segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Filmes parte 18

1.    A Morte Cansada (Der müde Tod), 1921, Fritz Lang
2.    A Casa Vermelha, The Red House, 1947, Delmer Daves
3.    Honra a um Homem Mau, Tribute to a Bad Man, 1956, Robert Wise
4.    O Crime não Compensa (Knock on Any Door), 1949, Nicholas Ray
5.    O Cavaleiro Verde (The Green Knight), Arthur Lubin, 2021
6.    Impact, Arthur Lubin, 1949
7.    O Cérebro que Não Queria Morrer (The Brain That Wouldn't Die), 1962, Joseph Green
8.    O Homem com a Morte nos Olhos (Welcome to Hard Times), 1967, Burt Kennedy
9.    Terra em transe, 1967, Glauber Rocha
10.    Winchester '73, 1950, Anthony Mann
11.    O Homem do Oeste, Man of the West, 1958, Anthony Mann
12.    The White Lotus, TV Series, 2021–2022, Mike White
13.    Messalina - Vênus Imperial, Messalina Venere imperatrice, 1960, Vittorio Cottafavi
14.    Iracema - Uma Transa Amazônica, 1975, Jorge Bodanzky - Orlando Senna
15.    Zero de Conduta, Zéro de conduite: Jeunes diables au collège,1933, Jean Vigo
16.    Guerrilheiros das Filipinas, American Guerrilla in the Philippines, 1950, Fritz Lang
17.     Sabem Morrer (Men in War), 1957Os que, Anthony Mann
18.    Região do Ódio (The Far Country), 1954, Anthony Mann
19.    Mortalmente Perigosa (Gun Crazy), 1950
20.    Um Método Perigoso (A Dangerous Method), 2011, David Cronenberg
21.    Trinity é o Meu Nome, Lo chiamavano Trinità..., 1970, Enzo Barboni
22.    A Gardênia Azul, The Blue Gardenia, 1953, Fritz Lang
23.    O Anjo e o Malvado (Angel and the Badman), 1947, James Edward Grant
24.    Nanook, o Esquimó (Nanook of the North), 1922, Robert J. Flaherty
25.    Morangos Silvestres (Smultronstället), 1957, Ingmar Bergman
26.    Resgate de Bandoleiros (The Tall T), 1957,  Budd Boetticher
27.    Roman Polanski: A Film Memoir, 2011, Laurent Bouzereau
28.    Na Teia do Destino, The Reckless Moment, 1949, Max Ophüls
 

22/08/21

A Morte Cansada (Der müde Tod), 1921, Fritz Lang

A morte cansada no iutubi

Writing Credits: Fritz Lang and Thea von Harbou 

Der Müde Tod (1921) de Fritz Lang por Helena Ferreira 

Der Müde Tod (A Morte Cansada, 1921) é um dos mais esquecidos filmes de Fritz Lang, mas é difícil perceber porquê. Com o primeiro argumento em que Lang colaborou com Thea von Harbou (embora ela não seja creditada), este é dos mais belos filmes do cinema mudo, que influenciou Bergman para o seu Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo, 1957). O filme assume-se como um exemplo do tema que nortearia toda a obra de Fritz Lang, quer na Alemanha, quer nos EUA: a luta de um indivíduo contra uma força superior e opressora, que aqui poderemos definir como destino. A Cinemateca Portuguesa vai exibi-lo duas vezes no seu ciclo “Fritz Lang – O Tempo do Cinema”.

Como o próprio título inglês (Destiny) nos indica, este filme é um caso em que essa luta se processa de forma bastante evidente no trajecto de uma jovem mulher tentando vencer a Morte para reaver o seu amado. O facto de nem a mulher, nem o amado, nem a povoação onde se desenrola a acção no tempo presente terem nomes – como sucederia, anos depois, por exemplo, no célebre Sunrise (Aurora, 1927) de F. W. Murnau – reforça, por um lado, o tom de “história de encantar” do filme e, por outro, a universalidade das figuras e do que a sua luta representa.

Fritz Lang havia já trabalhado sobre a oposição de um indivíduo a um sistema adverso. Fê-lo claramente em Die Spinnen (As Aranhas, 1919-1920), em que esse sistema era a própria organização que dá título ao filme, mas fê-lo também em Harakiri (1919), tido como uma espécie de Madame Butterfly que terminava tragicamente após tentar levar avante a sua relação com um estrangeiro. Este motivo, do amor contrariado, seria igualmente abordado por Lang, por exemplo, no primeiro episódio de Die Spinnen, no seu díptico indiano de 1959 Der Tiger von Eschnapur / Das Indische Grabmal (O Tigre de Eschnapur / O Túmulo Índio, 1959) – que tem cenas que remetem directamente para Der Müde Tod. De referir a presença da actriz Lil Dagover, que dá vida à protagonista tanto do filme em análise, como de Harakiri, como em Die Spinnen (onde é a vilã).

Também a questão da morte não era novidade para Lang, que já assinara em 1918 o argumento de Hilde Warren und der Tod, de Joe May. Além de antecedentes profissionais, é importante mencionar um episódio pessoal que, segundo um autor, terá marcado profundamente Fritz Lang na infância. Ele terá tido uma peculiar visão da morte quando estava deitado com febre: um homem de negro com um chapéu de abas largas. Precisamente a imagem que primeiro vemos da Morte no filme de 1921.

Quando pensamos em desafios entre um humano e a Morte, evocamos rapidamente as imagens do jogo de xadrez em Det Sjunde Inseglet de Bergman. Contudo, não deixamos de assistir a um antecedente no jogo entre a rapariga e a Morte em Der Müde Tod. Ela quer reaver o seu enamorado e aceita jogar com a Morte, que lhe dá três hipóteses para a poder vencer e, depois, ainda mais três. A opção por representar a morte no corpo de um homem ter-se-á prendido com o facto de o substantivo em alemão ser do género masculino e não feminino, como em português.

O primeiro contacto visual da rapariga com a Morte dá-se cedo no filme, ainda dentro da diligência onde viajam os dois amantes, que nesse espaço fechado de alguma intimidade nos são introduzidos. Quando esta pára para que a Morte entre, há um primeiro estremecimento no olhar da rapariga que veremos repetido depois, muito claramente, quando a Morte se senta junto do par na mesa da estalagem. Aí, a presença da morte é claramente recebida com medo, como prova o quebrar do cálice nupcial perante a visão do esqueleto e da ampulheta, prenúncio (e este é um filme pleno deles) do que está para vir. É devido ao quebrar do cálice, sinal claro de um destino funesto dos enamorados, que se processa a saída da rapariga da mesa, o que permite à morte sair com o seu amado. Quando ela regressa à sala, tudo o que vê é a cadeira onde ele estava, agora vazia. A sua ausência rima com o plano do lugar vazio de Elsie Beckmann em M (Matou!, 1931).

Perante a explicação de que ele saiu com “o estranho”, o pânico toma conta da rapariga. Essa ideia da Morte como um estranho, um forasteiro, já havia sido enfatizada no flashback contado pelos dignitários da povoação onde vemos a chegada da morte à povoação e a compra do terreno contíguo ao cemitério. O medo da jovem será do desconhecido, mas possivelmente de um desconhecido concreto, que já pressentira anteriormente e que confirma junto ao muro, quando vê passar a procissão de fantasmas e, entre ela, o seu amado. A partida em busca do amado é uma demanda por conhecimento: conhecimento do seu paradeiro e, depois, de uma maneira de o reaver. Esse caminho rumo ao conhecimento pode ser simbolizado pela presença de um mocho no cemitério, por onde a rapariga passa antes de chegar ao muro pelas dez horas. No entanto, a revelação só sucede aquando da leitura da passagem do Livro de Salomão, pois é aí que ela decide interagir directamente com a Morte. É pela leitura, e pelo acto subsequente da procura da Morte (pela ingestão do veneno), que ela chega, de facto, à àquela, numa dimensão extraterrestre. O facto de estarmos perante uma dimensão diferente é vivificada pela ideia de supressão do tempo, bem como pela sugestão de que os episódios correspondentes às três velas são sonhos, como comprova o facto de, quando o episódio chinês termina e a terceira vela se apaga, vermos a jovem de olhos fechados, como que a dormir, nos braços da Morte.

Os três episódios “históricos” (Bagdade, Veneza, China), que constituem boa parte do filme, representam as três possibilidades que a Morte dá à jovem para a tentar vencer. Se uma de três vidas [que lhe é dado (re)viver] for salva, o seu amado regressa a “este mundo”. As três pequenas histórias, que terminam no mesmo final (a separação dos amantes pela morte dele), podem ser vistas como uma nova aproximação ao universo do “serial”, que Fritz Lang experimentara com Die Spinnen. Contudo, pela narrativa de cada episódio, nunca nos esquecemos que estamos perante um todo maior. Cada um deles é apenas uma maneira diferente de contar a mesma história e que conduz, inevitavelmente, ao mesmo desenlace trágico. Comum a todos é a luta do amor contra uma tirania que o impossibilita e que é personificada no primeiro episódio pelo califa, no segundo por Giarolamo (que já foi identificado como doge) e, no terceiro, pelo imperador. Se em todos os episódios, o par de enamorados é interpretado pelos mesmos actores da história do presente (Lil Dagover e Walter Janssen), os seres que impedem a sua felicidade não são interpretados pelo actor que dá vida à morte, que assume sempre o papel de empregado de uma entidade superior. Este facto confirma a ideia de que a Morte não é o destino mas é mero instrumento seu. Serve algo/alguém superior, limitando-se a executar os seus desígnios.

É nos três episódios que a exuberância cénica do filme mais é explorada, em impressionantes décors, figurinos e caracterização. Segundo os créditos de uma edição em DVD até objectos foram trazidos de um museu. O gosto pelo exótico (bem patente no tratamento orientalista dos episódios asiáticos) e um interesse geral por outras culturas poderá ser explicado não só pelas “modas” de época mas pelo percurso pessoal do próprio Lang que viajou um pouco por todo o mundo, incluindo o Norte de África, a China e o Japão.

O filme não destoa também de um contexto de cinema mudo alemão. O episódio chinês, a que Lotte Eisnser chama uma “paródia ao Expressionismo”, é, de todos, aquele onde se poderá encontrar alguma clara reminiscência da estética expressionista. Mas embora os cenários do filme tenham sido da responsabilidade de dois dos intervenientes no filme definidor do “expressionismo” Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920), Walter Röhring e Hermann Warm, bem como daquele que seria responsável pelos décors de Faust (Fausto, 1926), Robert Herlth, não se poderá dizer que haja de facto décors expressionistas (ou caligaristas), privilegiando-se uma atmosfera mais subtil, mérito que deverá ser em parte atribuído ao director de fotografia Fritz Arno Wagner [que seria responsável pela fotografia de Nosferatu (1922)].

Embora os episódios terminem todos tragicamente, não há vacilação da rapariga no processo. A figura da rapariga constitui um exemplo paradigmático da luta do indivíduo contra uma força superior: o destino, Deus. Não é, portanto, com a morte que a rapariga se defronta, mas com o destino que determina a própria acção da Morte (que, por seu turno, determina a progressão das acções do filme). A relação da rapariga com a figura da Morte é muito mais complexa que uma linear oposição. De facto, ela opõe-se-lhe durante os episódios “históricos” mas nas tentativas da hora final, ela age como agente aliado da Morte, procurando outras vidas para lhe entregar que não têm qualquer relação com a do seu amado (como tinham, de certa maneira, as dos episódios, que funcionavam como seus duplos). Acima de tudo, ela destaca-se dos demais (designadamente dos demais habitantes da povoação), por ser a única que ousa tentar compreender os meandros do destino. E se “ninguém escapa ao seu destino”, o filme mostra-nos, no entanto, que há um espaço possível de o moldar pela acção humana, mesmo que com resultados inesperados.

Uma questão fulcral em Der Müde Tod é a humanização da figura da Morte. Essa humanização vai muito para além da mera personificação do conceito de morte na figura de um homem. Ela exprime-se na atribuição de características psicológicas à sua figura, como as ideias de cansaço e de solidão. Compreendemos isso logo com os belíssimos planos da Morte perante os dignitários durante o flashback da primeira parte do filme e percebemo-lo inequivocamente quando a Morte confessa à rapariga estar cansada do seu trabalho que semeia a tristeza entre a humanidade. Essa humanização da Morte é evidente ainda pelo facto de ceder à pressão da mulher quando esta fracassa as hipóteses dadas de início e pela forma como gestualmente essa cedência é expressa: a Morte ampara a jovem.

A intensidade da interpretação de Bernhard Goetzke, actor que dá vida à Morte, é tal, que se assume como praticamente insuperável na história do cinema. De facto, há na sua composição de uma Morte cansada e irremediavelmente solitária algo que nos chega a comover, ao passo que o mistério (um mistério também de cinema mudo) imprime-lhe uma aura impossível de conseguir em personificações “sonoras” da Morte. Ao longo do filme, percebemos claramente que a Morte não é um vilão óbvio, como será Mabuse, mas sim, de certa maneira, também uma vítima do destino.

