Caçador de Morte, The Driver, 1978, Walter Hill
O Segundo Rosto, Seconds, 1966, John Frankenheimer
Quando Éramos Reis, When we were kings, 1996, Leon Gast
Big Kill, 2019, Scott Martin
O Último Matador, Last man standing, 1996, Walter Hill
O Homem que se vendeu, The Great McGinty, 1940, Preston Sturges
O Pagamento Final, Carlito's Way, 1993, Brian De Palma
I was a simple man, 2021, Christopher Makoto Yogi
Pedro Páramo, 2024, Rodrigo Prieto
Travessia do bastardo, Bastard's crossing, 2021, Travis Mills
O Segredo dos Incas, Secret of the Incas, 1954, Jerry Hopper
Kagemusha, a Sombra de um Samurai, Kagemusha, 1980, Akira Kurosawa
Viver, Ikiru, 1952, Akira Kurosawa
Anatomia do Medo, Ikimono no kiroku, 1955, Akira Kurosawa
Eu não sou seu negro, I Am Not Your Negro, 2016, Raoul Peck
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Cinema Novo (Improvisiert und zielbewusst) - Joaquim Pedro de Andrade, 1967
Joanna Francesa, 1973, Carlos Diegues
Xica da Silva, 1976, Carlos Diegues
Bye Bye Brasil, 1980, Carlos Diegues
Quilombo 1984 Cacá Diegues
O Padre e a Moça, 1966, Joaquim Pedro de Andrade
Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964, Glauber Rocha
A Idade da Terra, 1980, Glauber Rocha
Terra em Transe, 1967, Glauber Rocha
Eles Não Usam Black-Tie, 1981, Leon Hirszman
Memórias do Cárcere, 1984, Nelson Pereira dos Santos
Vidas Secas, 1963, Nelson Pereira dos Santos
A Falecida, 1965, Leon Hirszman
Os Fuzis, 1964, Ruy Guerra
São Paulo, Sociedade Anônima, 1965, Luis Sergio Person
Viva o Cinema! - Uma História da Mostra de SP, Minissérie de TV, 2024, Marina Person
O Bandido da Luz Vermelha, 1968, Rogério Sganzerla
O pagador de promessas, 1962, Anselmo Duarte
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Joe, o Pistoleiro Implacável, Navajo Joe, 1966, Sergio Corbucci
Cry Macho: O Caminho para Redenção, Cry Macho, 2021, Clint Eastwood
Os Imperdoáveis, Unforgiven, 1992, Clint Eastwood
Os 300 de Esparta, The 300 Spartans, 1962, Rudolph Maté
Oro e piombo, 2019, Emiliano Ferrera
29/10/24
Caçador de Morte, The Driver, 1978, Walter Hill
Sinopse: Conhecido como "The Driver", um homem é um piloto de fuga profissional contratado para dirigir para um experiente grupo de assaltantes e despistar a polícia caso necessário. O que ele não imagina é que, há bastante tempo, um detetive está na sua cola e esperando apenas uma brecha para capturá-lo. Com métodos nada convencionais e fora da lei, o policial fará de tudo para alcançar seu objetivo.
Filme do catálogo da Filmicca
30/10/24
O Segundo Rosto, Seconds, 1966, John Frankenheimer
Um banqueiro infeliz concorda com um procedimento que simulará sua morte e lhe dará uma aparência e identidade completamente novas, porém isso tem um preço, que pode ser muito além de caro.
Uma sinfonia paranoica de Hollywood, "O Segundo Rosto" é um incrível suspense de John Frankenheimer, sendo considerado uma das melhores obras do diretor, que conta com uma atuação marcante e magnífica do ator Rock Hudson.Um banqueiro infeliz concorda com um procedimento que simulará sua morte e lhe dará uma aparência e identidade completamente novas, porém isso tem um preço, que pode ser muito além de caro. Filmicca
Em Observação: "O Segundo Rosto" (Seconds, 1966)
Por Wilson Ferreira
O ano é 1966, o olho do furacão de uma série de transformações comportamentais, culturais e políticas que estavam ocorrendo no mundo em meio à Guerra Fria e a corrida espacial. O rebelde diretor John Frankenheimer faz o filme “O Segundo Rosto” (Seconds) que será o precursor no cinema de narrativas sobre protagonistas (em geral na meia-idade) que despertam do sonho americano e descobrem a mediocridade da vida e dos valores – “Beleza Americana” (1999) e “Vidas Em Jogo” (1997) são alguns exemplos posteriores. Mais do que um filme sobre a identidade (ou a perda dela), o filme toca em um tema potencialmente gnóstico: se a vida social está baseada no artificialismo de papéis e expectativas dos outros (ou do Outro), quem afinal somos nós? A reposta poderá estar em uma perigosa jornada interior que pode se transformar em pesadelo.
O Segundo Rosto (Seconds, 1966)
Diretor: John Frankenheimer
Plot: Arthur Hamilton é um rico banqueiro. Ele estudou na Universidade certa, associou-se às fraternidades certas, casou-se com a mulher certa. No entanto, quando chega na meia-idade sente que algo está faltando. Se sente frustrado e vazio. Um misterioso telefonema de um antigo colega dos tempos de faculdade quebra a rotina. Arthur recebe um endereço e se junta a uma espécie de sociedade secreta que lhe promete uma nova identidade e uma nova vida depois de meses de tratamento com super-nutrição, exercícios físicos e a mais sofisticada cirurgia plástica para transformá-lo em outra pessoa. Em uma sessão de hipnose Arthur descobre aquilo que na verdade ele sempre quis ser: um artista. Mas há um problema: ele deverá simular a sua morte e jamais retornará a sua antiga existência. Poderá nessa segunda chance descobrir quem ele realmente é? Consertar erros do passado? Ou tudo é um grande golpe para roubar sua fortuna?
Por que está “Em Observação”?: “O Segundo Rosto” é um sombrio antecessor de filmes sobre protagonistas da classe média norte-americana que despertam para a mediocridade dos valores e sonhos da sociedade de consumo como “Middle Age Crazy” (1980), “Beleza Americana” (1999) ou mesmo “Vidas em Jogo” (1997) onde o protagonista cai vítima de um roler play game bancado por uma misteriosa empresa de entretenimentos cujo objetivo é despertá-lo para a mediocridade da sua vida. O ano de “Segundo Rosto” é 1966. Esse filme até hoje é perturbador e chocante que mostra um Rock Hudson bem diferente dos galãs de boa estampa e canastrão que sempre representou. O filme estava sintonizado com uma época que estava no olho do furação de uma série de transformações culturais, comportamentais e políticas – o auge da Guerra Fria e da corrida espacial. É curioso ver Rock Hudson interpretando um personagem bêbado, perdido, atônito e fraco se desmontando.
O filme tem potenciais temas gnósticos como a identidade (ou a perda da identidade), conspirações de uma sociedade secreta demiúrgica e a apresentação da própria vida social como um constructu, onde as relações e a própria realidade é uma elaboração artificial com algum propósito sinistro.
Mas “O Segundo Rosto” parece explorar um tema ainda mais profundamente gnóstico: se a sociedade e as relações humanas são um mero constructu a partir de papéis e artifícios, quem somos nós? O que queremos da vida? Somos felizes ou apenas fazemos aquilo que os outros esperam de nós? Quando saberemos que somos felizes? O que significa ser verdadeiramente livre? Se encontrarmos a liberdade, será que estaremos realmente tão liberados quanto pensamos ou apenas nos foi permitido trocar um conjunto de restrições por outro?
As respostas a esses questionamentos somente encontraríamos dentro de nós, em uma jornada interior que, muitas vezes, pode se transformar em pesadelo. Esse parece o ponto central do filme “O Segundo Rosto”.
O que esperar? John Frankenheimer era considerado nessa época uma grande revelação ao lado de outros diretores como Arthur Penn e John Cassavetes. O cinema norte-americano passava por um terremoto, assim como o cinema europeu era subvertido por jovens cineastas como Goddard, Truffault ou ainda com o pós-neo-realismo de Fellini e Visconti. A crítica falava de Frankenheimer como um diretor rebelde de um filme anticapitalista onde a narrativa assume uma atmosfera de fábula com muitas imagens simbólicas com a lógica onírica dos sonhos e pesadelos. Os fotogramas de divulgação do filme (e o próprio pôster promocional) com planos deformados em lente grande angular lembram alguma coisa entre “Alice no País das Maravilhas” e “Psicose”.
Segundo o crítico Scott Tobias, “O filme ‘O Segundo Rosto’ deforma e distende as janelas da percepção até o espectador se sentir imerso e encharcado de suor em um pesadelo”.
30/10/24
Quando Éramos Reis, When we were kings, 1996, Leon Gast
When We Were Kings (Quando Éramos Reis) – 1996
Muhammad Ali diferencia-se de qualquer esportista que hoje em dia cultua o status de ídolo. O boxeador é um caso único na história, pelo fato de falar com o coração e de proporcionar momentos inesquecíveis dentro e fora dos ringues. Vencedor do Oscar de melhor documentário, When We Were Kings (Quando Éramos Reis, no Brasil) capta com perfeição os bastidores do maior evento já realizado no esporte – a luta do século de Ali contra George Foreman, no Zaire, em 1974.
Para quem não conhece o evento, um breve resumo: o polêmico produtor e organizador Don King, ainda no começo dos anos 1970, teve a ideia de colocar frente a frente duas lendas do boxe. A oferta era irrecusável: 5 milhões de dólares para cada lutador. Em 1974, Muhammed Ali tinha 32 anos e era visto como azarão, já que George Foreman, sete anos mais jovem, parecia ser indomável. King conseguiu o aceite para a luta, mas só conseguiu o dinheiro para colocar o evento em prática graças ao ditador Mobutu Sese Suko, que raspou as reservas internacionais do Zaire para levar ao mundo esta luta.
A direção de Leon Gast é extremamente segura. Não se busca apresentar um panorama sobre ambos os lutadores, pois entende-se que, seja de forma direta ou indireta, o público tinha conhecimento da carreira destes dos lutadores tão reverenciados. O que de fato interessa é o evento em si, onde as sensacionais imagens de dentro do hotel de Ali ou do treinamento de Foreman mostram toda a tensão envolvida, com uma alta carga emocional em cima de ambos (tanto é que Foreman ficou dois anos com uma depressão profunda por conta do resultado do encontro).
Mais que isso, When We Were Kings oferece uma visão apaixonada de Ali e do antigo Zaire, mostrando como uma luta de boxe tomou proporções enormes e mudou o cotidiano de vários meninos condenados à fome e a miséria. Durante algumas semanas, eles vivenciaram o sonho de se tornarem novos lutadores e saborearam a esperança de ter dias melhores pela frente. Seguindo o mesmo padrão da introdução, não é de interesse de Gast tratar sobre o pós luta – no sentido de seguir os passos de Ali e Foreman. A Luta do Século, por si só, é fascinante.
Outro ponto de grande interesse está na montagem cultural do evento, liderada por James Brown e B.B King. Entre ótimas músicas, ouvimos palavras de motivação de Ali, que, sem sombra de dúvidas, é o grande alvo deste documentário. Seu jeito cativante, sempre com alto teor político em suas falas, moldam positivamente a experiência final. Entrevistado no documentário, Spike Lee demonstra preocupação com a falta de referências de grandes nomes (como JFK, Dr. King e Ali) para as novas gerações. Cabe a nós difundirmos histórias de superação como as apresentadas nesta produção, um marco positivo da década de 1990 – e que deve ser muito explorada por conta da morte recente deste grande ícone que nasceu Cassius Clay mas que conquistou sua liberdade como Muhammad Ali-Haj.
......
Ali: Eu sou experimentado agora, profissional. O maxilar foi quebrado, nocauteado uma porção de vezes, eu sou mal! Cortando árvores, eu fiz algo novo. Eu lutei com um Jacaré. Isso mesmo, eu lutei com um Jacaré! Eu briguei com uma baleia. Eu algemei o trovão, joguei ele na cadeia!
Isto é mal. Somente semana passada eu matei uma pedra! Machuquei uma pedra! Hospitalizei um tijolo! Eu sou assim, eu faço a medicina doente! Cara mal!
Ali: Era tão rápido que a Sports Illustrated teve que conseguir uma câmera lenta, cronometraram o soco e ele saiu a 4/100 centésimos de segundo. Você pode dividir um segundo em 100 pedaços. Quando as pessoas ganham um corrida de ski dizem 1 e 16/100 centésimos,1 e 32/100 centésimos de segundo, então você divide um segundo em 100 pedaços. Então, você sabe, isto rápido. Eles têm uma máquina que vai, como, frrt, realmente rápido, frrt e isso conta muito rápido, muito rápido.
E no momento que essa coisa acerta quatro vezes assim e como vai rápido, do tempo que o soco inicia até aonde ele chega foi 4/100 centésimos de segundo, um piscar de olhos, como um flash de camera. Isto é 4/100 centésimos de segundo.
Quando eu acertei Sonny Liston todas essas pessoas piscaram, então elas não viram isto. Eu juro!
Se você assistir o filme de perto, mantenha os seu olhos bem perto...Continue olhando.
Eu estou ficando pronto para acertar ele. Você tem de segurar o seus olhos e esperar ou você não verá isso, cara!
Don King: Se você pensar sobre o que Shakespeare disse, "O doce uso da adversidade é feio e venenoso como um sapo e ainda leva uma preciosa joia em sua cabeça."
Norman Mailer sobre Ali: Foi Oscar Wilde que disse: "Você destrói a coisa que ama."
Ou... o que você ama que te destrói. Ele voltou, tinha 22 lutas. Algumas foram mais honradas, algumas muito difíceis.
As personagens em foco: Muhammad Ali / George Foreman / Don King / Mobutu Sese Seko / Norman Mailer / George Plimpton / James Brown / Spike Lee / Miriam Makeba
02/11/24
Big Kill, 2019, Scott Martin
No iutubi aqui
Um burguês, dois jogadores desajustados e um religioso assassino acabam numa cidade em franca expansão, chamada apenas de Big Kill. Papo de cinema
03/11/24
O Último Matador, Last man standing, 1996, Walter Hill
Filme de Walter Hill retrata conflito de gangues no auge da Lei Seca, nos EUA
Bruce Willis estrela "O Último Matador"
da Redação, fsp, 18 de janeiro de 1998
Bruce Willis é um assassino profissional, solitário e fugitivo, em "O Último Matador", filme de ação que a Videoteca Folha lança em sua "Coleção Verão", juntamente com o jornal do próximo domingo, dia 25.
Escondendo-se de agentes federais, o ator é John Smith, homem que chega a uma vila no Texas, em 1931, e percebe que o povoado é dominado por duas máfias locais, que rivalizam no contrabando de bebidas alcoólicas. Matador treinado, Smith se aproveita da situação e, no auge da Lei Seca, oferece seus serviços aos líderes das duas gangues.
Em "O Último Matador", Walter Hill -diretor de filmes de ação como "48 Horas", uma das grandes bilheterias de 1982, que lançou Eddie Murphy nas telas- realizou uma livre adaptação do longa "Yojimbo, o Guarda-Costas", de Akira Kurosawa.
