quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Filmes parte 11

Angel (Anjo), 1937, Ernst Lubitsch
Toys in the Attic (Na voragem das paixões), 1963, George Roy Hill
Garden of Evil (Jardim do Pecado), 1954, Henry Hathaway
I compagni (Os companheiros), 1963, Mario Monicelli
Vaghe stelle dell'Orsa... (Vagas estrelas da Ursa), 1965, Luchino Visconti
Todas as melodias, 2020, Marco Abujamra
Curral, 2020, Marcelo Brennand
Miss Marx, 2020, Susanna Nicchiarelli
La isla mínima (Pecados antigos, longas sombras), 2014, Alberto Rodriguez
Alguien tiene que morir (Alguém tem que morrer), mini-série, 2020
Miracolo a Milano (Milagre em Milão), 1951, Vittorio De Sica
La classe operaia va in paradiso (A classe operária vai para o paraiso), 1971, Elio Petri
La ciociara (Duas mulheres), Vittorio De Sica, 1960
Hell in the Pacific (Inferno no Pacífico), 1968, John Boorman
Love Among the Ruins (Amor entre ruinas), 1975, George Cukor
Blackbird, 2019, Roger Michell
The Glorias, 2020, Julie Taymor
La vie devant soi (Madame Rosa – A vida à sua frente), 1977, Moshé Mizrahi
La vita davanti a sé (Rosa e Momo), 2020, Edoardo Ponti
My Darling Clementine (Paixão dos fortes), 1946, John Ford
La caduta degli dei, Götterdämmerung (Os deuses malditos), 1969, Luchino Visconti
Scarlet Street (Almas perversas), 1945, Fritz Lang  
Blade af Satans bog (Páginas do livro de satã), 1920, Carl Theodor Dreyer
O que arde, 2019, Oliver Laxe
Mank, 2020, David Fincher
Gertrud, 1964, Carl Theodor Dreyer
 

27/10/2020

Angel (Anjo), 1937, Ernst Lubitsch

Angel no iutubi 

Angel por Sérgio Vaz

Anjo/Angel foi, para mim, uma fantástica, maravilhosa descoberta. Este filme que Ernst Lubitsch fez em 1937 tem muito menos fama, muito menos reconhecimento do que deveria. Pelo que dá para perceber, simplesmente não foi compreendido em sua época.

É uma obra-prima, um filmaço. É uma comédia amarga – ou mais exatamente um drama, um triste drama, com toques de bom humor. É inteligente, sensível, feito por adultos para adultos. Trata do casamento, dos perigos de se negligenciarem os desejos do outro em nome da rotina, da carga de trabalho, e da possibilidade – que está sempre à espreita de cada um – de uma nova paixão.

Ao ver Angel, não me lembrava de ter lido ou ouvido loas a ele, referências a ele como uma das grandes realizações do berlinense Ernst Lubitsch (1892-1947), o homem do toque, o cineasta das obras refinadas, elegantes, glamourosas. Antes de ler qualquer coisa já escrita sobre o filme, estava certo de que de fato ele não teve o reconhecimento que merece.

E é interessante isso, porque Angel veio apenas dois anos antes de Ninotchka, talvez o maior sucesso do grande realizador, e os dois filmes têm alguns importantes pontos em comum:

* os dois têm uma grande, belíssima, famosérrima estrela encabeçando o elenco, as duas nascidas na Europa e atraídas para a Meca do cinema – Greta Garbo no filme de 1939, Marlene Dietrich neste aqui; * o mesmo galã, no auge da carreira na época, está nos dois filmes: Melvyn Douglas.

* boa parte da ação dos dois se passa em Paris; em Ninotchka também há acontecimentos em Moscou, e a ação de Angel se divide entre Paris e Londres;

* Ninotchka é o tempo todo uma sátira política. Angel, não – mas há vários momentos de sátira política, e fala-se bastante de política. Não poderia ser diferente um filme dirigido por um intelectual alemão e lançado em 1937, com o nazismo já tomando conta da Alemanha e mostrando as garras pavorosas.

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28/10/2020

Toys in the Attic (Na voragem das paixões), 1963, George Roy Hill

Roteiro: James Poe baseado na peça de Lillian Hellman

Na voragem das paixões

Quando o indolente Julian Berniers retorna com sua noiva, Lily, para sua pobre casa em Nova Orleans, ele é saudado por suas adoradas irmãs solteironas, Carrie e Anna. Ele confessa que perdeu sua fábrica de sapatos em Chicago, mas insiste que, mesmo assim, continua rico. Na ocasião, ele as presenteia com presentes caros, incluindo duas passagens para a Europa. Carrie, possuída por um incestuoso amor pelo irmão, se mostra feliz, enquanto Anna, desconfiada, não entende por que ele se recusa a explicar a fonte de sua súbita riqueza.

Além disso, Lily suspeita de que ele tenha estado com outra mulher. Quando a Sra. Albertine Prine, mãe de Lily, chega com seu confidente negro, Henry Simpson, para visitar a filha, Carrie ouve quando eles discutem a respeito de um negócio envolvendo terras entre Julian e Charlotte Warkins, uma de suas amantes, no qual o marido de Charlotte foi enganado. Ressentida, Carrie estimula Lily a telefonar para o Sr. Warkins e expor o que ocorrera. 

Como resultado, Julian e Charlotte são atacados por homens contratados por Warkins, sendo espancados e roubados. Ao retornar para casa, agredido e ferido, Julian sente a felicidade estampada no rosto de Carrie e, ao perceber que foi ela, e não Lily, quem o traiu, ele sai em busca de sua noiva. Por outro lado, percebendo que não há mais condições de conviver com sua irmã, Anna também decide ir embora, viajando para a Europa. Sozinha, Carrie fica a se iludir ao pensar que ambos voltarão um dia.29/10/2020

Realizado pelo cineasta George Roy Hill, a partir de um roteiro escrito por James Poe, “Na Voragem das Paixões” é um filme norte-americano produzido pelas empresas The Mirisch Corporation e Meadway-Claude Productions Company em 1963. Sua trama, baseada num peça de Lillian Hellman, fala de uma família americana marcada por muitos segredos escondidos.

Embora não seja extraordinária, a direção de George Roy Hill se mostra razoavelmente segura, no que é ajudado pela boa fotografia em Panavision a cargo de Joseph F. Biroc. 

No elenco, Geraldine Page e Wendy Hiller brilham em seus respectivos papéis, seguidas pelos ótimos desempenhos de Dean Martin, Gene Tierney e Yvette Mimieux.

29/10/2020

Garden of Evil (Jardim do Pecado), 1954, Henry Hathaway

Jardim do Pecado no iutubi

Jardim do pecado

Um pequeno navio, a caminho da California, é obrigado a parar numa enseada, a fim de reparar problemas ocorridos na sala de máquinas.  Três passageiros são deixados em terra, já que a duração dos serviços acha-se estimada em cerca de cinco a seis semanas.  São eles Hooker, um ex-xerife, Fiske, um aventureiro e jogador inveterado, e Luke Galy, um jovem encrenqueiro.

Uma vez na praia, tomam conhecimento que se encontram no pequeno vilarejo mexicano de Puerto Miguel.  Ao encontrarem um Bar, onde uma jovem cantora está-se apresentando, entram para tomarem algo e verificarem o que poderão fazer enquanto esperam a conclusão dos reparos do navio.

Pouco depois, chega ao local Leah Fuller, uma jovem senhora, casada com um engenheiro de minas.  Ela comunica aos presentes que houve um desabamento em sua mina de ouro, localizada nas montanhas, e que seu marido acha-se ferido e preso por uma viga.  Assim, oferece US$ 2 mil a cada homem que se dispuser a socorrê-lo.  Com exceção de Vicente Madariaga, os mexicanos que se encontram no Bar recusam a oferta por saberem ser difícil voltar das montanhas com vida, já que a região é dominada por apaches belicosos.  Os três americanos encontram na proposta de Leah uma forma de passarem parte do tempo que deverão ficar em Puerto Miguel.

Assim, a cavalo, partem Leah, Madariaga, Hooker, Fiske e Galy.  A viagem é tensa, pela presença de sinais dos apaches e por conta de Galy, que tenta assediar a bela Leah.  Hooker, com sua liderança e firmeza, consegue pôr ordem no grupo e chegar à mina após dois pernoites.

Depois de libertarem o Sr. Fuller e de imobilizarem uma de suas pernas, que se acha quebrada, o grupo se vê obrigado a retornar imediatamente, pois é eminente um ataque dos apaches.  Na primeira parada para descanso, Galy e o Sr. Fuller são mortos pelos índios.  Logo depois que reiniciam a viagem, uma nova baixa se dá quando Madariaga é atingido por uma flecha mortífera.

Hooker, Fiske e Leah continuam a descer as montanhas, sempre perseguidos pelos guerreiros apaches.  Num determinado ponto, considerado estratégico do ponto de vista defensivo, Hooker sugere que Fiske prossiga com Leah, enquanto ele permanece mais um pouco para dar cobertura aos dois.  Fiske, com seu instinto de jogador, insiste que as cartas é que devem decidir quem ficará.  Tirada a sorte, Hooker é o escolhido para acompanhar Leah em seu caminho montanha a baixo. 

