de outubro de 1962, ele voltava de uma viagem a Catania (na Sicília, sul do país) quando seu avião caiu. Além dele, morreram o piloto e um jornalista americano, que o acompanhava.
No início das investigações, um agricultor disse ter visto o avião explodir no ar. Em seu depoimento oficial à Justiça, porém, ele negou essa versão. A conclusão do inquérito apontou que uma falha mecânica provocara a queda do aparelho.

O incidente se tornou mais um daqueles que todo italiano afirma que não ocorreu de acordo com a versão oficial. Em 1972, o filme "O Caso Mattei", do italiano Francesco Rosi, apontava para um grande conluio entre políticos, militares e serviços secretos envolvidos nesse mistério. O filme acabou vencendo o festival de Cannes daquele ano.

Dois anos atrás, uma revelação levou à reabertura das investigações. O mafioso arrependido Tommaso Buscetta afirmou que a Máfia siciliana tinha explodido o avião de Mattei, a pedido de mafiosos americanos. Segundo Buscetta, Mattei estaria prejudicando interesses americanos no Oriente Médio.
A Procuradoria da República de Pavia, no norte da Itália, perto de onde caiu o avião, reabriu o inquérito. O principal passo foi exumar a ossada de Mattei. Nos ossos, foram identificados traços de explosivos.

Confirmado o atentado, os procuradores italianos pretendem agora processar o agricultor que mudou seu depoimento e saber porque ele fez isso. "Enrico incomodava as companhias petrolíferas internacionais, mas incomodava também porque criava trabalho, tinha idéias novas e pensava grande", disse seu irmão Umberto, 84, ao jornal romano "La Repubblica".

Umberto não pretende continuar as investigações do caso para tentar identificar quem matou seu irmão e quem abafou as investigações à época. "Depois de 35 anos, o que esperam descobrir?"

 
Cinema e Relações Internacionais - O caso Mattei revisitado: interesses petrolíferos e soberania nacional


20/07/24
Love Lies Bleeding - O Amor Sangra, 2024, Rose Glass

'Love lies bleeding - O amor sangra' provoca impacto ao misturar romance, suspense e fisiculturismo. Filme foi um dos destaques da edição 2024 do Festival de Sundance. Kristen Stewart e Ed Harris são os grandes nomes do elenco.

Por Célio Silva, g1, 01/05/2024

"Love lies bleeding - O amor sangra', que estreia nos cinemas brasileiros nesta quarta-feira (1º), teve sua primeira grande exibição no Festival de Sundance de 2024 e conquistou o público, tornando-se um dos destaques da conhecida mostra dos Estados Unidos. E não é para menos. O filme reúne uma série de qualidades notáveis, em especial uma ótima direção, elenco afiado e uma qualidade técnica que impressiona para uma produção independente.

O filme também é mais um passo para mostrar que Kristen Stewart é bem mais interessante e audaciosa como atriz. Especialmente para aqueles que suspeitavam que ela viveria de trabalhos semelhantes ao que fez durante a "Saga Crepúsculo". Ao que parece, ela realmente quer deixar sua mais famosa personagem, Bella Swan, para trás.

Na trama, Stewart interpreta Lou Lou, uma gerente de uma academia do interior americano de pouca conversa e preocupada com a irmã, Beth (Jena Malone, da franquia "Jogos Vorazes"), vítima de um marido violento (Dave Franco, de "Artista do desastre"). Um dia, ela conhece Jackie (Katy O'Brian, de "Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania"), uma jovem que quer fazer sucesso no mundo do fisiculturismo. As duas se aproximam e acabam se apaixonando.

Só que um incidente inesperado faz com que o casal se meta em uma grande confusão e seja perseguido pela polícia e até pelo pai de Lou-Lou (Ed Harris, de "O show de Truman"), dono de um clube de tiro onde Jackie trabalha e ligado ao submundo da cidade. Envolvidas em um verdadeiro jogo de gato e rato recheado de violência, as duas terão que fazer de tudo para sobreviver e saber se o que elas sentem uma pela outra realmente é para valer.

O poder do amor (e dos músculos)

"Love lies bleeding - O amor sangra" é um filme impressionante. É um longa tão bem trabalhado — na parte romântica, no suspense e até nos momentos mais surreais — que deixa o expectador atento a tudo o que acontece. Um dos méritos disso está na ótima direção de Rose Glass. Em seu segundo filme como cineasta, depois da estreia em "Saint Maud" (2019), ela mostra pulso firme para realizar convincentes cenas da intimidade das protagonistas, que vão de sequências mais intensas às mais comuns, como a de um café da manhã.

Glass também impressiona nas cenas mais pesadas, deixando o público tenso com que acontece na tela, onde a diretora demonstra domínio total. Assim, as situações inesperadas que surgem na história quase nunca ficam ruins ou desnecessárias devido ao apuro da realizadora. Até mesmo o famoso "jump scare", o susto fácil que se tornou clichê em muitos filmes de terror de qualidade duvidosa, consegue a façanha de realmente surpreender e assustar.

O roteiro, também escrito pela cineasta e por Weronika Tofilska (uma das diretoras do hit da Netflix "Bebê Rena"), chama a atenção por construir muito bem as reviravoltas da trama e ajuda a envolver o espectador com as provas de fogo pelas quais as protagonistas passam.

Além disso, a trama tem uma boa construção de personagens, que mesmo com suas excentricidades nunca parecem desinteressantes. Apenas uma cena, quase no final, quase põe tudo a perder por causa de um exagero desnecessário. Mas quem embarcar na proposta certamente não vai se incomodar.
Por ser um filme independente, chama a atenção a qualidade técnica de "Love lies bleeding". Em especial o trabalho design de produção e figurinos, que mostra bem que o filme se passa na década de 1980. O departamento de cabelo e maquiagem também capricha, como no visual dos personagens (em particular, o de Ed Harris) e nas cenas mais sangrentas.
Os efeitos visuais também estão incríveis. Especialmente nas cenas em que a personagem de O'Brian sente seus músculos ficando maiores e em uma sequência que quem for ver o filme certamente não vai esquecer.

Corações selvagens

Além de todas as qualidades já citadas, "Love lies bleeding" também conta com um ótimo (e enxuto) elenco. Stewart mostra uma excelente atuação durante todo o filme e uma boa química com O'Brian. Essa, por sua vez, chama a atenção toda vez que aparece e não é só pelo corpo musculoso. Ela demonstra um bom vigor dramático, especialmente depois da segunda metade do longa. Não fica muito difícil torcer para que o casal se dê bem no final.

O grande nome do elenco, no entanto, é Ed Harris. Desde o seu visual inusitado, assim como seu gosto peculiar por insetos, Harris deixa Lou realmente intimidador. Sempre que está em cena, não tem como sentir um certo temor pela sensação de que algo ruim pode acontecer.
Uma boa surpresa é a curta, porém importante, participação de Anna Baryshnikov, filha do bailarino Mikhail Baryshnikov, que interpreta uma pessoa que será crucial para o casal principal.

21/07/24
Fedora, 1978, Billy Wilder

 
Hellmuth Karasek, Billy Wilder e o resto é loucura, tradução de Flávia Buchwaldt, DBA, 1998
 

22/07/24

Café Society, 2016, Woody Allen

Crítica | Café Society por Luiz Santiago 27 de agosto de 2016

A estrutura narrativa de Café Society (2016), o primeiro longa rodado em digital por Woody Allen, é de um romance do início do século XX, algo relativamente próximo da dinâmica de várias histórias em um “pequeno grande Universo” de F. Scott Fitzgerald, por exemplo. A trama se passa nos anos 1930 e traz o jovem Bobby (Jesse Eisenberg) mudando-se de Nova York para Hollywood, onde começa a trabalhar com o seu tio Phil (Steve Carell, que entrou no projeto depois da demissão de Bruce Willis, logo no início das filmagens, por não lembrar das falas e fazer com que seu comportamento levasse o restante do elenco à loucura) e rapidamente se apaixona por Vonnie (Kristen Stewart), dando início a mais uma ciranda de amores típicas dos romances de Woody Allen.

Sem muitas pretensões, mas ainda assim trazendo uma elegância toda especial, Café Society mostra um Allen tecnicamente mais dinâmico e aberto a novidades, não só pela estreia no formato digital, mas também pelo aspect ratio de tela, que nunca havia experimentado e que só aceitou utilizar por este ser bastante comum ao diretor de fotografia Vittorio Storaro (vencedor do Oscar na categoria por Apocalypse Now, Reds e O Último Imperador), o grande destaque do filme.
Para quem é familiarizado com a cinematografia woodyana, Café Society não será uma surpresa em nada, além da fotografia. Isso acaba trazendo uma certa limitação e ao mesmo tempo uma grande ansiedade para o público, porque mesmo sabendo do modelo de “mesmo tema com cenários e impulsos diferentes”, sempre há a espera de algo realmente instigante vindo de Woody Allen, e isso já contando com a forma conhecida dele de escrever roteiros e dirigir filmes — notem que até agora, nesta fase dos anos 2010, ele nos trouxe apenas duas grandes surpresas: Meia-Noite em Paris (2011) e Blue Jasmine (2013).
O texto ganha pontos na representação do glamour do mundo das celebridades anos 30, valendo-se de um estupendo desenho de produção e figurinos; mas perde no seu carro-chefe, o romance estrelado por Jesse Eisenberg e Kristen Stewart. Há algum esforço dos atores (especialmente de Eisenberg) em fazer com que seus personagens empolguem o espetador, pareçam críveis e interessantes, mas são poucas as vezes em que isto acontece, e quase nunca quando eles estão juntos. Eisenberg funciona bem contracenando com outros atores e realiza uma boa apresentação no início da obra, mas logo seus maneirismos se reforçam e ele mais distrai do que prende.