No filme de 1961, o diretor japonês descreveu a luta de um samurai contra duas quadrilhas. "É como uma história do Velho Testamento. Pessoas ruins estão em péssimas circunstâncias, num lugar maldito. Um homem mau decide fazer algo bom", define Hill.
Filmes com o mesmo ou baseados no mesmo argumento
Writing Credits (WGA)
Ryûzô Kikushima (story) and Akira Kurosawa, Walter Hill&Ryûzô Kikushima
Yojimbo, o Guarda-Costas, Yôjinbô, 1961, Akira Kurosawa
Django, 1966, Sergio Corbucci
04/11/24
O Homem que se vendeu, The Great McGinty, 1940, Preston Sturges
No iutubi aqui
Crítica | O Homem Que Se Vendeu por Iann Jeliel 23 de junho de 2021
Política e corrupção são basicamente sinônimos. Independentemente do local ou cargo, a sistemática que coloca alguém em posição de representante do povo é a mesma, um caminho recheado de escolhas “fáceis” onde a busca por poder sempre fala mais alto. Em O Homem Que Se Vendeu, Prestron Struges inicia sua carreira como diretor, satirizando essa normatização do ilícito num cenário político recortado, através de uma screwball comedy, ou comédia “louca”, subgênero característico da Hollywood clássica, sustentada sobre um humor vigente a situações inesperadas.
Vejam só o contraste, não há nada de realmente “inesperado” no caminho que leva Dan McGinty (Brian Donlevy – excelente!) rapidamente ao cargo de governador. A escalada de atitudes absurdas que foram lhe concedendo o poder serem plenamente plausíveis é a graça do deboche inicialmente bem presente no roteiro de Sturges. O Homem Que Se Vendeu foi o primeiro filme da história a receber o prêmio de melhor roteiro original no Oscar, além do primeiro a explicitamente ser dirigido e roteirizado por um mesmo alguém, denominado os créditos para “escrito e dirigido por”. Não é pouca coisa. Esse pioneirismo de dirigir a própria história certamente rendeu méritos, principalmente na primeira metade do longa, genuinamente voltada para a comédia.
Sturges parecia saber como lidar com o próprio estilo de escrita de humor, muito puxada para o teatral que planejava antecipadamente as gags visuais a serem utilizadas nas situações cômicas, para que elas não atrapalhassem a contagem linear da narrativa que importava – por isso que há poucas piadas no filme. Sua direção, diferente de outros nomes como Frank Capra ou Ernst Lubitsch, não era tão robusta ou sofisticada. Seus planos eram muito simples e pensados nesse complemento ao texto, onde a miss en scene se modificava conforme as pausas do seu texto, eliminando-as naturalmente, tornando o filme bem ágil e estimulante em ritmo.
Acontece que existe também um lado dramático aflorado no filme, fundamental no tecer do comentário crítico da narrativa. E é aqui onde se encontram os problemas. A virada de bom moço do Senhor McGinty soa tão repentina quanto a forma que ele se tornou governador. Diria que esse efeito não é nem culpa do roteiro, que vai implementando pontos no seu desenvolvimento e personalidade que vão dando brecha para ela acontecer em algum momento e mais consequência de um mesmo artificio de montagem para promovê-la. Na primeira parte funciona muito bem como auxílio da comicidade, na segunda um tanto que prejudica nesse encaminhamento dramático, principalmente porque tudo ainda é uma grande história de bar, que Sturges faz questão de ressaltar, pausando a história somente nesses momentos, relembrando da linha temporal que começou.
Também diria, que falta desenvolvimento da química do personagem com Catherine (Muriel Angelus), sua esposa inicialmente forjada para campanha política e que de uma hora para outra passa a ser uma paixão platônica que o faz jogar tudo por alto. Como dito, isso não anula a bela alfinetada do texto no desabamento do poder quando se tem a honestidade, mas sem um tratamento cômico correspondente a primeira parte, ela não parece tão (brincadeiras à parte) honesta. Isso fica bem evidente na dinâmica de McGinty com seu “chefe” (Akim Tamiroff), no início do filme responsável pelos melhores e mais engraçados momentos, quando vira motriz climática, recebe um outro tratamento, que já não funciona tanto. Apesar do fechamento mesmo, ser bastante satisfatório nesse sentido.
O Homem Que Se Vendeu é uma meia sátira bem inteligente quando quer e deveria querer mais durante a projeção, ou pelo menos, sem ficar tímida com a necessidade de um tratamento dramático para a conclusão da mensagem. Contudo, dado os fatos curiosos do filme é uma pedida obrigatória para qualquer cinéfilo, principalmente porque Sturges ficou esquecido conforme o tempo e tem um talento que merece ser redescoberto.
06/11/24
O Pagamento Final, Carlito's Way, 1993, Brian De Palma
De Palma exibe vigor em 'Pagamento Final'
José Geraldo Couto, fsp, 3 de agosto de 1994
Para o bem ou para o mal, Brian De Palma, apesar de cinquentão, mantém uma relação juvenil com o cinema. Seu filme mais recente, "Pagamento Final", ilustra bem esse fenômeno.
Nele, o cineasta revisita o gangsterismo hispânico, que já havia tratado sem meias tintas em "Scarface". Acentuando as semelhanças, aqui também o protagonista é Al Pacino, e a ação se passa igualmente nos anos 70. Violência, cocaína e breguice (nas roupas e ambientes) são as marcas comuns aos dois filmes.
A diferença é que aqui a história se passa em Nova York (e não em Miami) e o protagonista não é um supergângster no apogeu, mas um traficante veterano, Carlito Brigante (Pacino), que sai da cadeia depois de cinco anos e tenta construir uma vida limpa, contra a pressão do submundo que o cerca. Há até mesmo um aspecto histórico-documental no filme, ao retratar as mudanças ocorridas nos bairros hispânicos de Nova York durante a ausência de Carlito.
Essas mudanças aparecem não só no pano de fundo – as ruas conflagradas da cidade –, mas nos personagens com quem Carlito se relaciona: seu advogado, o judeu Dave Kleinfeld (Sean Penn), tornou-se um inescrupuloso gângster; sua namorada, a bailarina Gail (Pennelope Ann Miller) virou stripteaser. Pior: seus amigos do peito não são mais confiáveis.
O tema "sério" do filme é justamente esse: a lealdade e sua deterioração. Mas o que De Palma tem de melhor a oferecer não é a seriedade (que não raro descamba para o piegas), e sim a diversão. O que torna seu filme um deleite são as acrobacias visuais, sobretudo em duas sequências: a que abre e fecha o filme (Carlito transportado por corredores de hospital) e a da perseguição na Central Station.
Nesta última há um momento vertiginoso. A câmera acompanha o ponto de vista de Carlito enquanto foge. A certa altura, este, ao divisar seus perseguidores, desiste de descer uma escada rolante, mas a câmera não pára e desce sozinha, subitamente liberta do personagem, do realismo, das convenções narrativas e de tudo que constrange o prazer do cinema.
07/11/24
I was a simple man, 2021, Christopher Makoto Yogi
Em quatro capítulos, acompanhamos uma história de fantasmas na zona rural de Oahu. O protagonista é um homem de idade avançada que enfrenta o fim da vida e passa a ser visitado por fantasmas do passado. Misturando história, mitologia, sonhos e surrealismo, descobrimos a jornada caleidoscópica de uma família fragmentada que enfrenta a morte de seu patriarca, enquanto passamos dos arranha-céus da Honolulu dos dias atuais para o interior de Oahu antes da Segunda Guerra Mundial.
Depois do poético "Agosto na Casa da Akiko", o diretor Christopher Makoto Yogi realizou o belíssimo “Eu Era um Homem Comum”, uma carta de amor cinematográfica exuberante que abrange várias gerações de uma família no Havaí. Exibido em Sundance e na Mostra de São Paulo. Filmicca
Créditos finais: "Saúde e amor pela nossa terra. Saúde e amor para o verdadeiro povo Havaiano. Prosperem com amor pela terra, persistam como um povo verdadeiro."
08/11/24
Pedro Páramo, 2024, Rodrigo Prieto
Adaptação para as telas de 'Pedro Páramo' desmistifica figura da literatura mexicana
Fotógrafo de Martin Scorsese, Rodrigo Pietro comenta estreia na direção e as inspirações pessoais que guiaram o projeto
Thales de Menezes, fsp, 06/11/2024
Para a cultura mexicana, "Pedro Páramo" é uma obra literária incontornável. Único livro de ficção escrito por Juan Rufo, foi publicado em 1955 e soube acomodar o realismo fantástico impregnado nos livros latino-americanos do século 20 em uma história delirante e assustadora. Uma adaptação para as telas chega ao público neste dia 6 de novembro.
Quando a Netflix anunciou que estava se associando a produtores mexicanos para levar o romance ao streaming, parecia pouco provável que um diretor estreante assumisse uma tarefa tão importante. No entanto, Rodrigo Prieto, 68, assumiu a direção, mesmo sem nunca ter comandado um set de filmagem. Mas é impossível tratá-lo com alguém que ainda tenha muita coisa para aprender no cinema.
Prieto tem uma carreira de enorme sucesso no cinema americano como diretor de fotografia, com quatro indicações ao Oscar. Para ficar apenas nos trabalhos mais recentes, basta dizer que ele foi o responsável pelas imagens de "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese, e do blockbuster mundial "Barbie", de Greta Gerwig.
Ele acredita ter se divertido mais na direção. "Estava brincando em um playground muito maior. Não precisava mais brincar apenas com a minha equipe de fotografia. Agora eu estava com os atores, com quem faz os cenários, traz as roupas, enfim, muita mais gente para brincar. Mas, em compensação, cada dia de trabalho foi mais desafiador. "Como chefe da brincadeira, Prieto escalou como diretor de fotografia o jovem Nico Aguilar. Teria ele sofrido muita pressão ao trabalhar com alguém que entende tudo do ofício? "Eu espero que não", responde Prieto, rindo. "Eu o encontrei pela minha filha, eles foram juntos à escola de cinema. Ele já tinha me ajudado em ‘Assassinos da Lua das Flores’, e Scorsese adorou o que ele fez. Bem, ele era uma aposta segura."
A princípio, o diretor pensou em acumular a fotografia à direção geral, mas "Pedro Páramo" se mostrou um projeto grandioso em muitos aspectos. Ele percebeu que precisaria se concentrar na condução de uma história que é originalmente bem fragmentada. As variações de espaço e tempo no filme remetem diretamente ao livro, no qual Juan Rulfo muda a narração de primeira para terceira pessoa constantemente e não deixa claro quem está contando cada trecho da história.
O filme conta a jornada de Juan Preciado, um homem que, para cumprir o último desejo de sua mãe antes de morrer, parte para a cidadezinha de Comala, no deserto mexicano. Quando Juan era pequeno, ela foi expulsa de lá pelo marido. Ao chegar à cidade, ou pelo menos o que resta dela, quase abandonada, Juan logo descobre que seu pai já morreu e praticamente todas as pessoas que ele encontra no local foram próximas dele e têm muito a reclamar de sua figura. Como define um personagem, Páramo é o rancor e o ódio na forma de um homem.
As conversas de Juan com os moradores começam a se alterar com imagens de tempos passados, mostrando um Páramo jovem se transformando nessa figura tão odiada. Enquanto Juan percorre a cidade, o clima angustiante vai se transformando numa ambientação de filme de terror. Logo quem assiste percebe que o verdadeiro personagem do livro é a cidade de Comala, uma espécie de purgatório, com mortos andando pelas ruas e conversando com Juan.
Fica evidente no filme que Prieto não quis tratar Páramo apenas como um homem mau, como um vilão; Ele se preocupa em destrinchar um personagem complexo. "Por exemplo, meu avô lutou na Guerra do México. Ele não era um homem rico, longe disso. Mas ele se envolveu na política. Eu não sei direito o que ele fez, mas sei que muitas coisas são no mínimo questionáveis."
O cineasta admite que guiou o personagem do filme com suas lembranças familiares. "Eu amava meu avô, mas via o ser humano por trás de alguém que fez coisas censuráveis. Minha procura em ‘Pedro Páramo’ foi descobrir que momento um jovem, que tinha namorada e era um sonhador, passou a fazer coisas terríveis. Como se transformou em alguém que manda matar uma pessoa com a mesma tranquilidade com a qual pede ovos no café da manhã".
Depois dessa filmagem quase épica no deserto, Prieto revela que continuará operando a câmera para grandes cineastas que disputam seus serviços, mas espera outras chances de dirigir. "Tenho vontade de encaixar no futuro alguns projetos de direção. Gostei da brincadeira", insistindo em sua visão do set como um playground.
09/11/24
Travessia do bastardo, Bastard's crossing, 2021, Travis Mills
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Travessia do Bastardo 2021, Directed by Travis Mills
Synopsis
Cam Talcutt owns a trading post. When supplies run dry, he’ll do anything to survive… Cam Talcutt had the good luck to win a trading post in a card game. Now, he’s stuck in the wilderness trying to run it when he learns the freight company who supplies his store won’t be coming anymore. Cam is in a bad spot and might have to do bad things to survive.
Mos Co, Review by Mos Co ★★
This started out decent, and I liked the story but it was very shoddy, particularly the acting. Also they added on a daft and unnecessary final small segment when there was a clear and decent ending all wrapped up. 17 likes Letterboxd
10/11/24
O Segredo dos Incas, Secret of the Incas, 1954, Jerry Hopper
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Um aventureiro americano, de reputação bastante duvidosa, que mora no Peru e que trabalha como guia turístico, encontra um fragmento de mapa que pode indicar o caminho para a localização do “Disco do Sol”, um dos mais importantes tesouros do povo inca. Esse é o enredo central de O segredo dos incas.
Charlton Heston é Harry Steele, é um aventureiro americano que está em busca da grande jogada de sua vida. Trabalhando como guia turístico em Cusco e em Machu Pichu, ele encontra um fragmento de rocha que faz parte de um mapa com a localização do mais importante tesouro inca. A oportunidade de chegar até as ruínas da cidade sagrada dos incas surge quando ele é contratado para levar uma fugitiva romena até os Estados Unidos. Sendo perseguido por criminosos que querem se apossar do “Disco do Sol” e por agentes da embaixada da Romênia que querem capturar sua cidadã fugitiva, os protagonistas viverão uma intensa e perigosa aventura.
Uma das grandes curiosidades da produção é o personagem Harry Steele – qualquer semelhança com Indiana Jones e o filme Os caçadores da arca perdida (Raiders of the Lost Ark), produção de Steven Spielberg de 1981, não é mera coincidência. O diretor já declarou que é fã confesso da produção de 1954 e que se inspirou em Harry Steele para criar Indiana Jones. A equipe de produção de Spielberg, inclusive, assistiu o filme antigo diversas vezes, buscando detalhes dos cenários e dos trajes dos personagens. Assistindo o filme, você vai perceber rapidamente que Indiana Jones é uma espécie de “genérico” de Harry Steele.