Ao chegar a um ponto em que sente não haver mais perigo para a jovem, Hooker volta para ajudar Fiske, mas o encontra mortalmente ferido, depois de ter conseguido afastar os apaches.  Em suas últimas palavras, Fiske pede a Hooker que cuide de Leah. 

Baseado numa história escrita por Fred Freiberger e William Tunberg, "Jardim do Pecado" é um bom faroeste.  Realizado pelo famoso cineasta Henry Hathaway, o filme foi rodado nos desertos vulcânicos do México e procura se concentrar nos relacionamentos entre os diversos personagens, alguns movidos pela influência do ouro.

O trabalho de Hathaway é consistentemente bom, assim como a trilha sonora do premiado Bernard Herrmann, um dos compositores preferidos de Hitchcock.  Um dos pontos altos do filme é exatamente o suspense que ele provoca quando as emoções tornam-se tensas entre alguns dos principais personagens.

No elenco, os três maiores destaques são as ótimas atuações de Gary Cooper, Susan Hayward e Richard Widmark.  Este é o segundo filme de Hayward ao lado de Cooper e o terceiro em que ela é dirigida por Hathaway.  Num pequeno papel, a porto-riquenha Rita Moreno aparece cantando parte de duas canções.

30/10/2020

I compagni (Os companheiros), 1963, Mario Monicelli

Os companheiros no iutubi 

"Os Companheiros" seduz ao tornar próximos operários e intelectual letrado

Inácio Araujo

É provável que "Os Companheiros", um sucesso absoluto nos cineclubes universitários da década de 1960, tenha angariado mais adeptos à causa operária que textos de Marx, Lênin e Trótski. Revendo o filme na bela cópia da Lume, compreende-se. Estamos em Turim, fim do século 19. Os operários trabalham 14 horas por um salário de fome, perdem as mãos nas máquinas e não sabem como se opor ao patronato.

É quando chega à cidade o professor Sinigaglia. Aqueles rudes trabalhadores de repente sintonizam com as ideias do sujeito perseguido por ajudar os operários. Aos poucos compreende-se por que o filme seduzia jovens estudantes: o intelectual e o proletário se aproximavam sem dificuldades.

Melhor: é impossível não perceber a superioridade do homem de letras, "o guia" do povo. Por fim, o filme não tem a carga tradicional da doutrina marxista: banha-se no simpático anarquismo que vigorava na época. E o aspecto romântico caminha lado a lado com o ideológico.

Fim do capítulo ideologia.

Ou quase: o fato de ser Mastroianni o professor não era um empecilho à identificação do espectador letrado. Dito isso, para quem estranhar que "Os Companheiros" seja um filme de Mario Monicelli, mais conhecido por suas comédias, recomenda-se rever esses filmes: existe um viés inconformista que não destoa deste drama. Além da política, "Os Companheiros" é filme de bela mise-en-scène, com momentos antológicos, como a chegada do professor, em meio a bolas de neve, e o plano final.

O espectador habitual das comédias de Monicelli notará aspectos frequentes, como o uso euforizante da música, que lembra "O Incrível Exército de Brancaleone".

No mais, o filme conta com vários nomes importantes no elenco e com a fina flor dos técnicos do cinema italiano da grande fase, do fotógrafo Giuseppe Rotunno ao cenógrafo Mario Garbuglia, que acabara de fazer "O Leopardo". Quer dizer, só daria errado se Monicelli fosse ruim. E ele estava bem longe disso.

02/11/2020

Vaghe stelle dell'Orsa... (Vagas estrelas da Ursa), 1965, Luchino Visconti

Vagas estrelas da Ursa no iutubi

De onde não se vê estrelas.

Marcelo Leme 

“Vagas estrelas da Ursa, eu não acreditava 

voltar e poder novamente contemplá-las 

brilhando e iluminando o jardim de meu pai,

ou conversar com você de sua janela 

nessa casa onde vivi minha infância 

e vi a última alegria da minha vida se desvanecer”

Giacomo Leopardi

Vagas estrelas da Ursa... O título vem de um verso do poeta italiano Giacomo Leopardi. Já o filme é uma releitura da tragédia grega de Electra, peça de Sófocles. Em cena, um retorno a Volterra, um regresso ao passado de seus complexos e obscuros protagonistas. O que Luchino Visconti propõe é uma submersão ao que é longínquo, mas persistente na memória afetiva, embora visivelmente destrutiva. Então perceba: o filme constantemente traz alusões às decorrências do tempo. A narrativa toda é visualmente povoada por monumentos que retratam a história do país, plano de fundo adequado às pretensões históricas e emocionais a serem desenvolvidas. Aqui, o passado é um castigo guardado onde a ursa não brilha.

As referências visuais – uma das cenas iniciais dentro de um carro em movimento é uma apresentação local muito bem arquitetada – implicam no pretérito entre infelizes lembranças do nazismo e as consequências da Segunda Guerra na Europa. A repercussão da violência da guerra fundamenta o enredo. Os países estão se reerguendo de suas próprias ruínas. A fotografia encontra alguma beleza nisso. Este entorno contextual adorna a trama que parece sempre presa e amordaçada, no sentido de manter-se prestes a uma eclosão imprevista, capaz de acontecer a qualquer instante. Assim fica por um longo tempo com o espectador aguardando. É quando o silêncio capta o não dito que entramos de vez nessa pulsão narrada por Visconti.

Na história constam aspectos elementares do desejo carnal, visceral às angústias salientadas no comportamento de seus personagens. São vários os recursos que emulam o anseio, todos esses traduzidos nas relações representadas, fotografadas a partir de um preto e branco denso, mórbido, quase aspirando à imagética de um horror soturno. O ator francês Jean Sorel tem uma performance não menos do que esplêndida. Ele escreve um livro de memórias, um livro maldito. Junto a ele, em cena, Claudia Cardinale, que vive sua irmã, deslumbra tal como sempre faz. A atriz utiliza de suas expressões acentuadas – e aqui destaco seu pintado olhar lancinante – e movimentos naturalmente eróticos para somar à dinâmica relacional desenvolvida pelo roteiro, favorecendo a composição de sua personagem bidimensional que atende pelo nome de Sandra. A inquieta e indecifrável Sandra que acompanharemos.

Ela casa-se com Andrew, americano que viajou até a Europa a fim de conhecer histórias sobre Auschwitz. O passado está à tona em outro aspecto. E foi em Auschwitz que um pesadelo familiar se sucedeu. É quando Sandra decide levar o marido para conhecer a casa palaciana de seus pais, em Volterra, na Toscana, que a trama se lança às descobertas. A investigação de Andrew, por mera ocasião, encontra um novo foco de atenção. É aí que, inevitavelmente, a partir do momento que conhecemos o mito de Electra e Orestes, encaixamos as peças, entendendo essa releitura, ou melhor, essa adaptação de Visconti a respeito do mito.

Entre tantas coisas exuberantes no decorrer da obra, uma das mais marcantes consiste em sua cinematografia, o desenho da luz sobre o corpo de seus personagens. Estes irrompem das sombras, às vezes similares aos bustos e demais obras de arte apresentadas. A nudez em certos instantes refere-se às estátuas gregas iluminadas. Sandra e seu irmão dividem espaço com todas as artes, como se fizessem parte de um museu de memórias onde tudo envelheceu conjuntamente, restando a incapacidade de sair dali, mover-se, arrancar todas as raízes. Desgarrar do pecado. É um peso insuportável carregado pela dupla tal qual um segredo que não demora a nos ser revelado. A narrativa não existe em pró do segredo, mas do modo o qual os personagens o suportam.

Visconti, com seu cinema cabal, novamente disparou contra a decadência da sociedade. Este é um dos temas centrais de seu impactante cinema. Adentramos numa espiral de destruição que implica a moral: ao passo que um vislumbra a luz do passado, com Gianni trazendo-o à luz, Sandra o nega, esquivando-se num conflito pessoal. Em frente à estatua do pai, encoberta, os dois se encontram. Visconti é hábil ao tratar distintas discussões. Aqui procura romper com aquele que considerava ser o último tabu da sociedade contemporânea. Cenas magníficas fez de As vagas estrelas da Ursa um filme impetuoso e absolutamente rico. O diretor o lançou logo após O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), considerado sua obra-prima, o que rendeu uma recepção menos empolgante a este. Não teve a mesma atenção à época, mas é igualmente relevante e admirável.