Steve Carell é uma boa presença na transição sutil entre comédia e drama, mais pelo segundo gênero do que pelo primeiro. O ator faz um personagem vivaz, porém reflexivo, um produtor de cinema que não é exatamente o mais adorável personagem do filme, mas é bastante aprazível e realiza com competência o seu papel. Curioso é que a sua parte do romance é a que melhor funciona, talvez pelo toque de maturidade vindo de seu personagem ou pela qualidade de sua atuação, principalmente se comparada às outras duas pontas do triângulo.

Porém, como disse anteriormente, o grande destaque do filme vai para o mestre Vittorio Storaro, que mais uma vez realiza uma direção de fotografia inesquecível. Seu trabalho lembra um pouco o de Carlo Di Palma em Setembro (1987), com interiores de luzes quentes e cercadas por sombras, além de destaque para cenas noturnas ou de nascente e poente, mostrando bem mais do que o roteiro em relação a romantismo e paixão, duas marcas da obra. A cena em que Bobby e Vonnie bebem vinho em um apartamento onde acabou de faltar luz, com as velas acesas e imenso contraste na paleta de primárias é uma das cenas mais belas do cinema recente de Woody Allen.

Ao som de Jazz (com destaque para canções de Richard Rodgers & Lorenz Hart), mesclando metalinguagem, idas e vindas do amor, atividades de gângsters em NY nos anos 30, religião, morte e o peso de algumas escolhas na vida, Café Society não nega ser um filme de um diretor maduro que ainda se arrisca em novos formatos e novos caminhos técnicos para realizar o seu trabalho. Desde A Era do Rádio (1987) Woody Allen não narrava um filme sem aparecer nele, e é a primeira vez desde A Última Noite de Bóris Grushenko (1975) que ele dirige um filme sem o seu amigo, produtor executivo e agente de longa data, Jack Rollins, que faleceu aos 100 anos em 2015. Talvez a exploração dos limites de algumas escolhas e a força do papel da morte dentro do judaísmo tenham alguma justificativa real originada na vida do diretor.

Mesmo quando não é genial, Allen consegue nos fazer rir e nos encantar com o seu mundo de neuroses e possibilidades do que é amar, ser amado e viver a vida em uma sociedade tão quente, saborosa, glamourosa e passageira quanto uma boa xícara de café.

23/07/24

Gerônimo: Uma Lenda Americana, Geronimo: An American Legend, 1993, Walter Hill

Gerônimo: Uma Lenda Americana, Geronimo: An American Legend, 1993 por Sergio Vaz

Ao contrário do que o título sugere, Geronimo: An American Legend, de 1993, não é propriamente uma biografia do famosérrimo guerreiro apache, um dos últimos chefes indígenas a ser derrotado pelo Exército dos Estados Unidos, já nos anos 1880. A narrativa se concentra apenas nos últimos meses antes de ele ser finalmente derrotado.

É uma maravilha de filme – uma produção de primeiríssima, com grandes atores, excelente trilha sonora (de Ry Cooder), uma fotografia excepcional, cheio de planos gerais daquela imensidão do Oeste americano de uma beleza atordoante, com sequências de luta entre índios e brancos extremamente bem realizadas. Mas, sobretudo, é um filme inteligente, arguto, sóbrio, que põe as coisas na perspectiva correta. Nem todos são ou mocinhos imaculados ou então bandidos sanguinários – há de tudo, com diversas tonalidades entre o preto e o branco. Os índios não são selvagens cruéis enfrentando os bondosos brancos, de forma alguma. Esse maniqueísmo, essa visão supremacista que vigorou na imensa maior parte dos westerns até os anos 60 já havia sido deixada de lado.

E o filme vai fundo, bem fundo, na demonstração dos muitos erros absurdos cometidos pelos brancos – tanto alguns dos colonizadores, para quem valia aquela antiga norma de que índio bom é índio morto, quanto por parte de muitos militares, de soldado até general. Assim como o poder central, os homens de Washington – a chefia, o comando do Exército, a presidência da República, em última instância.
Há os bons militares – e os dois mostrados como os melhores entre todos, um general e um tenente, são seres humanos de visão ampla, que tinham respeito pelos índios de uma maneira geral, em especial pelos seus bons líderes. Não queriam, de forma alguma, carnificina, genocídio – muitíssimo antes ao contrário, queriam tentar encontrar uma forma de convivência. O general George Crook (o papel do grande Gene Hackman, ótimo como sempre, perfeito na composição de um grande homem, um estadista) entendia de fato que o Exército tinha a missão de proteger os índios em suas reservas. Protegê-los contra a cobiça dos próprios colonizadores pelas terras. Manter os índios nas reservas era uma forma de garantir a paz e a sobrevivência deles. O general Crook diz isso mais de uma vez, e fica evidente que ele de fato acredita naquilo.

O tenente Charles Gatewood (Jason Patric), a rigor o protagonista da história, é um militar absolutamente íntegro, correto, que conhece muito bem os apaches, fala hem a língua deles, os respeita – a tal ponto que passa a ter a admiração e o respeito do próprio Geronimo (o papel de Wes Studi).
E há os maus militares, como o general que é colocado no lugar de Crook quando este, cansado, desgostoso, pede para sair: o general Nelson Miles (Kevin Tighe) é daquele tipo que não parece humano, não tem qualquer simpatia, empatia pelos seres humanos que eram os donos da terra até a chegada dos brancos. Daquele tipo que enxerga os índios como entrave, obstáculo, inimigo a ser abatido. Daquele tipo para quem é fácil cumprir as ordens tortas, imorais que vêm de Washington – para mentir aos índios, enganar, falsear. Daquele tipo que não sabe o que é honra.

O narrador é soldado bem jovem, inexperiente
O líder apache Geronimo é de fato, como diz o título do filme, uma lenda americana, uma figura importante, marcante da História. Há mais de uma dúzia de filmes com seu nome no título, fora outros tantos curta-metragens e episódios de séries.

Há, por exemplo, um Geronimo de 1939, de Paul Sloane. Há um Geronimo de 1962, no Brasil Sangue de Apache, de Arnold Laven, com Chuck Connors como Geronimo e Lawrence Dobkin como o general Crook. Em dezembro de 1993, na mesma semana do lançamento deste filme aqui, foi apresentado na TNT um telefilme, Geronimo, em que o líder apache é interpretado por Joseph Runningfox, um ator descendente de índios.

A trama deste Gerônimo: Uma Lenda Americana foi escrita por John Milius, roteirista, produtor e diretor, autor ou co-autor das histórias e/ou dos roteiros de obras importantes: Mais Forte que a Vingança (1972), 1941: Uma Guerra Muito Louca (1979), Apocalypse Now (1979), Perigo Real e Imediato (1994), a série Roma (2005-2007). O próprio Milius escreveu o roteiro – que teve também a participação de Larry Gross. John Milius encontrou uma bela maneira de contar a história, escreveu um belo roteiro – e com um excelente texto. Há diversos diálogos marcantes, impressionantes, e o texto do narrador é sempre muito bom. Texto bom de narrador de filme é algo que me pega.

O narrador se apresenta rapidamente: é um rapaz bem jovem, que acaba de sair da academia militar com o posto de segundo tenente mas ainda, é claro, sem qualquer experiência, e é enviado para o Sudoeste do país, o território do Arizona, perto da fronteira com o México – a região dos apaches.
O jovem segundo-tenente se chama Britton Davis, e é interpretado por um jovem ator que, como ele, estava apenas em início de carreira, um tal Matt Damon.

Vemos uma sequência impressionantemente bem realizada em que um destacamento da Cavalaria comandado pelo general Cook subjuga um grande grupo de apaches – sem matar qualquer um deles –, enquanto a voz em off do narrador começa a falar conosco:
– “Cherokawas e apaches do sudoeste americano foram as últimas grandes tribos que enfrentaram o governo para evitar que fosse imposto o sistema de reservas. O Exército, sob o comando do general George Crook, tinha a responsabilidade de vencer a resistência deles. A campanha em terras cherokawas, na fronteira com o México, trouxe o desfecho ao conflito.”
Vemos o general Crook falando ao grupo de índios, com a ajuda de um índio que trabalha como intérprete dele, explicando que os soldados não querem matar, guerrear – querem garantir que os apaches vivam em paz nas reservas.
O narrador continua, a voz em off: – “Só um guerreiro cherokawa e seu bando de renegados resistiram. Depois, mandou avisar que se entregaria dentro de dois meses. Era chamado de Goyatla, mas os mexicanos já haviam dado outro nome, Geronimo. Um mês antes de fazer 22 anos, me apresentei à missão no Arizona. Era meu primeiro posto na carreira militar. Hoje eu vejo que, na época, eu era tão estranho para mim mesmo quanto era para o grande deserto. Meu nome é Britton Davis. Participei do que o Exército depois chamou de ‘Campanha Gerônimo’. Desejo falar sobre os incríveis fatos que presenciei e dos homens que os viveram.”