Uma outra curiosidade do filme é que as filmagens foram feitas em locações reais no Peru, o que fugiu aos padrões da época, onde filmagens em cenários nos estúdios de Hollywood era a regra geral. Apesar deste aparente realismo, há uma série de exageros “hollywoodianos” na produção – destaco uma cena, onde uma mulher inca canta uma verdadeira “ópera” nas ruínas de Machu Pichu. NO FUNDO PROFUNDO DO BAÚ
11/11/24
Kagemusha, a Sombra de um Samurai, Kagemusha, 1980, Akira Kurosawa
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VENTO, FLORESTA, FOGO / RÁPIDO COMO O VENTO / SILENCIOSO COMO UMA FLORESTA / FEROZ COMO O FOGO / IMÓVEL COMO UMA MONTANHA
Crítica | Kagemusha, a Sombra de um Samurai por Luiz Santiago 17 de agosto de 2018
Os dez anos que separaram O Barba Ruiva de Dersu Uzala foram de transformações pessoais e também artísticas para Akira Kurosawa. Neste período, muita coisa aconteceu em sua vida, entre dificuldades de encontrar financiamento para seus projetos, a fracasso de bilheteria daquele que seria um empreendimento com outros diretores (Dodeskaden), gerando uma tentativa de suicídio do diretor, com medo de que sua carreira tivesse terminado. E então veio o início de um retorno aos eixos, que trouxe a adaptação da obra literária do explorador russo Vladimir Arseniev. Abraçado por diretores icônicos da Nova Hollywood (Spielberg, Lucas, Scorsese e Coppola), Kurosawa conheceria um novo momento em sua carreira, já empregando um diferente tipo de abordagem temática que desenvolveu após O Barba Ruiva. Foi neste cenário — e com ajuda de Francis Ford Coppola e George Lucas como produtores de uma versão internacional, ajudando no financiamento do filme — que surgiu o épico Kagemusha, a Sombra de um Samurai, em 1980.
Historicamente falando, o filme se passa em um período de grandes mudanças políticas e territoriais no Japão, o Período Sengoku, também chamado de Era dos Estados Beligerantes, com guerras civis assolando clãs através de todo o país. O roteiro de Kagemusha, escrito por Masato Ide e Kurosawa, se passa, então, em um cenário de inquietações e batalhas, e nos mostra uma jornada de controle geopolítico, colocando em cena um ladrão condenado à pena de crucificação que é salvo de sua sentença por guardar uma absurda semelhança com um um dos Senhores de Clã, o que faz desse ladrão o dublê perfeito. Quando o verdadeiro Senhor local morre, as circunstâncias colocam este homem pobre no lugar áureo do Clã, interpretando por um determinado período (a vontade do falecido Senhor era que sua morte fosse oculta por 3 anos) o posto mais alto do local.
A princípio, o roteiro é bastante confuso e parecem faltar elementos sólidos de justificativa para praticamente todos os personagens em cena. A bem da verdade, temos a impressão de que se trata de uma continuação ou da segunda parte de algo a que não tivemos acesso. Kurosawa é corajoso e habilidoso o bastante para começar com essa abordagem incomum de uma narrativa em continuidade e rapidamente nos dar ingredientes dramáticos a partir dos quais podemos entender o que se passa. A guerra é esclarecida. A posição do Senhor Shingen Takeda é apresentada de modo largo e de maneira até um pouco cômica (destaque absoluto para o excelente Tatsuya Nakadai, que interpresa Takeda e, depois, Kagemusha) e a partir de então, seguimos com a preparação para a batalha e uma forma de lidar com as quebras de expectativas de domínio territorial, como se o destino de cada indivíduo aqui (lembrando que o roteiro não se furta em flertar com o místico ou o onírico) estivessem esperando a vez de ser alterado pelos mais banais motivos.
A produção de Kagemusha esteve entre as mais laboriosas da carreira de Kurosawa, mas à parte os esforços de lidar com centenas de figurantes, cavalos e dinâmica cênica funcionando perfeitamente, não houveram grandes contratempos ao longo do processo. O único impasse verdadeiro aconteceu ainda nos primeiros dias de ensaio, quando o então contratado para protagonizar o filme, o ator Shintarô Katsu https://www.planocritico.com/tag/shintaro-katsu/#google_vignette (da franquia Zatoichi), apareceu com uma câmera no set, dizendo que iria filmar o seu processo de atuação e transformação de Senhor Takeda para Kagemusha. Não deu outra: Kurosawa o demitiu no mesmo dia, contratando rapidamente Tatsuya Nakadai. Ao longo de todo o processo, o cineasta não encontraria mais empecilhos além dos já esperados para uma produção deste tamanho, especialmente quando falamos de uma obra que mantém o rigor e perfeccionismo estético de seu diretor, vide as vestimentas histórias, a representação dos interiores dos castelos, o sistema de estratégias para a batalha e a dinâmica hierárquica daquele período da História do país, filmado com precisão.
Assinada por Takao Saitô (que estreou como fotógrafo ao lado de Kurosawa, em Sanjuro) e Shôji Ueda (em sua primeira parceria com o Mestre), a fotografia de Kagemusha está entre as mais belas construções do cinema, tendo a capacidade de colocar na tela clãs de diferentes bandeiras, sequências de diferentes forças dramáticas atrelada a cores e ângulos próprios, jamais repetidos em contraste a outros Clãs; distintas aberturas e movimentos de ligação entre inimigos; e ainda as construções específicas que mais nos chamam a atenção, como as estonteantes cenas em que o ladrão descobre o corpo do Senhor dentro da jarra; a sequência do sonho em todo o seu mergulho plástico, fortemente colorido e a soberba batalha noturna, momento do filme com um dos mais marcantes trabalhos de edição na criação do suspense diante do público.
Nessas condições estéticas tão imensas, o espectador fica esperando que o roteiro vá expandir a premissa, mas a única preocupação aqui é a exploração da dualidade entre sósia e Senhor mais o possível impacto que isso tem nos chefes de Clãs inimigos. Na minha leitura, essa abordagem do roteiro impede que o fortalecimento de uma investigação mais próxima do Kagemusha seja feita, ao mesmo tempo que impede que as ambições de guerra sejam plenamente exploradas, ficando no meio um grande peso de ordem quase filosófica, onde um ladrão se vê perfeitamente tomado pelas ideias e postura de seu falecido Senhor — dedicando-se com afinco a assumir seu papel –, embora saiba que esta “sombra” deverá sair de cena algum dia. No entanto, essa disposição textual tem peso negativo bastante limitado. A despeito dela (e da forma como o diretor filma o ciclo de ações durante a batalha final, com os chefes dos Clãs aliados praticamente entregando-se à morte), Kagemusha está entre um dos mais incríveis contos históricos sobre este intenso período da história do Japão.
Um grande filme sobre o poder de uma figura política, sua representação e as consequências que a sua saída de cena pode trazer para todos. Um épico sobre personalidade, sobre a arte da guerra e sobre o legado de alguém.
Akira Kurosawa (1910-1998)
Um Domingo Maravilhoso, Subarashiki nichiyôbi, 1947
Cão Danado, Nora inu, 1949
O Idiota, Hakuchi, 1951
Viver, Ikiru, 1952
Os Sete Samurais, Shichinin no samurai, 1954
Rashomon, Rashômon, 1950
Yojimbo, o Guarda-Costas, Yôjinbô, 1961
Céu e Inferno, Tengoku to jigoku, 1963
Sonhos, Yume, 1990
Dersu Uzala, 1975
Ran, 1985
Rapsódia em Agosto, Hachigatsu no rapusodî, 1991
11/11/24
Viver, Ikiru, 1952, Akira Kurosawa
Crítica | Viver (1952), por Luiz Santiago 10 de maio de 2018
Viver (1952) aparece na carreira de Akira Kurosawa logo após o fracasso de público de O Idiota (1951) e o sucesso internacional de Rashomon (1950). Com roteiro do próprio Kurosawa em parceria com Shinobu Hashimoto (Os Sete Samurais) e Hideo Oguni (Ran), Viver sagrou-se como um dos filmes mais emotivos da filmografia do diretor e certamente um dos melhores de sua carreira.
Kanji Watanabe é um toquiota que gerencia uma repartição pública há muitos anos. Toda a sua vida foi dedicada ao trabalho, cumprimento de agendas, burocracia de escritório, horários, compromissos profissionais. Em idade avançada e às portas da aposentadoria, o sr. Watanabe percebe que praticamente viveu em um escritório a maior parte de seus áureos anos e que nada realizou para si próprio ou para os outros. Desde o início, percebemos que a escrupulosa direção de arte deixa clara a oposição entre o mundo claustrofóbico da repartição pública mergulhada em papéis, e o mundo onde a vida acontece sem memorandos, pedidos, ordens e carimbos. Kurosawa nos convida a pensar sobre o que é a existência humana e o que se deve fazer para encontrar um possível equilíbrio entre viver e realizar alguma coisa no mundo, “deixar a sua marca”; e sobreviver para acumular riqueza, títulos e dores de cabeça. Ao final da vida, o que nos sobra?
Há uma série de adequações sociais a serem cumpridas por qualquer indivíduo. O esperado é que a pessoa tenha um bom emprego, boa remuneração, um casamento feliz e filhos para “dar continuidade ao nome”. Mas os tempos mudam. No caso do sr. Watanabe, vemos que a luta para criar o filho após a morte da esposa não foi recompensada na velhice. O filho seguiu a sua própria vida, afastou-se do pai e, no momento da narrativa, vemos que o esperado laço entre os dois não existe. O pai está sozinho e, para piorar, não conta com realizações pessoais além do trabalho. Mas o pior ainda está por vir, já que o sr. Watanabe descobrirá que está com um câncer no estômago e que tem pouco tempo de vida.
E então surge o desespero de (quase) todo ser humano: o medo da morte, o receio do desconhecido, a constatação de que às portas do fim de uma existência na Terra, nada foi feito. E nesse ponto, Takashi Shimura consegue realizar um trabalho de interpretação soberbo, transpondo a figura sisuda do Kanji Watanabe para uma personalização pueril, num primeiro momento, e engajada ou consciente, num segundo. Ao receber a notícia e se dar conta de que nada fez em vida, o protagonista começa a faltar ao trabalho, visitar festas e bares, tentar de alguma forma ocultar para si mesmo o fracasso em seu próprio cuidado durante todos esses anos. A doença é o motivo para uma nova vida e uma nova postura. Kurosawa já havia trabalhado isso em O Anjo Embriagado e Duelo Silencioso, mas agora a questão é ainda mais profunda, uma vez que o protagonista se propõe a mudar o estado das coisas no pouco tempo que lhe resta.
O Kurosawa político de Não Lamento Minha Juventude volta à tona, acrescentando ao roteiro uma forte carga de engajamento ideológico, onde o sr. Watanabe põe de lado a burocracia e passa agir em benefício da comunidade. Solicitações e papéis que em outro tempo se perderiam na poeira das pastas e arquivos públicos, ganham a sua atenção. A construção do parque onde antes era um pântano, ganha não só uma visão política e social, mas algo bastante pessoal e até simbólica, se nos lembrarmos da antológica cena do protagonista no balancinho, à noite, sob a nevasca. E então um ciclo vicioso se apresenta. A posição de Kanji Watanabe é lembrada e admirada por todos, mas por se tratar de algo muito particular, os colegas da repartição pública acabam não compartilhando da postura do falecido e voltam a repetir a mesma roda de marasmo e não-realizações em suas vidas quase robóticas. O trabalho como um motivo de escravidão.
Nada mais precisa ser dito após essa exposição. Viver consegue articular uma visão crítica sobre o mundo, sobra a humanidade e sobre o sentido da vida, e o faz de maneira poética e política, uma dupla que raramente consegue se apresentar no cinema, mas quando acontece, o resultado é daqueles que marcam para sempre o espectador, como esta belíssima obra-prima de Akira Kurosawa.
Takashi Shimura (1905-1982) - créditos 337
Curiosidades
Although he was not Akira Kurosawa's best-known actor (Toshirô Mifune had this honor), Shimura appeared in more Kurosawa films than Mifune, totaling 19. However (especially in later years), many of his characters had smaller, supporting roles.
Citações
[when working with Akira Kurosawa] I realize myself best. And yet he never dictates. Rather, he allows you to do your best, and for him you do it.
Marcas registradas
Wise and gregarious characters.
12/11/24
Anatomia do Medo, Ikimono no kiroku, 1955, Akira Kurosawa
Crítica | Anatomia do Medo, por Luiz Santiago 24 de maio de 2018
Anatomia do Medo (1955) é um dos meus filmes favoritos de Akira Kurosawa, e dentre os muitos motivos que me faz adorá-lo, posso citar, de início, os dois principais: a visão crua e contemporânea sobre o significado da guerra e a discussão sobre insanidade, medo e paranoia. Realizado após Os Sete Samurais e já na fase laureada do diretor, Anatomia do Medo trabalha uma questão político-social pelo viés humano, o do patriarca Kiichi Nakajima, que temendo um desastre causado por bombas A e H, inicia a construção de um abrigo subterrâneo para proteger à si a sua família. Quando o empreendimento falha, o sr. Nakajima propõe que toda a sua família migre para o Brasil. O local almejado é uma fazenda no interior de São Paulo, onde, aparentemente, todos estariam livres de qualquer efeito causado por qualquer guerra.
Depois de dois filmes de caráter político, Não Lamento Minha Juventude e Um Domingo Maravilhoso, Kurosawa fala abertamente sobre bombas, guerra e destruição. O roteiro do filme, uma parceria com três outros grandes roteiristas japoneses, consegue colocar na tela algo que seria o equivalente ao quadro O Grito, de Edvard Munch, tamanho é o desespero do protagonista. A guerra e a possibilidade de um ataque nuclear alcança aqui o seu maior valor, o da destruição completa. Em nenhum momento do filme ouvimos a palavra “reconstrução” ou “sobrevivência”. Uma nova guerra, nesse momento, seria fatal para todos.
Intricada a essa questão pessoal de um senhor de idade, a família se põe como o grande obstáculo para seus planos de salvação. Os filhos simplesmente se recusam a deixar o Japão e migrar para o Brasil, e como o velho persiste na ideia, eles abrem uma ação judicial contra o pai, tentando declará-lo incapaz de administrar suas finanças. O corpo da obra perpassa por toda essa relação familiar conturbada, ainda mais porque se trata de uma família numerosa e conta ainda com filhos fora do casamento e as antigas mulheres do patriarca, que são sustentados por ele e também inclusos no plano de migração.
Kurosawa repousa a câmera mais vezes, evitando movê-la em todos os quadros e filmando cenas um pouco mais longas do que ele habitualmente filmava. A película ganha aos poucos um ar mais analítico e dramático. À medida que o desejo de proteção do patriarca se torna uma obsessão, seus dissabores começam a aparecer, e não são poucos. Os filhos se recusam lhe emprestar dinheiro e ainda armam uma situação que fará com que o pai pareça realmente incapacitado frente ao tribunal para o qual ele apelou após a primeira sentença. Em Cão Danado e Viver, o cineasta já havia mostrado a complicada relações entre pais e filhos, focando no abandono e no desprezo. Em Anatomia do Medo, a situação se repete, mas por um motivo de importância muito maiores. Numa posição quase quixotesca, o protagonista representa a visão antibelicista do diretor, como também o seu repúdio à guerra, questões que voltaríamos a ver em filmes futuros como Sonhos e Rapsódia em Agosto.
SPOILERS!