Importa notar que no mesmo ano em que Lang fez Der Müde Tod, em dois outros países foram rodados filmes com enormes similaridades. Na Suécia, Victor Sjöstrom fez Körkarlen (A Carruagem Fantasma, 1921), e na Dinamarca, Carl Th. Dreyer filmava Blade af Satans Bog (Páginas do Livro de Satanás, 1921). Comum aos três filmes é o desenlace final, em que um sacrifício humano provoca uma quebra no sistema. Em Der Müde Tod, não conseguindo vencer a Morte com as regras do jogo que lhe foram propostas, a jovem oferece a sua vida e consegue assim reunir-se com o seu amado num “outro mundo”. Também ligado a Der Müde Tod pela sua estrutura narrativa, encontramos Das Wachsfigurenkabinett (O Gabinete das Figuras de Cera, 1924) de onde há também três episódios passados em culturas distintas e com uma ligação comum ao presente (evidenciada pela coincidência dos actores que interpretam o par romântico). Bem mais recentemente, descortinamos similaridades em The Fountain (O Último Capítulo, 2006) de Darren Aronofsky, onde um homem empenhado em salvar a esposa de uma morte inevitável tenta encontrar uma cura em três tempos: o presente, um passado semi-fantasista e o futuro.

A problemática do destino encontra-se profundamente enraizada nos filmes de Fritz Lang e teve sucessores mais ou menos directos. Podemos igualmente descortinar o destino como tema central – ou pelo menos um dos temas centrais – da obra de um autor bastante distinto de Lang, Woody Allen, que terá sido mais influenciado por Ingmar Bergman, cuja imagem da morte em Det Sjunde Inseglet foi claramente inspirada na Morte de Der Müde Tod. Esta obra terá igualmente marcado futuros realizadores, como Luis Buñuel ou Alfred Hitchcock. Buñuel afirmou que foi após ver Der Müde Tod que sentiu o desejo de fazer filmes e que esta obra clarificou a sua vida e a sua visão do mundo. Já Hitchcock cita este título na sua entrevista a Truffaut, quando este lhe pergunta se se lembrava de algum título que o impressionara particularmente.

Der Müde Tod, hoje largamente ignorado, merece ser redescoberto em toda a sua beleza e riqueza cinematográfica. A retrospectiva integral que a Cinemateca Portuguesa está a dedicar a Fritz Lang é, talvez, a melhor das oportunidades para o fazer, integrando-o na obra anterior de Lang e compreendendo o impacto nos seus trabalhos posteriores, bem como em paralelos com obras de outros autores.

23/08/2021

A Casa Vermelha, The Red House, 1947, Delmer Daves

A casa vermelha no iutubi

Sobre  Delmer Daves (1904–1977) 

Rory Calhoun e Julie London

A Casa Vermelha / The Red House por Sérgio Vaz

Em 1947, o diretor Delmer Daves reuniu o grande Edward G. Robinson, Judith Anderson, a que será sempre lembrada como a governanta de Manderley, em Rebecca (1940), e um grupo de atores bem jovens para fazer este A Casa Vermelha/The Red House. O próprio Delmer Daves escreveu o roteiro, baseado em um romance de George Agnew Chamberlain publicado em 1943. Toda a trama se passa numa área rural da América profunda, em região e Estado que jamais são mencionados – uma boa maneira de dizer que a história poderia acontecer em qualquer lugar.

De forma singular, interessante, a ação começa focalizando os adolescentes da região – os dois adultos protagonistas, os irmãos Peter e Ellen Morgan, interpretados por Edward G. Robionson e Judith Anderson, demoram um pouquinho a aparecer. (...)

25/08/2021

Honra a um Homem Mau, Tribute to a Bad Man, 1956, Robert Wise


Honra a um homem mau no iutubi

Irene Papas e James Cagney

Honra a um Homem Mau (Tribute to a Bad Man)  é um filme norte americano de velho oeste de 1956, dirigido por Robert Wise, estrelado por James Cagney, Don Dubbins, Stephen McNally e Irene Pappás, é baseado no romance curto "Hanging's for the Lucky", escrito por Jack Schaefer, o mesmo escritor de Os Brutos Também Amam. 

Steve Miller (Don Dubbins), um jovem quitandeiro da Pensilvânia, viaja pra longe de sua vida pacata rumo ao oeste selvagem, atrás de um lugar que lhe proporcione uma nova experiência de vida, nesse ínterim, ele acaba se deparando com um conflito entre um fazendeiro armado de um rifle e dois pistoleiros, o fazendeiro acaba baleado e os dois homens fogem, Steve tira a bala do desconhecido, este que fica grato ao rapaz e o convida a trabalhar em seu rancho, aquele era Jeremy Robock (James Cagney), um poderoso rancheiro dono de uma criação de cavalos que se estende por todo o vale.

No rancho, Steve conhece a bela e orgulhosa Jocasta Constantine (Irene Papas), uma ex-pianista de saloon, ligada pelo afeto e gratidão a Jeremy. Alguns peões, incluindo McNulty, o melhor de todos no rancho, este foi expulso porque assediou Jocasta, juntam-se aos ladrões de cavalos que atormentam o rancho de Rodock. Eles roubam várias éguas com seus filhotes, ferem profundamente os cascos delas para que não consigam ir longe e permaneçam ali para alimentar suas crias, assim, eles teriam sua própria criação rapidamente. Graças a Steve, Rodock descobre o roubo e pune seus ex-empregados severamente, forçando-os a ir a pé e descalços até o forte militar mais próximo, porém a sentença não é totalmente cumprida porque Rodock não aguenta os ver sofrendo tanto.

O temperamento amargo de Jeremy e a crueldade com que trata aqueles que se opõem a ele levam Steve e Jocasta a tomar uma arriscada decisão, fugir juntos para um lugar mais digno onde poderiam viver juntos, Steve veio demonstrando afeto a Jocasta por um bom tempo, o que causa intrigas com o patrão, quando eles se preparam para partir, Rodock acaba cedendo à vontade dos dois e os permite ir embora.

No último momento, porém, quando os dois estão na estrada rumo à nova vida, Jeremy vem humildemente até eles para devolver um par de brincos que ele havia dado a sua amada alguns dias atrás, ele demonstra ser um homem capaz de amar que retém seus sentimentos, Jocasta o aceita de volta e também aceita o pedido de casamento que ele faria. Steve, já amadurecido pelas experiências, retoma seu caminho para novos horizontes, ele nunca mais voltou pra lá. 

30/08/2021

O Crime não Compensa (Knock on Any Door), 1949, Nicholas Ray

O Crime não Compensa, Clenio, Um filme por dia

Nicholas Ray já teria seu nome marcado indelevelmente na história do cinema se tivesse se limitado a assinar “Juventude transviada”, ponto de nascimento do mito James Dean, em 1955. Seis anos antes, porém, ele já demonstrava sua predileção pelas angústias da mocidade angustiada. Em “O crime não compensa”, lançado em 1949 como estreia da companhia independente do ator Humphrey Bogart, a Santana, Ray deixava claro suas preocupações sociais em uma trama que não apenas mostrava Bogart em um papel atípico em sua carreira – um advogado a quilômetros de distância dos detetives cínicos e amorais que marcaram sua trajetória – como discutia um tema que não era exatamente um chamariz de bilheteria: a influência do meio na vida de uma juventude aparentemente sem alternativas que não a ilegalidade. Baseado em um romance de sucesso escrito por Willard Motley, o filme por pouco não fica marcado por ser também a estreia de outra lenda de Hollywood.

Impressionado com a atuação do jovem e então desconhecido Marlon Brando na montagem de “Uma rua chamada Pecado”, Humphrey Bogart, na condição de astro e produtor do filme, ofereceu a ele o segundo papel central do filme, o do delinquente juvenil Nick Romano, um rapaz cuja vida repleta de pequenas e grandes tragédias o leva ao banco de réus em um julgamento por homicídio. Já rebelde por natureza, Brando se interessou pelo mote do personagem – a famosa “Viva rápido, morra jovem e seja um cadáver atraente!” – mas acabou por declinar do convite e deixar o papel nas mãos de outro estreante, John Derek (Brando, como se sabe, chegou às telas de cinema justamente repetindo seu papel da peça de Tennessee Williams, em uma adaptação dirigida por Elia Kazan e lançada em 1951). Já tendo contratado Nicholas Ray para comandar seu filme – era um admirador da estreia do cineasta, “Amarga esperança” (48) – Bogart começou sua carreira como produtor com o pé direito. “O crime não compensa” é uma obra que não deixa nada a dever aos mais bem-sucedidos produtos semelhantes que fizeram a glória de um dos maiores estúdios de Hollywood.

John Derek e Allene Roberts

Assim como os filmes de gângster produzidos pela Warner – e dos quais o próprio Bogart era um dos ídolos máximos – “O crime não compensa” mescla com destreza uma trama policial (que no final se revela apenas como pano de fundo para um drama com intenções mais nobres) e um estudo inteligente sobre a sociedade americana do pós-guerra. Mesmo distribuído pela Columbia, o filme de Ray não deixa de ter a identidade visual da Warner nos anos 40: a fotografia em preto-e-branco seca e eficiente, o tema relevante disfarçado por um enredo violento e, como o título sugere, um final de teor moralista (ainda que, como não poderia deixar de ser em se tratando de um filme de Nicholas Ray, bastante temperado com a controvérsia e a simpatia pelo lado menos conservador da sociedade). Bogart interpreta Andy Morton, um advogado bem-sucedido que é procurado pelo jovem Nick Romano (John Derek, que anos mais tarde se casaria com a “mulher nota 10” Bo Derek), acusado pelo assassinato de um policial. A princípio Morton recusa o caso, mas com a pressão de sua namorada – e assistente social – acaba assumindo a defesa do rapaz. No tribunal, ele se utiliza da história de vida de Romano para tentar livrá-lo da condenação.

Contado basicamente em flashbacks que explicam os motivos que levaram Romano à situação extrema em que ele se encontra, “O crime não compensa” envolve a plateia com personagens bem construídos e uma direção não intrusiva, que não tenta ser maior do que a própria história. Com seu estilo moderno e sensível, Nicholas Ray nitidamente demonstra simpatia por Nick Romano, mesmo que o personagem frequentemente cometa erros bastante condenáveis. Já Bogart, generosamente em segundo plano, serve como um guia para o público, comentando o itinerário do jovem protagonista com a experiência tanto de um ator com uma longa estrada quanto como um advogado calejado com os meandros nem sempre justos da justiça. Seu expressivo monólogo em defesa de Romano, nos últimos minutos – que deu dor de cabeça a um ator pouco acostumado a cenas tão longas e sem cortes – é um dos pontos altos do filme, comprovando sem margem para dúvidas que Ray, mais do que um mero cineasta, era um homem de cinema com coração de sociólogo.

25/08/21

O Cavaleiro Verde (The Green Knight), Arthur Lubin, 2021


A HISTÓRIA E A MITOLOGIA POR TRÁS DO CAVALEIRO VERDE (THE GREEN KNIGHT)

O filme mais recente de David Lowery, The Green Knight, estrelado por Dev Patel, é uma adaptação do poema épico Sir Gawain and the Green Knight, um romance cavalheiresco do final do século 14, inclusive já falamos dele aqui em várias colunas do Spoilers da Semana. Uma das lendas arturianas mais conhecidas, seu autor original é desconhecido e o texto extrai-se de muitas fontes, incluindo a tradição cavalheiresca galesa, irlandesa, inglesa e francesa. Lowery disse à Vanity Fair que, ao adaptar a história, decidiu se apoiar na história e na mitologia do País de Gales em particular. Sua visão do conto clássico inclui interpretar o próprio Cavaleiro Verde como um Homem Verde, uma história paralela com o Poço de St. Winifred, animais falantes e uma espiada em Cewri, ou melhor, os Gigantes Galeses.

As lendas arturianas, entre elas a história de Sir Gawain, encontram suas raízes nos mitos dos primeiros celtas bretões, cujas tradições não sobreviveram à invasão do Império Romano e à subsequente conversão da ilha ao cristianismo. Os druidas transmitiram muitas dessas mitologias oralmente. Como tal, eles não foram escritos até a Idade Média, exatamente quando a igreja cristã primitiva no País de Gales estava se formando. O paganismo céltico ainda é claro nos primeiros textos, embora eles já tenham sido transmutados através de lentes teológicas cristãs. (...)

30/08/2021

Impact, Arthur Lubin, 1949

Impact no iutubi

Sinopsis: Impact 1949 ) 

El industrial Walter Williams (Brian Donlevy) tiene una joven esposa, Irene (Helen Walker), que está tratando de matarlo con la ayuda de su amante, Jim Torrence (Tony Barrett). Sin embargo, el plan pergeñado para el asesinato no sale como se esperaba: Walter sobrevive y Torrence morirá en un accidente de tránsito.