O cinema demorou a mostrar os índios com simpatia

O cinema matou quase tantos índios quanto a Cavalaria americana.
O western, o mais americano e um dos mais antigos gêneros do cinema, mostrou índios sendo mortos pela Cavalaria desde sempre. Só nos filmes de John Ford, o mestre dos mestres, morreram alguns milhares. Tantos, tantos – até que ele se arrependeu de ter mostrado tantas chacinas como se fosse uma coisa quase normal, e fez quase um pedido de desculpas em Crepúsculo de uma Raça/Cheyenne Autumn. Esse grande filme é de 1964 – e foi naqueles anos 60 que o cinema americano mudou a forma com que tratava os índios.
Não que antes não tenha havido westerns que mostravam simpatia pelos nativos americanos. Para dar apenas um exemplo, já em 1950 Flechas de Fogo, no original Broken Arrow, dirigido por Delmer Daves, tinha respeito e admiração pelos índios, condenava a matança deles, condenava o racismo, o supremacismo, e defendia a convivência harmônica entre o conquistador branco e o dono original das terras.

Mas filmes como Flechas de Fogo – avançandíssimo, muito, muito à frente de seu tempo – eram minoria antes dos anos 60, antes de Crepúsculo de uma Raça. A partir daí é que viriam filmes como Pequeno Grande Homem (1970), de Arthur Penn, Dança com Lobos (1990), de Kevin Costner, que mostravam claramente o massacre, quase o genocídio dos nativos americanos ao longo da conquista do território.

Este Gerônimo: Uma Lenda Americana, lançado três anos após o extraordinário (e inesperado) sucesso do filme de Kevin Costner, pertence a essa nobre estirpe de filmes claramente simpáticos aos índios.
Sem, no entanto, endeusá-los.
Quando o filme já passa um pouco da metade de seus 115 minutos, há o que, na minha opinião, é a mais memorável de todas as sequências. É um encontro cara a cara do general Crook com Geronimo, depois que este, diante do assassinato de um curandeiro, havia deixado de lado o compromisso de cessar fogo e voltado a guerrear.
Todo o diálogo entre os dois chefes é fantástico. Faço questão de transcrever alguns trechos.
General Crook: – “Uma porção de homens brancos quer ver Geronimo enforcado por assassinato.”
Geronimo: – “Assassinato, não. Guerra. Muita coisa ruim acontece na guerra.”
General Crook: – “Quantos homens brancos você já matou desde que deixou (a reserva de) Turkey Creek?”
Geronimo: – “Talvez 50. Talvez mais. Quantos apaches você matou?”
General Crook: – “Você matou mulheres e crianças.”
Geronimo: – “Você também.”
Em outro momento, o general Crook desfere um severo golpe:
– “Conheci Cochise. Ele era um rei. Um sábio líder. Conheci Vitório, um líder orgulhoso. E conheço Geronimo. Ele não quer liderar, governar, nem ser sábio. Só quer lutar.”
Mas, em outro momento do diálogo, Gerônimo é definitivo:
– “Com toda essa terra, por que não há lugar para o apache? Por que o branco quer toda a terra?”

O título deveria ser The Geronimo War

Gosto demais de westerns; não consigo explicar como e por que jamais tinha ouvido falar deste Geronimo: An American Legend, com Gene Hackman, Robert Duvall e Matt Damon, três atores que admiro. Foi Mary que viu as informações básicas sobre ele na Netflix, e aí, claro, quis ver.
Não conhecia o diretor (ou não lembrava dele, o que dá na mesma). 

Walter Hill, um veterano nascido em 1942, em Long Beach, Califórnia, com algum tempo no México, na juventude, e depois formado na Universidade Estadual de Michigan. Produtor (26 títulos), roteirista (28), diretor (26 títulos no currículo). Foi produtor de Aliens, o Resgate (1986) e de Alien 3 (1992). Escreveu o roteiro de 48 horas (1982). Entre os títulos que dirigiu, nenhum deles me chamou muito a atenção. Ele foi também o produtor deste Gerônimo: Uma Lenda Americana, ao lado de Neil Canton, para a Columbia Pictures.

Segundo informa o IMDb, o diretor Walter Hill não gostava do título Geronimo: An American Legend, porque, afinal de contas, não é propriamente uma biografia do guerreiro – é um filme sobre os homens da Cavalaria que foram os responsáveis por se aproximar de Geronimo no final de suas batalhas. Na opinião do diretor, um título bem mais apropriado seria The Geronomo War – a guerra Gerônimo.
Ainda segundo o IMDb, Walter Hill afirmou que há uma versão mais longa do filme, que o estúdio deveria ter lançado em DVD. Para o lançamento nos cinemas, ele foi forçado a cortar 12 minutos.
Não consigo compreender por que, sendo ele um dos produtores, o filme não foi lançado com os 12 minutos a mais e com o título de The Geronimo War, mas paciência. Tem tanta coisa mais importante que eu também não consigo compreender na vida…

Matt Damon era iniciante como seu personagem

Nos créditos iniciais  e nos cartazes do filme, esta é a ordem em que aparecem os nomes dos atores: Jason Patric, Gene Hackman, Robert Duvall, Wes Studi. Depois desses quatro, em tamanho menor, Matt Damon.
Acho sempre interessante essa coisa da ordem em que aparecem os atores.
Desde os primórdios dos estúdios de Hollywood, a ordem dos nomes dos atores é algo da maior importância. A indústria leva a sério a coisa do first billing – quem fica em primeiro lugar. A ordem é algo que tem muito mais a ver com a importância do nome do ator em si do que com aquela do personagem que ele interpreta. Vai na frente quem é mais famoso, quem tem mais chance de atrair gente para comprar ingresso na bilheteria – mesmo que seu papel não seja tão fundamental na trama, mesmo que o ator/a atriz apareça menos tempo em cena.

Jason Patric era, na época, um galã em ascensão – e o tenente Charles Gatewood, que ele interpreta, é também, sem dúvida alguma, o principal personagem da história, juntamente com o tenente Britton Davis, o narrador, e o próprio Geronimo.
Mas Gene Hackman e Robert Duvall eram atores muitíssimo mais conhecidos que o descendente de cherokees Wes Studi e o então novato Matt Damon – e portanto eles aparecem acima e/ou antes.
Não que os papéis desses dois grandes atores não sejam importantes. Não é esse o caso. Gene Hackman faz o general George Crook, e Robert Duvall faz Al Sieber, o chefe dos patrulheiros a serviço da Cavalaria. (Os patrulheiros, scouts, em inglês, eram os homens especialmente talentosos para rastrear pessoas, grupos, seguindo as marcas de cavalo, os cheiros, os indícios deixados por quem o Exército estava perseguindo.)

São papéis bem importantes os desses dois personagens reais, o general Crook e o scout Al Sieber, o sujeito que no filme diz várias vezes ter 17 ferimentos graves no corpo, provas de seu trabalho árduo ao longo de anos. Mas eles ficam na tela bem menos tempo do que Geronimo e o tenente Britton Davis.
No filme, o tenente tinha 22 anos, como já foi dito; em 1993, ano do lançamento do filme, Matt Damon tinha 23, exatamente. (Diacho: Matt Damon, de 1970, tem apenas 5 anos mais que minha filha. Ou ele é novo demais ou eu estou velho demais. Ou, claro, os dois.)

Antes deste Geronimo aqui, havia aparecido em papéis mínimos, sem sequer ser creditado, em três filmes, em seguida tinha feito um telefilme, Rising Son, de 1990, e um filme apenas em que interpretava um papel importante, Código de Honra/School Ties, de 1992 (em que contracenava com outros três então iniciantes, Brendan Fraser, Chris O’Donnell e Ben Affleck).
A vida passa depressa: apenas quatro anos depois, em 1996, os amigos Matt Damon e Ben Affleck assinariam o roteiro original de Gênio Indomável/Good Will Hunting, que Gus Van Sant dirigiria, com Robin Williams estrelando como professor dos personagens interpretados pelos dois rapazes. Meses depois do lançamento do filme, Matt Damon e Ben Affleck iriam receber aquela estatueta de gesso pintada de dourado que, mais do que qualquer falcão maltês, é “the stuff dreams are made of”, como alguém diz em Relíquia Macabra (1940). Mas isso, definitivamente, é outra história.

Neste mês de julho de 2021 em que finalmente vi Gerônimo: Uma Lenda Americana, o jovem Matt Damon tem 34 prêmios, fora 148 outras indicações (inclusive 3 ao Oscar de melhor ator). O veterano Gene Hackman tem 31 prêmios, fora 39 indicações. Especificamente quanto ao Oscar, teve 5 indicações – e venceu em duas delas. O outro veterano, Robert Duvall, tem 58 prêmios, fora 65 outras indicações.

Foi indicado ao Oscar 7 vezes, e levou um para casa.

O native American Wes Studi levou para casa um Oscar também, em 2020, um prêmio honorário pelo conjunto da carreira. Uma bela carreira, sem dúvida alguma: esse filho de cherokees nascido em 1947 em Oaklahoma já trabalhou em mais de cem filmes.

Roger Ebert lembra do Holocausto, aquele outro

Leonard Maltin deu ao filme apenas 2.5 estrelas em 4: “Imponente, inteligente – mas a rigor dramaticamente fraca – crônica das tentativas do Exército dos EUA de subjugar o grande guerreiro apache. Forte interpretação de Studi no papel central, e ricas caracterizações de Hackman (como o general Crook) e Duvall (como um veterano patrulheiro) mantêm o interesse por um bom tempo – juntamente com o cenário magnífico da região de Moab, em Utah. Eventualmente, o ponto de vista defendido pelo filme já mostrado, não resta nada para manter o envolvimento da audiência. Roteiro de John Milius. Um Geronimo feito para a TV a cabo estreou na mesma semana do lançamento deste filme. Panavision.”