Toshiro Mifune é a verdadeira estrela do filme, no papel do velho patriarca Nakajima. Quando eu assisti ao filme pela primeira vez, fiquei procurando o ator a projeção inteira, e cheguei até a acreditar que a citação do nome dele nos créditos iniciais tinha sido um erro grosseiro. Mas qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Mifune era o protagonista! A equipe de maquiagem, a direção de Kurosawa e o talento do ator fizeram com que Kiichi Nakajima se tornasse uma personagem incrível e irretocável. Mifune tinha 35 anos na época, então, nem de longe se parecia com o senhor que interpretou, e mesmo assim, sua caracterização, voz e loucura ao final da fita são simplesmente admiráveis, sem dúvida uma das melhores interpretações da carreira do ator.
Vencido na luta contra os parentes, Nakajima resolve partir para uma última tentativa, aquela que o levará para um outro plano de existência: o do refúgio completo em sua própria mente, em seu próprio planeta interior. As últimas sequências de Anatomia do Medo trazem ainda uma grande culpa e uma crise moral. Kurosawa também questiona o “lado de cá” e traz à tona a postura inegavelmente egoísta do velho em querer salvar a própria família e se esquecer dos outros, seja para abandoná-los à própria sorte, seja para deixá-los sem trabalho, em decorrência do incêndio provocado na fábrica.
Quando a salvação não é possível e a ameaça ainda existe, o homem só tem uma escolha: refugiar-se em si mesmo ou se entregar à morte. No caso do sr. Nakajima, temos a ocorrência da primeira opção. No final das contas, ele conseguiu se proteger das bombas. O medo não existe mais. O planeta em que ele mora está a salvo de ameaças, ao contrário da Terra, que ele vê ardendo em fogo, na lancinante última cena do filme.
Kurosawa passa então da loucura como refúgio para o silêncio como realidade. Quem vive melhor? O louco protegido em seu mundo ou os outros, sempre ameaçados? A resposta não poderia ser mais aterradora: o profundo silêncio. Numa cena bastante simbólica, uma personagem sobe e outra desce a rampa do hospício. Parece que a vida se resume a isso mesmo. E como se não bastasse a angústia, nada mais é dito. O filme acaba.
Anatomia do Medo é uma obra para ser revisitada de tempos e tempos, especialmente hoje, quando os Senhores da Guerra teimam em fazer da destruição a “eterna novidade” dos nossos dias na Terra.
13/11/24
Eu não sou seu negro, I Am Not Your Negro, 2016, Raoul Peck
James Baldwin: os donos do sonho americano e seus massacres que viram lenda
Rodrigo Casarin, Splash/UOL, 11/11/2024
Numa cena de "Eu Não Sou Seu Negro", o escritor James Baldwin comenta como cresceu vendo filmes em que homens brancos montados sobre cavalos desbravavam os Estados Unidos para conquistar novos territórios. Pelo caminho, davam fim nos indígenas, sempre retratados como seres animalescos.
Baldwin reflete sobre como os faroestes impactaram sua formação. E não só. Já maduro, afligido pela violência contra negros e homossexuais, notou que aquela carnificina com os povos nativos não estava no passado.
Havia, porém, um leque maior de pessoas trucidadas por uma parcela da população orgulhosa da autointitulada superioridade, crente de que era para ela que o tal sonho americano estava manifestamente destinado. "Fizemos um massacre virar lenda", diz o escritor ao analisar o impacto do cinema na construção de imaginários. Muitas vezes a arte se vende como um retrato de determinadas situações, mas o que faz, na verdade, é estabelecer em nossa cabeça uma versão da história que nem sempre corresponde à realidade.
A ficção molda o real — e aqui sugiro o meu papo com o professor Júlio Pimentel Pinto. Assim, milhões e milhões de estadunidenses — e não só — acreditam, há mais de século, na conversa de que cabe aos mocinhos acabar com o mal. Dá-lhe maniqueísmo e estereótipos. Após questionar uma suposta autoridade moral do Ocidente, a reflexão de Baldwin se volta para a forma caricatural e subalterna como os negros eram retratados em propagandas. E ganha uma camada oportuna quando o autor aponta programas de televisão imbecilizados como os responsáveis pela pasmaceira geral enquanto atrocidades se tornam rotineiras.
Lançado em 2016, "Eu Não Sou Seu Negro" é um exemplo da boa junção da literatura com o cinema. O filme nasce de "Remember This House", livro de Baldwin sobre três grandes nomes do movimento negro dos Estados Unidos: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. São homens de ideias e trajetórias díspares, mas que tiveram um mesmo fim: assassinados entre 1963 e 1968, antes de chegarem aos 40 anos. Lutavam por uma vida mais digna para os negros dentro da sociedade norte-americana, desde sempre conflagrada. A paz, muitas vezes, só existe quando um grupo é massacrado a ponto de sequer conseguir reagir.
Um dos grandes nomes da literatura dos Estados Unidos do século 20, autor de obras como "O Quarto de Giovanni" e "Notas de um Filho Nativo", Baldwin não teve tempo de terminar "Remember This House" antes de sua morte, em 1987.
A partir do manuscrito, o diretor haitiano Raoul Peck constrói um documentário em que o texto do escritor, narrado por Samuel L. Jackson, dialoga com entrevistas de Baldwin, discursos, trechos de noticiários e uma série de fotos e vídeos revoltantes.
Numa das cenas, uma mulher vomita bobagens. Diz algo como: Deus pode até perdoar crimes, assassinatos, mas jamais perdoaria o casamento inter-racial. Outra, numa manifestação, empunha um cartaz: "Mistura de raças é comunismo". Certos fantasmas são perenes.
A imagem de uma garota negra chegando numa escola para estudar é a que mais me marcou. Cercada por colegas brancos, ela é xingada, vilipendiada, humilhada. Alguns recortes colocam em evidência a molecada que vê graça naquilo, regozija-se com o próprio ódio.
A vontade é de saber quem são aqueles racistas, nome por nome. O que fizeram de suas vidas, o que pensam daquela barbaridade que protagonizaram. Perguntar por que se portaram daquela forma só para ouvi-los verbalizar a própria indignidade. Como a garota reagiu? Seguiu altiva, de cabeça erguida, confiante de qual caminho desejava trilhar, apesar de toda estupidez ao seu redor.
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14/11/24
Cinema Novo (Improvisiert und zielbewusst) - Joaquim Pedro de Andrade, 1967
No iutubi aqui
14/11/24
Joanna Francesa, 1973, Carlos Diegues
No iutubi aqui
Joanna Francesa 1973 Directed by Carlos Diegues
Synopsis
Joana is a sophisticated, beautiful woman, so she has a choice of lovers, and destinies. She will let down Pierre, the French consul at São Paulo, and with him the frivolity of tea-parties and comfort. Her wild inner-soul will develop into the wild forest surroundings of a landlord’s farmhouse. To the extent she will defend her land like a 19th century owner - of lands and men alike.
Adriana Scarpin, Review by Adriana Scarpin ★★★
Em honra do centenário de Pierre Cardin. Além de não gostar do cinema do Diegues, a Fernanda Montenegro dublando a Moreau me irritou num tanto que atrapalhou completamente a minha sessão de cinema. Letterboxd
15/11/24
Xica da Silva, 1976, Carlos Diegues
No iutubi aqui
Review by GabsNeumann ★★★★
Orgulho de ter na história do meu estado (Minas Gerais) e país (Brasil),uma figura tão complexa que fez o tabuleiro ser jogado ao seu favor numa época aonde as estimativas são contra sua simples existência,infelizmente a história dela não termina com um feliz e muitas de suas conquistas serem destruídas após o João Fernandes ser transferido para Lisboa,mas não podemos deixar a história dela morrer. Letterboxd
16/11/04
Bye Bye Brasil, 1980
Carlos Diegues, 1940
Crítica | Bye Bye Brasil por Frederico Franco 7 de fevereiro de 2023
Em um road movie pouco empolgante, Carlos Diegues não dá conta das questões que ele próprio levante.
Uma caravana circense viaja por regiões interioranas do Brasil com o único objetivo de levar entretenimento a locais isolados do país: esse é o ponto de partida de Bye Bye Brasil. Uma leitura atenta aos fatos é capaz de relacionar a película de Carlos Diegues ao conceito de road movies – filmes em que a viagem de um ou mais protagonista é o elemento central da narrativa. Os exemplos, inúmeros, podem flertar com outros gêneros cinematográficos, desde filmes de guerra até dramas existenciais. O mais importante, no entanto, é notar como tais filmes acompanham não apenas deslocamentos físicos, voltando suas atenções, também, para trajetórias de desenvolvimento mental ou espiritual de seus protagonistas. De uma maneira torta, Bye Bye Brasil tenta, justamente, explorar dinâmicas internas de seus personagens à medida em que as viagens ao redor do Brasil avançam.
A chamada Caravana Rolidei, capitaneada por Lorde Cigano, carrega consigo atrações mágicas e um espetáculo erótico da dançarina Salomé. Em uma cidade no interior do nordeste, um sanfoneiro apaixona-se pela caravana e por Salomé e, junto de sua mulher grávida, passam a integrar a equipe de shows.
Um dos pontos nevrálgicos abordados por Diegues é, além de acompanhar a trajetória mental de seus personagens, apresentar momentos de desenvolvimento do próprio Brasil. Na medida em que a Caravana Rolidei avança em direção às cidades interioranas do país, o diretor faz questão de deixar claro que, inevitavelmente, traços da globalização podem ser notados em territórios que antes viviam alheios às mudanças sociais e culturais dos grandes pólos brasileiros. As novidades que chegam a esse interior explorado em Bye Bye Brasil não são uma surpresa revelada apenas para o espectador: os próprios personagens integrantes da caravana mostram-se atônitos ao realizarem que, de certo modo, suas atrações circenses talvez já não sejam suficientes para o entretenimento do povo. Há uma interessante passagem no filme na qual Lorde Cigano e um morador da cidade na qual a caravana está visitando debatem sobre a chegada do cinema em pontos interioranos; pela primeira vez, o espectador enxerga o Lorde, personagem de José Wilker, frágil, desestimulado, intimidado.
Cabe aqui um parênteses a respeito de Lorde Cigano, o grande acerto de Carlos Diegues em seu filme. José Wilker demonstra, em quase duas horas de filme, completo domínio de tela, sobressaindo sua figura das demais. Desde sua adorável verborragia em seus shows – que lembra ao longe um Waly Salomão nos filmes de Carlos Nader – até sua faceta deslumbrada, Lorde é, na realidade, uma materialização da ideia por trás da caravana. Toda sua pompa e exibicionismo é utilizada como uma maneira de anunciar que seus espetáculos são fios que levam ao povo marginal um pouco de alta cultura. Em um de seus números, por exemplo, Lorde Cigano simula uma pequena nevasca e, logo em seguida, ouvimos que a neve é coisa de país chique. Aqui, vemos que além de ser uma forma de entretenimento, a Caravana Rolidei se propõe a aproximar as cidades interioranas daquilo que se conhece como primeiro mundo. E essa ideia, de certo modo, parece ter seus dias contados com públicos cada vez mais acostumados a terem contato com outras atrações de países chiques, como a televisão e o cinema.
Por mais que Bye Bye Brasil tenha em mãos um universo rico a ser explorado, Carlos Diegues parece não ter sucesso em lidar com aquilo que lhe é apresentado. Fala-se e vê-se muito sobre o desenvolvimento, mas essa questão pouco é provocada ou questionada, dando a entender que, no fim das contas, tudo ocorre de forma pacífica e benéfica para o povo. Para fazer justiça, há, em meio às viagens da caravana, um comentário acerca da construção da Rodovia Transamazônica, quando é dito que, para a construção da obra, vários povos indígenas foram retirados de seus locais de origem, sem terem para onde ir. Essa acepção poderia se aplicar, do mesmo modo, para o declínio vertiginoso do sucesso da Caravana Rolidei, mas Diegues, ao invés de cutucar a ferida, foca suas atenções para dramas internos entre os viajantes: a paixão do Sanfoneiro por Salomé e os dilemas desse com sua mulher grávida. Nesse âmbito, a linguagem do diretor parece pouco efetiva. Seus personagens, por mais que sejam efetivamente afetados pelas questões levantadas acima, não parecem sofrer grandes consequências. Suas jornadas parecem retilíneas e nada alteradas: o Sanfoneiro segue iludido com um futuro com Salomé, Lorde Cigano não perde sua pompa, Salomé continua uma busca por independência, etc.
No final das contas, Bye Bye Brasil torna-se um filme episódico pouco empolgante. As cidades visitadas pela caravana possuem seus próprios arcos narrativos que nascem tortos e terminam sem grandes conclusões. Por mais que a Caravana Rolidei siga seu caminho e veja de passagem as mudanças sociais do Brasil, seus personagens, por outro lado, não buscam deslocamento. Ou sequer são colocados frente a situações limítrofes. A caravana viaja enquanto sua tripulação para no tempo.
17/11/24
Quilombo 1984 Cacá Diegues
No iutubi aqui
Revendo 'Quilombo' recentemente, Renata (esposa de Cacá Diegues) chamou-o de "uma fábula comunista louca para ser vista como musical da Metro". O lado "musical da Metro" vinha certamente do meu desejo de filmar a alegria dos justos. Posso até conceder que talvez tenha feito de um modo ingênuo, mas nunca malicioso ou artificial. Mesmo sendo ingênuo, era generoso e criativo tentar transformar valores da cultura brasileira em manifestação pop. Cacá Diegues, Vida de cinema, pp. 529 e 530, Objetiva, 2014
Um épico pop preto e brasileiro esquecido pelo tempo.
Muito antes de Wakanda ser imaginada pelos artistas da Marvel Comics, existiu de fato Palmares na Serra da Barriga. Muito antes de “Pantera Negra” do Ryan Coogler chegar às telonas do mundo inteiro, existiu “Quilombo” de Cacá Diegues.
Conheço pouco do cinema do realizador brasileiro, confesso. Nunca assisti à sua obra mais elogiada, “Bye Bye Brasil” (1980). Na verdade, o único dos seus filmes que eu já havia visto antes de assistir a “Quilombo” tinha sido “Deus É Brasileiro” (2003) que considero bem ruim. Mas fiquei encantado com seu épico sobre Palmares, não por ser esta uma obra com um rigor histórico ou uma representação fidedigna dos fatos ocorridos no século XVII – eu não seria nem a melhor pessoa para atestar algo nesse sentido – mas por enxergar em um filme lançado lá em 1984 algo que levou o blockbuster da Marvel a ser amplamente elogiado em 2018: um olhar criativo e respeitoso para com a representação da cultura de raízes africanas no cinema comercial.
Obviamente há de se guardar as devidas proporções. Existem diferenças cronológicas, financeiras e geográficas entre os filmes que os afastam em muitos pontos. Mas não deixa de ser impressionante a escala da obra de Diegues, com suas centenas de figurantes, figurinos bem trabalhados, design de produção pensado nos mínimos detalhes, coreografias, efeitos especiais, etc. Não é exagero comparar as duas produções, que a despeito de todas as diferenças, se aproximam em tema e abordagem.
A começar pela caracterização dos espaços. A Palmares de Diegues, apesar de não ser high tech como Wakanda, também é retratada com um certo ar de utopia. Viva, colorida e frutífera, a cidade/quilombo aparece como uma sociedade organizada e solidária, principalmente em contraste com os espaços ocupados pelos representantes da colônia. As igrejas vazias e rudimentares, as vilas cinzas e sem vida.