Como este último estaba conduciendo el auto de Walter, el cuerpo de Torrence se identifica erróneamente como el de Walter. Éste se hará llamar “Bill Walker” y consigue un trabajo como mecánico en una estación de servicio regenteada por Marsha Peters (Ella Raines), de quien se enamora. Mientras tanto, la policía arresta a la esposa de Williams por su “asesinato”. Cuando Walter reaparece para exculpar a su esposa, ésta lo culpa a él de haber matado a su amante. Marsha con la ayuda del detective de policía Quincy (Charles Coburn) logrará demostrar la inocencia de Walter, logrando que su esposa sea detenida por conspiración para asesinar (DERECHO NOIR). https://derechonoir.wordpress.com/2021/05/13/impact-1949-arthur-lubin/

03/09/2021

O Cérebro que Não Queria Morrer (The Brain That Wouldn't Die), 1962, Joseph Green

O Cérebro Que Não Queria Morrer no iutubi


Foto Adele Lamont

Em “O Cérebro Que Não Queria Morrer” o pesadelo da ciência tecnognóstica

Por Wilson Ferreira

Um filme que assombrou a infância desse humilde blogueiro. Assistido décadas depois, o filme de terror sci fi “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962) comprova ser uma verdadeira cápsula do tempo: mostra uma Hollywood onde a herança cultural europeia ainda estava presente na crítica à ética do progresso científico – a consciência ou “alma” não se localiza exclusivamente no cérebro (ecos da psicologia Gestalt e da Fenomenologia), o que torna a experiência do protagonista (o transplante da cabeça de sua noiva) moralmente abominável. Bem diferente da atualidade, onde a agenda tecnognóstica na Ciência crê numa consciência descorporificada que poderia ser traduzida em bytes e aspirar à eternidade.

Assistindo ao filme Close To God (analisado pelo Cinegnose – clique aqui), e principalmente pelo seu desfecho, esse humilde blogueiro não poderia deixar de lembrar do filme O Cérebro Que Não Queria Morrer (The Brain That Woudn’t Die, 1962) que assombrou a minha infância: uma cabeça que é mantida viva em um sinistro laboratório por fios, elétrodos e um misterioso soro – assista ao filme completo abaixo. 

Na época não consegui assistir ao final do filme que passava na TV: quando a monstruosa criatura (um experimento mal sucedido do cientista) escapou de um armário para matar a todos, saí correndo para o banheiro com uma baita dor de barriga de medo! Close To God fez-me lembrar do filme daquela sequência final a qual não consegui assistir. Quarenta e cinco anos depois (o filme passou na TV brasileira no início dos anos 1970) esse blogueiro resolveu rever o filme e, finalmente, encarar a sequência final.

O filme é uma verdadeira cápsula do tempo de uma época onde thrillers psicológicos se misturavam com sci-fi sobre estranhas criaturas e o medo do progresso científico acelerado pelo impacto dos primeiros transplantes de órgão humanos. Essa atmosfera criou um fértil campo para filmes hoje cultuados.

Visto em perspectiva, O Cérebro Que Não Queria Morrer é uma pérola cinematográfica por nos anos 1960  por levantar questões que atormentavam as pesquisas em Inteligência Artificial desde aqueles tempos: mas afinal, o que é a consciência humana? Ela reside unicamente no cérebro, podendo o restante do corpo ser eliminado? Ou o corpo na sua totalidade tem consciência e, por tanto, alma? 

Uma questão na época complexa e cheia de sutilezas e que hoje, com o imaginário tecnognóstico que motiva as neurociências e IA, tudo parece ser resolvido com o projeto das Cartografias da Mente: a consciência poderia ser traduzida em bytes e, num futuro próximo, poderíamos fazer um upload final do nosso Eu para uma rede bioeletrônica, conquistando a vida eterna. Filmes como Transcendence ou The Machine vem seguidamente abordando essa agenda tecnocientífica atual – filmes também analisados pelo Cinegnose – clique aqui e aqui.

Além disso esse cult dos anos 1960 faz um irônico comentário sobre a erotização da indústria do entretenimento e a transformação da mulher em um boneco erótico consumista: onde mais um cientista procuraria um novo corpo para a cabeça da sua noiva? Em boates com shows eróticos e concursos de modelos.

O Filme

Para aqueles que não estão familiarizados com o filme, O Cérebro Que Não Queria Morrer acompanha um cirurgião (Dr. Bill) que já há algum tempo vem fazendo secretamente experiências em manter partes de corpos vivas mesmo depois de mortas, até tentar fazer um novo ser. Uma dessas  experiências mal sucedidas vive trancada em um armário no laboratório em um porão de uma casa rural do seu pai, Dr. Cortner.

O filme começa com uma cirurgia feita em conjunto com seu pai. Numa manobra cirúrgica ousada, sob a desconfiança do Dr. Cortner, Dr. Bill ressuscita um paciente dado como morto com sua técnica de choques diretamente aplicados no cérebro.  Após uma discussão sobre ética científica com seu pai, Bill leva sua noiva Jan Compton rumo à casa de campo onde está seu laboratório.

No caminho sofrem um acidente e o carro despenca num barranco, decapitando Jan e incinerando o restante do corpo. Desesperado, Bill enrola a cabeça da sua noiva no paletó e corre para o seu laboratório que está próximo. Ajudado pelo seu assistente, Bill coloca a cabeça de Jan em uma bandeja cheia de um revolucionário soro e conectada a fios e elétrodos. Bill ressuscita a cabeça até que ele possa encontrar um novo corpo para ela ser transplantada.

Mas tudo que a cabeça deseja é morrer para não se tornar uma aberração em vida, assim como o monstro que tenta escapar do armário. Ela quer vingança depois de compreender a imoralidade das experiências do seu amante. Cheia de ódio, a cabeça vai procurar uma forma de vingança.

Gestalt, Fenomenologia e Consciência

O filme é ainda dos tempos em que Hollywood ecoava a herança cultural do velho continente europeu. Está claro no filme que a crítica ética feita ao delírio científico do Dr. Bill se fundamenta na ideia de que o homem não é uma simples soma ou subtração de partes – a consciência ou “alma” é a totalidade do corpo, numa integração completa espírito/matéria. Uma crítica à noção cientificista e cartesiana de que a consciência se localizaria exclusivamente em algum lugar do cérebro – por exemplo, o filósofo Descartes no século XVII acreditava estar localizada numa glândula do cérebro. Para ele, a única função do resto do corpo era manter o cérebro vivo.

A crítica ética do filme repercute tanto a psicologia Gestalt como a Fenomenologia da percepção do filósofo francês Merleau-Ponty. Para a Gestalt o Todo não é a soma das partes. Uma proposta epistemológica de que a realidade somente pode ser apreendida em uma única vez, em sua totalidade ou “Gestalt”. Dessa forma, o corpo da Gestalt implica no reconhecimento do funcionamento integrado, de uma realidade co-construída mente e corpo.

Da mesma forma, a grande contribuição da fenomenologia do francês Merleau-Ponty no século XX foi estabelecer as bases cinestésicas da consciência e da percepção. Partindo de um princípio holístico, corpo e consciência estão relacionados e mutuamente engajados. A própria percepção de si mesmo e do ambiente depende do posicionamento corporal e da sua ação sobre os objetos. Consciência e experiência estão em um mesmo fenômeno e não são excludentes como encara o cogito cartesiano.

A consciência não é apenas a cabeça, mas as mãos que se tocam ou o pé que sente o chão. É compreensível o fenômeno da “mão fantasma” após o membro ser eventualmente amputado – dentro da lei de complementaridade (ou “fechamento”) da mente, fantasmaticamente o membro é reconstituído para a gestalt corporal ser mantida intacta.

Bem diferente da atualidade onde a agenda tecnognóstica retorna à concepção cartesiana de consciência, não mais da forma bizarra onde cabeças ou cérebros eram mantidos vivos como no imaginário sci fi do passado, mas com a possibilidade da mente ser cartografada para ser traduzida como informação que pudesse ser estocada em hardwares.

05/09/2021

O Homem com a Morte nos Olhos (Welcome to Hard Times), 1967, Burt Kennedy

O Homem com a Morte nos Olhos no iutubi

O HOMEM COM A MORTE NOS OLHOS (1967), por Carla Marinho Leal

O cinema é referência, imitação e reprodução desde que surgiu. O faroeste foi um dos primeiros gêneros a encantarem os espectadores, conhecendo seu auge nas décadas de 30 e 40 nos Estados Unidos. É curioso que quando foi lançado em 1967, Welcome to Hard Times (O Homem com a Morte nos Olhos), embora traga todos os elementos tradicionais do gênero, tenha uma influência direta do que estava sendo produzido na Europa e conhecido como o western spaghetti.

E aqui temos um de meus atores preferidos: Henry Fonda surge como Will Blue,  o prefeito de um vilarejo invadido por um homem estranho (Aldo Ray) que mata aleatoriamente. Não é preciso base para um psicopata, mas ficamos meio sem entender de onde surge um homem que começa a matar, estuprar, tocar fogo em tudo e sair como um louco. Talvez seja essa a surpresa do filme, não ter muita explicação no roteiro que teve como base o romance de E. L. Doctorow.

Will Blue é um homem de meia idade que quer evitar problemas e isolar-se em uma pequena vila que ajuda a fundar. Bem, ninguém pode condená-lo diante de um homem louco assombrando a todos. Estão com ele o pequeno Fee Jimmy (Michael Shea), um órfão que deseja vingar a morte de seu pai e é incentivado pela bela Molly (Janice Rule). Molly fica grata por Will Blue ter dito a todos que ela, uma prostituta, era sua esposa. Mas só consegue enxergar nele o fracasso, já que para ela um homem de verdade é aquele que livra-se dos problemas com uma arma. Will, por seu lado, só deseja construir uma cidade boa e digna para que todos morem. Obcecada por vingança, Molly ensinará Jimmy a manusear armas. E é aí que reside o problema.

Como todo bom western, já previa o desenrolar da trama e do relacionamento entre a bela prostituta Molly e Will pelos padrões hollywoodianos: o amor pode se desenvolver, porém o que era aceitável naqueles tempos era um final moral. A personagem de Janice Rule fica realmente feliz por finalmente um homem a reconhecer, mas, como sempre acontece, não se acha digna. Bem, Hollywood dará um jeito em resolver essa questão da única maneira que conhece.

Filmado em Thousand Oaks, os críticos elogiaram bastante o desempenho do Aldo Ray, além da fotografia de Harry Stradling Jr. Enquanto assistia observava como o Henry Fonda imprimia em seus personagens o padrão moral através do seu olhar. Foi assim quando encarnava cada um de seus personagens e com esse não foi diferente.

* O filme foi lançado em dvd (dublado e legendado) pela Classicline e pode ser encontrado em todas as lojas do ramo ou na Folha Online.

07/09/2021

Terra em transe, 1967, Glauber Rocha

Terra em transe no iutubi ou aqui

MARTIN SCORSESE FALA SOBRE GLAUBER ROCHA 

Entrevista com Glauber Rocha - Idade de Terra 

Como 'Terra em Transe' ainda é atual 

"TERRA EM TRANSE" 50 ANOS DEPOIS | SÉRGIO RIZZO 

Glauber Rocha e a importância da cinema brasileiro | Retratos Brasileiros 

CRÍTICA | TERRA EM TRANSE, por LUIZ SANTIAGO

A política é um negócio sujo em Eldorado. O país fictício tem corruptos no poder, partidários e aliados assassinos, fracos, estúpidos e extremistas no Executivo, Legislativo e Judiciário — à direita, ao centro e à esquerda –, o que não facilita em nada a vida do povo, que não sabe para qual lado seguir. O povo. Aquele que é facilmente enganado por palavras de consolo e de “estou anotando tudo, tudinho!” e festeja a chegada de um líder salvador, aclamado por nichos cerceadores de liberdades como se esta fosse a resposta para todos os problemas imediatos pelos quais passam: a falta de terra, a falta de emprego, a falta de comida, a falta de dignidade, a ausência de direitos, o excesso de impostos e deveres.

A trama de Terra em Transe é uma alegoria política. Um texto que faz uso de elementos históricos muito próprios do Brasil e da América Latina como um todo, especialmente porque não se nega a mostrar as diferenças sócio-políticas, a larga oferta de posturas ideológicas, o embate quase infantil entre povo e poder, o uso da força militar ou do assassinato político para calar vozes dissonantes, seja nas ruas, seja nas alas do pequeno e grande Congresso. Através de todos esses fatos observados no Terceiro Mundo, Glauber Rocha nos apresenta a crônica de uma ascensão ao poder e de uma subsequente derrocada.

Paulo Martins, o jornalista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso no roteiro, é o personagem de maior destaque do longa. É através dele que vemos os lados opostos da moeda, o conservadorismo de Diaz, o populismo ineficiente de Vieira. Com o sonho de ser poeta e falar sobre temas políticos, Martins é, na verdade, um observador desgraçado dos fatos que ele julgava ter algum controle sobre. Seu ego e talvez fé extrema nas mudanças sociais o fizeram-no apoiar e trair, difamar e promover campanhas políticas e representantes que um dia desprezara. Favores, dissimulações e ignorância nas vozes que supostamente deveriam lutar contra o erro, contra a corrupção. A velha e constante hipocrisia de políticos messiânicos e partidários cegos. 

Fazendo uso de uma estética experimental muito particular, Glauber Rocha intensifica a sensação de transe no próprio público, que observa ente tiros de metralhadoras, música e Villa Lobos, valsas famosas, óperas e jazz a entrega de simpatizantes governistas à farra e aos comícios, tudo filmado através de uma perspectiva que faz os atos parecerem grandes novidades, quando, na verdade, são a repetição de algo bem antigo ou a revelação de uma situação que ocorria às escondidas há bastante tempo. Algo que todos simplesmente ignoravam, fingiam não ver, diziam não se importar. Toda a esfera pública é posta no jogo. De quem é… a quem fabrica a notícia. Do empresário ao grevista. Dos sindicalistas aos arquétipos femininos vistos nessa dança pseudo-democrática, cabendo tudo, da santa revolucionária à puta alienada.