Roger Ebert deu 3.5 estrelas em 4. A abertura do longo texto dele é um brilho:
“Em um período de poucos dias, eu vi A Lista de Schindler e Geronimo, e me ocorreu que os dois filmes são sobre Holocaustos, sobre populações inteiras assassinadas por causa de sua raça. Mas os americanos não são rápidos em descrever nosso tratamento dos índios como genocídio, e mesmo um filme um tanto revisionista como Geronimo é cuidadoso em descrever os conflitos entre o governo dos EUA e os índios ‘hostis’ como uma guerra. Foi uma guerra levada a cabo com o maior poder do nosso lado, e nossa justificativa – que a terra pertencia a nós e nós por isso tínhamos o direito divino de extirpar a raça alienígena – é, naturalmente, o argumento de Hitler. Uma das questões sem resposta deste filme vem quando Geronimo pergunta por que não há terra suficiente para todas as pessoas.
“Os índios hoje em dia são chamados de nativos americanos, embora eles sejam imigrantes neste continente, como todo o resto, e deveriam ser chamados mais propriamente de primeiros americanos. Eles viveram na terra por mil anos ou mais antes que o Exército dos EUA viesse tirá-la deles.”

 Ai, ai… Depois de Roger Ebert, não há nada a dizer.

Anotação em julho de 2021

23/07/24

Wild Bill - Uma Lenda no Oeste, Wild Bill, 1995, Walter Hill

Na cidade de Deadwood, South Dakota,Wild Bill precisa enfrentar seu inimigo mais mortal. Um misterioso estrangeiro chegou à cidade anunciando que não irá embora até que Hickok esteja morto. Wild Bill encontra abrigo nos braços da sensual Calamity Jane, mas é perseguido pela memória da única mulher a quem ele verdadeiramente amou, uma saudade que pode custar sua vida. À medida que Hickok e seu adversário se aproximam do confronto decisivo. Filmow

24/07/24

Hyakuen no koi, 2014, Masaharu Take (100 Yen Love)

100 Yen Love, 2014: Ichiko (Sakura Ando) vive com os pais e raramente sai de casa. Entretanto é forçada a mudar de comportamento quando sua irmã mais nova se divorcia e volta para a casa dos pais. As brigas entre as irmãs acabam por fazer Ichiko ir morar sozinha. Em sua nova vida, o que traz felicidade a Ichiko é observar um boxeador de meia idade (Hirofumi Arai) praticar num ginásio que fica entre sua casa e seu trabalho: uma loja de 100 ienes. Filmow

25/07/24

Aqui é o Meu Lugar, This Must Be the Place, 2011, Paolo Sorrentino

Cheyenne nunca fumou cigarros - uma personagem de Aqui É o Meu Lugar (This Must Be the Place) diz que tabaco é coisa de quem quer ser adulto, e Cheyenne sempre fora infantil - mas abusou de todas as outras drogas concebíveis. Isso dá pra ver na cara e nos gestos do decrépito e milionário roqueiro oitentista, que Sean Penn interpreta com a maquiagem de Robert Smith e a leseira de Ozzy Osbourne. Omelete

26/07/24

Amor Até as Cinzas, Jiang hu er nü, 2018, Zhangke Jia

Crítica | Amor até as Cinzas por Ritter Fan 17 de abril de 2019

Um dos mais importantes diretores chineses em atividade, Jia Zhangke, que nos trouxe As Montanhas se Separam e Um Toque de Pecado, volta com um épico que acompanha principalmente a trajetória de uma mulher, Qiao (Tao Zhao, esposa do diretor) ao longo de 17 anos, de 2001 a 2018, que serve de reflexo ou de comentário ao caminho que a própria ditadura chinesa percorreu desde o começo do novo século, ao abraçar sua versão muito particular da economia de mercado, do capitalismo. São mais de duas horas em que o diretor, que, como de costume, também escreveu o roteiro, usa sua personagem para olhar uma China longe do cartão postal das cidades mais conhecidas pelo Ocidente, com todos os seus problemas e toda sua luta para evoluir.

Qiao é a namorada durona de Bin (Liao Fan), um gângster em Datong, na província de Shanxi, que, de uma hora para outra, torna-se o “chefão” local e, com isso, passa a ser o grande alvo de gangues rivais. Ao sacrificar-se por Bin, Qiao acaba presa e, após sua liberdade, ela inicia uma longa tentativa de voltar ao que era antes. Em linhas bem amplas, poder-se-ia dizer que Amor até as Cinzas é a história de um casal apaixonado passando pelas dificuldades que todo casal passa. Mas, claro, a posição social dos dois no começo da projeção, os torna imediatamente diferente de um casal “normal”, ainda que a figura de gângster que guardamos em nossa mente seja bem diferente do conceito mais provinciano que o diretor aborda aqui. E, também diferente do que se poderia esperar de um filme oriental sobre o assunto, não há sequências de ação a não ser uma única solitária, em que Bin é atacado e que resulta em breves momentos de uma pancadaria visceral, muito bem coreografada e fotografada. O restante, porém, é relativa calmaria.

E isso exige paciência do espectador.

Ao não se encaixar exatamente em romance e em filme de gângster, Amor até as Cinzas desafia convenções e também nos desafia a seguir Qiao despidos de conceitos pré-estabelecidos. Para começar, o filme é enquadrado entre basicamente dois jogos de mahjong, o que nos remete à tradição milenar e à sua perda, seu esquecimento ao longo dos anos. O amor entre Qiao e Bin é frio como o jogo e também segue o mesmo caminho da tradição sendo esmagada pela chamada modernidade algo que é também trabalhado com a ascensão das gangues mais jovens que ameaçam o reinado dos chefões tradicionais, inclusive o que inicialmente é o principal e que aprecia dança de salão, sempre trazendo a tira-colo dois dançarinos prontos para se apresentar em um show de calouros.

Há um quê de surrealismo que os dançarinos trazem, assim como ver Qiao, no começo, dançando freneticamente ao som de YMCA do Village People, outro sinal precoce da “ocidentalização” dessa última fronteira. Mas, quando Qiao finalmente sai da prisão – a elipse é quase instantânea nesse aspecto, já que a vida atrás das grades não é o foco de Zhangke – sua jornada “de volta” então começa. E ela é atribulada, mas lenta. O diretor não tem pressa alguma e é dessa maneira que ele, aos poucos, estuda o crescimento de seu país por intermédio de citações ou passeios por obras monumentais, como a construção da hidrelétrica das Três Gargantas, no Rio Yang-tsé, a segunda maior do mundo, atrás apenas da nossa de Itaipu.

De certa forma, a obra parece querer funcionar como um guia turístico do país. Aliás não. Guia turístico seria reducionista demais. A sensibilidade do diretor com as sequências “de turismo” remete a dois sentimentos opostos, que, creio, ele tentou passar aqui. O primeiro é o da inevitável marcha do progresso. Ao final da década de 90, a China tomou a decisão de sair de sua toca sócio-política de um sistema econômico falido e sem futuro para abrir-se ao mundo, algo que aconteceu em um intervalo de meros 20 anos e continua acontecendo a olhos vistos. Mudanças enormes no país seriam necessárias e elas precisavam acontecer de forma quase instantânea, o que gerou mudanças drásticas no modo de vida de grande parte da população chinesa, a maioria à margem dos acontecimentos. A inexorabilidade desse agigantamento do país é o que vejo muito claramente em Amor até as Cinzas.

Mas, por outro lado – e aí entra o segundo e oposto sentimento – o crescimento parece “rasgar” o passado, destruindo instituições. Sim, Zhangke estuda essa consequência a partir de um casal de gangsteres, mas o recorte é plenamente válido de toda forma. A jornada de Qiao é uma de amadurecimento, de adaptação aos novos tempos e de compreensão de que o mundo em que ela vivia no relativo conforto não mais existe. Além disso, é um mundo em que ela, como mulher, provavelmente não poderá mais contentar-se em apoiar-se em “seu homem” e terá que desbravar seu próprio caminho.
Zhao Tao é, claro, o grande destaque dramático da fita e seu trabalho é o principal alicerce para o filme realmente funcionar. Apesar de sua aparente frieza e distância, o espectador consegue entender seus sentimentos, sua confusão, seu desespero e sua aceitação no novo status quo na medida em que os anos passam. A atriz, sem recorrer a arroubos dramáticos, vai lentamente nos cativando e costurando uma narrativa sólida e certeira.

Por vezes, porém, é perfeitamente possível sentir que a natureza contemplativa da obra poderia ter se beneficiado de um pouco mais de velocidade. Vemos “falsos caminhos” por mais vezes do que o necessário e cada um desses vem precedido e sucedido de sequências alongadas que podem sim cansar quem não estiver acostumado com o estilo do diretor. Outro ponto importante é que o filme se sustenta em uma jornada substancialmente linear de apenas uma personagem, o que leva a algumas repetições temáticas que poderiam ter sido evitadas. No entanto, é da natureza épica do filme e faz parte do tipo de observação e estudo que Zhangke faz de seu país em constante movimento e crescimento.

Amor até as Cinzas nos oferece um olhar nostálgico, mas apreciativo de rincões de um país que mudou muito em muito pouco tempo, usando uma peculiar jornada romântica como pano de fundo. Ou talvez vice-versa. Seja como for, Jia Zhangke mais uma vez triunfa.