Tudo aponta para uma existência mais plena e interessante no alto da serra do que nos salões da capital Recife. Enquanto o ouro e os jogos de poder ditam as relações entre os brancos, a honra e a solidariedade aparecem como características da sociedade de Palmares. Algo que se repete com a caracterização dos personagens. Quase todos os brancos são retratados com um viés meio ridículo, como se fossem um bando de patetas, ainda que capazes de cometer violências com crueldade.
Contudo, há algo em “Quilombo” de muito brasileiro, algo de um cinema pop tropical, que absorve essa necessidade de construção épica bem típica do cinema americano, mas que a adapta a uma linguagem brasileira, bebendo da fonte dos cinemas que aqui se originaram. Por exemplo, enquanto os épicos clássicos costumam acompanhar a jornada de um personagem heroico, Diegues se propõe a digressões narrativas. Paralelamente à trama principal existem pequenos momentos, fragmentos de história, esquetes, que vão compondo um mosaico rico de personagens, elementos religiosos, momentos cômicos com participação de grandes artistas como Grande Otelo. É um filme que se deixa atravessar por essas possibilidades. Mais do que Ganga Zumba (Tony Tornado) ou Zumbi (Antonio Pompeu), o protagonista é verdadeiramente o Quilombo dos Palmares.
Há algo mais interessante ainda no longa, que é a sua dimensão metafísica. A religiosidade de tradição do Candomblé é presente ao longo de toda a narrativa. Tudo o que ocorre no mundo físico do filme, tem repercussões metafísicas e vice e versa. São duas tramas correndo em paralelo, a material e a transcendente. Os Orixás são personagens presentes e influentes para o desenrolar da trama. Isso fica claro em pequenos (e grandes) detalhes, desde as cores das vestimentas dos habitantes de Palmares que mudam conforme a liderança da cidade, a iluminação que responde à mesma lógica, ou que pontua os embates entre personagens filhos de santos distintos, até a presença física de Xangô em batalha, como se estivesse incorporado em Ganga Zumba, em uma cena bem coreografada. Poucos são os filmes que constroem e integram tão bem essa camada transcendente à lógica de encenação.
Sinto que “Quilombo” é uma obra subestimada na filmografia brasileira. A abordagem carnavalesca que Cacá Diegues confere ao filme talvez o afaste de parte da intelectualidade, mas gera como consequência um potencial popular muito forte, além de refletir dinâmicas narrativas bastante próprias do cinema nacional que teve seu auge comercial com as chanchadas e pornochanchadas. É um trabalho bem mais brasileiro do que muitos filmes da retomada, que são cultuados como sintoma da pouca memória que o brasileiro tem em relação ao seu próprio cinema. Some-se a isso uma trilha sonora incrível, composta e interpretada por Gilberto Gil e a um elenco com vários dos maiores atores pretos que esse país já produziu e se tem um arrasa-quarteirões nacional, que certamente não atingiu um sucesso condizente com o seu potencial. Thiago Beranger, 24/06/2023
17/11/24
O Padre e a Moça, 1966, Joaquim Pedro de Andrade
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Crítica | O Padre e a Moça (1966) por Leonardo Campos 28 de março de 2016
Alguns manuais e textos que circulam pela internet apontam O Padre e a Moça como uma produção do Cinema Novo. É preciso, portanto, refletir melhor sobre esta afirmação. Talvez por ser mais didático e facilitador no processo de encaixe destas publicações panorâmicas, incorre-se no erro de catalogar os filmes assim como aprendemos nos estudos literários na escola: “isso é parnasianismo”, “isso é barroco”, “isso é realismo/naturalismo”. Desta forma, se engessa o pensamento e muitas vezes as potencialidades de uma obra de qualquer ordem, seja cinematográfica, literária, teatral ou musical, diminuem. Resume-se a discutir o filme ligado ao movimento em que este se encontra cadastrado. O Padre e a Moça, produção de 1965, lançada em 1966 no Brasil, no entanto, foi realizada durante o auge do pensamento cinemanovista no país, traz alguns aspectos estéticos que o aproximam do movimento, mas distancia-se em vários momentos das propostas que tiveram, entre outros, o engajado Glauber Rocha.
O enredo do filme situa-se em uma zona de garimpo de diamantes decadente, na região do Rio das Pedras. Um jovem padre chega ao local para dar extrema unção em um homem idoso. Durante o ato, escuta-se o sussurrar de um nome: Mariana! Mariana! O homem catatônico estava a citar o nome de uma filha de garimpeiro que aos dez anos de idade foi dada ao comerciante Honorato para criação. O problema é que ao invés de torná-la a sua filha, o homem utiliza a menina como sua esposa. O casamento se aproxima. O padre recém-chegado é convidado a realizar o casamento, mas fica relutante. Ele percebe que um desejo latente nasceu entre ambos. O conflito, então, se estabelece. Como lidar com este dilema diante da população religiosa da época? Como enfrentar a ira dos puristas e donos da “moral”? Essas são perguntas que os personagens lançam internamente para si, bem como nós, espectadores contemporâneos, em busca de respostas para a recepção polêmica do filme em plena década de 1960.
O ano era 1966 e como sabemos, apesar da história contemporânea tripudiar com as celeumas políticas da época, o regime ditatorial comandava um massacre ao que era artístico, político e pensante, o contrário da massa autoritarista. Diante do exposto, imagina-se que a produção tenha sofrido horrores com a mão pesada da censura, a picotar o filme frame a frame. No entanto, apesar das celeumas em torno da produção, a película sobreviveu com menor dificuldade se comparada aos outros filmes “políticos” da época, como por exemplo, Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Sob a direção de Joaquim Pedro de Andrade, O Padre e a Moça não é a quintessência da linguagem cinematográfica. Esta é uma das várias produções do cinema brasileiro que ganha mais impacto hoje se pensarmos no manto histórico que envolve a produção. O cineasta teve o cuidado em não cair na síntese sociológica, apesar de trazer um pouco sobre estagnação econômica e social. O roteiro também foi assinado pelo diretor, baseado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. Com dez atos, “O Padre e a Moça da literatura” mescla a linguagem poética com o gênero narrativo. Publicado em 1962 no livro Lições das Coisas, o poema apresenta uma estrutura que o cineasta subverte.
Inicia-se com a fuga do padre, o seu conflito interno, a concretização do amor através do ato físico, o reinício da fuga dos amantes e o término angustiante na gruta. No filme, Joaquim Pedro de Andrade pouco se importa e seguir a narrativa como um manual de fidelidade (nem deve) em relação ao material literário que lhe serve de inspiração. Na construção dos diálogos, Andrade (cineasta) investiu pesado em diálogos não ensaiados e frases de efeito, ao contrário, aposta na abordagem rudimentar das falas. Os gestos, neste caso, também contam muito, talvez no mesmo nível ou um pouco mais que os diálogos, nos remetendo ao também excepcional Vidas Secas, adaptação cinematográfica do romance homônimo de Graciliano Ramos, realizada com eficiência por Nelson Pereira dos Santos. As atuações de Paulo José e Helena Ignez dão conta do recado, o que ajudou a tornar os personagens bem críveis. No que diz respeito aos detalhes formais da narrativa, podemos destacar a premiada fotografia de Mário Carneiro, a música de Carlos Lyra. Cheio de elipses, a trama oculta algumas passagens, deixando um ar de mistério em torno dos acontecimentos, pedindo um espectador que reflita mais e espere menos por respostas prontas. Carregada de um tom pessimista, a produção conta com o auxílio de planos médios que aproximam o público das tensões entre Paulo e Mariana.
Ao longo dos seus 90 minutos de duração, o filme nos oferece uma sincronização de som mediana. A depender do local de exibição, torna-se complicado compreender alguns diálogos. A montagem de Eduardo Escorel também surge como algo positivo, pois conseguiu ajustar muito bem os planos em direções contrárias que refletem no espectador a angústia dos protagonistas, principalmente na sequencia final. Nas mãos de um profissional mediano talvez tivesse se tornado um desastre de amplas dimensões. E, de volta ao questionamento inicial, sobre o destino dos personagens diante da religiosidade e da hipocrisia da época (que pode muito bem ser comparada fielmente aos nossos dias atuais): o destino é trágico para os amantes. Eles precisam “queimar” na espécie de inquisição nossa de cada dia, que julga e determina os valores que devem ser seguidos pelo bem da moral e dos bons costumes. Todavia, antes da cena derradeira, os apaixonados fogem diante de planos abertos, carregados de iluminação em seus figurinos, tendo em off um som tão agressivo de aves (gaviões?) que ajudam na criação da tensão crescente do epílogo narrativo.
Importante observar que as rochas do caminho trilhado surgem como metáforas visuais para a “prisão” de ambos. Tal questão, por sua vez, nos leva a abordar o espaço fílmico da narrativa, de onde extraio algumas considerações relevantes. O vilarejo é um lugar abandonado no tempo. Tendo sido filmado em São Gonçalo do Rio das Pedras, Gruta de Maquiné e na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, O Padre e a Moça é uma produção que busca o distanciamento dos estúdios e aposta no foco neorrealista que pregava a ideia de um cinema feito nas ruas, sendo este um dos poucos pontos de aproximação da obra com os ideais do Cinema Novo. Cabe ressaltar que a cenografia e a abordagem narrativa são essencialmente mineiras: há bastante da estética barroca na descrição dos ambientes.
O ritmo letárgico não facilita para os acostumados a uma abordagem mais visceral visualmente, tendo o filme um “pé” no cinema de Bresson. É possível perceber a aproximação nos silêncios angustiantes, nas longas tomadas e na falta de dinamismo.Apesar de ter recebido os prêmios de Melhor Fotografia e Melhor Atriz para Elena Ignez no Festival de Brasília em 1966, o filme foi “sabotado” pela crítica oficial da época, haja vista que qualquer coisa que saísse dos trilhos do Cinema Novo era alvejada por pedras por boa parte da imprensa. O filme e a postura do seu diretor iam de encontro ao que alguns intelectuais queriam.
No exterior, entretanto, a recepção foi diferente. A produção foi indicada ao Urso de Ouro do Festival de Berlim e mais recentemente, ficou na 31ª posição no ranking de melhores do cinema brasileiro segundo a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema. Nada como descolar-se do contemporâneo, como teoriza o elucidativo Giorgio Agamben, para melhor entender situações. Pensado hoje, O Padre e a Moça é uma peça importante no que tange aos meandros da memória cultural nacional. Joaquim Pedro de Andrade, ao lado de Paulo Cesar Saraceni e Gustavo Dahl formaram uma linha de pensamento unificado, semelhante ao que Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos fizeram momentos antes, na eclosão do Cinema Novo brasileiro. O cineasta declarava-se um artista sem posição ideológica definida. Em suma, um intelectual em trânsito, cheio de indefinições, assim como os personagens e o mote de O Padre e a Moça, a sua primeira incursão no campo da produção cinematográfica.
18/11/24
Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964, Glauber Rocha
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Crítica | Deus e o Diabo na Terra do Sol por Ritter Fan 4 de abril de 2014
É impressionante – e triste – constatar que as críticas feitas em Deus e o Diabo na Terra do Sol há 50 anos (o filme foi lançado menos de um mês antes do golpe militar) persistem ainda no Brasil. Glauber Rocha, em seu segundo longa metragem, cria talvez o símbolo máximo do Cinema Novo, movimento artístico brasileiro que tenta desatar as rédeas da grande produção e embarcar em caminho análogo à Nouvelle Vague francesa ou ao Neo-realismo italiano.
Olhando o Brasil a partir do Brasil, de forma endógena e intimista, Rocha nos faz passear pela miséria absoluta representada por Manuel (Geraldo Del Rey), um vaqueiro nordestino que, em desentendimento com um coronel para quem trabalha, acaba matando-o e tem que fugir com sua mulher Rosa (Yoná Magalhães, belíssima a ponto de destoar do resto do filme). Sua fuga o coloca na trilha de Sebastião (Lídio Silva), um pregador cuja analogia com Antonio Conselheiro o diretor e roteirista não esconde, do matador e representante das forças controladoras do Estado e da Igreja Antonio das Mortes (Maurício do Valle, imponente e inesquecível) e, finalmente, de Corisco (Othon Bastos, em atuação irretocável), ex-tenente de Lampião, agora em bando próprio, mas logo após a morte de seu amigo e mentor.
Apesar de Manuel ser um personagem efetivo na narrativa, o tom documental da fita, ajudado por uma fotografia granulada, com iluminação natural e que faz uso de muito extras não atores, empresta a Manuel muito mais a função de um observador. Ele segue o fluxo e está sempre presente em momentos cruciais de uma espiral decadente que acaba simbolizando o nordeste brasileiro e, em última análise, o país como um todo. Seu desespero é palpável e, logo no começo da projeção, ele já é alguém sem esperanças, entregando-se ao desespero. Sua esposa sabe que eles não têm saída, mesmo que Manuel insista que conseguirá trocar duas vacas por um terreno próprio (não é esse, ainda, o sonho de grande parte da população do país?). Evidente que o que Rosa prevê acontece e é a partir da fuga dos dois que a qualidade de observador de Manuel fica mais destacada.
Vejam por exemplo a figura de Sebastião, representando o fervor religioso, o fundamentalismo mesmo. Nem ali o povo encontra consolo, pois a entrega à esperança de se chegar à Terra Prometida (o mar) e as palavras rasas e enganosas que prometem que os ricos ficarão pobres e os pobres ricos (o sertão vai virar mar!) são só isso mesmo, palavras ao vento. Assim como o povo, Manuel se entrega a essa esperança, com Rosa sempre servindo de âncora a seus arroubos de “insanidade”, mas o que Manuel testemunha e participa é de um sacrifício primal, daqueles que retiram do símbolo de esperança a clareza que antes o espectador tinha. Se o sertão vai virar mar, o religioso vira assassino. Mas a Igreja – essa mesmo com “I” maiúsculo, já havia se tornado assassina, quando antes paga 600 contos para Antonio das Mortes acabar com a revolução dos infiéis, assim como em Canudos.
E por esse caminho sem volta e sem esperança caminha Manuel, sempre seguido de sua bela esposa, com cabelos esvoaçantes e rosto sério, que arrancam de nós, espectadores, o mergulho no sertão que a obra se propõe, talvez nos lembrando propositalmente de uma vida que poderia ser, mas que nunca será. Chegamos a Corisco, completamente enlouquecido e enfurecido pela morte de Lampião e Maria Bonita, pronto para se vingar, como efetivamente faz, mas para que mesmo? Manuel o segue, Manuel novamente participa, ganha o apelido de Satanás – merecido ou não? – e Manuel tenta conciliar o que é com o que precisa ser. Sua esposa novamente servindo como o fiel da balança.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma viagem lírica pela realidade brasileira da época que ecoa fortemente nos dias de hoje, em algumas circunstâncias ainda pior do que o retrato de Glauber Rocha. Somos embalados pela música clássica brasileira por excelência – Villa-Lobos – além de cordéis compostos pelo próprio Rocha e que funcionam como um coro grego às vezes, ou como reiteração dos acontecimentos por outras vezes, ainda que acabe sendo redundante em seu objetivo, já que a trama e a mensagem são claras como o sol que seca a terra em que Deus e o Diabo se digladiam.