03/11/2020

Todas as melodias, 2020, Marco Abujamra

Todas as melodias

Robledo Milani

Segundo o dicionário, melodia vem do grego, e é o nome que se dá a uma sucessão coerente de sons e silêncios, que se desenvolvem em uma sequência linear com identidade própria. Ou seja, algo que dificilmente se aplicaria a um artista como Luis Melodia – afinal, termos como “coerente” e “linear” não costumavam fazer parte do seu repertório. No entanto, há algo com o qual era profundamente ligado: a uma personalidade singular, facilmente reconhecível e de forte impacto tanto entre os colegas como, principalmente, junto aos seus muitos admiradores. É a partir dessa leitura que Marco Abujamra desenvolve Todas as Melodias, um documentário que recai sobre temática já desgastada – o resgate audiovisual cinebiográfico de um expoente da música popular – mas que se desenvolve através de outros caminhos, evitando justamente a tal coerência e linearidade apontada lá em cima. E, assim, consegue não apenas espelhar uma figura ímpar, como também fazer jus a um artista realmente imortal.

Sem se preocupar em elaborar uma estrutura narrativa com início, meio e fim, preocupada apenas em enumerar os acontecimentos de uma vida acima de tudo rica – uma tarefa fadada ao fracasso – a partir de uma leitura wikipédica, Abujamra opta por trilhar caminhos não muito óbvios, ao mesmo tempo em que não se exime em fazer uso de elementos que sustentem essas voltas mais complexas pelas quais decide se aventurar. Assim, o espectador irá se encontrar com um Luis Melodia que é tanto imagem quanto som, uma presença fulgurante nos palcos e um homem até mesmo tímido quando em casa ou junto aos seus. É um mosaico, que vai se formando aos poucos, através de um relato colhido aqui, um depoimento que surge acolá, um vídeo de bastidores que vem para preencher importante espaço, e, por fim, um resgate proporcionado por uma imagem de arquivo. Um pouco de cada, e muito mais do que cada uma das suas partes em isolado.

A tarefa de ir compondo esse quebra-cabeça, portanto, recai sobre a audiência, que é tanto desafiada como reconhecida na mesma medida, seja por momentos preciosos com os quais é convidado a se deparar, mas também pelas pequenas surpresas que vai encontrando pelo caminho. Entre vislumbres raros do artista no palco, seu habitat natural, através do qual revela a desenvoltura que o manteve na ativa durante uma carreira de mais de cinco décadas, é possível vê-lo também em família, amigos e também em situações preciosas de entrega à arte, com um violão nos braços e a música que fluía naturalmente pela sua voz. Porém, quem se ocupa em discorrer impressões e verdades a seu respeito são os que ficaram, como a esposa, Jane Reis, que fala tantos dos sucessos como das passagens mais difíceis de um relacionamento de mais de quarenta anos, as irmãs, dispostas e revelar curiosidades e lembranças do âmbito familiar, e mesmo os filhos, em participações pontuais.

Ao lado desses depoimentos, que se encaixam na narrativa de forma nada impositiva, há ainda uma descoberta de imensa valia: um encontro antigo, dentre os quais se destaque o poeta Wally Salomão, um dos responsáveis por ter apostado no talento do jovem negro da comunidade da Estácio que, a partir dali, foi conquistar o país e o exterior. Como que clássicos do seu repertório, como a referencial Pérola Negra, ganharam corpo, vão vindo à tona como numa conversa de bar, sem pressa nem compromisso, ao mesmo tempo em que são intercaladas por performances dedicadas de nomes como Gal Costa, Céu, Arnaldo Antunes e Liniker. Os mestres e as revelações, diferentes lados de uma mesma moeda.

E é assim, sem se ocupar do básico, informações corriqueiras que qualquer pesquisa na internet pode apontar e, por isso mesmo, desnecessárias ao olhar mais profundo ao qual Abujamra se dedica, que Todas as Melodias não apenas encontra seu valor, mas também se mostra à altura do seu biografado. Um conjunto hipnótico, que reconhece tanto a arte como a sensibilidade de um cantor e compositor muito à frente do que talvez possa ser lido como seu tempo, seja pelo impacto que deixou naqueles que o seguiram como na força que demonstrou durante o tempo que por aqui transitou. Um filme preocupado com o antes e com o depois, com o que foi feito de importante e com a repercussão dessa criação, permitindo que o hoje seja ocupado por uma leitura nunca menos do que apaixonada, mas capaz de ir além da mera declaração: o que se tem é um reconhecimento, absolutamente justo e fervorosamente merecido.

04/11/2020

Curral, 2020, Marcelo Brennand

Curral

por Davi Lima 

O uso de metáforas visuais no cinema fazem parte da concepção ambígua da imagem cinematográfica, em que não apenas provoca interpretações distintas, como determina fortemente para o espectador o distanciamento ou a aproximação emocional dentro da história contada. O novo filme do diretor pernambucano Marcelo Brennand, o primeiro ficcional após dois documentários, com sua temática das eleições municipais e a má distribuição de água na cidade de Gravatá no estado de Pernambuco, ascende ainda em seu filme métodos documentais de gravação que situam um suspense e um drama quanto ao realismo corrupto desse período eleitoral, ao mesmo tempo que invoca com o protagonista Chico Caixa (Thomas Aquino) a representação impulsiva e revoltosa da desesperança política num período nebuloso. Assim, o diretor simboliza sua obra em metáforas e figuração dos símbolos políticos em suspense, mas também entra no impasse de distanciamento emocional pelo uso de didático e cíclico da relação simbólico-realista do filme.

Tende-se a compreender a proposta do diretor e roteirista Marcelo Brennand quanto à medida de possibilidades para seu primeiro plano do filme, com a água se movimentando dentro de um Caminhão Pipa, que não há intenções dele que a dimensão realista proponha uma conclusão para a problemática da obra, pois poderia se aproveitar disso para desmontar a denúncia do curral eleitoral determinado a acontecer no filme, ou que enfaticamente mude a realidade documentada de Gravatá. Desse jeito, a catarse emocional não advém de uma vingança ou de atos gravados para que o espectador entenda necessariamente uma mudança, e sim algo mais interno, algo mais associado ao drama do protagonista e como em termos abstratos parece impossível mudar a política brasileira de uma cidade. 

Por isso há uma certa justificação dentro do filme com imagens muito criativas, de contra-plongées (um “contra-mergulho” da câmera que observa uma cena e principalmente a personagem abaixo do nível dos olhos) acentuados, com personagens se afogando ou dando ênfase na posição que Chico Caixa, que se vê sem água em sua casa, como ponto determinante para mudanças na trama; ou até mesmo planos abertos do alto das casas de um bairro de Gravatá com bandeiras eleitorais coloridas — que dentro da direção de arte de Juliano Dornelles vão compondo brechas metafóricas de narrativa visual, no caráter realista das eleições. Nesse sentido, o ator Thomas Aquino (Bacurau, Todos os Mortos), que interpreta Caixa, tem a intensidade para refletir indignação palpável e se porta introspectivamente para a fotografia contemplativa e imersiva de Beto Martins. Logo, o âmbito do longa-metragem se caracteriza dinamicamente para se propor instigante no problema político e emocional, mas isso não compete plenamente uma administração estilística de Brennand como autor, tendendo a um vaguear emocional dentro da intensa representatividade determinista das eleições.

O protagonista, um tipo de “Robin Hood nordestino”, indaga o significado dentro do filme através de seu amigo candidato a vereador Joel (Rodrigo García), com o diretor trazendo a lógica metafórica como um transporte necessário para engatar a trama, usando efeitos sonoros e planos fechados com Chico para delimitar os pontos de virada. Se isso não soa mal engrenado entre o abstrato e o didático, é preciso se atentar comparativamente como as duas coisas são melhor relacionadas no estilo documental que é usado no filme para suspense ou imposição dramática para o trato realista, como quando o candidato Joel é levado por Chico a um assentamento, e é gravada uma conversa entre os moradores e os personagens que fazem campanha eleitoral. Tal cena não é feita com um plano e contra-plano comum, dando bem mais voz frontal aos moradores, como se cada reclamação deles em relação à política mentirosa, que promete e nunca cumpre, fosse captada em um documentário de pessoas reais indignadas. 

Parece que Marcelo Brennand compreende muito bem como naturalizar a derrocada política, onde a esperança vai morrendo numa história, diante do que o público já conhece dos currais eleitorais, não necessariamente pela previsibilidade. Mas o diretor, enquanto desenvolve sem muito esforço a narrativa aonde a amizade de Joel e Chico se desmonta, ou como Joel se rende as promessas monetárias de parceria política, parece travado em dialogar com os suplementos emocionais sonoros e visuais, estilizados, para determinar o centro metafórico e de desenvolvimento introspectivo de Chico Caixa. Esta é a representação relativa ao contexto indignante das eleições, porém essa resolução dramática do personagem soa mais vaga e didática diante do realismo documental da história, mesmo que o drama de Caixa seja evidentemente conciso.