27/07/24

Perdidos na Tormenta, The Search, 1948, Fred Zinnemann

 
Georges Sadoul, Dicionário de filmes, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, p.310, L&PM, 1993

28/07/24

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom, 2003, Kim Ki-duk

Kim Ki-duk (1960-2020) 

Crítica por Carlos Alberto Mattos

O cinema coreano está na crista da onda e Kim Ki-Duk talvez seja o seu mais famoso representante para as platéias ocidentais. Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera é o seu quinto filme, seguindo-se ao perturbador A Ilha e a outros nunca lançados no Brasil. 

Aqui, o jovem realizador (que faz o papel do monge adulto no último segmento do filme) troca a crueza naturalista de A Ilha por um estilo zen-de-exportação para narrar uma história recheada de lugares-comuns da orientalidade: o relato circular simbolizando o ciclo da vida; as estações do ano sublinhando o tipo de emoção predominante em cada segmento; a locação insulada do mundo que remete à metáfora; uma encenação ritualística que destaca elementos muito “típicos” como estátuas de Buda, portas desguarnecidas de paredes, pequenos animais, caligrafia, artes marciais etc.

Com esse acúmulo de signos facilmente reconhecíveis não pelo que significam, mas por comporem uma certa idéia de estética oriental, como em antigas folhinhas, Kim Ki-Duk se dispõe a contar mais uma variação do tema mestre-discípulo. Num pequeno templo-ilha no meio de um lago envolvido por frondoso vale, os instintos se chocam com a vida contemplativa. “A luxúria desperta o desejo de posse e a intenção de matar”, dita o velho monge a propósito do comportamento de seu discípulo, ali pela metade do filme. A frase ecoa como um anátema pelo resto da projeção. Nada mais resta ao espectador de Primavera... senão aguardar a completa demonstração daquelas palavras.
Ela virá, inexorável e didática como uma preleção de mosteiro. Os visitantes eventuais daquele santuário trazem a marca das coisas mundanas: sexo, violência e culpa. A mensagem é que virtude e pecado, ascese e queda não pertencem a mundos separados, mas coexistem dentro da natureza humana. 

A passagem do tempo e das idades encarrega-se de posicionar o espírito em cada um desses movimentos.

O filme tem sido muito elogiado pela simplicidade e beleza com que desdobra sua argumentação. De fato, a coesão espacial, a direção de atores às vezes naïf e a maneira frontal com que tudo é exposto pode ser facilmente interpretada como uma qualidade zen. As imagens são extremamente bem cuidadas, repousantes e apenas levemente intrigantes, o suficiente para seduzir o espectador sem assustá-lo com a sombra de algum mistério insondável. Mas tudo isso, somado a uma trilha sonora adocicada e reiterativa, não deixa de lembrar a insipidez da New Age.

Kim-Ki Duk chegou ao cinema através das artes plásticas, que estudou em Paris. Isso pode explicar, em parte, o caráter pictórico de alguns de seus filmes. No entanto, percebe-se que a plasticidade de Primavera... muitas vezes é mais um adorno fantasioso que um caminho para a significação.

29/07/24

O Mal Não Existe, Aku wa sonzai shinai, 2023, Ryûsuke Hamaguchi

O Mal Não Existe, Fogo Lento, por João Lanari Bo, 25 de julho de 2024

Quando usar o fogo alto e o fogo baixo? O fogo baixo segura o líquido na hora de fazer uma sopa, um caldo. Usa-se a temperatura baixa quando é preciso que o líquido fique ali, contido, sem evaporar, ou quando é preciso que o cozimento seja lento (Carole Crema, chef)

“O Mal Não Existe” é o longa que Ryûsuke Hamaguchi – cineasta de “Happy Hour: Hora Feliz”, “Drive my car” e “Roda do Destino” – lançou em 2023. Mais uma etapa desse diligente operador do audiovisual, atento ao estudo dos personagens e ao movimento destes no tempo e espaço. No universo contemporâneo de altos e baixos projetos cinematográficos, altos e baixos dispêndios de capital, Hamaguchi foi dos poucos a furar a bolha e obter indicação, em 2021, ao Oscar de melhor filme internacional, com “Drive my car” – que também foi indicado para melhor diretor, melhor roteiro e melhor filme na categoria geral, aquela dominada pelas produções norte-americanas. Isso tudo sem falar em Cannes – ganhou o melhor roteiro. Para uma história de três horas de duração, falada em japonês, não é pouca coisa.

É, na verdade, um fenômeno inusitado, uma espécie de brecha que muito raramente se abre no maciço edifício da narrativa convencional, voltada para o divertimento inerte e desencarnado, como dizia Jean Cayrol. Desta feita, a estratégia de Hamaguchi, inocente e quase pueril, foi apostar num fogo lento narrativo que culmina numa ebulição fugaz e visceral. “O Mal Não Existe” abre com imagens desorientadoras, copas de árvores filmadas do ponto de vista de quem olha do chão, verticalmente: a trilha musical – escrita por Eiko Ishibashi, parceria central do projeto – concorre para o efeito de equilíbrio tênue. O take é lento e prolongado, dando o tom do que vem a seguir.

Entra em cena Hakumi, cortando lenha, com perícia e paciência. Ele é viúvo, pai de Hana, fala pouco, mas seguro. É um faz-tudo, um Benriya local, tal como é introduzido pelo líder da pequena comunidade de Mizubiki, não muito longe de Tóquio. Benriya é um perfil popular na cultura pop do país-arquipélago. Hakumi, por sua vez, é Hitoshi Omika, assistente de direção de Hamaguchi em “Roda do Destino” – desta vez, ator. A lentidão dos movimentos de Hakumi constrói um espaço de percepção calmo e ameno: além da lenha, ele coleta água em um riacho e colhe wasabi selvagem, junto com o amigo, dono do minúsculo restaurante de macarrão udon – feito de farinha, servido normalmente como sopa, em caldo quente – do vilarejo. Hakumi esquece e chega atrasado para pegar a filha na escola. Seu carro é um SUV prateado, Toyota ou Mitsubishi.

Um corte abrupto da música sugere um mau presságio. Alguém resolve investir em um “glamping”, corruptela de “glamorous camping”, naquela microrregião. Embora perto da capital, Mizubiki nunca havia atraído investimento em turismo, um business poderoso na terra do sol nascente. Depois da 2ª guerra, a área foi desapropriada e repartida entre veteranos e vítimas do conflito, informa Hakumi. Dois funcionários da empresa, mulher e homem, chegam para apresentar o projeto: instala-se o conflito, a comunidade resiste, Hakumi alerta para a inevitável contaminação da água, em virtude da localização prevista da fossa. Fossa, unidade de tratamento primário de esgoto, aqui funcionando também como ponto de virada dramático.

Tudo é simples e direto nessa produção desdramatizada, tudo é dito e representado em fogo lento, contido, sem evaporar. Os funcionários vão e vem de Tóquio ruminando conversas – Hamaguchi aprecia esse espaço de diálogo em movimento, fez um filme em cima disso – e perfazem uma catarse de consciência, realizando a falta de escrúpulos do capital selvagem investidor. Os argumentos dos chefes, secos e caricaturais, corroboram a percepção. O ápice é a solução proposta para contornar o problema: contratar Hakumi como zelador do “glamping”. Ele, sem mudar a expressão, recusa – estou ocupado.
Um filme ecológico low key como “O Mal Não Existe” teve até subproduto – uma versão silenciosa, editada em paralelo, para ser exibida em performances de Eiko Ishibashi, intitulada “Gift”.

A simplicidade e a despretensão de Hamaguchi não o impediram de faturar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 2023 – de novo, não é pouca coisa.
Hamaguchi assistiu quatro apresentações de “Gift” com Ishibashi no Lincoln Center, em Nova York. Na ocasião, disse em entrevista:
Quando assisti aquela cena em que Takumi carrega a filha nas costas, tive a sensação de estar assistindo aquela cena pela primeira vez. Fiquei muito emocionado com isso…eu deveria, para todos os efeitos, conhecer muito bem a cena. Mas tive a sensação de que estava vendo tudo isso pela primeira vez, e foi uma experiência muito valiosa.

"O Mal Não Existe": o discretamente devastador Ryûsuke Hamaguchi

31/07/24

O Espírito da Colméia, El espíritu de la colmena, 1973, Víctor Erice

Numa pequena aldeia castelhana em 1940, nas ruínas da devastadora Guerra Civil da Espanha, a pequena Ana assiste a uma exibição itinerante do filme “Frankenstein” e fica impactada. Ela questiona sua irmã sobre as profundezas da vida e da morte e acredita nela quando lhe diz que o monstro não está morto, mas existe como um espírito que habita um celeiro próximo.
Uma alegoria fantástica para a Espanha franquista (onde o fascismo sinaliza a morte da inocência, a destruição da imaginação), “O Espírito da Colmeia” é amplamente considerado como o maior filme espanhol da década de 70, um retrato fascinante da vida assombrada de uma criança e um dos filmes mais visualmente cativantes já feitos. Filmicca

01/08/24

Carol, 2015, Todd Haynes

Crítica | Carol (2015) por Iuri Souza 13/12/2018    

Carol se passa em Nova York, na década de 50, e acompanha as vidas de Therese Belivet (Rooney Mara) e Carol Aird (Cate Blanchett). A primeira, uma balconista em uma loja de departamento e aspirante a fotógrafa, a segunda uma rica mulher, presa em um casamento infeliz com Harge Aird (Kyle Chandler). A despeito de suas diferentes origens, a atração mútua fará com que desafiem as convenções sociais da época para ficarem juntas.