E aqui, o povo não recebe a visão social e manipulada por promessas divinas, como vimos em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O contexto todo é ampliado para situações que beiram ao constrangimento, mostrando a facilidade de qualquer um obter apoio popular, independente do discurso que faça (por mais infame que seja) e das situações que forjam nos Palácios do Governo. A preocupação do povo com o estômago fala mais alto, assim como a sua facilidade em comprar discursos que falam diretamente aos seus preconceitos, desafetos ou àquilo que dizem para ele amar ou odiar naquele momento; o apreço a uma terra familiar ganha mais importância do que o pensamento e a ação política. O povo em Terra em Transe não é apenas o faminto romeiro de Deus e o Diabo. Ele é o ajudante direto, talvez sem saber, da roda que o massacra e o faz protestar em vão. Deixando-se levar facilmente por qualquer promessa milagrosa e tendenciosamente ditatorial (por excelência, em tempos de crise, já que o culto ao líder e o clamor a uma “mão forte” integram a febre que contaminou as mentes a este ponto), a massa dá ainda mais poder a quem deveria ter menos, e não consegue ver que forja, nos desmandes jurídicos e nas leis de repressão àquilo que sua frágil moral repele, o reforço para as correntes que a manterá presa por tempo indeterminado.

O longa exige uma atenção enorme do espectador. Como a narrativa é quase toda contada em flashback e esta, em ordem alinear, não é difícil nos perdermos um pouco no início, confundirmos nomes ou a localização dos personagens, seja em Alecrim, seja em Eldorado. sAo poucos, porém, entendemos a intenção do diretor e o filme é compreendido sem mais nenhum problema.

Contando com um monstruoso elenco (que infelizmente é prejudicado pela dublagem), Terra em Transe consegue passar uma mensagem política forte e uma visão social que pode incomodar bastante gente. Lançado em meio à ditadura militar, a obra chegou a ser proibida e sofreu cortes e diversas solicitações de mudança pela censura, além de ter sido chamada de “fascista” por Fernando Gabeira e outros intelectuais da época. Ao espectador crítico, porém, fica a sensação de ter ouvido um feroz grito de muitas vozes inquietas sobre uma situação viciante e sem data alguma para terminar no Brasil, uma conclusão a que o próprio cineasta chegara em Berravento, https://www.planocritico.com/critica-barravento/ mas no patamar essencialmente social. A questão de Terra em Transe ultrapassa a comunidade e investiga as regras do jogo que lhe dá origem. As raízes políticas que, com o apoio de leis reinterpretadas (ou ignoradas) ao bel prazer dos amigos do rei e da mídia, mantém “sob a Constituição” o Grande Desafeto, enquanto o Afeto da Vez é salvo, mesmo diante de seus muitos, conhecidos e amplamente divulgados crimes. Um ciclo que mal chega ao fim e já se funde a outro, ainda mais cruel que o anterior, vestido com as roupas da moda e com palavras ou sistemas de salvação político-econômicos, algumas faces supostamente inovadoras e muita demagogia, fazendo da política a arte de botar uma terra inteira em estonteante transe.

Terra em Transe (Brasil, 1967), Direção: Glauber Rocha, Roteiro: Glauber Rocha, Elenco: Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Glauce Rocha, Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Danuza Leão, Joffre Soares, Modesto De Souza, Mário Lago, Flávio Migliaccio, Telma Reston, José Marinho, Francisco Milani, Paulo César Peréio, Duração: 111 min.

08/09/21

Winchester '73, 1950, Anthony Mann

Winchester 73 no iutubi

Crítica

O roteiro de Winchester 73 é criativo, e também curioso. Ainda mais porque se trata de um faroeste, ou seja, o mais clássico dos gêneros cinematográficos. E o que ele apresenta de tão inovador está em acompanhar não um dos protagonistas, mas um objeto. No caso, a espingarda do título, fabricada em 1873.

Historicamente, o filme também se notabilizou por ser o primeiro de uma série de faroestes que o astro James Stewart realizou com Anthony Mann. Após ficar conhecido como diretor de filmes policiais B, o diretor estreara nesse outro gênero em O Caminho do Diabo (1950). Depois, realizaria com James Stewart mais seis westerns, entre eles, este Winchester 73 e E o Sangue Semeou a Terra (1952). A relevância dos faroestes de Anthony Mann está no aspecto psicológico dos personagens, possibilitando uma dimensão mais profunda a esse gênero conhecido como uma aventura escapista.

Dodge City

A estória de Winchester 73 acontece na notória Dodge City, no Kansas. O xerife da cidade é o famoso Wyatt Earp, que conta com o também lendário Bat Masterson como ajudante. Eventualmente, Lin McAdam (James Stewart) chega ao local, onde encontra um antigo desafeto, Dutch Henry Brown (Stephen McNally). E, justamente os dois são os finalistas na disputa de tiro cujo prêmio é a cobiçada espingarda do título. Lince vence o torneio, porém Dutch arma uma emboscada e rouba a arma. Assim, começa a epopeia dessa carabina.

Em seguida, a Winchester transitará nas mãos de um jogador de cartas, de índios, de um homem covarde… e o filme acompanha essa trajetória. Com isso, em alguns trechos, perdemos o foco no protagonista Lin McAdam, o que foge do padrão dos filmes clássicos. Porém, no final os dois rivais se reencontram, juntamente com a mocinha, interpretada por Shelley Winters. O clímax acontece num longo duelo nas montanhas, quando já sabemos que se trata de um embate com profundas raízes no passado.

Além desse trauma que atormenta o personagem principal, que confere sua profundidade psicológica, Anthony Mann também importa outros aspectos do gênero policial, que marcou sua filmografia anterior. Entre eles, a crueldade da violência urbana se espelha no Velho Oeste. Por exemplo, quando um bandido maltrata e mata o homem covarde. E o próprio Lin McAdam também é durão e busca vingar a morte de seu pai com obstinação. Ao contrário dos filmes de John Ford, aqui não há nenhum alívio cômico.

Em suma, Winchester 73 revela um ambiente cruel, onde se desenrola um roteiro muito original. É um dos melhores da dupla Stewart-Mann.

Eduardo Kaneco 

10/09/2021

O Homem do Oeste, Man of the West, 1958, Anthony Mann

Sobre Anthony Mann (1906–1967) 

O Homem do Oeste (Man of the West, 1958), Uma obra bem-sucedida em criar uma ambientação hostil para a jornada de um sujeito em guerra com seu passado. Por Matheus Fiore

É uma constante nessa obra de Anthony Mann planos que filmem o protagonista Link Jones, vivido por Gary Cooper, se movendo da direita para a esquerda. É uma escolha que está presente, inclusive, no primeiro plano de O Homem do Oeste, que traz Link sobre seu cavalo, encarando o horizonte. Man of the West, em seu título original, conta a história de um personagem que parece estar cansado da violência, e busca regressar à sua cidade natal, Sawmill, para descansar.

Gary Cooper

O Homem do Oeste parece ter influência do clássico Os Brutos Também Amam, de George Stevens, lançado cinco anos antes. Ambos os filmes trazem protagonistas que representam o clássico herói “cansado” do western: uma figura que, aparentando ter um passado de violência, busca apenas aposentar seu revolver, pendurar o chapéu e fugir do passado violento. O diferencial do filme de Mann para os demais representantes desse modelo de western “trágico”, porém, reside no comportamento de seu protagonista: Link não é um sujeito imponente, heróico e charmoso.

O roteiro de Will C. Brown e Reginald Rose constrói um personagem mais humanizado, bem distante do que estamos acostumados a ver no gênero. Link Jones é um sujeito tímido, introspectivo, e em boa parte dos momentos de conflito, intimidado pelas figuras mais bravas que surgem ao longo da trama. Mas não se trata de um personagem covarde, e sim de alguém que, aparentemente desgastado por um passado bruto, tenta sempre evitar o conflito.

A direção de Mann é, como se espera do cineasta, um espetáculo à parte. A movimentação dos atores pelo cenário é essencial para a construção do clima hostil ao redor de Link, que mesmo se esforçando, é incapaz de evitar contato com as figuras brutas que habitam o Oeste. O frame acima, por exemplo, é retirado de uma cena onde o protagonista se aproxima do trem de sua viagem, enquanto o xerife local, que acabara de intimidá-lo, o observa de perto com seu revolver próximo ao protagonista.

Observe ainda, nas imagens abaixo, como a movimentação do vilão Dock Tobin, vivido por Lee J. Cobb, é relevante para uma outra cena. Sendo o personagem dominante no plano, Dock é o único que se movimenta, enquanto seus comparsas aguardam suas ordens quase estáticos. Já o herói Link é afastado da mocinha, que fica à mercê de Tobin em uma cena que ainda utiliza o contra-plongée para estabelecer a imponência do antagonista — logo após, claro, Dock isolar a moça no canto do quadro.




Claro que a direção de Mann não é o único elemento que se sobressai em O Homem do Oeste. Perceba como há uma clara diferença da fotografia das duas cenas exibidas no texto. Há, além de um incômodo silêncio, um ambiente muito mais soturno, mergulhado em sombras, o que torna a passagem da apresentação do vilão muito mais imponente e simbólica visualmente.

E as sombras não existem só para criar a ambientação, mas também para simbolizar as nuances de cada personagem. Link, por exemplo, revela que já teve um passado sombrio, uma vida de crimes. Quando encontra seu ex-parceiro, então, a fotografia escurece metade de seu rosto, como se o reencontro fizesse um lado obscuro emergir em sua memória. É o passado surgindo para assombrar o protagonista. Além dele, o próprio vilão Dock também tem sua face escurecida pela metade em sua introdução, em uma cena que ainda tem um inteligente jogo de câmera de Mann, que acompanha a movimentação de Dock justamente para mostrar que ele está no controle da situação — e que ele é um sujeito dúbio e sombrio.

O filme de Mann é uma das obras que melhor retratam o pistoleiro do velho oeste em conflito com seu passado. Com cenas desenvolvidas com extremo cuidado — algo que se reflete até nas atuações dos personagens, que se movem de maneira lenta e paciente — , é um longa de atmosfera, mas também de estudo de personagens. É a jornada de um homem quebrado e cansado em busca de sua paz de espírito. No caminho, porém, Link passa por vários dos elementos que compõem o mito do Oeste do século XIX: desde a mocinha inocente aos grandes roubos de trens e grupos de bandidos.

O Homem do Oeste é melancólico e brutal. Trazendo um personagem fragilizado não só por seu passado, mas pela consciência de que vive em um mundo cruel e de realidade imutável. É um grande western por demonstrar, a cada frame, o pleno domínio de seu diretor sobre o gênero, o que permite que Mann apresente o faroeste não com a intenção de desconstruir seus mitos e conceitos, mas com o objetivo de retratar a decadência estrutural daquele micro-universo desamparado e imprimir melancolia à jornada de um homem que busca se desvencilhar desse mundo.

12/09/2021

The White Lotus, TV Series, 2021–2022, Mike White

The White Lotus é a série que você tem que ver , Isabela Boscov

The White Lotus é uma das melhores produções da temporada, por PATRÍCIA KOGUT l

A flor de lótus é linda, mas nasce no lodo. Não à toa, ela foi escolhida para batizar o hotel onde se passa a ação de “The White Lotus”, série em seis episódios da HBO Max. É uma metáfora certeira para essa trama. Acompanhamos personagens de comportamento duvidoso, às vezes moralmente degradado, num cenário paradisíaco.

O enredo se desenrola num resort no Havaí. A ação começa pelo fim. Somos informados de que alguém foi assassinado ali. Não sabemos quem. Na cena seguinte, a trama recua uma semana, para o momento em que um novo grupo de hóspedes se dirige ao hotel de barco.

Há um casal em lua de mel, a jornalista Rachel (Alexandra Daddario) e o marido milionário, Shane (Jake Lacy); a superempresária Nicole Mossbacher (Connie Britton), seu marido menos bem-sucedido, Mark (Steve Zahn), a filha deles, Olivia (Sydney Sweeney), a amiga dela, Paula (Brittany O’Grady), e o caçula, Quinn (Fred Hechinger); e Tanya (Jennifer Coolidge), uma mulher solitária e decadente que está levando as cinzas da mãe para despejar no mar.

Em terra, um grupo de funcionários se alinha ao lado de Armond (Murray Bartlett), o administrador do local, e da massagista Belinda (Natasha Rothwell). Eles sorriem e acenam em sinal de boas-vindas.

O roteiro vai se fragmentando no que acontece na intimidade de cada um desses personagens. Ninguém tem férias leves e alegres, como se costuma idealizar. Há conflitos familiares, conjugais e rivalidades. A convivência intensa agrava os dramas. É através deles que vamos conhecendo mais e mais os personagens. A revelação do lado podre de cada uma dessas figuras alimenta a bolsa de apostas do suspense que atravessa a trama: quem matará e quem morrerá? A sensação de ambiente insular é levada ao paroxismo porque, além de o enredo se passar numa ilha, tudo acontece numa só praia.