Assim, os simbolismos envolvendo o personagem de Caixa são bem mais suplementares do que complementares para a trama, como uma poética pouco palpável, apenas como um apontamento de centralização para o protagonista, provocando uma certa redundância em algumas cenas, parecendo até que o diretor se esquece de Chico. No entanto, a estilização do diretor aglutina as pequenas incongruências no tratamento da história, pois durante o filme, várias transições na montagem vão tentando normalizar esse aspecto metafórico que começa na primeira cena. Além disso, o trabalho sonoro contribui para a ambiguidade cinematográfica, já que traz o efeito impactante além do aspecto interpretativo da imagem, contribuindo para que o distanciamento do espectador. Desse jeito, a obra se mantém consistente em ritmo e lógica de transformação, embora sua poética ao relacionar a falta de água ao personagem Chico Caixa e ao contexto recorrente das eleições pareça “desnecessária”, acaba por ser um adendo diferencial, uma identidade que só não é vazia porque toda a construção de uma reafirmação de curral eleitoral passa automaticamente pelo crivo metafórico no filme da primeira cena à última.

Ademais, Curral é uma obra atenta às impossibilidades do trabalho com sistema político vigorante no Brasil. O espectador logo identifica os vícios do partidarismo, do flanquear eleitoral em prol do jogo monetário, da compra de votos e da regra de favores. Mesmo se ouvindo mais uma vez promessas eleitorais, reclamações e novas esperanças em candidatos de partidos virgens no filme, não necessariamente específica da região pernambucana, coloca-se principalmente esse discurso na compreensão de fagulha de um bom suspense, para um gênero cinematográfico e para um drama único de Chico Caixa, bem interpretado em representação para o público que anseia mudanças, sejam elas práticas, ou em reflexões metafóricas mais distantes.

05/11/2020

Miss Mark, 2020, Susanna Nicchiarelli

Miss Marx no iutubi

'Miss Marx’ oferece uma viagem no tempo e resgata uma importante figura histórica

Por Juliana Oliveira

Entre o grande número de mulheres que marcaram a história mas foram negligenciadas com o tempo está Eleanor Marx. Terceira filha de Karl Marx, nascida em Londres em 1855, a jovem chamada pela família como Tussy, foi educada em casa pelo pai que ressaltou em seus ensinamentos o capital como guia da sociedade e a ênfase em seus constructos sobre o socialismo. Criada nesse contexto, o filme de Eleanor não poderia ser outro. Associada a Federação Social Democrata, a jovem dividiu sua vida entre o ativismo sindical, ressaltando as conferências e escrituras sobre socialismo; e um conturbado relacionamento amoroso. Miss Marx

Em Miss Marx, filme que compôs a seleção oficial do Festival de Veneza e venceu o prêmio da crítica italiana no festival, Eleanor (Romola Garai) se encontra no funeral de seu pai. A mesma em seu discurso no enterro recapitula os grandes feitos do homem, ressaltando aqueles que estão inseridos em suas vidas e presentes no momento. Enquanto Eleanor nos adentra na vida do filósofo, a câmera apresenta os personagens a cada vez que ela cita seus nomes. Grandes figuras históricas e também personagens que faziam parte do seu cotidiano, estão presentes no filme. Friedrich Engels (John Gordon Sinclair), Helen Demuth (Felicity Montagu), Olive Schreiner (Karina Fernandez), Laura Marx (Emma Cunniffe), Paul Lafargue (George Arrendell) e o não menos importante Edward Aveling (Patrick Kennedy). Escrito e dirigido por Susanna Nicchiarelli, o filme será exibido na Mostra de SP 2020 entre os dias 22 de outubro e 04 de novembro.

Na tentativa de situar o telespectador historicamente, o filme utiliza Eleanor como sua porta voz. O drama que irá girar em torno da filha de Marx, é guiado através dos discursos e diálogos da própria personagem para entender o que ocorreu antes do início do filme. Com seus pais já falecidos, o desejo concebido por ambos foi executado, enterrados juntos no mesmo local. Após passar a vida toda cuidado de seus pais, agora Eleanor encontra-se livre para poder dedicar o seu tempo a ela mesma. Dessa forma, a jovem embarca em uma nova fase na qual irá organizar suas ideias em livros, fundamentados com a teoria de seu pai, além de traduzir peças teatrais e utilizar sua oralidade como sindicalista. 

Dividido em blocos de anos, o filme situa qual ano estamos acompanhando antes da cena iniciada. Isso influencia para que possamos ter noção cronológica dos fatos e entender o que ocorria no mundo durante aquela época. Com uma ambientação dividida entre planos abertos, enquanto há um ar livre e descontraído nos grandes jardins que a burguesia possuía em suas casas, uma ambientação mais séria e escura permeia as instalações internas. A direção de arte do filme é clara e precisa ao pontuar o contraste social existente nas casas que Eleanor transitava e entre as fábricas nas quais a mesma ia ao reivindicar pelos direitos dignos dos trabalhadores. 

Com grandes casas, enormes bibliotecas e móveis chamativos, Eleanor leva uma boa vida com aquilo que possui, mesmo que, no dia a dia, se preocupe com as finanças pessoais e tenha controle do que gasta. O mesmo não ocorre com Edward Aveling (Patrick Kennedy), seu parceiro. Engatando um romance com o socialista após a morte de seu pai, Eleanor prevê uma feliz vida em conjunto com seu amado, médico e fundador da Liga Socialista. Entretanto, quando se relaciona com Edward, Eleanor se vê investindo em uma frágil relação, sem a base da confiança e com seus princípios desvalidados. Os vieses socialistas de Edward não são o suficiente para fazê-lo economizar o dinheiro que possuem e se planejar financeiramente. Bem como, o amor que possui por Eleanor não é o bastante para evitar que ele se relacione com outras mulheres. 

Assim como a vida de Eleanor, o drama também se divide entre os dois grandes aspectos de sua vida, sua carreira na política e seu conturbado relacionamento. Tento em vista que o filme é baseado em fatos reais, há grande influência da época na qual a jovem vivia e também dos princípios morais que ela enfrentava. Sendo de grande valia para a luta feminista, Eleanor destacava como o patriarcado reprimia as mulheres e acreditava que a luta socialista as tornariam livres em algum momento, havendo assim igualdade de gênero. 

Todos os pontos que a jovem defendia são apresentados no filme de forma orgânica. Apesar de inspirado em fatos reais, o filme utiliza sua criatividade para que a trama se torne mais dramática e trágica. Entre elas há a descoberta de Eleanor sobre o seu meio-irmão Frederick Lewis Demuth (Oliver Chris), configurando uma das cenas mais divertidas do filme. O longa também recorre ao passado, voltando no tempo e apresentando uma jovem Eleanor Marx que se encontra na biblioteca de sua casa com todos os seus familiares ainda vivos. Essas cenas do filme que pincelam a nostalgia no longa, e servem na construção do amadurecimento da personagem, não se encaixam tanto. Além de desnorteadas, soam artificiais e deslocadas, principalmente a cena final.  

Trafegando entre o trágico e o cômico, Miss Marx é um divertido drama que coloca os holofotes sobre uma importante figura histórica negligenciada durante muitos anos. Romola Garai, indicada ao Globo de Ouro em 2012 pela série The Hour e em 2011 pela minissérie de época Emma, conduz sua Eleanor Marx suavemente. Carismática, divertida, mas que facilmente demonstra tristeza quando o filme entra em seu arco mais dramático. A atriz facilmente invoca em nosso imaginário uma Eleanor Marx que não temos ideia de como era, mas que somos facilmente convencidos de que era do jeito que a atriz apresenta.

Conduzido pelo grupo musical Gatto Ciliegia Contro il Grande Freddo, o filme oferece uma trilha sonora punk que destoa completamente do cenário e ambientação lírica que a protagonista perpassa, a música entra em contraste com a moça que apresenta uma mistura de sentimentos, mas não se impõe em muitos deles. Todo o contraposto é colocado em cena pela música, incluindo uma cena na qual, com a presença inquestionável de Romola Garai, após um estalo de lucidez induzido, Eleanor Marx dança de forma extravasada. A cena que possui uma força poética, apesar de interessante se desconecta do filme assim como suas aparições de mais jovem. Mas é tão bom ver Eleanor colocar os ânimos para fora, que compensa a desarmonia. 

Miss Marx é um drama que pode, não ser fiel a história que conta, mas tenta fazê-lo da forma mais acessível e dramática possível. Na tentativa de apresentar parte específica da história, nos introduz uma personagem interessante em cena e mais ainda fora delas. A intepretação de Romola é um dos pontos mais altos do filme, que, em uma combinação esquisita com a trilha sonora, apresenta um divertido resultado. Apesar disso, algumas cenas desconexas, tiram a sua leveza e seu tom descontraído. 

Miss Marx,  trailer  

06/11/2020

La isla mínima (Pecados antigos, longas sombras), 2014, Alberto Rodriguez

Pecados antigos, longas sombras

por Ritter Fan 

Pecados Antigos, Longas Sombras (título explicativo absolutamente desnecessário em português) tem a grande vantagem de se esquivar de todas as formas de ser expositivo, professoral sobre a época em que se passa. Por outro lado, essa mesma característica pode afastar potenciais espectadores ou impedi-los de captar a essência da fita e talvez daí tenham tido a ideia, no Brasil, de usar um título como esse.