Trata-se de uma adaptação do livro de mesmo nome, da autora Patricia Highsmith [1]. Destaca-se, desde já, que filmes com tamanha sensibilidade e autoconsciência são raros. Dessa forma, seria relapso não apontar, de imediato, o fantástico trabalho de Todd Haynes na direção, Phyllis Nagy, no roteiro e Edward Lachman, na fotografia.

Nesse sentido, por mais que seja, em essência, um script simples, há uma excelência invejável na simplicidade ali retratada. Não apenas isso, mas a história conta, também, com grande importância, uma vez que um romance sobre duas mulheres, em uma época muito mais complicada que a atual, permite que a audiência perceba o longo caminho que a sociedade, de um modo geral, já percorreu acerca de certas temáticas e, ao mesmo tempo, o quanto ainda se tem a percorrer.

Há, então, um sabor um pouco agridoce ao se assistir a uma obra como essa. Isto porque é impossível não se indignar com certas atitudes direcionadas às protagonistas, sobretudo Carol e, simultaneamente, perceber que, lamentavelmente, ainda é um problema recorrente, por mais que melhor debatido.
Nessa seara, ressalta-se que grande parte da carga dramática decorre das excelentes atuações presentes no longa. Cate Blanchett tem, provavelmente, a melhor performance da sua carreira, capaz de hipnotizar até o mais disperso dos espectadores. Rooney Mara, contudo, jamais se retrai, ao contrário, aproveita a oportunidade e entrega uma interpretação profunda, complexa e permeada por nuances. A situação apenas melhora quando as duas estão juntas em tela, uma vez que possuem excelente química.

O elenco de suporte também não decepciona e está à altura de suas protagonistas. Kyle Chandler, responsável por dar vida ao marido de Carol, nos traz o retrato de um homem da época, incapaz de compreender as vontades da esposa e preso à sua concepção de realidade. Sarah Paulson, em menor escala mas, ainda assim, competente como sempre, traz aspectos interessantes à história, aumentando, então, qualidade da narrativa como um todo.

Ressalta-se que há poucos o que se falar em desfavor do longa. Na realidade, seu ponto fraco pode ser interpretado como o fato de ser um tanto quanto lento, de modo que, naturalmente, acaba por não atrair um público tão diversificado. Destaca-se, contudo, que justamente por haver um foco exclusivo nos personagens, a tendência é uma diminuição do ritmo. Não se trata, assim, de um equívoco.
De toda forma, tem-se que Carol é um dos filmes mais sensíveis dos anos recentes. A direção, roteiro e fotografia, aliados às grandes performances do elenco, com especial menção à Cate Blanchett e Rooney Mara, tornam-o imperdível a todos os amantes de cinema. Ademais, a sua abordagem temática o diferencia de uma simples história de amor, acrescentando peso à obra.

[1] O livro também é conhecido pelo título The Price of Salt.

02/08/24

O Comboio do Medo, Sorcerer, 1977, William Friedkin

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Crítica | O Comboio do Medo (1977) por Fernando Campos 3 de dezembro de 2018

Alguns diretores sofrem após um grande sucesso. Alcançar reconhecimento absoluto cria uma certa obrigação de atingir o mesmo nível no filme seguinte. Existem diversos casos que atestam isso: como o fracasso de Martin Scorsese em New York, New York, filme seguinte a Taxi Driver; e o fiasco de Michael Cimino com seu O Portal de Paraíso, obra que sucedeu O Franco-Atirador. As obras citadas, na opinião deste crítico, não são ruins ou medíocres, mas seu nível de qualidade é tão longe das obras anteriores que decepcionaram público e parte da crítica.

O material de análise desta crítica, O Comboio do Medo, é um exemplo disso. O diretor William Friedkin comandou, em sequência, duas obras que entraram para a história do cinema: Operação França, vencedor do Oscar; e O Exorcista, um dos melhores filmes de terror de todos os tempos. O longa seguinte a esses sucessos, O Comboio do Medo, não atingiu a expectativa do público, resultando em um enorme fracasso de bilheteria. A consequência foi o enterro do movimento da Nova Hollywood, que tinha o diretor como um dos principais nomes. No entanto, tal resultado foi injusto, uma vez que a obra possui vários pontos positivos. 

O filme apresenta quatro homens fugitivos que escolhem para uma cidadezinha na América Central para se esconder. Nilo (Francisco Rabal) é um matador profissional. O terrorista Kassem (Amidou) viu os seus amigos serem presos e mortos pela polícia após explodirem um banco em Jerusalém. Victor Manzon (Bruno Cremer) é um banqueiro francês que deixou o seu país para escapar de uma acusação de fraude. O ladrão Jackie Scanlon (Roy Scheider) foge da máfia depois de um assalto que deu errado. Após sofrerem com a corrupção da polícia local e as péssimas condições de vida, eles encontram uma chance única de conseguir uma alta quantia em dinheiro e fugir dali: transportar dois caminhões cheios de nitroglicerina por uma estrada perigosa na selva.

Enquanto O Salário do Medo, objeto do remake de Friedkin, possui uma abordagem antiimperialista e até mesmo anti-sistema, Comboio do Medo apresenta uma história intimista, explorando como o desespero pode levar um homem a desafiar seus próprios limites. Portanto, a obra apresenta um embate entre homem e natureza. As belas tomadas aéreas do filme servem não apenas para situar a ação, mas também para destacar como aqueles pilotos são nada diante da selva. Isso resulta em um acertado tom niilista, o mesmo do livro de Georges Arnaud, abordando como o homem que se sujeita a profissões de tamanho risco já é um homem morto, convivendo sempre com o medo.

Durante a viagem daqueles homens, a paleta de cores assume tons de verde para destacar a mata densa que os rodeia, mas também trazendo o azul o estado de desespero e isolamento dos personagens. A fotografia prioriza planos abertos e subjetivos, ressaltando a complexidade dos movimentos dos caminhões. O melhor exemplo disso está na excepcional cena da travessia pela ponte. Friedkin inteligentemente usa um plano geral extremo, intercalado com um plano subjetivo de dentro do caminhão e um contra plongée, para destacar a fragilidade da ponte, a inclinação dos veículos e o peso dos automóveis, criando tensão pela possibilidade de queda a qualquer momento.

Além disso, o uso do som é impecável. O design de som ressalta os ruídos do caminhão, como a troca de marcha e aceleração, e os sons da floresta, como do vento batendo nas árvores ou do vento durante uma tempestade, criando uma atmosfera de medo e insegurança. Já a trilha sonora, composta pela banda Tangerine Dream, serve para dar ritmo ao filme, com seu teclado e sintetizadores. Nas cenas de maior suspense, Friedkin acerta ao abrir mão de trilha para focar nos ruídos, sendo a estratégia mais inteligente para colocar o público na ponta da cadeira.

Outro elemento técnico que merece aplausos em O Comboio do Medo é a direção de arte. A cidade da América Centrall exala podridão, seja financeira ou moral, com suas ruas imundas e ambientes escuros, contrastando com a elegância que a maioria deles vivia antes. Aliás, a escolha de Friedkin por rodar a maior parte do longa no continente americano insere veracidade ao filme. Nada no longa soa artificial, até mesmo durante as cenas mais complexas, como a da ponte, cenário incrivelmente montado pela direção de arte, facilitando a imersão.

Com tamanho foco na parte técnica e na jornada pela selva, o roteiro, escrito por Walon Green, acelera a apresentação dos personagens e o encontro deles. Os motivos para aqueles homens fugirem e sua estadia na América Central são desenvolvidos de maneira excessivamente direta, funcionando para direcionar o longa para seu foco, a viagem dos caminhões, mas impedindo um desenvolvimento melhor dos personagens. Com isso, fica difícil adquirir empatia por aqueles homens, uma vez que são rasos. Compreendemos o desespero dos protagonistas, mas nuances de suas personalidades acabam não sendo exploradas.

Com essa escolha do roteiro, o elenco não possui espaço para interpretações profundas, mas Roy Scheider, Bruno Cremer, Francisco Rabal e Amidou destacam com precisão o pessimismo de seus personagens, com olhares cansados e postura encurvada. Destaque maior para Scheider, aumentando a insanidade de Scanlon com a aproximação do terceiro ato, obcecado pelo dinheiro que se aproxima. No fim, ao comparar roteiro e direção, o longa soa mais como um exercício estético do que como uma obra com a intenção de contar uma grande história, funcionando com maestria no primeiro quesito, mas sendo superficial no segundo.

Apesar dos deslizes do texto, o término de O Comboio do Medo casa perfeitamente com o tom niilista da obra, arrancando Scanlon de um pequeno momento de felicidade e dando a ele o mesmo destino dos outros: a morte. O fato é que viver com medo é ser morto em vida. Muitos temem morrer trabalhando, outros receiam morrer sem trabalho. O que nos diferencia em um sistema tão caótico é a duração da existência de cada um.