A série trata com ironia os clichês sobre luta de classes, racismo, colonialismo e questões de gênero. Não há histrionismo, e sim mordacidade elegante. O roteiro enfrenta com coragem certos temas-tabu. E faz mais: ri deles. Talvez seja uma mostra de que os debates identitários avançaram para um ponto em que se admite uma dose de humor. A trama é cheia de recadinhos debochados. Por exemplo, as patricinhas, Olivia e Paula, sempre entediadas, vivem mergulhadas em leituras que vão de Camille Paglia, Freud, Fanon, Lacan, Aimé Césaire, Judith Butler a Nietzsche. Rachel devora Elena Ferrante. O marido dela se entrega à autoajuda. Assim, somos convidados a fazer “turismo” nesse lugar que se assemelha a um laboratório de pesquisa antropológica.

São férias desagradáveis no paraíso. A série é uma das melhores produções da temporada. São seis episódios de quase uma hora. Vale a maratona num fim de semana.

13/09/2021

Messalina - Vênus Imperial, Messalina Venere imperatrice, 1960, Vittorio Cottafavi

Messalina no iutubi

Após a morte do imperador romano Calígula, Cláudio é apontado como o novo governante. Na página do homem decrépito é Messalina, cuja beleza só é superada por sua crueldade e astúcia. Por trás da volta de seu marido, ela gira as intrigas e atrai o poder no Império Romano cada vez mais em si. Amante de Messalina, o sincero legionário Lucius Maximus é perdido sua beleza, sem vontade. Ele trai o Imperador e seus amigos, porque ele percebe tarde demais suas verdadeiras cores.

Messalina wiki

15/09/2021

Iracema - Uma Transa Amazônica, 1975, Jorge Bodanzky - Orlando Senna

Obra contundente, que esteve muitos anos proibida pela censura, apesar dos prêmios internacionais que recebeu, entre 1975 e 1980. "Deste painel, surge a imagem clara de um cenário em transformação, mas o resultado é o avesso daquela imagem promocional veiculada pela ótica do "milagre brasileiro" onde o "desbravamento" do mundo selvagem sugere em cores fortes a cruzada da civilização em conquista de novos espaços para a construção do Brasil grande. Iracema também pinta o seu retrato em cores fortes, mas para desmascarar a mitologia heróica da "região da fronteira", para evidenciar um processo onde se sangra a natureza e se institui e regulariza o sacrifício humano e social para que o resultado seja a edificação de um descaminho no meio da mata". Ismael Xavier, 03/1981. (Dicionário de filmes, 1993, Georges Sadoul, p. 465, L&PM)


Mostra Fabulações no Real | debate sobre o filme "Iracema, uma transa amazônica" 

Iracema - Uma Transa Amazônica mediada com Jorge Bodanzky 

Era uma vez Iracema - Dir.: Jorge Bodanzky (2005) 

17/09/2021

Zero de Conduta, Zéro de conduite: Jeunes diables au collège,1933, Jean Vigo

Zero de conduta no iutubi

... Vigo apresentou como seu próprio filho: "Não é mais minha infância, minha lembrança quase não encontra nele. Sem dúvida reencontro os dois amigos da volta às aulas em outubro. Claro, aparece então, com seus trinta leitos idênticos, o dormitório dos meus anos de internato. Vejo também Huguet, de quem todos nós gostávamos, e seu colega Pète-Sec, e o inspetor mudo. À luz da lamparina, o pequeno sonâmbulo virá aterrorizar meu sonho ainda esta noite?" (...) "Há dois mundos em Zero em comportamento, de um lado o das crianças e do povo, do outro o dos adultos, da burgueses. Para as crianças, Vigo tomou como ponto de partida a realidade; para os adultos, não hesitou em acentuar seus traços até a beira da caricatura. E recorreu aos  representantes de autoridades muito acima das do colégio, ao padre e ao prefeito. Todo esse mundo estará em seu lugar diante de outros bonecos: os da barraca do jogo de massacre. Esta divisão em dois mundos e a conclusão do filme nos dão todos os elementos da ideologia de Vigo, e das intensões sociais de Zero em comportamento." segundo Paulo Emílio Sales Gomes. (Dicionário de filmes, 1993, Georges Sadoul, p. 438, L&PM)

CRÍTICA | ZERO DE CONDUTA (ZERO DE COMPORTAMENTO), por LUIZ SANTIAGO

Penúltimo filme de Jean Vigo, Zero de Conduta [1] (também chamado aqui no Brasil de Zero de Comportamento) é uma obra cheia de elementos biográficos e pode ser vista como a concepção de revolução que tinha o jovem cineasta francês, filho de um anarquista morto na prisão.

O filme começa no trem que leva os alunos para a escola depois das férias. No vagão em que a câmera se fixa, um garoto visivelmente inquieto olha para todos os lados, procurando algo para fazer. Quando, em uma das paradas, um amigo embarca, ambos começam a brincar com coisas que trouxeram de casa. Ao término da sequência, acendem cada um o seu cigarro e fumam languidamente, a fumaça que produzem fundindo-se à fumaça do trem.

Vigo tinha uma concepção moral, ética e comportamental do adolescente ou do jovem de que eles não são tão inocentes como parecem e que jamais podemos subestimá-los. O caráter pueril dos adolescentes da escola funde-se à sua astúcia e capacidade de organização e persistência, arriscando-se a uma série de “perigos” para levar adiante o plano de boicotar a apresentação institucional.

O filme é composto por pequenas sequências que dão a entender outras partes, acontecidas em elipse, como no caso do professor pedófilo, que tenta se aproximar de um dos alunos, o mais “sensível” de todos. Aqui, vale dizer que uma boa dose de homoerotismo foi adicionada à atmosfera do filme, acrescida por rápidas tomadas de nus, opressão e perseguição por parte dos professores e a postura totalmente contraditória desses mestres, todos autores de crimes e pecados. Zero de Comportamento é uma sentença não só aplicada aos alunos mas a todas as outras personagens do filme. Todavia, a câmera de Vigo é muito sutil ao supor essas entrelinhas e a montagem consegue equilibrar o poder dramático de cada uma delas, do começo ao fim do média-metragem, que ainda conta com excelente uso de câmera lenta, truques de edição à la Méliès e uso de composição de imagem com ângulos e planos muito espirituosos.

Podemos dividir os espaços cênicos do filme em três momentos, tendo cada um deles um significado próprio:

1 – O trem e a plataforma de chagada: introdução das personagens principais, seu caráter, personalidade e postura frente a autoridade do inspetor geral – desde aqui, a figura repressora por excelência.

2 – O quarto dos alunos e outros lugares internos: espaços de intimidade, revelam momentos de brincadeiras, estudo e confabulação de planos. Aqui, as personagens são vistas sem representação, suas “posturas verdadeiras” e seu caráter aparecem através de suas atitudes e (nenhum) comportamento.

3 – Os espaços externos: vão da poesia da imagem pontuada de humor (à la René Clair https://www.planocritico.com/critica-o-vingador-invisivel/), ao momento da rebelião contra a opressão sofrida. O externo é o espaço da práxis, de se impor ao outro, de mostrar aquilo que tem dentro de si (geralmente oposto às fraquezas que o espectador viu nos espaços internos).

A estupenda música de Maurice Jaubert (que voltaria a trabalhar com Vigo em O Atalante, https://www.planocritico.com/critica-o-atalante/ no ano seguinte) tem uma grande importância na caracterização de cada um dos espaços, sendo muito pontual e decisiva para acentuar o drama, a comédia ou o suspense. Cada acorde, cada trecho melódico parece seguir exatamente os movimentos em cena, mas é com uma economia inquietante de sons que o compositor logra formar a atmosfera diegética, algo que podemos constatar em suas melhores trilhas sonoras para o cinema.

Embora menos surrealista que nas duas obras anteriores, Vigo ainda usa toques dessa corrente que tanto admirava e um dos melhores momentos é justamente a cena final, com os garotos pulando como sapos. Momentos depois, já na ponta do telhado, todos estão prestes a levantar voo, como se fossem pássaros.

Liberdade é a palavra central em Zero de Conduta. Jean Vigo traz ao espectador uma realidade opressiva, ao mesmo tempo que lança o grito de transformação. Os garotos do colégio não são peças alienadas de um todo irreparável. Eles entendem que suas ações podem mudar a organização posta pelos professores devassos e pelo diretor anão; entendem que juntos podem fazer uma importante festa institucional terminar antes mesmo de começar; entendem que o mundo em que vivem pode ser modificado por eles e arriscam-se ao máximo para consegui-lo.

A mentalidade libertária que veio de berço para Jean Vigo aflora em Zero de Conduta cujo título refere-se ao carimbo que os opositores de qualquer regime recebem: o carimbo dos maus comportados. A diferença aqui é o despertar crítico para a realidade do que é viver em sociedade — ou o questionamento de um contrato social vigente que não se foi convidados a assinar, apenas obedecer.

[1] – If… (1968), de Lidsay Anderson, é uma “refilmagem” desta obra-prima de Jean Vigo.

Zero de Conduta / Zero de Comportamento (Zéro de conduite: Jeunes diables au collège) – França, 1933, Direção: Jean Vigo, Roteiro: Jean Vigo, Elenco: Jean Dasté, Robert le Flon, Du Verron, Delphin, Léon Larive, Madame Émile, Louis de Gonzague, Raphaël Diligent, Louis Lefebvre, Gilbert Pruchon, Duração: 41 min.

Em tempo e a ver: Pink Floyd - Another Brick In The Wall (HQ)


18/09/2021

Guerrilheiros das Filipinas, American Guerrilla in the Philippines, 1950, Fritz Lang


Guerrilheiros das Filipinas no iutubi

Façamos uma experiência. Entremos na página da Wikipédia de Fritz Lang – seja em português, seja em inglês – para ler sua biografia. Claro que a enciclopédia virtual não é nenhuma fonte de alto rigor, mas ainda assim é suficiente para uma busca básica dos momentos mais importantes da carreira de um cineasta. Lá, poderemos encontrar uma divisão em sua história entre a fase alemã, a fase estadunidense e, por último, um retorno à terra natal. Vários parágrafos estarão descrevendo estes momentos e citando os grandes filmes de cada período. Mas, acima dessas semelhanças, haverá uma que será útil para a leitura do texto a seguir: em nenhuma das páginas é sequer citado Guerrilheiros das Filipinas fora da aba “filmografia”. Isso porque, perante uma carreira tão grande, variada e de qualidade como é a de Lang, este filme, feito 5 anos após o término da Segunda Guerra e com toda a cara de propaganda americana, é ruim a ponto de ser totalmente esquecido quando se fala do diretor. (...) Sintetizemos melhor. Fritz Lang é um grande cineasta que possui uma noção enorme do que faz. Ao fazer um filme de propaganda patriótica pós-guerra, poderia claramente construir uma obra cujas formulações narrativas transmitissem esse ideal eficientemente, de maneira que o discurso estivesse em consonância com a mise-en-scène. Mas, por se tratar de um filme cuja feitura se deu, dizia Lang, unicamente em função de fazer algum dinheiro, a obra soa vazia, apática, contrastante em muitos momentos – como na parte final, que abandona tudo que foi feito anteriormente para seguir caminhos totalmente opostos. Assim, Guerrilheiros das Filipinas é um filme fraco, sem alma, que torna compreensível sua própria ausência em qualquer página da Wikipédia sobre o diretor. (GABRIEL ZUPIROLI

20/09/21

 Sabem Morrer (Men in War), 1957Os que, Anthony Mann

Os que sabem morrer no iutubi

Os Que Sabem Morrer de Anthony Mann, Men in War, EUA, 1957

O filme se chama Men in War, título mais simples para um filme de guerra impossível. Título mais adequado para este filme em particular também. Os Que Sabem Morrer é provavelmente um dos filmes de guerra mais simples já rodados, só um bando de homens num matagal caminhando, sem extras, a ação é mantida num mínimo, o inimigo quase invisível. Em parte é por conta disso que se trata de um dos pouquíssimos filmes de guerra que realmente colocam o elemento humano em primeiro lugar, e que quando se põe a fazer uma elegia ao soldado comum parece realmente honesto. Nisso tudo é quase que o completo oposto dos filmes de guerra recentes (única completa exceção: Kippur, de Amos Gitai). Não chega a surpreender portanto que Mann, àquela altura bem estabelecido como um diretor "A" graças à série de faroestes com James Stewart e prestes a iniciar uma seqüência irregular de superproduções (Cimarron, El Cid), tenha retornado com o filme ao baixo orçamento, à produção independente, rodada em preto e branco e sem o beneficio da tela larga ao qual ele havia se adaptado muito bem.

Robert Ryan e Aldo Ray

Como sempre nos melhores filmes de Mann, trata-se de uma jornada rumo a um destino incerto, onde o herói (que, no caso, são dois: o tenente magnificamente interpretado por Robert Ryan e o sargento feito por Aldo Ray) precisa se acertar com sua consciência dividida (Ryan em dúvida sobre sua capacidade de salvar seus homens e a utilidade da guerra que estão lutando, e Ray assombrado pelo que já viu na Coréia). O clima de incerteza é geral: a patrulha está perdida, completamente isolada; não se sabe ao certo o que encontrará no final do destino, não se sabe sequer se o regimento existe ou se a guerra ainda está em pleno andamento. "Meu objetivo é conseguir que pelo menos um homem chegue ao fim vivo", repete o tenente e, de fato, esta parece ser a única meta que importa para cada homem do pelotão. O filme acaba precedendo Além da Linha Vermelha na forma que trabalha o grupo de soldados como uma única consciência coletiva (e nisso vale destacar o ótimo trabalho de todo o elenco de apoio, mesmo os soldados aos quais é dado pouquíssimo espaço, que registram como parte de um todo maior).