Então comecemos com a contextualização breve. O “Generalíssimo” Francisco Franco tornou-se ditador da Espanha em 1936, após emergir vitorioso da Guerra Civil Espanhola, que teve centenas de milhares de mortos. O país foi tomado por um estado militar paranoico que se manteve no lugar, inamovível, por décadas, até 1975, com a morte de Franco. Mas, antes de falecer, o ditador conseguiu restabelecer a monarquia na Espanha, deixando o Rei Juan Carlos I como uma espécie de sucessor. Ele abdicaria apenas em 2014, em favor de seu filho que tomou o nome Felipe VI. Em 1977, o país teve as primeiras eleições democráticas e, em 1978, uma nova Constituição foi promulgada, restaurando a democracia no país.

É, então, nessa situação de recém-descoberta democracia que o filme, dirigido por Alberto Rodríguez, se passa. Trata-se de uma produção que em muitos momentos lembra a atmosfera da primeira temporada de True Detective, com uma região semi-pantanosa, semi-desértica servindo de pano de fundo (bem ao sul da Espanha) a um caso de sumiço de duas garotas sendo investigado por dois detetives, em 1980. A narrativa é lenta, com uma fotografia deslumbrante que carrega em tons sépia e muita claridade, aumentando a sensação de desolação e de falta de rumo, quase que se traduzindo em uma certa “falta de identidade”.

A narrativa mais direta, ou seja, a investigação do sumiço (que longo se transforma em investigação de assassinato com muitos e sinistros desdobramentos) é apenas a camada mais externa da produção e, francamente, a que menos empolga, dada a necessidade de Rodríguez, que co-escreveu o roteiro com Rafael Cobos, de fazer seus personagens quicarem por todos os lados várias vezes em repetições que quebram um pouco o ritmo da ação. Mas não se enganem, há suspense e ação de qualidade nesse aspecto do filme. São particularmente brilhantes as sequências em que Pedro (Raúl Arévalo) persegue um automóvel no escuro e a final, na chuva, em que seu parceiro, Juan (Javier Gutiérrez) tem participação chave.

Se fosse, porém, apenas um filme “de detetives”, Pecados Antigos, Longas Sombras não seria mais do que mediano, a não ser que o espectador se deixe enganar pelas tomadas aéreas belíssimas que vemos (mas que foram feitas a partir da digitalização de algumas fotografias de Hector Garrido, na região da Andaluzia). O que realmente retira a produção daquela “meiúca” ingrata de filmes bonitos, mas pouco memoráveis é realmente a história política que enriquece e explica a parceria hesitante entre Juan e Pedro.

Pedro parece representar a nova Espanha, aquela que saiu das trevas há pouquíssimo tempo e ainda não teve tempo de se acostumar com a claridade (outro aspecto funcional da fotografia). O que exatamente é democracia, considerando-se que ela tem apenas dois ou três anos de vida? Ele é questionador e esse questionamento foi o que o levou a ser transferido para o caso, diga-se de passagem, como castigo. Juan, por outro lado, é a velha Espanha, a Espanha da violência, a Espanha da morte. Ele está em seu meio, mas sabe que seus dias estão contados (há uma “vidente” que chega a dizer isso a ele, por vias transversas). Seu passado ao mesmo tempo o atormenta e o permite fazer o que faz com bastante tranquilidade para descobrir o(s) responsável(is). Há conflito entre os dois, mas uma certa cumplicidade, o que só atrapalha, mas no bom sentido, a definição, pelo espectador, sobre quem representa o que. Não há preto e branco aqui, apenas os proverbiais tons de cinza.

E Javier Gutiérrez e Raúl Arévalo encarnam seus difíceis papeis à perfeição, convencendo tanto como policiais em uma “terra de ninguém” como quanto arquétipos opostos do passado e do futuro, mas sem que o roteiro precise esfregar isso em nossas caras. Aliás, como mencionei no início, isso é algo que o roteiro procura não fazer e, a não ser por dois momentos quando os detetives são lembrados de que “estamos em uma democracia!” pelo chefe de polícia, ele é silente, deixando esse choque entre velho e novo vir apenas discretamente à superfície, com elementos sendo revelados aqui e ali. Claro que, mais para o final, a clareza sobre exatamente quem é quem – ou quem FOI quem – torna-se evidente, mas nem ali a resolução é simplista e Gutiérrez e Arévalo carregam visivelmente um grande peso nas costas com seus personagens opostos e quase em pé de guerra (mas não como em fitas de buddy cop hollywoodianas).

O crescendo da narrativa ganha velocidade em seu terço final, mas nunca realmente sai de um nível terreno em que efetivamente podemos acreditar na ação e em seus desdobramentos. Se pararmos para pensar, mesmo no meio do frenesi, a direção comedida de Rodríguez deixa tudo nas entrelinhas, com silêncios desconcertantes substituindo explosões e outras pirotecnias.

Pecados Antigos, Longas Sombras precisa da camada histórica para realmente ser apreciado pelo que ele é, camada essa que não virá didaticamente na produção. Caso contrário, o espectador periga sair desapontado, depois de “apenas mais um thriller policial”.

07/11/2020

Alguien tiene que morir (Alguém tem que morrer), mini-série, 2020

Um tour de horror pela homofobia (na época do Franquismo,1939-1975). E tem Carmen Maura na pele da vilã que só ela sabe ser. Vale, e tem só três episódios) 

"Um rapaz de classe alta volta à Espanha, em 1954, e descobre que seus pais lhe arranjaram uma noiva. Só que ele está mais interessado em um bailarino mexicano. O showrunner Manolo Caro reuniu um elenco de peso para esta minissérie de três episódios: Carmen Maura ("Volver"), Carlos Cuevas ("Merlí") e Cecilia Suarez (com quem Caro trabalhou em seu primeiro projeto para a plataforma, a série "A Casa das Flores")."

Tony Goes, FSP, 20/10/20

Alguém tem que morrer

Por Vinícius Nader

Solte a presa, Mire o alvo, Puxe o gatilho ー os títulos dos três episódios da série espanhola Alguém tem que morrer fazem a trajetória completa de uma caçada onde os sentimentos dos personagens são os principais alvos. Cada vez mais feridos, cada um deles vai morrendo por dentro, do jeitinho melodramático latino que a gente adora.

No catálogo da Netflix desde 16 de outubro, Alguém tem que morrer se passa na Espanha da década de 1950, quando o jovem Gabino (Alejandro Speitzer, o Dario de Desejo sombrio) volta do México para a Espanha depois de 10 anos. Na chegada dele, duas surpresas: o rapaz vem acompanhado do bailarino Lázaro (Isaac Hernández) e a família está preparando para ele um casamento de interesse com Cayetana (Ester Expósito, a Carla de Elite).

Tudo isso traz uma tensão notada desde o primeiro minuto da série dirigida por Manolo Caro (A casa das flores). Ela está presente em cada reencontro de Gabino com a mãe, Mina (Cecilia Suárez, a Paulina de A casa das flores), com o pai Gregório (Ernesto Alterio), com a avó Amparo (Carmen Maura), ou com o amigo de infância Alonso (Carlos Cuevas, Pol Rubio de Merlí), irmão de Cayetana. E também aparece toda vez que Lázaro vai conquistando terreno ou que uma parte do segredo da criada Rosário (Mariola Fuentes) vem à tona.

Segredo é o que não falta aos personagens de Alguém tem que morrer. Alonso e Gabino escondem a sexualidade e uma relação no passado, Amparo guarda o mistério de como o marido morreu, Mina vive um casamento falido e está prestes a se entregar a um grande amor, Rosário é esposa de um presidiário. Tudo isso é jogado para debaixo do tapete por uma família caraterística daquela Espanha conservadora que parece se refletir na sociedade brasileira contemporânea em algumas vezes.

Alguém tem que morrer não deixa espaço para respiros ou cochilos rápidos. Com apenas três episódios de, em média, 40 minutos, não há tempo a perder. Resta ao público se preparar para uma sequência de acontecimentos em um ritmo frenético, mas que não casa. Tudo vem apresentado de uma forma para que não nos percamos.

Outro trunfo da série é o elenco, repleto de nomes conhecidos e boas atuações. Carmen Maura, musa de Pedro Almodóvar em filmes como Mulheres à beira de um ataque de nervos, Volver e Maus hábitos, dispensa apresentações e brilha tranquila em Alguém tem que morrer. Sua vilã absurda Amparo fica enorme em cena e acaba gerando empatia no público.

Lado a lado com Carmen Maura está Cecilia Suárez. Os embates entre as duas são imperdíveis e a contradição de Mina é um prato cheio para Cecilia, bem melhor aqui do que em A casa das flores. Ester Expósito deixa Elite para trás e também se destaca. O elenco masculino é que fica um pouco aquém do esperado. Assim como em Desejo sombrio, Alejandro Speitzer escolhe uma expressão e segue com ela, impassível, até o fim.

Mais sóbria do que a solar Casa das flores, outro trabalho de Manolo, Alguém tem que morrer é mais um tiro certeiro da boa safra de séries hispânicas que vêm chegando ao Brasil.