DEBATE | O COMBOIO DO MEDO (HOMENAGEM A WILLIAM FRIEDKIN) - CONVERSA COM FILIPE FURTADO 

O Comboio do Medo (William Friedkin) | Formiga na Tela 192 - Formiga Elétrica 

03/08/24

Gente di Roma, 2003, Ettore Scola

O filme reúne histórias que se alternam entre ficção e documentário. Tem como protagonistas pobres e ricos, velhos e jovens, crianças e doentes, homens e mulheres, hetero e homossexuais; anônimos e figuras públicas (Nanni Moretti, Stefania Sandrelli e Vittorio Foà). E, principalmente, imigrantes e ex-emigrantes, nativos e pessoas de passagem sobre o rico solo que hoje, como ontem, é Roma.
Roma é uma cidade que pode ser amável, mas também sinistramente indiferente. Não somos racistas, afirma um personagem, mas por pura preguiça: até o ódio exige um trabalho que muitos romanos não estão dispostos a ter - salvo para se meter com o torcedor do time de futebol rival.
Simpática, sarcástica e profundamente compreensiva, a Gente de Roma nos lembra a coerência de Scola. É um documento imprescindível para entender como se vive hoje nessa cidade tão singular.
Além do racismo, o filme aborda a estagnação econômica e o desemprego, a política, o problema dos idosos - faixa etária que aumentou bastante na atual sociedade. Filmow

03/08/24

Identificação de uma Mulher, Identificazione di una donna, 1982, Michelangelo Antonioni

 
Crítica | Identificação de uma Mulher por Luiz Santiago 15 de janeiro de 2018

Identificação de uma Mulher faz parte da safra final dos filmes de Michelangelo Antonioni, momento onde o diretor estava muito próximo dos sentimentos e emoções à flor da pele de seus personagens, resultando em situações de forte teor erótico mescladas a um desespero e tentativa de entendimento do mundo que o cineasta vinha maturando desde A Aventura (1960).

Niccolò (Tomás Milián) é um cineasta em preparação para seu próximo filme. Ele está buscando “um rosto certo” para o qual pretende escrever o roteiro, por isso destaca faces de pessoas que encontra nos jornais e revistas. Sua intenção é achar a expressão facial definitiva de um indivíduo que o faça pensar em uma história. Enquanto isso, ele leva um misterioso relacionamento com Mavi Luppis (Daniela Silverio), a primeira mulher com quem se relaciona após um complicado divórcio. O roteiro, assinado por Antonioni e Gérard Brach, com colaboração de Tonino Guerra, finca os dois pés no mistério da existência e nas muitas camadas que a solidão pode ter. As situações iniciais contextualizam um momento da vida de Niccolò em que o azar e as más notícias parecem frequentes, exceto com relação a Mavi. Ou assim ele esperava que fosse.

O texto não começa buscando entender a mulher (que será, assim como o domínio dos mistérios do Sol, como dito pelo protagonista na sequência final, a resposta para o entendimento de todas as outras coisas), mas expondo os caminhos do homem em torno dessa estrela cheia de libido e que ilumina, aquece e dá sentido à existência, algo que só lhe chegará à compreensão em uma situação de pensamento para um filme de ficção científica, não diretamente para a mulher como objeto de desejo. Niccolò é representado como um caçador de prazeres e de companhia porque a solidão lhe é insuportável, mesmo que ele não assuma isso em nenhum momento.

Ao mesmo tempo que faz a busca de um “rosto certo“, o cineasta faz as suas próprias buscas amorosas, uma dualidade de caminhos que até pode lembrar a de Guido, em Oito e Meio, mas localizada em um patamar diferente. Niccolò leva a vida muito mais a sério, se envolve fácil e não tem facilidade de se desapegar, sofrendo constantemente com os relacionamentos líquidos nos quais se engaja. Nem a ameaça feita por um homem misterioso, nem acontecimentos preocupantes ao seu redor o afastam de Mavi. É preciso ela tomar a iniciativa, por um motivo que o roteiro não nos coloca — e não de uma maneira interessante de fomentar o mistério, o que é uma pena. Em determinado ponto da narrativa, procuramos ver um sentido dramático para a grande quantidade de elipses utilizadas, especialmente nas cenas que mostram os últimos encontros de Niccolò e Mavi e os primeiros encontros entre ele e Ida (Christine Boisson), mas não temos isso, ficando vácuos que afetam, inclusive, os diálogos do segundo relacionamento, ora parecendo urgentes demais, ora demasiadamente vagos. Falta contexto dramático para entendermos este segundo par.

SPOILERS!

Mas se deixa rastros não muito bonitos no enredo, Antonioni nos entrega um espetáculo visual aplaudível. Ao lado do fotógrafo Carlo Di Palma, o diretor relaciona o ambiente sempre quente das mulheres — o tom alaranjado predominante nos takes onde elas são o destaque mostram a confusa tentativa de equilíbrio entre o espírito e a libido, situação condenada a se romper pela chegada da luxúria, seja dos envolvidos na relação, seja de indivíduos fora dela. Este ambiente ambiente também nos traz frutos de fecundidade através das belíssimas cenas de sexo filmadas pelo diretor (destaque para a simples, mas perfeitamente decupada e iluminada cena em que o casal está debaixo de um lençol branco, que sobre e desce revelando os corpos nus se entrelaçando) ou do momento em que Ida recebe a notícia de sua gravidez, em um ambiente formal de hotel, mas com saturação de cor laranja, trilha sonora quase indicando uma canção de ninar e uma simbólica abertura da janela por Niccolò, que se confunde sobre como lidar com aquela situação.

A confusão dos personagens também pode ser ressaltada pela quantidade de cenas em espelhos — uma delas, na casa de Ida, é uma inteligentíssima forma visual de fazer um campo/contracampo no mesmo plano — e Da famosa “sequência da neblina”, onde o diretor consegue angustiar o público a cada segundo, impedindo a visibilidade completa e fazendo um bom jogo de mistério após a neurose da ameaça recebida no início da fita. O desaparecimento e retorno de Mavi naquela ocasião são excelentes jogadas dramáticas, permitindo surgir medo e ao mesmo tempo retirando de cena a possibilidade disso se tornar parte de uma trama clichê de assassinato. A identificação aqui é íntima, quase espiritual, e também dá conta da anunciada "busca por um rosto certo".

A sequência final volta a mostrar a delicadeza do plano fotográfico de Di Palma e o aproveitamento estupendo do tempo pela montagem, assinada pelo próprio Antonioni. Niccolò chega a uma conclusão incômoda ao pensar na sugestão dada pelo sobrinho, para um filme de ficção científica. E assim como a imaginada nave-asteroide potente que avança em direção ao Sol para estudá-lo, o diretor segue em sua busca íntima para encontrar o fim definitivo de sua solidão e identificar em uma mulher alguém que possa ser um rosto, um corpo e uma ideia; uma imagem, um sentimento e, por fim, a palavra que o satisfaria. Um egoísmo que no fundo é a ânsia de toda a humanidade. O arranhar da superfície daquilo que genericamente se chama… sentido da vida.

04/08/24

Elle, 2016, Paul Verhoeven

Elle | Critica por Érico Borgo, 10.09.2016

Sexo, poder e videogame no feminismo de Paul Verhoeven

Paul Verhoeven possivelmente encontrou em Isabelle Huppert o veículo perfeito para sua visão de mundo. Em seu primeiro filme em francês, Elle, o provocativo diretor holandês deixa nos ombros da atriz parisiense a responsabilidade por tornar possível um roteiro que deve causar polêmica entre certos grupos feministas.

O filme, afinal, abre com a brutal cena do estupro da protagonista. Poderosa proprietária de uma desenvolvedora de games, Michelle (Huppert) é violentada em sua própria casa. No entanto, o evento parece apimentar nela suas fantasias eróticas, além dos esperados sentimentos de vingança.
A princípio tal premissa parece extremamente ofensiva, algo contrário a todo o empoderamento feminino pelo qual batalha-se hoje. Mas Verhoeven é um mestre como poucos... e da sua aliança com Ruppert sai um filme memorável.

Dessa ideia controversa ergue-se uma heroína formidável. Da brutalidade e humilhação não brota uma mulher vingativa - este não é Kill Bill - mas alguém que, ainda que se sinta ofendida, usa sua nova realidade para fazer mudanças. Ao ver-se privada de seus direitos, a protagonista se enrijece em sua determinação por controle, e fica mais feminina no processo.

O fato de ela ser uma desenvolvedora de games não é gratuito. Enquanto enfrenta seus próprios demônios - um filho imbecil, uma mãe prestes a embarcar em um casamento de conveniência, um amante carente e, por último, um pai assassino serial -, Michelle lidera na empresa uma equipe completamente masculina, em um meio essencialmente machista. E a história que é contada no jogo, pelos cantos do filme, reflete a própria transformação da heroína.

O roteiro de Verhoeven e a atuação da francesa são tão bons que em momento algum, porém, isso parece uma jornada de redescoberta ou coisa assim. Michelle não foi forçada a mudar pelo ocorrido. Ela domina todas as suas escolhas - da primeira à última do filme. O estupro foi um infortúnio, que ela dobra e consome sua energia, como num inimigo derrotado nos games.

Baseado no romance Oh..., de 2012, de Philippe Djian, Elle é preciso, incisivo e cuidadosamente costurado, com doses equilibradas de humor negro e sarcasmo que Ruppert entrega intensamente. É Verhoeven em um dos melhores momentos de sua brilhante carreira.