Não é um fita fácil de se ver, pois o mote que permeava o Cinema Novo – “câmera na mão e ideia na cabeça” – gera muitos momentos de improviso e cenas de ação teatrais, mas que funcionam dentro de seu contexto. Não precisamos de efeitos especiais modernos para apreciar a perfeita fotografia de fortíssimo contraste de Waldemar Lima ou a montagem quase experimental às vezes comandada por Rafael Valverde sob a batuta de Rocha. É estranho, mas é belo. É sujo, mas de uma limpeza incrível. A mixagem e edição de som é que sofrem muito, com redublagens que estão deslocadas no espaço cenográfico (reparem, por exemplo, a cena em que Antonio das Mortes aparece pela primeira vez, sentado ao fundo da sala, mas com sua voz em primeiro plano). Um preço talvez pequeno a pagar, mas que pode dificultar a apreciação do resultado final por um espectador menos atento e cuidadoso, que saiba o que está procurando.
Festejado em Cannes, onde foi indicado para a Palma de Ouro, e também em diversos festivais internacionais, Deus e o Diabo na Terra do Sol é um pedaço da história cinematográfica brasileira e um alerta para a história do país que não pareceu ter evoluído tanto assim nos últimos 50 anos. O sertão ainda não virou mar e Antonio das Mortes ainda paira.
18/11/24
A Idade da Terra, 1980, Glauber Rocha
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19/11/24
Terra em Transe, 1967, Glauber Rocha
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Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace. Jornalista Paulo Martins, em Terra em Transe.
A trama de Terra em Transe é uma alegoria política. Um texto que faz uso de elementos históricos muito próprios do Brasil e da América Latina como um todo, especialmente porque não se nega a mostrar as diferenças sócio-políticas, a larga oferta de posturas ideológicas, o embate quase infantil entre povo e poder, o uso da força militar ou do assassinato político para calar vozes dissonantes, seja nas ruas, seja nas alas do pequeno e grande Congresso. Através de todos esses fatos observados no Terceiro Mundo, Glauber Rocha nos apresenta a crônica de uma ascensão ao poder e de uma subsequente derrocada.
Paulo Martins, o jornalista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso no roteiro, é o personagem de maior destaque do longa. É através dele que vemos os lados opostos da moeda, o conservadorismo de Diaz, o populismo ineficiente de Vieira. Com o sonho de ser poeta e falar sobre temas políticos, Martins é, na verdade, um observador desgraçado dos fatos que ele julgava ter algum controle sobre. Seu ego e talvez fé extrema nas mudanças sociais o fizeram-no apoiar e trair, difamar e promover campanhas políticas e representantes que um dia desprezara. Favores, dissimulações e ignorância nas vozes que supostamente deveriam lutar contra o erro, contra a corrupção. A velha e constante hipocrisia de políticos messiânicos e partidários cegos.
Fazendo uso de uma estética experimental muito particular, Glauber Rocha intensifica a sensação de transe no próprio público, que observa ente tiros de metralhadoras, música e Villa Lobos, valsas famosas, óperas e jazz a entrega de simpatizantes governistas à farra e aos comícios, tudo filmado através de uma perspectiva que faz os atos parecerem grandes novidades, quando, na verdade, são a repetição de algo bem antigo ou a revelação de uma situação que ocorria às escondidas há bastante tempo. Algo que todos simplesmente ignoravam, fingiam não ver, diziam não se importar. Toda a esfera pública é posta no jogo. De quem é… a quem fabrica a notícia. Do empresário ao grevista. Dos sindicalistas aos arquétipos femininos vistos nessa dança pseudo-democrática, cabendo tudo, da santa revolucionária à puta alienada.
E aqui, o povo não recebe a visão social e manipulada por promessas divinas, como vimos em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O contexto todo é ampliado para situações que beiram ao constrangimento, mostrando a facilidade de qualquer um obter apoio popular, independente do discurso que faça (por mais infame que seja) e das situações que forjam nos Palácios do Governo. A preocupação do povo com o estômago fala mais alto, assim como a sua facilidade em comprar discursos que falam diretamente aos seus preconceitos, desafetos ou àquilo que dizem para ele amar ou odiar naquele momento; o apreço a uma terra familiar ganha mais importância do que o pensamento e a ação política.
O longa exige uma atenção enorme do espectador. Como a narrativa é quase toda contada em flashback e esta, em ordem alinear, não é difícil nos perdermos um pouco no início, confundirmos nomes ou a localização dos personagens, seja em Alecrim, seja em Eldorado. Aos poucos, porém, entendemos a intenção do diretor e o filme é compreendido sem mais nenhum problema.
Contando com um monstruoso elenco (que infelizmente é prejudicado pela dublagem), Terra em Transe consegue passar uma mensagem política forte e uma visão social que pode incomodar bastante gente. Lançado em meio à ditadura militar, a obra chegou a ser proibida e sofreu cortes e diversas solicitações de mudança pela censura, além de ter sido chamada de “fascista” por Fernando Gabeira e outros intelectuais da época. Ao espectador crítico, porém, fica a sensação de ter ouvido um feroz grito de muitas vozes inquietas sobre uma situação viciante e sem data alguma para terminar no Brasil, uma conclusão a que o próprio cineasta chegara em Berravento, mas no patamar essencialmente social. A questão de Terra em Transe ultrapassa a comunidade e investiga as regras do jogo que lhe dá origem. As raízes políticas que, com o apoio de leis reinterpretadas (ou ignoradas) ao bel prazer dos amigos do rei e da mídia, mantém “sob a Constituição” o Grande Desafeto, enquanto o Afeto da Vez é salvo, mesmo diante de seus muitos, conhecidos e amplamente divulgados crimes.
20/11/24
Eles Não Usam Black-Tie, 1981, Leon Hirszman
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Radamés Gnattali — Nóis Não Usa os Bleque Tais
Adoniran Barbosa Nois não usam bleque tais
Cinema na quarentena: Eles não usam black-tie
Por Gilda Walther de Almeida Prado*, 17/05/2020
Comentário sobre o filme de Leon Hirszman, baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri
Em 2001, nos 20 anos do lançamento do filme Eles não usam black-tie, dirigido por Leon Hirszman em 1981, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) produz um breve vídeo onde o clássico nacional é celebrado pela atualidade dos temas de greve e pelo protagonismo de sua família de operários, Romana, Otávio, Maria e Tião, expondo como política e repressão permeiam o espaço privado.
Os contornos da trama existem desde 1958, na peça original escrita por Gianfrancesco Guarnieri aos 21 anos, montada pela primeira vez pelo Teatro de Arena, com o projeto de transformar o teatro em um espaço aberto para histórias marginalizadas baseadas nas próprias vidas e experiências dos dramaturgos e atores. Nessa primeira montagem Guarnieri interpreta Tião, operário, que descobre que sua namorada Maria está grávida. Quando outros trabalhadores da fábrica começam a agitar uma greve por melhores salários, Tião entra em confronto direto com seu pai Otávio, um líder influente entre seus companheiros de fábrica, enquanto a matriarca da família, Romana, batalha para manter a família unida e o marido fora da cadeia.
A decisão de Tião de contrariar o pai e, mais tarde, Maria, recusando participar da greve está amarrada por temas da juventude. Sua motivação é a preservação do futuro que ele deseja para si próprio e para sua nova família; no entanto, sua rejeição da identidade de operário e de sua associação com o morro onde mora é a causa seu rompimento com os outros personagens. A peça confere uma ênfase ainda maior ao deslocamento que sente o protagonista em relação à vida ao seu redor: o seu objetivo final é a ascensão social. No final das contas, é essa a falha trágica que separa Tião de Maria e de seus pais.
O caráter clássico de Black-tie reside no balanço entre o campo familiar, interpessoal, e o da mensagem política sobre o contexto histórico em que foi produzido. O amadurecimento do filho, Tião, e de sua namorada grávida, Maria; a dificuldade de Otávio, seu pai, de conciliar seu papel político dentro da fábrica e suas responsabilidades com a família; o trabalho emocional da mãe, Romana, a presença inabalável entre a incerteza da greve, a teimosia de Tião e a volatilidade de Otávio. O motivo pelo qual esse mesmo texto, com todas as mudanças e resignificações que carrega desde 1958, continuou se mostrando pertinente e complexo décadas depois também está ligado ao valor desse melodrama familiar no centro da trama.
O filme
A firme mensagem política do filme de 1981 é reiterada pelas referências diretas aos levantes de trabalhadores no ABC paulista entre 1979 e 1980 e a importantes figuras do sindicalismo como Santo Dias (através do personagem Bráulio, interpretado por Milton Gonçalves); participa do elenco Bete Mendes, integrante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) na década de 1960, fundadora do Partido dos Trabalhadores e que, no filme, interpreta Maria. Dessa forma, Leon Hirszman insere o filme nos debates políticos da época acerca do futuro das organizações de trabalhadores e do papel e função estratégica da greve.
Não surpreende então que, no vídeo comemorativo produzido pela CUT, cenas de Otávio conversando com Bráulio sobre a iminente greve sejam intercaladas com imagens de arquivo do histórico discurso de Lula aos grevistas em São Bernardo do Campo, montando um quadro político do ano de lançamento do filme. Este quadro, no entanto, é mais complexo do que aparenta, e a evolução do legado de Eles não usam black-tie pode ser entendida através do amadurecimento dos movimentos operários no Brasil e nas diferentes situações políticas e de repressão de cada época em que ressurge.
Existe uma diferença essencial entre o desfecho da peça e do filme: enquanto, em 1958, a greve organizada pelos companheiros de Tião e Otávio é bem sucedida, no filme ocorre o oposto. Os manifestantes são brutalmente reprimidos resultando na prisão de Otávio (algo que já ocorria na peça), na agressão de Maria, grávida, e na morte de Bráulio. Na adaptação de Hirszman a violência do Estado é muito mais presente, reflexo dos 17 anos de ditadura militar. O efeito que essa escolha tem, no entanto, é o de enfraquecer o que era o centro da peça: a forma como o individualismo e o deslocamento de Tião tragicamente o separam de Maria e de sua família. Que a greve não seja retratada de forma tão direta e que não traga consequências tão drásticas às vidas dos personagens serve para realçar as consequências das falhas de Tião.
Ao priorizar os sentidos e os resultados da greve, Hirszman e Guarnieri fundamentalmente alteram o equilíbrio entre o arco de amadurecimento de Tião com a sua traição de classe, e adaptam o enredo a partir das suas próprias experiências políticas dos anos 1970. Ambos foram filiados ao Partido Comunista Brasileiro (apesar de Guarnieri tê-lo deixado após o golpe) desde a juventude. Em 1981 eles ocupavam o ponto de vista então dos militantes experientes, vindos de uma tradição do PCB da década de 40 e 50. Com as grandes greves no final dos anos 1970, sentia-se uma nova demanda dentro da classe trabalhadora, que não se via encaixada nas estratégias e valores das antigas lideranças.
Otávio é a voz da razão, ele é sensato por mais que tome ações arriscadas, retratadas como sacrifícios pelo bem de seus companheiros. Porém, no filme, ele existe em oposição aos organizadores da greve, que são retratados como agitadores, impulsivos e despreparados. O personagem de Sartini, criado para o filme, representaria o trabalhador com menos experiência de sindicato e que veria a greve como uma forma simples e objetiva de conquistar o aumento de salário. Suas motivações são individuais, desprovidas da mesma consciência de classe expressa por outros personagens como Bráulio, Otávio e Maria.
Contrapor os discursos pedagógicos de Otávio, interpretado com tanto carinho e delicadeza por Guarnieri então em seus 47 anos, aos grevistas desorganizados significa que o militante experiente que ele representa é o protagonista trágico dessa história, que se separa do filho e perde o melhor amigo por conta da imprudência dos companheiros que sempre defendeu. A greve surge, desde o início, como um elemento fundamentalmente desorganizador.
Memória
Por este motivo é interessante como o legado do filme se encaixou na memória dos levantes dos metalúrgicos, pois ele foi muito criticado na época pelas figuras que protagonizaram este momento histórico, e que foram personagens importantes no projeto anterior de Leon Hirszman, o documentário ABC da greve (lançado apenas após sua morte, em 1990). Existe uma incongruência interna na escolha de não representar as reuniões dos sindicalistas no filme, valorizando a discussão política e experiência de Otávio sem retratar os espaços coletivos onde se formam os movimentos que defendem na linha de frente estes mesmos valores e construir esta mesma experiência.
Em debate na ocasião do lançamento de Eles não usam black-tie, o jornal Movimento reuniu algumas dessas figuras para discutir o filme, e o próprio Lula faz um comentário que resume essa confusa relação: “Ficar na afirmação de que tem que se organizar antes de fazer a greve é esquecer que a própria greve pode ser um momento importante para a organização dos trabalhadores […]. Em momento algum [o filme] coloca o processo de amadurecimento político da massa operária durante a greve”.
Às vésperas da primeira vitória presidencial do Partido dos Trabalhadores, a retomada dos temas do Black-tie pela CUT é marcada pela tentativa de moderar as pontas mais radicalizadas da história deste período de luta. Fundamentado na experiência do sindicato, Otávio é um pai de família que honra seu compromisso com seus companheiros, mas não se confunde com os “Sartinis” da fábrica, que abusam do direito à greve para ter mais um dia de folga. Do ponto de vista da narrativa a violência do clímax é consequência direta dessa desorganização e irresponsabilidade dos trabalhadores que defendem a greve indiferentemente da aprovação ou não pelo sindicato centralizado.
É curiosa a forma como o vídeo recorta as tentativas frustradas de Otávio e Bráulio de conduzir seus companheiros ao “bom-senso” com imagens de estádios e praças lotadas de operários ouvindo os discursos de Lula. A derrota da greve no filme, quando utilizada no contexto histórico de 2001, tem então o efeito de ressaltar o porquê dos levantes de 1979 terem sido vitoriosos, elevando a competência de seus líderes para um público que talvez ainda os visse como indisciplinados e radicais.
*Gilda Walther de Almeida Prado* é graduanda em história na USP.
20/11/24
Memórias do Cárcere, 1984, Nelson Pereira dos Santos
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'Memórias do Cárcere' impactou profundamente Florestan Fernandes
Sociólogo analisou, em coluna de 1984, 'sentido intelectual, moral e político' da obra de Graciliano Ramos
Um dos mais importantes autores da literatura brasileira, Graciliano Ramos (1892-1953) foi preso pela ditadura do Estado Novo quando ela ainda começava a se desenhar, no início de 1936. Sem acusação formal ou processo, o escritor alagoano foi detido em Maceió por suposto envolvimento com a chamada Intentona Comunista.
Passando por diversos presídios, incluindo a Colônia Correcional, em Ilha Grande (RJ), ele ficou preso até janeiro de 1937. Foi nesse período que começou a escrever o clássico "Memórias do Cárcere".
Publicado postumamente, em 1953, o livro narra o cotidiano de Graciliano como preso político, em condições insalubres, e relata episódios simbólicos da repressão na ditadura de Getúlio Vargas, como a deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista.
Em 1984, foi adaptado para o cinema pelo diretor e roteirista Nelson Pereira dos Santos. E, neste mesmo ano, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século 20, escreveu a respeito do livro e sua adaptação cinematográfica na Folha.