09/11/2020

Miracolo a Milano (Milagre em Milão), 1951, Vittorio De Sica

Milagre em Milão no Iutubi 

Parte sátira social, parte fantasia, este filme de Vittorio de Sica sugere uma visão infantil de O idiota de Dostoievski. Uma velha que gosta de divertir-se encontra um bebê numa horta de repolhos. O bebê torna-se o Bom Toto, homem feliz que ama todo mundo; quando ele se vê frustrado em seu desejo de ajudar aos outros, a velha, agora um anjo, desce e dá-lhe o poder de fazer milagres. O herói Toto, ingênuo e transbordando de amor, organiza uma favela de pobres numa comunidade ideal, mas as contradições sociais são absurdamente irremediáveis – nem poderes mágicos podem resolve-las. O fracasso da inocência, aqui, é tão absurdo que chega ao ponto de comover; o filme é poesia estilizada, não parece com nada que De Sica já fez. Francesco Golissano está perfeito como Toto; a heroína, Brunella Bovo, é o que as heroínas deviam ser e não foram. O filme proporciona um belo papel à grande e quase lendária dama do teatro italiano, Emma Gramatica (muitos e muitos anos antes, ela assumira aos papeis de Eleonora Duse, e atuara sob a direção de D’Annunzio) como a velha supremamente tola da fábula de De Sica, é abnegada e permissiva, como o Umberto D (do mesmo diretor) é altivo e teimoso. Com Paolo Stoppa como o homem infeliz. Cesare Zavattini adaptou se próprio romance. (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, Companhia das Letras, 1994)

11/11/2020

La classe operaia va in paradiso (A classe operária vai para o paraiso), 1971, Elio Petri

Iutubi

Ironia marca clássico do cinema político 

Cássio Starling Carlos

Basta dar poucos passos para superar a distância que distingue o céu do inferno ou é só atravessar um muro para descobrir que nada isola a razão da insanidade. É o que demonstra com precisão o cineasta Elio Petri em "A Classe Operária Vai ao Paraíso", filme de 1971 sobre a trajetória de um trabalhador cujo nome, Massa, carrega consigo as questões políticas que são as protagonistas da obra do diretor. 

O longa converteu-se em paradigma de um gênero, o "cinema político italiano", e obra maior de todas as tentativas feitas de apropriação política do cinema. E é até mais profunda que a implacável demonstração do poder como patologia feita por Petri em "Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita" (1970). 

Que se entenda política aqui não como discurso ideológico ou como ilustração de um valor para engajamento, como identificamos no passado nos filmes de Costa-Gavras e no presente nos filmes brasileiros que "acertam contas" com a ditadura militar, por exemplo. 

O projeto de Petri não comporta tantas certezas e, por isso, abriga ironias, como a explícita desde o título. Massa (Gian Maria Volonté) é um operário assediado, de um lado, por forças esquerdistas que pregam a radicalização, e, de outro, pelas seduções da sociedade de consumo, da qual seus magros rendimentos o mantêm apartado. 

Massa é metade besta, metade máquina, sem alcançar o status de homem, como ele terá condições de reconhecer em diálogos que evidenciam sua tomada de consciência da fragilidade de ideais como "liberdade" ou "autonomia". 

Mais admirável é ver como Petri encena tais questões sem ceder à tentação do discurso, dinamizando o fundo histórico das reivindicações trabalhistas em ação no capitalismo naquele momento e integrando sem arestas a dimensão social e a individual, o universal e o particular. O mundo que vivemos é outro e o capitalismo também, só que essa tragicomédia do homem qualquer nos ensina que quando nos dizem que tudo muda nem sempre nos avisam que pode ser para pior. 

Outra referência: A classe operária não alcançou o paraíso, Mariarosaria Fabris

12/11/2020

La ciociara (Duas mulheres), Vittorio De Sica, 1960

La Ciociara, Sophia Loren apresenta uma das melhores interpretações femininas do cinema!

Quando começou a produção de La Ciociara, filme que mostrava as conseqüências da guerra numa família simples, composta de mãe e filha, numa pequena cidade italiana, que dá nome ao filme, Anna Magnani deveria estrelá-lo interpretando a personagem Cesira, enquanto Sophia Loren interpretaria Rosetta, sua filha. Devido a algumas exigências de Magnani, que à época já havia concorrido duas vezes ao Oscar, seu nome acabou desligado do filme e, por indicação dela mesma, Loren ficou com a sua personagem, participando dessa produção italiana depois de já estar há alguns anos filmando nos Estados Unidos.

É de Alberto Moravia a história de que o roteiro se apropriou para tomar forma e, no romance, Moravia nos conta sobre duas mulheres, mãe e filha, que, durante a Segunda Guerra Mundial, saem de Roma assim que a cidade começava a ser bombardeada pelas tropas alemãs. As duas partem de trem, mas são obrigadas a percorrer um grande trecho a pé, chegando, por fim, à pequena região da Ciociara, local onde Cesira cresceu e onde estão ainda alguns de seus parentes, inclusive Michele, um rapaz que não cumpriu seus deveres militares a fim de continuar lecionando. Aparentemente fora do alvo alemão, cabe à mãe e à filha encontrarem meios de sobreviver naquele lugar.

O enredo da história relega aos dramas pessoas a sua força. Não há muita ação, nem muitos percursos percorridos pelas personagens, que só verdadeiramente se deslocam poucas vezes no filme, sobretudo no começo e no fim. O seu drama se encontra na situação das personagens e no modo como elas encaram aquilo que está por vir: estão ágoras seguros naquelas colinas, mas não têm o que comer, o que não é nada animador – pelo contrário, é bastante preocupante. Cesira inclusive encontra um homem que lhe vende um queijo – com a inflação, o preço do alimentou subiu de maneira exorbitante, resultando num simples produto com um valor que não se justifica pela qualidade. Não é à toa que Cesira se lança a uma procura por farinha e açúcar, tudo em nome da filha, a pequena Rosetta, que, como ela mesma diz, não tem nem sequer treze anos, e que precisa ser cuidada. 

Uma das cenas iniciais já mostra uma Cesira bastante forte: a mulher se deita com Giovanni, um amigo da família, mais especificamente suposto amigo de seu falecido marido, com quem Cesira parecia não se dar bem. De Sica a apresenta a nós agistralmente nessa cena: é aí que conhecemos toda a grandeza dessa mulher, até mesmo no ato de transar: as luzes somem pouco a pouco enquanto a mulher se deita, a câmera enquadrando seu rosto, numa fotografia perfeita, num olhar singular de Loren que demonstra desejo e tensão. Não ver mais nada – afinal, tudo fica escura e já se muda a cena – não quer dizer nada: conhecemos já uma vertente fundamental daquela mulher. Digo fundamental porque o desejo é o elemento que não se mostrará em Cesira até o fim da narrativa, ainda que, eventualmente, ela tenha outra aventura amorosa – ela agora está totalmente dedicada à filha e, como ela mesma diz, quando se tem uma filha como ela tem, não resta tempo para pensar em romance ou em sexo. A personagem é completa, afinal, dotada inclusive de libido.

Apresento essa informação porque, honestamente, é dificílimo assistir a esse filme e não observar Sophia Loren. Às vezes, olhamo-la mais do que vemos o que realmente está acontecendo em cena, tamanha é a sua grandiosidade como intérprete e, também, a sua feminilidade aflorada do começo ao fim. É linda, desses rostos que não se esquece – nem se quer esquecer. Quando ri, o espectador ri junto: sua risada é espontânea e alegre, basta ver a cena que Michele, sem querer, ao falar com ela pela janela, vê sua filha a tomar banho – a garota e ele se envergonham, e ela ri da situação, ri com tanto charme e desenvoltura – desenvolta até na risada – que cabe ao espectador acompanhá-la naquele momento fugaz de contentamento. Cabe dizer que a dona de casa e mãe batalhadora de Sophia Loren é provavelmente uma das mais sensuais do cinema, mesmo que esteja trajando vestes que pouco insinuem suas curvas ou que pouco queiram chamar a atenção. Penso que seja o pleno domínio de Loren que a levou, dois anos depois, a ganhar o Oscar, tirando-o das mãos de Audrey Hepburn, que competiu por “Bonequinha de Luxo” (1961), uma das concorrentes mais queridas da edição de 1962,

Acredito que seria bastante fácil que esse filme se tornasse monótono. Como disse, as movimentações bruscas e verdadeiramente notáveis acontecem no começo e no final da película, havendo apenas um “pequeno grande momento” em meados da narrativa. Não se trata de uma obra cujo roteiro justifica por si só o entretenimento do espectador nem garante que ele vá assistir ao filme até o final sem bocejar, pois, definitivamente, a mãe desse título é diferente da mãe de “Erin Brokovich – Uma Mulher de Talento” (2000), que está inserida numa causa transpiratória que, querendo ou não, alavanca muito mais ação do que aqui. Seria fácil que o filme se tornasse desinteressante, uma vez que também, entre os personagens, não há o conflito que se vê em “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” (1966), no qual, ausentes outros ambientes e objetos de intriga, os personagens se entregam à completa devastação física e moral através de longas agressões uns contra os outros. Em “Duas Mulheres” – bastante apropriada a escolha do título – mostra a relação entre as duas mulheres cujos dramas pessoais dão corpo à trama, e, vale apontar, nem sempre elas vivem situações perigosas, que instiguem tensão ao espectador: às vezes, há somente a sensação de calmaria, de tranqüilidade. E De Sica soube conduzir assombrosamente bem a trama, fazendo-nos atentar para cada segundo do que acontece ali, tornando o seu filme uma película prazerosa de se assistir.