05/08/24

A Lei dos Marginais, Underworld U.S.A., 1961, Samuel Fuller

A LEI DOS MARGINAIS por Jacques Vallée

 (Underworld U.S.A.). 1961. Columbia (99 minutos). Produção: Samuel Fuller para a Globe Enterprises. Roteiro: Samuel Fuller, baseado em uma série de artigos de Joseph F. Dineen. Fotografia: Hal Mohr (P/B). Música: Harry Sukman. Cenografia: Robert Peterson (a.d.), Bill Calvert (s.d.). Montagem: Jerome Thoms. Elenco: Cliff Robertson (Tolly Devlin), Dolores Dorn (Cuddles), Beatrice Kay (Sandy), Paul Dubov (Gela), Robert Emhardt (Earl Connors), Larry Gates (John Driscoll), Richard Rust (Gus Cottahee), Gerald Milton (Gunther), Allan Gruener (Smith), David Kent (Tolly aos 14 anos), Tina Rome (esposa de Vic Farrar), Sally Mills (Connie Fowler), Robert P. Lieb (policial), Neyle Morrow (Barney), Henry Norell (Meredith, diretor da prisão), Peter Brocco (Vic Farrar).

Um polar convencional transfigurado pelo estilo ultrajante e barroco de seu autor, que o fez um afresco lírico sobre os marginais. Cada seqüência é aqui a ocasião de reinventar a maneira de filmar e montar de uma maneira sempre mais perscrutante, sempre mais emocionante (“o cinema é emoção” professara logo cedo Fuller na sua aparição em O Demônio das Onze Horas). Os raccords são conflitantes, a fotografia hiper contrastada, a câmera febril, a música ensurdecedora, a violência deliberadamente exagerada e as cenas de amor bastante sugestivas.

Esse gênio expressivo está ao serviço de uma pintura do inferno urbano entre os mais chocantes jamais vistos. O roteiro não segue por quatro caminhos para mostrar a decadência da sociedade. Os assassinos do pai do herói tornaram-se chefões, desfilam em trajes, corrompem a polícia e beneficiam-se da respeitabilidade social graças às suas obras de caridade. Nota-se igualmente que esse é um dos raros filmes em que um assassinato de criança é filmado. Esta seqüência é também uma aula de gestão do fora de campo. Ao se focar sobre a testemunha da cena, Fuller evoca todo o horror desta sem precisar representar o assassinato propriamente dito. Poderoso. 

Felizmente, longe de se entusiasmar com a perversidade, Fuller (que também é o roteirista do filme) põe no centro da história a evolução moral e social do personagem principal. Como em Anjo do Mal, o anti-herói ferozmente individualista se apaixona perdidamente e é seu par que o salvará da podridão ambiente. Esquemática e eterna beleza da série B. A Lei dos Marginais é certamente um dos três ou quatro melhores filmes realizados por Samuel Fuller, uma jóia sombria talhada grosseiramente cujo brilho violento não terminou de deslumbrar os amantes do polar implacável.

O CINEMA MARGINAL de SAMUEL FULLER

05/08/24

Terra Sem Pão, Las Hurdes, 1933, Luis Buñuel

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Georges Sadoul, Dicionário de filmes, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, p.173, L&PM, 1993

 

06/08/24

Manglehorn, 2014, David Gordon Green

Angelo Manglehorn (Al Pacino) é um antigo criminoso que agora leva uma vida de serralheiro recluso em uma cidade pequena. Como as escolhas que fez no passado o levaram a perder a mulher que amava, ele fica obcecado sobre não poder mudar o que se passou. Depois de tentar, sem sucesso, dar a volta por cima, ele precisará resolver de uma vez por todas os problemas que o atormentam. Tendo um gato como melhor amigo, um estranho relacionamento com seu filho e começando uma amizade com uma mulher bonita, ele se encontra em uma encruzilhada entre ser consumido pelo passado ou abraçar o presente. Filmow

07/08/24

O Homem que engarrafava nuvens, 2009, Lírio Ferreira

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Humberto Teixeira

Gatilhos de Civilidade

Por Jorge Cruz Jr. 

O segundo-longa metragem documental em sequência da filmografia de Lírio Ferreira, “O Homem que Engarrafa Nuvens” leva o cineasta recifense para outro território. Sai o Rio de Janeiro de “Cartola – Música para os Olhos“, entra o Ceará de Humberto Teixeira, compositor, ao lado de Luiz Gonzaga, de grande parte das canções que fizeram do baião um dos gêneros musicais mais populares do século XX. Assim como o fez no samba, em produção que contou com preciosas imagens de arquivo, o diretor e roteirista não perde o foco nos encontros e afetos envolvendo a arte.

Aqui a resistência cultural começa com um dos grandes símbolos de um povo. O juazeiro, encontrado por Padre Cícero, imortalizado por Rachel de Queiroz, deu nome de cidade perto de Crato e parte da identidade de um povo. Será como ele que o filme se desenvolverá, ao som do repente e nas danças do reisado. Sendo assim, novamente temos um longa-metragem que consegue ser panorâmico sem ser superficial. Responsabilidade de quem soube trazer um personagem que, além de uma rica história, é capaz de dialogar com as vários construções de Brasil que atravessaram as últimas décadas.
Isso mantém a coerência de uma autoria de Lírio que – mesmo na ficcionalidade – traz a busca por origens como mote principal de suas obras. 

Aqui, entretanto, há um duplo protagonismo. Por trás da trajetória, representado com um pouco menos de apego à cronologia, do Doutor do Baião há Denise Dumont, sua filha e produtora do documentário. Sem transformar o filme em um julgamento, aos poucos somos envolvidos em uma pesquisa que objetiva o contraponto, algo de difícil articulação em uma linguagem que precisa de forte carga interpretativa.

Isso não faz de “O Homem que Engarrafava Nuvens” um tribunal, mas tem poder para fazê-lo mais do que uma cerimônia festiva. Assim como obras contemporâneas como “Todas as Melodias” (2019), Lírio recria algumas canções da carreira de Humberto no palco do Teatro Rival, no Rio de Janeiro. Desde o início daquela década, a Petrobrás era patrocinadora de um dos espaços mais tradicionais da cultura carioca – e o deixou de ser no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, como consequência do abandono do fomento à cultura por parte da empresa. O longa-metragem é um pouco sobre essas articulações da classe artística, que viu no Doutor do Baião, advogado por formação, se tornar deputado federal e criar uma das primeiras legislações voltadas à cultura como forma de expressão da sociedade.

A Lei Humberto Teixeira, de 1956, era voltada a realização de caravanas para a divulgação da música popular brasileira no exterior. Em um contexto de política da boa vizinhança, que mencionamos na crítica sobre Cartola e que trocou Zé Carioca aqui por Carmen Miranda lá, não deixava de ser uma expansão imperialista dos Estados Unidos. Com isso, a promoção dos nossos talentos fora do país ajudava na preservação da própria identidade – e vai um pouco ao encontro da maneira como os grandes nomes do samba não conseguiram prosperar a partir de suas criações da obra anterior do cineasta.

“O Homem que Engarrafa Nuvens” ainda conta com a fotografia de Walter Carvalho e uma reunião de gerações que traz desde o clássico absoluto “Asa Branca” na voz de Maria Bethânia até uma apresentação cheia de energia de Cordel do Fogo Encantado na interessante “Mangaratiba”, sobre a cidade litorânea do Estado do Rio de Janeiro. O compositor chegou ao Sudeste na década de 1940, com o objetivo de cursar Medicina – acabou no Direito. Um momento imediatamente posterior ao Estado Novo retratado por Ferreira em “Baile Perfumado” e chegando ao que tratamos como alma se esvaindo do fim dos anos 1950 na ex-capital federal.

Quando o baião encontra espaço para a popularização, Humberto o leva a um caminho de urbanização e nacionalização do ritmo. O documentário, então, se vê compelindo a traçar um arco didático sobre a cultura musical nordestina daquela primeira metade do século XX e como todo aquele caldeirão se afunilou na identidade visual criada por Luiz Gonzaga, que parece formar com Teixeira um ímã com suas visões diametralmente opostas. Um equilíbrio que fez bem, deu certo – e que a obra documental, enquanto produto de seu tempo, consolida um tempo em que a Cultura como política de Estado foi capaz de gerar frutos como este.

Ao intitularmos a crítica de gatilhos de civilidade é que parecemos cada vez mais longe do Ministério da Cultura de Gilberto Gil do que da visão exportadora (e embrionária) da Lei Humberto Teixeira. Como pudemos regredir tanto no setor em tão pouco tempo? Como chegamos, enquanto sociedade, em um limbo de desrespeito e falta de empatia com uma indústria tão fundamental e economicamente sustentável? Os encontros de “O Homem que Engarrafava Nuvens”, como o de Sivuca com Gal Costa, parecem de um passado remoto. Não somente de uma era pré-pandemia, de “união social”. Mas da arte enquanto um meio necessário.

No meio daquele leque de referências, que provou que o baião está na Tropicália, em Raul Seixas (com uma versão muito particular e igualmente inesquecível de “Asa Branca” – subvertendo a lógica imperialista) e na new wave de David Byrne (marcado pela geração MTV após a bronca de Caetano Veloso durante o VMB de 2004), há outro tipo de legado: o de afetos encontrados, da maneira como Lírio Ferreira gosta que suas obras, como “O Homem que Engarrafava Nuvens” sejam percebidas.

Por essa viagem através da história do Brasil, da música como condutora das transformações do país, há Denise Dumont. Em depoimento emocionado, fala do último dia de vida do pai. Com sua mãe, tenta materializar os resultados que buscava quando imaginou produzir um filme sobre ele. A meia hora final traz um pouco dos contrapontos que ela cansou de fugir e decidiu encarar. Com muita coragem e generosidade, diante de um público que tem nas criações de Humberto Teixeira parte da própria história.


















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