Autor de obras fundamentais da sociologia brasileira, como "A Etnologia e a Sociologia No Brasil" (1958) e "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" (1968), Florestan colaborou com a Folha por mais de quarenta anos, publicando textos esparsos a partir da década de 1940. Em 1989, passou a ter uma coluna fixa no jornal, que manteve até o ano de sua morte.
Quando escreve a respeito de "Memórias do Cárcere", texto que integra a série "Colunas Eternas", parte das celebrações dos 100 anos da Folha, o sociólogo vive o final da ditadura militar que se iniciou em 1964. Ao enxergar no filme o mesmo "sentido intelectual, moral e político" do livro, revela a importância de ambos para a compreensão da "substância colonial" das ditaduras, que lhes dá "a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam".
Memórias do Cárcere
20.ago.1984
Há quantos anos li "Memórias do Cárcere" [de Graciliano Ramos]? Não me lembro. Não seria preciso ter vivido sob o inferno do Estado Novo para sofrer o impacto da grandeza daquele livro, que vincula a criação artística exemplar à ira moral e política mais consequente.
Os que falam de "literatura crítica" e de "arte engajada" quase sempre permanecem na periferia dos símbolos e na superfície da luta política. Graciliano Ramos travou o combate ao nível mais profundo da defesa da dignidade do eu e da condenação irretratável do despotismo institucionalizado.
Temperamento e circunstâncias acenderam a chama do "intelectual revoltado", gerando-se assim a única obra de denúncia integral e de desmascaramento completo existente em nossa literatura.
Não voltei a ler o livro. Nem agora, que senti um ímpeto irrefreável de incentivar os leitores a não perderem a sua transposição cinematográfica. O vigor do livro, na minha memória, prende-se à revolta íntima, ao afã de denunciar e de desmascarar além e acima dos limites do inconformismo ideológico e político, de buscar uma objetividade tão intransigente e penetrante que nos lembra a "verdadeira ciência", no sentido de Marx.
Ao sobrepujar seu rancor e as humilhações sofridas, o intelectual descobre o significado da prisão e da violência que imperam em toda a sociedade brasileira, de modo a identificar o microcosmo dentro do qual fora lançado como o limite mais brutalizado e esquecido do todo, mas, ao mesmo tempo, o mais expressivo e relevador. De um golpe, o Estado Novo e as várias franjas psicológicas, policiais, militares ou políticas da opressão mostravam-se no que eram, em sua realidade histórica específica e nas projeções que a soldavam ao passado escravista e colonial mais ou menos remoto e recente, ou seja, em sua realidade histórica "estrutural".
Em um país no qual a descolonização foi confundida com a troca de guarda na casa reinante e com a monopolização do poder pelos estratos dominantes dos estamentos senhoriais, "Memórias do Cárcere" balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típica dos movimentos de rebelião, que iriam engravidar a história das "noções proletárias".
Constituía uma dificílima tarefa criadora transpor para a linguagem do cinema um livro como esse, que comoveu a nação, mas permaneceu ignorado pelos estudiosos do Brasil na sua perspectiva original mais elucidativa e provocadora, em ruptura com a "história oficial" e, especificamente, com as várias modalidades então existentes de "sociologia de gabinete" e de "ciência social acadêmica". Pela segunda vez um escritor escrevia uma obra-prima dentro do seu métier (se se tomam "Os Sertões" [de Euclides da Cunha] como paralelo), só que, agora, o produto transcendia à ordem existente como um todo e a punha em xeque. O cinema poderia responder dialeticamente a essa realização?
Só assisti uma vez ao filme de Nelson Pereira dos Santos e seus colaboradores (entre os quais a competência dos técnicos nada fica a dever à excelência dos atores). A impressão que me ficou, corroborada por uma longa reflexão crítica, levou-me à certeza de uma correspondência dialética efetiva.
O filme opera com os três níveis do livro: o psicológico e da memória propriamente dita, que focaliza as ocorrências do dia a dia; o dos acontecimentos, no qual a história também se objetiva através da memória e da experiência direta com a realidade do Estado brutal, chocante e repulsivo, retrato da sociedade de que fazia parte e daqueles que a comandavam, para os quais ele constituía uma "necessidade política"; o da "repetição da história", parcialmente visível através de ocorrência do cotidiano e dos acontecimentos, mas em sua maior parte matéria da análise crítica desmascaradora, pela qual a brutalização e bestialização do homem refletiam como a ditadura se incluía em uma cadeia de continuidades, que faziam do presente um espelho fiel do passado oligárquico, do passado escravista neocolonial e do passado escravista colonial, pretensamente desaparecidos. O que é preciso assinalar: o filme faz tudo isso pelas vias próprias do cinema, sem parasitar no talento de Graciliano Ramos nem mimetizar o portentoso quadro de referências obrigatório.
"Memórias do Cárcere", na versão cinematográfica, explora mais desenvoltamente a linguagem artística e as possibilidades que estão ao alcance do cinema de fragmentar a realidade para, em seguida, recompor o concreto nos diversos níveis em que ele aparece na percepção, na cabeça e na história dos homens.
Quem ama o livro por ele mesmo não vai recuperá-lo no filme. Quem ama as várias verdades que Graciliano Ramos enfrentou com hombridade e coragem irá ver no filme uma engenhosa e íntegra transposição do livro. Seria pouco dizer que ambos se completam.
Nelson Pereira dos Santos explica a técnica cinematográfica como Graciliano Ramos a técnica literária, como recurso de descoberta da verdade, arma de denúncia intelectual e instrumento de luta política.
Como a "sua" situação histórica é datada de hoje, o alvo imediato é, naturalmente, a ditadura atual e as condições que lhe conferem uma substância colonial inocultável. Esse é o aspecto por assim dizer genial do filme.
A atualidade das "Memórias do Cárcere" não poderia estar em algo exterior, como o "acaso" de uma ditadura ainda mais racional no uso da corrupção, da opressão e da violência institucionalizadas. Portanto, terminar o filme com as sequências que foram escolhidas para esse fim representa uma solução magistral, que confere ao filme o mesmo sentido intelectual, moral e político do livro, a mesma força de uma indignação avassaladora.
Em suma, ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem as continuidades do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da América Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e que lhes dá a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam...
22/11/24
Vidas Secas, 1963, Nelson Pereira dos Santos
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Crítica | Vidas Secas (1963), por Leonardo Campos 23 de janeiro de 2018
Vidas Secas é um dos filmes que melhor representa as propostas estéticas e políticas do Cinema Novo no Brasil. Nelson Pereira dos Santos, responsável por traduzir Jorge Amado e Machado de Assis para a linguagem cinematográfica apresentou ao mundo uma leitura do romance homônimo de Graciliano Ramos, talvez a melhor produção literária do Romance de 30. Crítico, contundente e com os aparatos agressivos da estética cinemanovista, a trajetória de uma família em constante fuga pelo nordeste brasileiro é bastante atual, algo que infelizmente afirmamos com sensação cada vez menos utópica, principalmente diante do Brasil contemporâneo, mergulhado em suas contradições “de sempre”.
A história não é novidade para qualquer pessoa que tenha ao menos completado o Ensino Médio: Vidas Secas é a saga da família pobre de uma região afetada pela seca, em luta constante para superar a aridez e a hostilidade local. Além destes percalços, os sobreviventes precisam lutar contra algumas instâncias de poder da sociedade, dentre elas, a Igreja e o Estado. Nesta odisseia diária em busca de um trabalho que forneça moradia e comida, a trupe formada por Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), os dois filhos (menino mais velho e menino mais novo), o papagaio e a cachorra Baleia (personagem de grande impacto e importância para a história) revelam as camadas de desigualdade de uma sociedade desequilibrada.
Diante das suas necessidades, Fabiano implora ao fazendeiro Miguel (Jofre Soares), uma oportunidade. Inicialmente o possível provedor de comida e habitação o repele, mas depois cede espaço, sem deixar, obviamente, de explorar o trabalhador desesperado, numa relação “quase” feudal, salvas as suas devidas proporções. É 1941 e as oportunidades são escassas: Fabiano deseja ter gado para sobreviver, Sinhá Vitória sonha com uma cama confortável, mas com a presença nefasta da seca parece se reaproximar quase um ano depois de muita batalha. Tal como no romance ponto de partida, o ciclo se estabelece e a roda continua a girar. A provável promessa de um lugar melhor para viver é trocada pela necessidade de escapar do clima devastador que traz consigo muita dor e tristeza.
Juntamente com Herbert Richers e Luis Carlos Barreto, o cineasta assumiu a produção do filme, além do desafio que era dar uma roupagem cinematográfica ao romance em questão, ao dirigir e roteirizar. A estrutura crítica se manteve. Como homem das imagens, criador que dispõe de outros códigos, tais como a linguagem verbal oral, os créditos, os sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros) e as imagens, Nelson Pereira dos Santos estava ciente do processo de tradução e da impossibilidade de fidelidade, uma maldição que ainda hoje acomete alguns que acreditam na fidelidade da obra cinematográfica em relação ao material literário que serve como ponto de partida. Diante do romance desmontável de Graciliano Ramos, algumas mudanças foram realizadas para atender às necessidades do roteiro: alguns fatos que ocorrem nos capítulos 03 (Cadeia) e 08 (Vila) estão justapostos no filme. Um flashback relativamente importante do capítulo 10 (Contas) ocorre momentos antes. Além disso, o cineasta acrescentou alguns elementos próprios, principalmente as adequações políticas, adaptadas ao seu contexto.
Por meio de uma leitura política, Nelson Pereira dos Santos abrange debates sobre reforma agrária, além da estrutura social brasileira. Em entrevistas, o cineasta alegou que “Graciliano Ramos é um dos romancistas que melhor expressam uma visão consistente da região Nordeste”, complementando que “o que o livro diz sobre o Nordeste em 1938 é ainda válido nos dias atuais”, isto é, em 1963, mas nada muito diferente de 2018, pelo menos no que tange ao desequilíbrio entre as estruturas que erguem a sociedade brasileira, cheia de altos e baixos, poucos ricos e muitos pobres abaixo da linha da miséria. Para o realizador, era necessário discutir estes assuntos, pois na época, muitos setores da sociedade estavam com seus debates afiados.
As suas peculiaridades técnicas não dialogam com o cinema agradável, isto é, com as narrativas esteticamente padronizadas. Não que o cinema de apuro estético formal seja ruim, ao contrário, pode ser extremamente prazeroso e crítico, sem perdas para ambos os caminhos, mas o que Nelson Pereira dos Santos faz em Vidas Secas, juntamente com a sua equipe, com destaque especial para a cinematografia de Luis Carlos Barreto, é incomodar o espectador com a sua câmera que expõe frames que cortam, queimam e traumatizam. Com planos longos, lentos e o calculado uso de diálogos para evitar verborragia e dispersão, o filme toca em seus pontos críticos sem necessitar de “berros”. Há uma sequência que merece destaque, entre tantas, todas formidáveis: na Igreja, os meninos estão espremidos, juntamente com Baleia, durante o ritual católico, o que representa com simplicidade, mas muita força, o caráter pouco convidativo e repressor do ambiente em questão.
Diante das ressonâncias da estética neorrealista, os 103 minutos de filme, realizado entre Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, no sertão de Alagoas, deflagram a miséria e o ocaso com as classes menos abastadas através de travellings que revelam bastante do espaço cênico hostil, do constante uso do plano subjetivo para indicar o olhar humanizado da cachorra Baleia, bem como o trabalho sonoro, um dos principais responsáveis pelos momentos de inquietação do filme, haja vista a sua capacidade de se estabelecer como uma espécie de encapsulação de todo o território nordestino, um ambiente que através do violino arranhado e do carro de boi, ganha representações bastante metafóricas na evocação do atraso da região.
Eleito pela ABRACCINE como um dos 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos, “honraria” que Nelson Pereira dos Santos divide com outros filmes seus inclusos nesta mesma lista (Rio, Zona Norte e Rio 40 Graus), Vidas Secas é uma produção de 1963 que ainda não envelheceu, pois a necessidade de debate acerca da reforma agrária, da luta contra a miséria e a desigualdade social está no topo da lista de temas que precisam de solução imediata.
21/11/24
A Falecida, 1965, Leon Hirszman
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Ela vai buscar as roupas estendidas no pátio de casa. Uma chuva torrencial começa. A mulher corre para levar as peças para dentro. De repente, ela para na porta. Resolve sair e curtir o momento, na falta de definição melhor. A água que cai do céu serve como um alento às suas amarguras de dona de casa que se reprime sexualmente. Não apenas isso. É um processo de autopunição por uma infelicidade que não se sabe se é apenas do casamento desestruturado, de um caos social ou da falta de paixão por tudo. Mas a chuva, essa danada, lava a alma desta personagem tão rodriguiana quanto carismática. A morte, o pensamento que corrói sua mente como obsessão total, dá uma pausa. É um belo plano de Leon Hirszman e talvez um dos mais emblemáticos do Cinema Novo no comovente A Falecida, adaptação do texto de Nelson Rodrigues. No centro de tudo está Fernanda Montenegro, em seu primeiro papel para o cinema. (...) Papodecinema
A Falecida peça
'A Falecida' é obra pessoal de Hirszman
Inácio Araujo, 22 de setembro de 1997, fsp
Pode-se dividir "A Falecida" em três atos.
O primeiro, que nos introduz aos personagens e à trama, retoma uma postura característica da época. O povo é visto como resignado, místico (na pessoa de Zulmira/Fernanda Montenegro), ou alienado (seu marido - Ivan Cândido - é um desempregado que só pensa em futebol).
O segundo ato tende ao intimismo. É quando se desenvolve a obsessão de Zulmira pela morte e pela idéia de compensar as misérias e humilhações da vida com um enterro suntuoso.
Se já no início o trabalho de câmera e a decupagem se caracterizam pela elegância (temperada por algumas passagens de sequência violentas), desde que a trama se estabelece Leon Hirszman enfatiza esse viés. Temos então um Nelson Rodrigues "desobsessivo", em que o trágico é abandonado pelo dramático. Um Nelson Rodrigues em tom baixo, como nunca antes houve.
O tratamento sofisticado da imagem chega, não raro, nesse momento, a discrepar do ambiente em que a história se desenvolve. A discrepância não incomoda, diga-se, embora as imagens por vezes façam lembrar o cinema europeu dos anos 60.
O desfecho é uma espécie de reconciliação com o universo do dramaturgo: a perversão, o cafejestismo, os movimentos de alma (e corpo) imprevisíveis, irracionais, revelam-se ao espectador.
"A Falecida", na visão de Hirszman, tem um quê de filme sobre as mágoas e ódios do matrimônio (um pouco como os "Credores", de Strindberg), um quê de drama social, em que o ambiente suburbano joga um papel importante (são personagens que se movem sem saber por que, um pouco à moda dos "Pequenos Burgueses", de Gorki).
Não que os personagens de Nelson Rodrigues não tenham nada disso. Mas eles se movem num turbilhão, em que a ordem das coisas é dada, e onde a profunda crise entre o homem e o mundo não tem origem social: é como se a totalidade cósmica tivesse sido rompida e o homem fosse abandonado por Deus, daí se originando a tragédia.