Os minutos finais chocam o espectador, não que não esperava nenhuma surpresa – ainda mais uma tão grosseira e bruta como a que vemos. Cesira, num momento, se joga em frente a um comboio vindo de um campo de batalha e grita aos soldados ingleses se eles não percebem o quanto faz mal toda aquela guerra. É o ápice da trama e também o momento no qual nos deparamos com a grande dor da narrativa, tornando-nos cônscios da magnitude da interpretação de Sophia Loren, que antes nos havia conquistado com seu riso, mas agora também nos conquista com seu choro. De Sica transforou uma miudeza numa obra singular, elogiável, cuja qualidade não se dissipou, apesar de passados cinqüenta e dois anos desde o seu lançamento oficial – a obra é atemporal e excelente para mostrar o quanto uma guerra é capaz de afetar negativamente as pessoas, independentemente de suas classes sociais, credos ou gêneros. Definitivamente, é uma produção para se assistir mais de uma vez.

14/11/2020

Hell in the Pacific (Inferno no Pacífico), 1968, John Boorman

Inferno no Pacífico no iutubi

Inferno no Pacífico

Em 1944, um piloto da Marinha dos EUA e um oficial da Marinha japonesa encontram-se perdidos em um atol desabitado do Pacífico. Certo dia, o oficial japonês encontra um kit do avião americano acidentado perto de seu acampamento. Ao resgatá-lo, ele é visto pelo americano que, em seguida, o confronta na praia, ocasião em que este percebe que o japonês tem um pequeno reservatório de água potável. 

No embate que se segue, o japonês domina o americano e amarra seus braços em um tronco de árvore. Pouco tempo depois, no entanto, o americano escapa, captura o japonês e o prende de maneira semelhante. Depois de algum tempo, entretanto, os dois militares chegam à conclusão de que um precisa do outro, se quiserem sair daquela ilha perdida no meio do Pacífico. 

Assim, quando o japonês tenta construir uma pequena jangada, o americano se mostra inicialmente desdenhoso, mas acaba auxiliando-o na construção. Concluída a jangada, os dois velejam rumo a umas pequenas ilhas, onde conseguem chegar depois de uma viagem angustiante. A ilha é desabitada, mas restos de uma instalação japonesa bombardeada permitem que eles tomem banho, façam a barba, troquem as roupas e se embebedem com saquê. 

No entanto, a harmonia entre eles desaparece quando o japonês encontra, nos escombros, uma cópia da revista “Life”, mostrando fotos de soldados japoneses mortos e aprisionados. Assim, voltando ao relacionamento hostil mostrado no início do filme, os dois homens seguem caminhos separados.

Comentários

Realizado pelo cineasta John Boorman, a partir de um roteiro escrito por Alexander Jacobs e Eric Bercovici, “Inferno no Pacífico” é um filme norte-americano produzido pelas empresas Selmur Productions e Henry G. Saperstein Enterprises Inc. em 1968. Sua trama, baseada numa estória de Reuben Bercovitch, mostra como a luta pela sobrevivência supera qualquer outro sentimento humano. No caso, em plena Segunda Guerra Mundial, dois oficiais militares, um americano e outro japonês, perdidos numa pequena ilha do Pacífico Sul, esquecem suas diferenças e juntam forças para construírem uma jangada e tentarem chegar a uma ilha maior onde possam sobreviver.

Embora não tenha sido indicada a qualquer premiação, a direção de Boorman é de muito boa qualidade, o mesmo ocorrendo com a fotografia a cargo de Conrad L. Hall. No elenco, os dois atores se mostram irrepreensíveis.

15/11/2020

Love Among the Ruins (Amor entre ruinas), 1975, George Cukor

Na Londres vitoriana, uma viúva rica chamada Jessica Medlicott (Katharine Hepburn) vai casar com um caça fortunas. Contudo, ela desiste no último momento e é processada pelo seu ex-noivo. Para sua defesa em tribunal, ela contrata um respeitado advogado, Sir Arthur Glanville-Jones (Laurence Olivier). Trata-se de um antigo amor seu com quem mantivera uma relação amorosa há quarenta anos. O que Jessica desconhece é que o advogado continua apaixonado por ela. Este filme ganhou seis prêmios Emmy

16/11/2020

Blackbird, 2019, Roger Michell

Blackbird review – Sarandon and Winslet's lifeless death drama 

The Guardian

A terminally ill matriarch gathers her family together before she ends her life in a starry, but flat, drama that lacks insight and compelling conflict

More than any other major festival, Toronto is quite often blinded by stars. A smattering of recognisable faces in a film can distract programmers from a small thing like quality and so the lineup reliably features at least four or five flashy but time-wasting disappointments, forgettable films that will live and die at the festival, pre-premiere hype evaporating by the time the credits roll.

One of this year’s most glaring examples is Blackbird, a film that might tempt festivalgoers with its high-wattage cast but will struggle to exist anywhere else. The promise of Susan Sarandon, Kate Winslet, Mia Wasikowska and Sam Neill is enticing, especially given steerage by Roger Michell, a solid director whose credits include Notting Hill, Le Week-End and 2017’s underrated adaptation of My Cousin Rachel. But it’s all just window dressing, a superficial sheen added to a perfunctory script that doesn’t go anywhere or do anything we haven’t seen many times before. It’s less of a film and more of an actors’ workshop, an exercise for everyone involved but meaningless to us.

Lily (Susan Sarandon) is dying and by the end of this weekend, she’ll be dead. The pain of losing herself to illness is too much to bear so she decides, with help from her husband, Paul (Sam Neill), that she’ll expedite the process and invites her family to the house so they can spend her final days together. But there’s tension between her daughters, the uptight Jennifer (Kate Winslet) and the wayward Anna (Mia Wasikowska), and it threatens to destroy Lily’s perfectly laid-out plan.

There are so many familiar ingredients at play here that in order to rise above mediocrity, some remarkable insight or at least sparkling dialogue would be required to justify the film’s existence. We’ve seen a similar version of every element here before: the give-no-fucks terminally ill matriarch who quips rather than mopes, the repressed married sister who clashes with her freewheeling younger gay sibling, the reserved teen who finally comes out of his shell, the lesbian girlfriend whose interests include football and beer and the loyal husband who suffers in silence. It’s boringly reheated and writer Christian Torpe, who also wrote the Danish film this is based on, doesn’t have much in his arsenal other than a few lame attempts at gallows humour and so relies heavily on the actors to do the heavy lifting.

But Winslet is miscast, Sarandon is coasting, Neill is sleepwalking and Wasikowska, an extremely talented yet recently underused actor, is stuck playing the sort of role she should have grown out of by now. Also, are we really still associating rebellion with being gay and having a buttoned-up lifestyle with being straight? A far more interesting dynamic would have switched the sisters’ sexuality but that would have required thinking outside of a very small box. The most interesting actor on screen is a soulful Lindsay Duncan as Lily’s old friend and a more interesting film would have focused on that pairing above the undercooked family drama that unfolds. It’s never really possible to buy into the characters as a family given how thinly etched their relationships are to one another and so when the inevitable fireworks arrive, it’s more like someone waving a sparkler in your face.

Blackbird is a politely made film in search of meaning it’s never able to find, an empty, if thankfully short, piece of festival fodder, its death arriving mercifully soon.

Blackbird is showing at the Toronto film festival and will be released at a later date

18/11/2020

The Glorias, 2020, Julie Taymor

‘The Glorias’ Review: Hear Them Roar

Various incarnations of Gloria Steinem take to the road in this reverential biopic.

By Jennifer Szalai

The New York Times, Sept. 30, 2020

There’s so much that happens in “The Glorias,” a strenuously well-meaning biopic based on Gloria Steinem’s 2015 memoir, “My Life on the Road”; the film, like the woman that it depicts, is constantly on the move. In her book, Steinem recalled how her father, a good-natured if hapless salesman who never kept his family rooted to one place, inculcated her with a love of travel. Encountering new places and people can unsettle our assumptions, she wrote; being on the road “specifies,” preventing us from taking refuge in the familiar “generalities.” Under the direction of Julie Taymor, “The Glorias” never truly engages with this idea, skating along the contours of a long life that’s so eventful and accomplished that the end result comes across like a two-plus hour, slickly produced highlight reel.