Anthony Mann é um mestre da construção espacial especialmente quando filma em locações. Seu trabalho neste ponto lembra, e muito, o de Michelangelo Antonioni. Não surpreende, portanto, que Os Que Sabem Morrer acaba por se revelar um filme sobre a relação do pelotão com o ambiente à sua volta. Até mesmo os soldados coreanos parecem só existir como ameaça na medida que surgem do meio do mato para assombrar os soldados americanos. O resultado disso é que cada elemento da paisagem que cerca os soldados ganha uma enorme força. Neste contexto não deixa de ser interessante notar que, ao contrário da maioria dos filmes do gênero, o que torna o sargento de Aldo Ray essencial para o pelotão não é a sua brutalidade ou comportamento anti-social (ele é até o clímax do filme, o único personagem que parece existir à parte do grupo de soldados, incluindo aí mesmo o Coronel mentalmente debilitado que os acompanha), mas o seu maior conhecimento sobre o terreno.

Este trabalho chega ao auge no clímax do filme, a única seqüência que inclui uma verdadeira batalha, envolvendo a tomada de uma colina pelo já então bastante reduzido batalhão. A esta altura cada personagem se encontra exausto, a posição do tenente e do sargento começam a se inverter e o diretor transforma cada espaço ao redor dos seus soldados num reflexo do que se passa com eles (como em todos os filmes de Mann a ação em si só existe na medida que ela reflete os dilemas existenciais de seus protagonistas). Neste momento Anthony Mann consegue uma sintonia perfeita entre escolha de locações, posicionamento de câmera e edição.

Parte da força do trabalho de Anthony Mann reside justamente aí: ele apresenta com tamanha simplicidade, uma série de idéias e situações complexas, sem com isso sacrificá-las. Como em todos os seus melhores filmes, sejam de gângsters, faroeste ou épicos romanos, perceber parte do que torna Os que Sabem Morrer um grande filme exige um pouco de concentração e dedicação do espectador, já que alguns de seus pontos fortes são bastante sutis, mas sem com isso deixar de perder um tom direto, físico mesmo. A evidência do gênio está lá, de forma simples, em cada fotograma do filme.

Filipe Furtado 

22/09/2021
Região do Ódio (The Far Country), 1954, Anthony Mann




A Região do Ódio (The Far Country, 1954), por Ivanildo Pereira

Em mais um dos westerns da sua parceria, o astro James Stewart e o diretor Anthony Mann criam um filme onde a comunidade é maior que o herói solitário.
Em A Região do Ódio, o diretor Anthony Mann e seu astro e amigo James Stewart, que já tinham feito uns bons westerns juntos, apresentam uma interessante visão sobre o individualismo intrínseco ao gênero. Ora, os westerns captam com precisão o aspecto individualista da sociedade americana ao fortalecer o mito do “cavaleiro solitário”, pela falta de um termo melhor, aquele herói honrado capaz de limpar as cidades dos fora-da-lei e proteger os inocentes. No filme de Mann, o herói é tão individualista que chega a ser misantrópico. “Não preciso de ninguém!”, ele diz em determinado momento ao sujeito que é o seu melhor e mais fiel amigo. Mas, aos poucos, o diretor e o roteiro erodem esse individualismo e passam a examinar o papel, e o efeito, dessa figura dentro de uma comunidade.

Quando o filme começa, Jeff (vivido por Stewart) se reúne ao seu amigo Ben (Walter Brennan, simpático e divertido como sempre). Jeff transportou gado por uma longa viagem e se reúne a Ben para negociarem as vacas. Logo descobrimos que Jeff matou dois homens numa disputa durante a viagem — o sempre digno Stewart não chega a parecer um assassino impiedoso devido à sua simpatia natural, esta é mais uma das suas atuações bem relaxadas e naturais. Porém, ambos se metem numa encrenca com o xerife corrupto (John McIntire) da cidade de Skagway, e acabam meio que forçados a embarcar numa viagem pela corrida do ouro na direção das montanhas canadenses, trabalhando para Ronda Castle (Ruth Roman).
Walter Brennan e James Stewart em A Região do Ódio

É um filme que, tal e qual seu protagonista, está sempre em movimento. O roteiro de Borden Chase é apressado e pula de uma situação para outra com rapidez — do barco para a cidade, e depois para a viagem pelas belíssimas paisagens montanhosas na direção do Canadá, mostradas pelo diretor de fotografia William Daniels. Ainda há pequenos detalhes como o inteligente uso do sino na montaria de Jeff, que serve a um grande propósito narrativo. Mesmo assim, a rapidez da narrativa e algumas ideias mais inspiradas não conseguem disfarçar um simples fato: qualquer um que tenha assistido a alguns filmes na vida consegue adivinhar certos desdobramentos do enredo. É possível antecipar o desenvolvimento de A Região do Ódio, e essa previsibilidade atrapalha a narrativa.

A ideia central da narrativa é por o individualismo de Jeff à prova, seja pelos conflitos e disputas de opinião com os outros, seja pelo interesse de duas mulheres por ele — além de Ronda, a jovem Renee (vivida pela atriz Corine Calvet) fica caidinha pelo herói, mesmo sendo jovem demais para ele… A subtrama romântica nunca chega realmente a funcionar no filme, até porque o grande foco da narrativa não é este, mas rende alguns bons momentos graças à atuação divertida de Calvet e seu jeito de menino.
O foco da narrativa é mesmo a transformação de Jeff, de misantropo a ponto central de uma comunidade. É aqui que, apesar de previsível, os trabalhos de Anthony Mann e James Stewart funcionam ao desconstruir a noção do protagonista solitário e capaz de vencer todos os problemas sozinho. 

A presença do carismático Stewart ajuda nessa transição: por mais durão que ele pareça no início, sabemos graças ao ator que o personagem possui um fundo de simpatia e nobreza capaz de atrair outros ao seu redor. Basta imaginarmos como seria o filme se o protagonista fosse um John Wayne ou, dado o desconto do tempo, um Clint Eastwood, para percebermos como a presença de Stewart faz a diferença nessa transição. Esses outros grandes nomes do western poderiam protagonizar uma versão de A Região do Ódio, mas não fariam a transição do personagem de forma tão natural e orgânica quanto Stewart.
Por compreender um ao outro e as suas melhores qualidades, as parcerias entre James Stewart e Anthony Mann funcionavam tão bem dentro do western. 

A Região do Ódio pode não ser o melhor trabalho da dupla, mas é um interessante exemplar do gênero, um que deixa de lado figuras idealizadas e grandiosas como o herói solitário, para partir em busca de algo mais humano, mais básico, como o sujeito que mesmo sem querer acaba unindo uma cidade ao redor de si mesmo. As cenas finais são realmente bonitas e ressaltam o diferencial de A Região do Ódio: trata-se de um western no qual as paisagens e o mito, os elementos geralmente dominantes dentro do gênero, são menores que o nascimento de uma comunidade.

24/09/2021
Mortalmente Perigosa (Gun Crazy), 1950


 

Foi vendo o recente TRUMBO – LISTA NEGRA e percebendo o cartaz exposto de MORTALMENTE PERIGOSA (1950) no escritório dos irmãos King, os produtores, que eu vi o quanto precisava ver esse lendário filme de Joseph H. Lewis, cineasta conhecido pela excelência em produções de baixo orçamento, mas ainda não popular o bastante, embora o culto a seus filmes tenha crescido consideravelmente a partir da descoberta de gente boa como a crítica francesa e Peter Bogdanovich.
Aliás, foi lendo a entrevista que Lewis deu para Bogdanovich, contida no livro Afinal, Quem Faz os Filmes, que eu vi o quanto uma única cena de MORTALMENTE PERIGOSA deu o que falar, especialmente entre os realizadores de cinema. Trata-se da cena do assalto a banco, que não contou com o uso tradicional das projeções de fundo, que eram enxertadas em cenas externas e que hoje tornam alguns filmes visualmente datados.
Peggy Cummins

Em vez disso, Lewis filmou toda a sequência em uma só tomada, com a câmera colocada no banco de trás do carro, enquanto, de maneira natural, o casal de foras-da-lei se preocupa em encontrar algum lugar para estacionar, e, posteriormente, em lidar com um policial que aparece na calçada. Assim que Barton entra no banco, Annie sai do carro para distrair o policial. É uma sequência admirável. Acabei de rever.
MORTALMENTE PERIGOSA é desses filmes que encantam desde o início, com a cena do pequeno Barton quebrando uma loja para assaltar uma arma. Sua obsessão por armas que levou a este primeiro crime o levará a um reformatório. Depois da decisão do juiz o filme salta para Barton adulto (John Dall), seu retorno à cidade, depois de uma temporada no exército e com disposição para ser um cidadão de bem, ainda que sua obsessão por armas não tenha diminuído em nada. (...)

27/09/2021
Um Método Perigoso (A Dangerous Method), 2011, David Cronenberg


Sinopse: Sabina Spielrein tem crises histéricas violentas. Ela é tratada por Carl Jung que, por sua vez, utiliza os métodos de Sigmund Freud. O romance estabelecido entre paciente e terapeuta estremece a relação mestre/pupilo.
Convém não mais brindar a chegada de cada novo trabalho do diretor canadense David Cronenberg com análises perplexas sobre mudanças de itinerário. Virou lugar-comum opor sua fase pretérita, caracterizada por signos grotescos, bizarrices e visuais perturbadores, ao presente de inquietações manifestadas mais, digamos, limpidamente. No frigir dos ovos, é besteira deter-se em demasia nessa metamorfose que simplesmente aponta para o esgotamento do artista ante alguns registros utilizados à exaustão (pelos quais ficou estigmatizado). E, convenha-se que, por exemplo, ficcionalizar o choque entre Sigmund Freud e Carl Gustav Jung (os pais da psicanálise moderna), como visto em seu mais recente filme, é expediente altamente transgressor na contemporaneidade bestial, somente de maneira menos óbvia.
David Cronenberg e Viggo Mortensen

Um Método Perigoso funda-se primeiro na relação entre o impetuoso Jung e sua paciente russa Sabina Spielrein. A conexão, que começa profissional, descamba para o pessoal quando o doutor cede aos encantos da moça acometida por sérios distúrbios ligados à excitação sexual, com quem então passa a ter um caso de tórridas proporções. Jung sofre pela culpa que o invade, da mesma maneira que acusa o golpe pelo embate travado com seu mestre Freud, este avesso às contribuições duvidosas que venham contaminar suas teses fundamentadas na ideia do sexo como nascedouro das neuroses. Arguto como sempre, Cronenberg utiliza a infidelidade como tempero do verdadeiro motriz dramático, ou seja, a colisão entre os egos de Jung e Freud: o pupilo que busca abertura aos seus pontos de vista (quem sabe como maneira de alargar ainda mais sua fama), enquanto o mestre tenta preservar sua inconteste autoridade no campo científico.

Jung projeta em Freud uma espécie de figura paternal. O atrito ocasionado pelo “filho” que tenta subjugar o “pai”, cuja autoridade passa a ser questionada, é nuclear em Um Método Perigoso, e encontra ecos na própria psicanálise. Aliás, Cronenberg enriquece o tecido fabular da trama com características pertencentes às mais diversas moléstias psíquicas, não por acaso cujos tratamentos são até hoje bastante influenciados tanto pelas ideias de Jung como de Freud. Falando neles, são interpretados com muita competência, respectivamente, por Michael Fassbender e Viggo Mortensen. Já Keira Knightley entrega mais do que sua limitação contumaz permite, embora exista dificuldade em quantificar o exagero residente (ou não) na sua leitura desta mulher mentalmente abalada.

Elegante, Um Método Perigoso utiliza a repressão inicial das pulsões e desejos de Carl Jung, e seu posterior sentimento de culpa, como balizas para a maioria dos conflitos por ele internalizados. Também investe com particular interesse na figura hipnótica e persuasiva de um Sigmund Freud defensivo, certamente temeroso frente ao possível estremecimento da idolatria suscitada em seus seguidores. Ganha contornos de obra maior quando se concentra justamente nos encontros (nem sempre amigáveis) entre os dois gênios da ciência, que a despeito de todo legado que deixaram para a compreensão das enfermidades da mente, eram, como todos, reféns de sua própria falibilidade.   

28/09/2021
Trinity é o Meu Nome, Lo chiamavano Trinità..., 1970, Enzo Barboni

Trinity no iutubi
 
Lo chiamavano Trinità (Trinity é o Meu Nome) – 1970, por  Waldemar Dalenogare

Lo chiamavano Trinità (Trinity é o Meu Nome, no Brasil) foi filmado na Itália. Na virada da década de 1960 para 1970, Terence Hill estava ganhando fama e se tornando o símbolo dos westerns italianos, ao lado de seu amigo Bud Spencer. Trinità não só foi o responsável pelo aumento considerável no contracheque dos dois atores, mas também garantiu financiamentos dos Estados Unidos nos longas posteriores estrelados pela dupla.