Já Hirszman raciocina como marxista: a ruptura é essencialmente de natureza material, social. Errar não é próprio do homem ou da obscuridade das coisas, mas de uma ordem social específica.
Isso nos conduz a um filme "de" Leon Hirszman, adaptado da peça de Nelson Rodrigues, isto é, a um trabalho eminentemente autoral, onde, não por acaso, desde as primeiras e deslumbrantes cenas o espectador é projetado nesse mundo singelamente mesquinho do subúrbio carioca.
Aliás, um belo filme, com presença memorável de Fernanda Montenegro, embora prejudicado pelo som. Vale a pena enfrentar esse problema.
22/11/24
Os Fuzis, 1964, Ruy Guerra
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Ruy Guerra sobre Os Fuzis
23/11/24
São Paulo, Sociedade Anônima, 1965, Luis Sergio Person
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Entrevista sobre São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sérgio Person
Marina Person debate o clássico "São Paulo S.A." (1965), de Luis Sergio Person
O Melhor Filme Já Feito Sobre SÃO PAULO
23/11/24
Viva o Cinema! - Uma História da Mostra de SP, Minissérie de TV, 2024, Marina Person
Créditos finais: Até o fechamento dessa série, a mostra tinha realizado 47 edições. Não tendo jamais de acontecer desde 1977, ano de sua fundação. Ao longo desses anos exibiu mais de 10 mil filmes de mais de 130 países para um público de 1 milhão de pessoas. Tendo gerado direta ou indiretamente mais de 15 mil postos de trabalho. Quanto sonhos gerou? Jamais saberemos. Viva o cinema e vida longa à mostra.
24/11/24
O Bandido da Luz Vermelha, 1968, Rogério Sganzerla
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Segundo o diretor, o filme “é um far-west sobre o terceiro mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. (...) um filme-soma; um far-west, mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica”. Rogério Sganzerla, no seu primeiro longa-metragem, traça um panorama geral e atemporal do Brasil através da trajetória de um foragido da polícia em crise de identidade. Welles, Godard, policial noir, chanchada, Jimi Hendrix, história em quadrinhos, terrorismo, miséria, corrupção política e desespero compõem um painel apocalíptico do país. Jangada
25/11/24
O pagador de promessas, 1962, Anselmo Duarte
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Crítica | O Pagador de Promessas (1962), por Luiz Santiago 19 de setembro de 2017
Adaptação para o cinema de uma peça de Dias Gomes escrita em 1960 (e encenada com tremendo sucesso, saindo em turnê para todo o país), O Pagador de Promessas tornou-se o maior filme de Anselmo Duarte e um dos maiores representantes da nossa cinematografia, sendo também o primeiro longa brasileiro a receber uma indicação ao Oscar e a levar para casa a Palma de Ouro. Mas o valor do filme vai além das grandes premiações. Sua temática de forte crítica ao conservadorismo dentro da igreja católica (um conservadorismo ligado mesmo à concepção de fé, de adoração, congregação; algo que não se restringe apenas ao catolicismo, mas a quase todos os braços do Cristianismo) e deixas para a discussão de fé, religião e religiosidade foram retratados com tamanha força que tornam a obra uma peça única e ainda muito atual.
Zé (interpretado com imensa ternura, demonstração de devoção e excelentes momentos de ira por Leonardo Villar) é um pequeno fazendeiro do interior da Bahia que tem um melhor amigo chamado Nicolau. Quando o amigo sofre um acidente e parece que não irá se recuperar, Zé vai até o “lugar sagrado” mais próximo de sua casa, um terreiro de candomblé, onde faz uma promessa para Santa Bárbara (ou Iansã) de que levaria uma cruz até a igreja da santa, em seu dia de festa litúrgica, 4 de dezembro. Ocorre que ao cumprir a promessa, chegando à escadaria da igreja e contando ao padre Olavo onde a promessa foi feita — e que Nicolau é um burro –, as coisas começam a mudar de figura. Acusado de “ter parte com o diabo” e de “mexer com macumba, feitiçaria” Zé é impedido de entrar na igreja com a cruz. Um novo martírio e jogo de interesses se inicia.
Dionísio Azevedo faz uma grande interpretação como padre Olavo, assumindo a postura de muitos religiosos que, cegos pela literalidade ou por conjuntos doutrinários, acreditam fazer “a coisa certa” ao condenar ou impedir que indivíduos se cheguem a Deus. Mesmo que esteja destruindo a vida do outro tais religiosos afirmarão que estão “amparados pela Palavra” e que estão fazendo aquilo para “impedir o outro de pecar” ou “fazendo o bem pela sua alma“, como se a salvação não fosse algo individual e como se um dos princípios basilares do novo pacto de Deus com a humanidade não fosse o livre-arbítrio. Ao explorar o sincretismo religioso no filme, Duarte e Gomes cutucam organização do clero, a recusa de enxergar a fé como um encontro particular com o divino e, pior de tudo, o ato de atribuir ao outro ações e palavras que este não fez ou disse, mais um desvio moral do que uma caraterística religiosa mesmo.
Exceto pela montagem do meio para o final do filme, que deixa sobrar planos de contexto com o pessoal da capoeira, as mulheres do candomblé e a chegada do povo à escadaria da igreja, o ritmo do filme é bem dosado, começando com a caminhada de Zé e sua esposa (Glória Menezes, que só começa a entregar uma boa performance após a personagem ser atormentada pela culpa, depois da noite com Bonitão, interpretado por Geraldo Del Rey) e segue com diversos atos do pagador de promessas diante da igreja e as pessoas que se aproveitam da situação para lucrar (o comerciante), para tentar vender arte (o poeta), para fazer protesto social ou campanha política. Em alguns aspectos o roteiro até dá mostras de maior teatralidade na conclusão de um bloco para a chegada de outro, mas o diretor consegue um bom resultado geral com isso, embora essas passagens não tenham um grande peso quando olhamos para o filme como um todo.
Parte de um momento de transformação do nosso cinema, O Pagador de Promessas mostra a cara do Brasil dentro de uma esfera que deveria unir as pessoas pelo bem. Em um país de formação étnica com três basilares caminhos de religião (o animismo, totemismo e xamanismo dos indígenas; as religiões de matriz africanas dos negros trazidos para cá como escravos; e o cristianismo português), a fusão de datas, crenças e valores de fé criam uma teia de valores difíceis de se separar, em especial para quem, como o protagonista, tem um olhar unicamente ligado à fé e não à política das igrejas ou ao laço pétreo e “sempre certo” das doutrinas.
Mesmo sendo uma obra de 1962, há nuances de comportamento social, do tratamento dado às mulheres e de embates religiosos que persistem até os nossos dias, inclusive no aspecto trágico, o que faz de O Pagador de Promessas um clássico doloroso, de cantigas sacras, procissões, imprensa sensacionalista, músicas e batuques de terreiros, berimbau e lamentos pessoais. Em muitos aspectos, o Brasil continua o mesmo. E a fé da maioria das pessoas ainda não chegou ao ponto de fazer com que se unam.
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16/11/24
Joe, o Pistoleiro Implacável, Navajo Joe, 1966, Sergio Corbucci
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ENNIO MORRICONE -"Navajo Joe" (1966)
Ennio Morricone (1928-2020) - Créditos: 536
16/11/24
Cry Macho: O Caminho para Redenção, Cry Macho, 2021, Clint Eastwood
'Cry Macho', de Clint Eastwood, é acima da média, mas sem brilho
Filme recusa narrativa de perseguições alucinantes e grandes fugas, mas poderia ir um pouco além
Sandro Macedo, fsp, 15/09/2021
Lançado em 1975 como livro por N. Richard Nash, “Cry Macho” nasceu como roteiro. Mas não encontrou quem o levasse ao cinema. Só depois das boas críticas foi que Hollywood voltou a enxergar a obra. Em 1988, o jovem Clint Eastwood, então com 58 anos, teve contato pela primeira vez com “Cry Macho” e mostrou interesse em dirigir o roteiro, não em estrelar a produção. Era muito jovem para o papel. Recentemente disse ao Los Angeles Times que queria Robert Mitchum, aos 71, como protagonista.
Mas Hollywood é ansiosa. E Eastwood estava envolvido com "Dirty Harry na Lista Negra", seu último filme como o policial Harry Callahan. “Cry Macho” passou para outras mãos, e quase teve Arnold Schwarzenegger no elenco há dez anos –um escândalo sexual seguido do divórcio com Maria Shriver enterraram a produção com o ex-governador da Califórnia.
Enquanto isso, Eastwood se estabeleceu como um dos maiores diretores de todos os tempos do cinema americano —não é exagero—, com títulos como a obra-prima "Os Imperdoáveis", de 1992, "Sobre Meninos e Lobos", de 2003, e "Menina de Ouro", de 2004. Mas tudo tem seu tempo, e Eastwood, como cantariam os Rolling Stones, tem o tempo ao seu lado, seja na sua interminável carreira ou na sua narrativa. “Cry Macho” e Eastwood se reencontraram. O filme chega às telas agora, com o desnecessário subtítulo brasileiro “O Caminho para a Redenção”, com o ícone do cinema como diretor e protagonista –talvez um pouco mais velho do que gostaria, o que não chega a ser um problema.
Mais uma vez o ator volta a um papel caro a ele, o do caubói solitário. A trama começa em 1979, com Mike Milo, papel de Eastwood, chegando atrasado ao trabalho em uma fazenda, onde cuida dos cavalos. Para o chefe Howard — o ator e cantor country Dwight Yoakam—, essa é a gota d’água, e Milo é demitido.
Ficamos sabendo logo nas primeira cenas que Milo tem um passado glorioso como campeão de rodeios, mas largou as arenas após uma grave queda. Para piorar, perdeu a mulher e o filho em um acidente de trânsito e se entregou para o álcool. Um ano depois, Howard procura Milo. Agora, quer um favor. Precisa que o velho amigo vá até o México para resgatar o filho, o adolescente rebelde Rafael, papel de Eduardo Minett, ou apenas Rafo, que, segundo o ex-chefe, é negligenciado pela mãe e sofre abusos. Para Howard, o estilo caubói de Milo será suficiente para convencer o menino a atravessar a fronteira. Milo topa por ter uma “dívida moral” com o ex-patrão.
E assim começa um road movie que em alguns momentos pode lembrar o recente "A Mula" –ambos foram filmados no estado americano do Novo México e repetem o roteirista Nick Schenk como colaborador. Milo obviamente encontra Rafo, que vive nas ruas fazendo pequenos delitos ou participando de rinhas de galo com seu inseparável Macho. O caubói convence o rapaz a seguir de volta para o Texas sem muitas dificuldades. Mas a mãe do jovem manda um de seus capangas atrás da dupla e diz que vai acionar a polícia. Dupla, não — trio. O galo Macho vai junto.
Quando a polícia se aproxima, eles se escondem em uma cidadezinha perto da fronteira, onde encontram abrigo na casa de Marta, papel de Natalia Traven, uma viúva que cuida dos netos e se engraça com Milo. Eastwood, aos 91 anos, tem seu charme.
Provavelmente quem acompanha Eastwood vai encontrar em Mike Milo um pouco do ex-pistoleiro de “Os Imperdoáveis”, do rabugento vizinho de "Gran Torino", de 2008, ou até de seu caubói do asfalto Bronco Billy, no filme homônimo de 1980.
Não aguarde perseguições de carros alucinantes ou uma grande fuga. Estamos no tempo narrativo de Eastwood, que prefere uma conversa de diálogos simples sob a luz do luar para construir a relação de Milo e Rafo, em uma jornada de redenção para ambos.
Rafo está longe de ser o “rebelde selvagem”, descrito pela mãe; parece até bem sensível, como o garoto que procura seu lugar no mundo em “A Mula”. Ao contrário do tom de toda a trama, o desfecho parece um tanto apressado, mas satisfatório. A impressão é que “Cry Macho” podia ir um pouco além.
De qualquer forma, impressiona o vigor do ator-diretor Eastwood, que tocou a produção em plena crise pandêmica e terminou as filmagens com um dia de antecedência, incluindo cenas em cima de um cavalo. Não dá para saber também se a pandemia chegou a atrapalhar a produção, já que Eastwood sempre foi econômico, seja no orçamento, seja nas cenas.
“Cry Macho” provavelmente não entrará para a galeria de seus filmes mais brilhantes, mas Eastwood entrega um drama acima da média para consumidores sedentos de algo mais adulto.
16/11/24
Os Imperdoáveis, Unforgiven, 1992, Clint Eastwood
18/11/24
Os 300 de Esparta, The 300 Spartans, 1962, Rudolph Maté
“Os 300 de Esparta”, de Rudolph Maté, Por Octavio Caruso - 19 de agosto de 2014
Os 300 de Esparta (The 300 Spartans – 1962)
O diretor Rudolph Maté foi o responsável pela fotografia de obras imortais do cinema, como “A Paixão de Joana d’Arc” (1928) e “Gilda” (1946), com “Os 300 de Esparta”, ele se aliou ao fotógrafo Geoffrey Unsworth (de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e “Superman – O Filme”) para contar um pouco da história da Grécia e de seu bravo herói Leônidas (Richard Egan), que desafiou o conceito de impossível, ao comandar 300 guerreiros contra um exército de aproximadamente 250.000 homens.
Este conto de coragem e sacrifício ajudou a delinear o curso da civilização ocidental, legando para gerações a necessária esperança, ínfima outrora, para seguir na batalha. O roteirista de quadrinhos Frank Miller, do clássico “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, viu esse filme quando era criança, ficando profundamente marcado pela trama, que considerou a causadora da mais importante mudança em sua vida criativa. Anos depois, ele escreveria “300”, que acabou sendo adaptado para o cinema em 2006, com direção de Zack Snyder.
O roteiro deste clássico trabalha temas como democracia vs. despotismo, com uma sutil analogia à Guerra Fria, sendo não somente um ótimo exemplar do subgênero “Espada e Sandálias”, como também uma excelente aula de História. Um raro caso nesta seara que se propõe a ser fiel aos fatos. O elenco inclui o excelente Ralph Richardson, como Temístocles, e David Farrar, como o arrogante Xerxes, dando suporte para que Egan consiga transmitir a força interna de seu personagem.
Interessante perceber que as batalhas conseguiam ser mais empolgantes, mesmo sem todas as facilidades tecnológicas modernas. Talvez porque, diferente do moderno “300”, o foco está nas motivações emocionais individuais dos personagens, não na estilização e nos efeitos em computação gráfica. Tempo generoso é dedicado às estratégias de batalha, falatório que seria cortado hoje em dia, elemento que engrandece o resultado.
Um conto sobre a importância de se lutar pela liberdade que deve ser passado de pai para filho, evidenciando que a determinação de poucos pode modificar a realidade de muitos.
25/11/24
Oro e piombo, 2019, Emiliano Ferrera
No iutubi aqui
Videocittà Presentazione Film Oro e Piombo 17 12 2019
Hi there, I’ve got this news. Actually it’s a great news!! A new spaghetti western is just been born. Do you know anything about that? The title is Oro e Piombo (Gold and lead) and was entirely shot in Italy. They dedicated this movie to Sergio Leone. 30 years after he died. That’s the link for watching the trailer ! Take a look Forum spaghuetti
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