Hill interpreta o personagem principal, chamado Trinity, um pistoleiro que chama a atenção pela sua sujeira. Ele chega até uma cidade e descobre que seu irmão, o criminoso Bambino (Bud Spencer), está ocupando o cargo de xerife até que sua gangue chegue e o resgate (ele recentemente escapou da prisão e era procurado pelas autoridades). Os dois enfrentam problemas com o Major (Farley Granger), homem mais poderoso do vilarejo que quer remover uma colônia de mórmons da região a todo custo. Mas Trinity se apaixona por duas mulheres e pede que seu irmão o ajude a manter os religiosos no local, enfrentando o Major e seu grupo de mercenários mexicanos.

Apesar de ser ambientado no velho oeste, neste western você não vai encontrar grandes tiroteios. Como já expliquei no post de Il mio nome è Nessuno, o grande barato dos filmes de Hill e Spencer é a excessiva quantidade de humor. Aqui, eles deixam as armas de lado e passam a usar as mãos para resolver os problemas da cidade, protagonizando cenas muito engraçadas.

Mas se engana quem pensa que Trinity não tem habilidade com a arma. Durante os primeiros minutos, o personagem de Hill mata uma dupla de caçadores de recompensa com dois tiros cegos, sem ângulo de visão.  Um aviso a quem assistir: não se sabe o motivo, mas os produtores decidiram mudar os diálogos das versões em inglês e italiano. Assisti o longa em italiano com legendas em inglês e notei pelo menos uma dezena de diferenças. Não sei como as distribuidoras no Brasil resolveram este conflito, mas posso dizer que a versão em inglês parece ter muito mais humor em relação à versão seca da Itália.

A combinação da habilidade e agilidade de Trinity com a força brutal de Bambino tornaram Lo chiamavano Trinità um sucesso mundial e marcaram o longa como a maior paródia aos spaghetti da década de 1960.

29/09/2021
A Gardênia Azul, The Blue Gardenia, 1953, Fritz Lang

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Embora o cinema Noir seja lembrado principalmente por seus detetives particulares e Femme Fatales, há uma figura bastante presente no subgênero, mas nem sempre associado a ele: os jornalistas. Essas figuras solitárias e moralmente ambíguas, sempre fazendo de tudo para obter o seu furo jornalístico encaixam-se perfeitamente no universo Noir, tendo sido exploradas pelo diretor Fritz Lang em uma trilogia Noir jornalística. O primeiro filme dessa trilogia, que ainda contaria com No Silêncio de Uma Cidade (1956) e Suplício de Uma Alma (1956), foi A Gardênia Azul (1953).

Na trama, Norah (Anne Baxter) é uma telefonista que, em seu aniversário, recebe uma carta de seu noivo que está lutando na Guerra da Coreia, apenas para descobrir que ele rompeu o compromisso após se apaixonar por uma enfermeira. Deprimida, Norah aceita um encontro às escuras com o mulherengo Harry Prebble (Raymond Burr) na boate Gardênia Azul. Bêbada, ela aceita o convite de Harry para ir até o apartamento dele, mas quando ele tenta agarra-la à força, ela se defende com um atiçador de lareira. No dia seguinte, Norah acorda em casa sem lembranças do que houve, mas quando descobre que Harry foi morto, passa a acreditar que o matou. Paralelamente, o jornalista Casey Mayo (Richard Conte), tenta chegar à assassina (batizada pela mídia de Gardênia Azul) antes da polícia, para obter um furo de reportagem.

Anne Baxter e Richard Conte

Escrito por Charles Hoffman a partir de uma noveleta de Vera Caspary, A Gardênia Azul é considerado um filme menor de Lang, inclusive por ele próprio, que via a obra como um trabalho de encomenda. Ainda assim, o diretor consegue fazer o seu estilo presente, dando ao projeto uma aura bastante cínica na construção de universo; tom já presente no roteiro, mas que é reforçado pela direção, vide a espetacularização do crime pela imprensa ou a busca de cidadãos por seus quinze minutos de fama. Esse cinismo se reflete inclusive na construção do casal protagonista, o que acaba gerando um ruído quando o longa tenta uma abordagem mais romantizada em seu 3º ato. (...)

30/09/2021
O Anjo e o Malvado (Angel and the Badman), 1947, James Edward Grant

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“O Anjo e o Malvado”: Um faroeste que se opõe à violência
Primeiro filme produzido por John Wayne, “O Anjo e o Malvado” foge dos padrões dos faroestes por sua mensagem de paz e pouca ação.
O pistoleiro Quirt Evans (John Wayne) chega ferido a uma fazenda quaker, onde é socorrido por Thomas Worth (John Halloran) e sua filha Penelope (Gail Russell). Depois que os moradores da pequena cidade descobrem a identidade do forasteiro, o médico aconselha os Worth a se livrarem dele, mas Thomas prefere acolhê-lo. Com o tempo, Penelope acaba se apaixonando por ele, que acaba se interessando pela jovem e pela filosofia de paz quaker. Porém, a harmonia é quebrada com a chegada de dois vilões que querem matar Quirt.

“O Anjo e o Malvado” pertence à fase em que o faroeste procurava se renovar, fugindo da tradicional fórmula desgastada que já não estava satisfazendo os espectadores, acostumados então aos filmes mais elaborados  dos outros gêneros. Por isso, durante a primeira hora, não há praticamente nenhuma cena de ação. Depois disso, surgem alguns lugares comuns do western, como um roubo de gado, uma briga de salão, perseguições a cavalo, a paisagem do Monument Valley. Porém, igualmente há espaço para um número musical num saloon, e muito romance entre Quirt e Penelope, além de passagens da Bíblia e um teor moralista na estória. O tiroteio final, geralmente um duelo entre vilão e mocinho, é aqui revertido e tem uma solução similar ao posterior “Matar ou Morrer” (High Noon, 1952), que também pregaria soluções pacíficas.

John Wayne já era um astro consagrado, e por isso conseguiu produzir “O Anjo e o Malvado” para a Republic, sua primeira produção. O filme fez bastante sucesso, mesmo ousando ter um ritmo lento para o gênero, e arrancou muitos elogios para a belíssima atriz Gail Russell, cuja carreira, porém, não decolou devido ao seu alcoolismo, que detonou sua saúde, vindo a falecer com apenas 36 anos. (...)

01/10/2021
Nanook, o Esquimó (Nanook of the North), 1922, Robert J. Flaherty

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Nanook, O Esquimó, de Robert Flaherty, Nanook of The North, EUA, 1922

Verdades re-encenadas

A relação de incertezas entre o olhar do cinema ficcional e o olhar do documentário (como os dois paradigmas que nortearam a criação cinematográfica do século XX) tem em Nanook, o esquimó a síntese cristalina de seus dilemas. Polemico, apontado como o inventor do documentário, acusado de ilusionismo e idealização da realidade, a obra-prima de Robert Flaherty aparece na década de 20 como um desafio marcante aos territórios demarcados pelo cinema. Com uma historia peculiar de produção (o filme foi rodado duas vezes por inteiro, já que os primeiros negativos se perderam em um incêndio), o filme navega entre a experiência da jornada de Flaherty ao Alasca em 1913 e a tentativa de recriar de forma autentica o conteúdo do material original em sua refilmagem de 1920. A seqüência da caçada das morsas, encenada pelo elenco de não-atores do filme (apesar de este ser um hábito abandonado anos antes das refilmagens, como assume o diretor), ainda hoje tenciona os limites da intervenção do diretor/idealizador sobre a realidade observada.

Dividido entre o dispositivo-cinema como instrumento de registro cientifico/informativo e as tradições do teatro filmado, o cinema encontrava em Nanook um hibridismo até então impensável. Entre o olhar épico das descrições de grandes eventos/paisagens (cultivadas nos cinejornais e nos filmes-de-viagem) e o olhar dramático da tradição do teatro filmado, Flaherty faz de Nanook um filme que bebe na fonte do entretenimento narrativo e na liberdade do registro in loco com uma só e mesma curiosidade.
Nanook, o esquimó-ator, pode ser descrito como o primeiro personagem tridimensional do cinema documentário e o marco de toda uma nova tradição de representação da vida no cinema. Longe de buscar a Verdade, o que parecia interessar a Flaherty era a descoberta de uma nova impressão de autenticidade, uma nova forma de construção de verossimilhança (aparência de verdade) capaz de se aproximar do exótico, do homem não adestrado, do desconhecido.


Curioso notar-se que, ao contrario do que se poderia supor, o documentário como gênero narrativo aparece aqui justamente como uma reapropriação das construções da linguagem ficcional e se utiliza dela como base sobre a qual intervir. O ''cinema do real'' aparece como uma reinvenção dos padrões de ficcionalização: Flaherty faz em Nanook o primeiro filme de viagem/registro a explorar a construção da identificação publico/personagem como motor central de sua observação. Longe dos grandes eventos e das paisagens registradas por expedições cientificas, Flaherty constrói não apenas um retrato de indivíduo, mas a imagem de uma certa humanidade em estado bruto e de suas relações com as forças da Natureza (tema seminal da obra de Flaherty - ver O Homem de Aran, de 1934).

O mistério do rosto silencioso do esquimó marca a fundação de uma nova tridimensionalidade da personagem registrada, da invenção da identidade a partir da interpretação de si diante da câmera. Flaherty inventava ali uma ficção nova que poderia ir alem dos esquematismos dos grandes estúdios e das "interpretações delicadas" (expressão griersoniana) das estrelas. A tentativa de objetivação, encontrada na narração dos filmes de Flaherty, não era, lembremos, uma postura nova; mas uma releitura do próprio modo de operação narrativa (baseado em lições de moral e com raras nuances de discurso) cultivada no cinema norte-americano nas décadas de 10 e 20. Flaherty não se via, ao que deixa transparecer, como o criador de um gênero para a Verdade no cinema (como depois se propagou entre militantes do documentário e de um certo cinema antropológico), mas de um modo de aproximação da imagem e artesanato temático que apontariam para uma representação humana para alem do teatro de gestos marcados.


O que parece ser flagrante em Nanook não e seu lugar de ilusionismo discursivo ou de realidade transcrita, mas o modo como ele registra o momento em que o cinema descobre em seu aparato técnico a possibilidade de uma dramaturgia liberta dos padrões de captação, iluminação, interpretação e segurança dos palcos-estúdios – expandindo os domínios da narrativa dramática para alem do teatro encaixotado e das interpretações cultivadas em formol. Não se trata, portanto, de documentário ou ficção, mas do foco renovado em direção ao discurso fílmico em seus desdobramentos, em suas possibilidades de arquitetura e aproximação de temas. Se Grierson bebe em Flaherty para fundar sua escola naturalista e engessada de documentários (propagada nas TVs a cabo de todo o mundo ate hoje), também estão na coragem de Flaherty as primeiras faíscas de um cinema narrativo irrequieto com o lugar de onde se narra, com a forma de se aproximar das imagens do novo, do não-familiar.
Um falso filme de registro ou um registro fiel de uma re-encenação? Diante das ebulições de novos realismos e outras tantas falsidades, o filme de Robert Flaherty permanece inigualável, ignorando e reinventando os limites de território e gênero, sobrevoando a todos no rosto inimitável de seu esquimó. Nanook é Nanook e é cinema. Nada mais do que tudo isso.

CITAÇÕES:
"O peixe solar de ‘O Homem de Aran’ era verdadeiro e demandou dois dias e duas noites de esforços para ser pescado, o que dá evidentemente ao episódio, além de um valor dramático uma tonalidade documental. Mas daí a considerar-se a obra de Flaherty como essencialmente documentária, o passo é largo demais. Em última análise, os filmes de Flaherty exprimem uma visão íntima e subjetiva do Homem e sua grandeza, uma grandeza no fundo perdida, e que poderá ser eventualmente reconquistada, mas que Flaherty por sua conta só situa em formas arcaicas da sociedade humana. Diferentemente do peixe solar de "O Homem de Aran", o monstro marinho de "La Dolce Vita" era de matéria plástica. Mas pode-se perguntar se a obra de Flaherty é mais documentária do que a de Fellini. Aqui fica uma sugestão para um debate útil."
Paulo Emílio Salles Gomes, na exibição de "O homem de Aran" na Cinemateca, 1962

"A idéia do documentário, em suma, exige apenas que as questões de nosso tempo sejam trazidas para a tela de uma qualquer maneira que estimule nossa imaginação e torne a observação destas questões um pouco mais ricas que até então. De um certo ponto de vista, se confunde com jornalismo; de outro, pode elevar-se à poesia ou ao drama. E de outro ainda, sua qualidade estética resulta simplesmente da lucidez da exposição."
Robert Flaherty (1924)

''Se há uma historia, é a do homem na sua oposição a natureza'.'
Robert Flaherty (1922)

FILMOGRAFIA:
Nanook, o esquimó (1922), Story of a potter (1925), Moana (1926), The 24 Dollars Island (1926), White Shadows of the South Seas (co-dir. 1928), Tabu (co-dir. F.W. Murnau / 1931), Industrial Britain (1931), O Homem de Aran (1934), O Menino e o Elefante (co-dir. Zoltan Corda / 1936), The Land (1942), Lousiana Story (1948).

02/10/2021
Morangos Silvestres (Smultronstället), 1957, Ingmar Bergman

Morangos silvestres no iutubi


Crítica | Morangos Silvestres, por Luiz Santiago

Ingmar Bergman teve a primeira ideia para a escrita do roteiro de Morangos Silvestres um ano antes do lançamento do filme, quando fez uma visita à antiga cidade onde morava sua avó e entrou na velha casa da família, tendo a impressão de que se abrisse uma daquelas portas seria visitado por cenas de um passado que, de repente, o assaltaria. Nesse mar de nostalgia e durante um período em que ficou hospitalizado, o diretor começou a colocar a ideia no papel, até que já em avançado tratamento do texto preocupou-se com quem poderia interpretar o personagem principal, e eis que chegou a Victor Sjöström, o aclamado diretor e ator sueco de A Carruagem Fantasma e Vento e Areia e a quem Bergman tinha profunda admiração, além de já o ter dirigido em Rumo à Alegria (1950).

Com a condição de que pudesse voltar para casa todos os dias em torno das 17h, quando tinha o costume de apreciar sua bebida favorita, Sjöström aceitou o papel, o último que interpretaria. No filme, ele dá vida ao Dr. Isak Borg, um senhor na casa dos 70 anos que está para receber o título de Doutor Honoris Causa. Ele resolve ir de carro de Estocolmo para Lund, caminho que o colocará diante de reflexões capazes de abalar consideravelmente seu mundo tão cheio de certezas. Neste momento de sua vida, Isak Borg é forçado pelas circunstância a refletir sobre o vazio da existência, sobre a forma como viveu até aquele momento, como criou os filhos e como tratou as pessoas com quem se relacionou. 

O roteiro não o expõe como um homem desprezível, mas desde muito cedo percebemos que as idiossincrasias da idade tornam a convivência com ele um tanto difícil, apesar da amabilidade com que encerra os assuntos que o deixam irritado.
Para não cansar Victor Sjöström que já estava com saúde bastante frágil, Bergman procurou deixá-lo parado a maior parte do tempo, apesar de algumas vezes o ator ter batido o pé e dito que queria fazer outras coisas, andar, correr, não ficar apenas sentado em um carro ou deitado, comendo morangos silvestres enquanto lembrava de seu passado. Essa disposição do protagonista mostra o quanto o papel de Isak Borg lhe caiu como uma luva, inclusive mantendo a dualidade de homem duro e frio à primeira que, ao ser acompanhado de perto, se mostra doce e compreensível, dando espaço para conversas e falando muito mais de si do que parecia disposto à primeira vista.


Gunnar Fischer, o diretor de fotografia que ainda trabalharia em mais dois filmes de Bergman, O Rosto e O Olho do Diabo, amplia ao máximo o poder da memória do velho Doutor ao dar brilho ao passado, explodindo a luz nos figurinos brancos e na cozinha ou cômodos bem iluminados da casa do passado, sempre contrastados aos ambientes mais escuros do presente, seja em tomadas internas ou externas. Há inclusive uma brincadeira de Bergman sobre a posição nostálgica de Isak, vivenciando a ele mesmo quando jovem e quando criança, interagindo pela memória com alguém querido de seu passado. Nestas cenas, a fotografia ressalta ainda mais a presença da explosão de luz através do campo-contracampo, dando conta de um presente sempre opressivo e pessimista, mesmo que de fato não o seja; para um passado sempre mais caloroso, belo e despreocupado.

Entre discussões sobre fé levada a cabo por dois jovens e o choque de gerações que temos em pouco tempo (apesar da grande profundidade, o filme é estruturalmente muito simples), com pessoas de diferentes idades aproveitando ou desperdiçando oportunidades, seguindo o que é caraterístico de cada faixa etária — algo semelhante Bergman nos mostrou em sua obra anterior, lançada no mesmo ano, o telefilme A Chegada do Sr. Sleeman  — e buscando, acima de tudo, a felicidade. Morangos Silvestres é uma visita ao passado a partir de um olhar maduro, onde a saudade da energia da juventude, das pessoas que partiram e de quando ainda se tinha para viver juntam-se para trazer uma lufada de crescimento pessoal (o fato de Isak pedir desculpas para a emprega no final é uma prova disso) e o peso indescritível da solidão.

Isak recebe tarde a punição pela sua frieza ao longo da vida e se impressiona o quanto aquilo o afeta. Ele entende que é tarde para remediar seu atual status, mas percebe que ao menos naquilo que estiver ao seu alcance, pode tentar controlar e fazer diferente. O roteiro de Bergman explora as opiniões das pessoas e seus sentimentos a partir de reações extremas, algumas vezes tóxicas e inconciliáveis, como visto no casal de adultos que provocam o acidente na estrada; outras vezes passíveis de serem compartilhadas e abertas à convivência, a despeitos das rusgas no meio do caminho, como no caso dos amigos discutindo religião ou da visão drástica de Evald (Gunnar Björnstrand) sobre o mundo e sobre o fato de ter filhos, uma postura diferente daquela sustenta por sua esposa Marianne (Ingrid Thulin), uma das “mulheres trágicas à beira da felicidade” que encontramos nos filmes de Bergman.

A visão de que sempre somos visitados pelas consequências de nossas ações passadas é o mote de Morangos Silvestres, mas o texto não coloca isso como uma vingança, carma ou elemento divino pré-moldados para nos assombrar. Vindo como memória e filtrada pela experiência de vida, essa cobrança moral e sentimental precisa encontrar a abertura certa para se manifestar. Aqui, é o título que Isak está prestes a receber e que faz com que ele se perca pensando sobre coisas que não tinha se permitido até então. É desse encontro consigo mesmo que o peso dos atos e o agridoce dos tempos felizes do passado vêm à tona, como se dessem mais uma oportunidade ao velho Doutor de acomodar-se e provar os morangos silvestres que ele mesmo produziu ao longo da vida.

03/10/2021
Resgate de Bandoleiros (The Tall T), 1957,  Budd Boetticher




Crítica

Bud Boetticher se identifica com o melhor do filme B dentro do gênero faroeste e O Resgate do Bandoleiro se destaca como paradigma de sua cinematografia.

Contando com Randolph Scott, protagonista em sete de seus filmes, Boetticher constrói um herói que foge do estereótipo “o mais rápido gatilho do oeste”. No papel de Pat Brennan, Scott é um pacato fazendeiro que se desloca até o rancho de seu ex-patrão para comprar dele um touro. Porém, os dois fazem uma aposta e Pat perde seu cavalo, tendo que voltar para casa caminhando. No trajeto, consegue uma carona na carruagem de um amigo, que leva um casal em lua de mel. Para desgraça de todos, eles encontram três bandidos. O cocheiro é morto, e esse seria o mesmo destino dos passageiros e só não é porque o marido recém-casado oferece sua mulher como refém para pedir um resgate ao pai dela, cuja fortuna motivou seu casamento.

O perigo que os três reféns correm está evidente porque eles mataram o viúvo e seu filho que moravam na estação onde eles abordaram a carruagem em que estava Pat, chocado porque os dois eram seus amigos. E matam sem piedade o cocheiro. O casal é poupado porque podem render um bom dinheiro de resgate, já no caso de Pat, só descobriremos mais tarde.

Não é um faroeste clássico

Desde o início, notamos diferenças em relação ao faroeste clássico. Na abertura, Randolph Scott caminha em direção à tela, em movimento vertical, e não horizontal, contrariando uma das principais características do gênero. Quando Pat encontra seu amigo e seu filho, no caminho para a fazenda do ex-patrão, parece que estamos diante da cena similar de Os Brutos Também Amam (Shane, 1953) – o menino, inclusive, tem a mesma idade e a mesma voz. Porém, ao contrário de Shane, Pat não é, e nunca foi, um pistoleiro. Quando Pat está partindo, o menino grita para que ele retorne. E seu pedido não é algo digno de um grande herói: o garoto quer que Pat compre um punhado de doces no armazém. Fica evidente, então, quem é o protagonista, apenas um homem comum.

Diante da situação de perigo que se encontra, aprisionado pelos três bandidos, Pat usa o melhor recurso que possui, sua astúcia. Através da conversação, insinua subliminarmente que o líder dos criminosos, Frank Usher (Richard Boone), não confie nos seus subalternos, e parta sozinho para coletar o dinheiro do resgate. Após a saída de Frank, com artifício semelhante, Pat consegue derrotar os dois bandidos que ficaram. Note a violência da cena em que o bandido Billy Jack é morto, incomum para a época.

Pat consegue também transformar Doretta (Maureen O’Sullivan), uma mulher solteirona, enrustida e submissa, porque sempre foi desprezada pelo pai, que queria um filho homem. Ela se resigna a se casar com o interesseiro Willard (John Hubbard), só para não permanecer solteira. Depois de ser traída pelo marido que a oferece como refém aos bandidos, ela se sente totalmente desprezada. Em conversa íntima, Pat a desperta de sua apatia. (...)

04/10/2021
Roman Polanski: A Film Memoir, 2011, Laurent Bouzereau




Um documentário sobre a vida, e carreira, do cineasta Roman Polanski. Através de uma conversa entre Polanski e seu amigo, o produtor Andrew Braunsberg, o filme revela detalhes sobre a sua extensa filmografia e relata acontecimentos de sua vida, como o assassinato de sua esposa, Sharon Tate. 

06/10/2021
Missa da Meia-Noite, Midnight Mass, TV Mini Series, 2021, Mike Flanagan

A Missa da Meia-noite conta a história de uma pequena comunidade de uma ilha isolada, cujas divisões existentes são ampliadas pelo retorno de um jovem desgraçado e a chegada de um padre carismático. Quando a aparição do Padre Paul na Ilha Crockett coincide com eventos inexplicáveis ​​e aparentemente milagrosos, um fervor religioso renovado toma conta da comunidade - mas será que esses milagres têm um preço? 

"Missa da Meia-Noite": na Netflix, o melhor trabalho do criador de "Hill" e "Bly" Isabela Boscov 


 
08 10/2021
Na Teia do Destino, The Reckless Moment, 1949, Max Ophüls



Embora encontremos um filme americano de 1950 (Vendetta) co-assinado por Max Ophüls, sua despedida dos Estados Unidos aconteceu de fato em The Reckless Moment, de 1949. A participação do diretor em Vendetta durou apenas uma semana e meia em agosto de 1946, quando foi demitido do cargo, sendo o primeiro de cinco diretores que assinariam um pedaço do filme, lançado, como já dito, apenas em 1950. Em sua curta carreira nos Estados Unidos, o diretor nos deixou dois filmes memoráveis, o primeiro, Carta de uma Desconhecida (1948); e o segundo, Na Teia do Destino, objeto da presente crítica.

Baseado na história The Blank Wall, escrita por Elisabeth Sanxay Holding para o Ladies Home Journal, o filme explora um conflito ético e moral de uma forma bem distinta daquela que normalmente se espera de um noir, primeiro pelo foco dramático colocado em uma mulher — a mãe de família e não femme fatale Sra. Lucia Harper, interpretada maravilhosamente por Joan Bennett — e depois pela forma despreocupada com que o diretor explora o problema central, que começa com um ato de rebeldia da filha mais velha e termina com a mãe tendo que resolver todos os problemas sozinha, numa situação em que escala rapidamente para problemas secundários derivados de um momento imprudente.

Max Ophüls sabe trabalhar com primazia o seu elenco de apoio, dando-nos um grande contraste entre o que parece ser uma família feliz e a possibilidade de sua dispersão por conta da morte de um homem. É a partir desse cenário bem estruturado (semelhante à família de A Sombra de Uma Dúvida, silenciosamente ameaçada pela chegada do tio Charlie) que acompanhamos os afazeres de todos no dia a dia, e tendo o conhecimento dessas ações comuns é que passamos a temer cada chegada de um novo indivíduo em cena, pois ele pode trazer uma ameaça para essa normalidade. 

Dos coadjuvantes da casa, o maior destaque é do caçula da família, David (David Bair), mas todos possuem uma boa interação e bons diálogos, criando uma espécie de contraste duplo: o caráter realista da vida dos Harper tem como antítese a direção de arte meio barroca para as internas na casa, e esse “estranho par” tem um contraste ainda maior quando há um crime que o ronda e ameaça. No derradeiro ato, o dilema moral toma conta e o filme deixa às claras o seu objetivo: expor a hipocrisia do pensamento das instituições como um todo, especialmente da família. 

A primeira discussão surge em torno de permitir ou não que um homem seja culpado por algo que ele não fez (mesmo tendo feito muitas outras coisas ruins) e termina tocando em outras questões como a fidelidade no casamento e condições ou aceitação de escalas da justiça — quer a lei tenha conhecimento dos “crimes domésticos”, quer não. 

Na Teia do Destino é um filme simples. A montagem salienta o tom de crônica e a discussão maior vem no final, após algumas sequências sugerirem um desvio para algo menos interessante, como a investigação direta do assassinato que dá origem a tudo. Mas o texto volta a atenção para a família e é nela (e no veneno em seu seio) que permanece até o fim, talvez sentimental demais em torno do personagem de James Mason no desfecho, mas ainda assim, sustentando o seu imenso valor dramático e valorizando sua abordagem diferente para um gênero tão cheio de possibilidades como o noir.



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