We see Steinem as a dreamy child (Ryan Kiera Armstrong) and a young adolescent (Lulu Wilson), as her parents squabble about money and eventually split, leaving her mother (Enid Graham) to succumb to depression and hallucinations — her ambitions dashed, her spirit broken. Steinem’s father (Timothy Hutton) is depicted as a boisterous, shambolic presence, cooking up harebrained moneymaking schemes and giving little Gloria, demurring in front of her broccoli, a heaping scoop of ice cream for dinner.

Alicia Vikander and Julianne Moore play the grown-up Gloria, both of them impeccably costumed and looking the part, even as their talents get hemmed in by a schematic script from Taymor and the playwright Sarah Ruhl. Steinem moves swiftly from a post-college stint in India, listening to women share their experiences, to a career as a journalist, patronized by male colleagues whose idea of a compliment is to tell her how pretty she is and that she writes “like a man.” She rebukes one editor who warns her that writing a story about abortion would associate her with “those crazy women”: “I am one of those crazy women,” the Vikander version of Gloria says.

And so an activist is born, one who learns to find her voice among other feminists, including Dorothy Pitman Hughes (Janelle Monáe), Flo Kennedy (Lorraine Toussaint), Wilma Mankiller (Kimberly Guerrero) and Bella Abzug (Bette Midler). The intersectional core of the movement is rightfully emphasized, yet in the apparent push to make this movie as instructional and inspirational as possible, the dialogue gets saddled with some heavy-handed exposition.

Feminista-ícone, Gloria Steinem chega aos 85 anos

"Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta."

Running against the Wind

19/11/2020

La vie devant soi (Madame Rosa – A vida à sua frente), 1977, Moshé Mizrahi

Madame Rosa vive num prédio de seis andares, sem elevador, no bairro Pigalle, em Paris. Ela é uma prostituta aposentada, judia e sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Vive adotando crianças abandonadas por outras prostitutas. Momo é o mais velho e seu favorito, um rapaz argelino que foi criado como muçulmano. Quando ele pergunta a ela sobre seus pais, ela sempre dá respostas evasivas. À medida que vai ficando mais velha e com mais crianças para cuidar, o dinheiro vai acabando e Momo precisa ajudar sua mãe. Um dia o pai de Momo aparece. E Madame Rosa, doente, não sabe o que fazer. 

L’adaptation littérale du plus grand canular littéraire de ces dernières décennies

Critique de Virgile Dumez

En 1975, un certain Emile Ajar reçoit le prix Goncourt avec son roman La vie devant soi qui décrit un Paris interlope et populaire ultra-violent et misérable à l’aide d’un langage ordurier et heurté qui séduit l’académie. Même si des doutes commencent à naître autour de cet auteur sorti de nulle part, la mystification opérée par Romain Gary, véritable auteur du livre, ne sera révélée qu’à sa mort. Cette histoire incroyable a d’ailleurs donné lieu au film Faux et usage de faux (Heynemann, 1990) avec Philippe Noiret et Robin Renucci.

Lorsque le réalisateur israélien Moshé Mizrahi décide d’adapter le roman La vie devant soi, il ignore donc tout de cette mystification littéraire et tente donc de traduire au mieux une œuvre qui s’appuie sur un style puissant et original. Deux options s’offraient à lui : soit tenter de traduire l’effervescence littéraire du romn par un style foncièrement original et déstabilisant, soit affadir le propos en se livrant à une transcription fidèle des grandes étapes narratives du livre. Mizrahi a plutôt suivi la deuxième voie, sans doute plus simple, mais qui tend à vider le bouquin de son essence.

Plongée dans le Paris de toutes les couleurs et origines

En l’état, Moshé Mizrahi opère un choix qui s’avère déterminant pour le film qu’il souhaite réaliser : il remplace le quartier de la Goutte d’Or connu pour sa population d’origine populaire et misérable, par le celui de Belleville plus directement touché par l’immigration. Le cinéaste entend ainsi parler d’un Paris rarement montré à l’écran à l’époque, à savoir celui où les Noirs, les Arabes et les juifs sont bien obligés de cohabiter au sein d’immeubles insalubres. Au cœur de cette population bigarrée, d’anciens résidents comme cette Madame Rosa incarnée par Simone Signoret, tentent de survivre.

Le personnage est marqué par un vécu particulièrement gratiné puisque Rosa est une rescapée d’Auschwitz qui s’est ensuite livrée à la prostitution. Désormais, elle s’est reconvertie en garde d’enfant pour les prostituées qui ne peuvent pas s’occuper de leur progéniture. Au milieu d’une ribambelle de gosses, Madame Rosa est liée à Momo, un gamin arabe qu’elle a recueilli il y a une dizaine d’années et dont elle refuse de se séparer.

Une vision du livre fondée sur l’empathie envers les personnages

Là où les relations entre le gamin et la vieille dame étaient parfois tendues dans le bouquin, à cause des dérives violentes du gosse, Moshé Mizrahi préfère insister sur leurs points communs, blessures et liens indéfectibles par-delà la mort. Sans doute inquiet par la dimension sordide du livre, Mizrahi a donc volontairement adouci le propos, ce qui lui a valu de fortes critiques à l’époque de la sortie du film. Aujourd’hui, le long-métrage paraît pourtant encore très fort, jetant un regard sans concession sur la prime adolescence.

Certes, Mizrahi évite les effusions de violence, mais il parvient à rendre sympathique le petit Momo, et développe l’empathie que l’on peut éprouver pour cette Madame Rosa, pourtant pleine de préjugés raciaux. On apprécie toutefois son discours qui vise à démolir toute forme de communautarisme pour privilégier l’humanisme. Quant à la volonté du cinéaste de militer pour le droit de chaque être humain à choisir sa fin de vie, elle ne peut que nous toucher au plus profond.

Simone Signoret, une grande comédienne au sommet

Porté par l’interprétation dantesque d’une Simone Signoret impressionnante, La vie devant soi est sans doute trop sage dans sa réalisation qui ressemble à s’y méprendre à celle d’un téléfilm. C’est le plus gros défaut de cette œuvre pourtant puissante et qui émeut par la puissance de conviction de son interprète principale. Signoret, qui se livre ici sans fard, était devenue l’une de nos plus grandes actrices et elle a très largement mérité son César de la meilleure actrice, tant elle est formidable. Il est plus étonnant de retrouver La vie devant soi au palmarès des Oscars en tant que meilleur film en langue étrangère.

Sorti en novembre 1977, La vie devant soi a connu un magnifique succès au box-office français en se hissant à la neuvième place annuelle avec près de 2 millions de spectateurs conquis, malgré un sujet pas facile. Un score qui démontrait la popularité intacte d’une très très grande actrice, au sommet de son talent.

20/11/2020

La vita davanti a sé (Rosa e Momo), 2020, Edoardo Ponti

Sophia Loren interpreta sobrevivente do Holocausto em 'Rosa e Momo'

Aos 86 anos, diva italiana volta a atuar após uma década em remake de filme italiano de 1977, que adapta história para incluir crise dos refugiados. Mas em vez de exibição nos cinemas, longa será exibido pela Netflix.

Uma simples frase encerrando os créditos finais da produção cinematográfica Rosa e Momo (La vita davanti a sé) indica circunstâncias difíceis durante sua realização: "Este filme foi produzido durante a pandemia de covid-19 em 2020. O diretor e os produtores agradecem a todos os envolvidos por ele se tornar uma realidade."

O roteiro e a direção de Rosa e Momo ficaram a cargo de Edoardo Ponti, 47 anos, filho mais novo de Sophia Loren. Desde 1957, ela esteve casada com seu pai, Carlo Ponti, falecido em 2007.

Ponti pai, mundialmente famoso produtor de cinema italiano havia descoberto a jovem napolitana em 1950 durante um concurso de beleza em Roma. Reconhecendo o talento extraordinário de Loren, Ponti a colocou em aulas de atuação e fez dela um sex symbol do cinema. Como resultado, Loren atuou em mais de 100 filmes ao lado das maiores estrelas de Hollywood.

Edoardo Ponti – filho e diretor 

Há dez anos que a mundialmente famosa diva das telonas, que possui duas estatuetas do Oscar em seu luxuoso domicílio em Genebra, não participava de nenhum filme. Ela simplesmente não se interessava pelos roteiros oferecidos. Coube a seu filho Edoardo trazê-la de volta para a frente das câmeras – aos 86 anos.

O longa foi rodado no final do verão europeu de 2019 na cidade portuária de Bari, no sul da Itália. Para Edoardo Ponti, esta já é a terceira produção com a mãe celebridade. "Todos os dias, em cada take, em cada momento de filmagem, ela faz tudo com um entusiasmo e uma espontaneidade como se estivesse gravando seu primeiro filme", diz Ponti entusiasmado com a colaboração.

"E ele me conhece tão bem", devolve ela com uma risada. "Ele sabe exatamente como apertar o botão certo para que eu execute o que ele tem em mente." Com o filho no comando, ela se sente em boas mãos no set de filmagens.

E assim ela pôde representar o papel de sua vida: "A razão pela qual fiz este filme é que Madame Rosa me lembra muito a minha mãe: por dentro, era frágil e vulnerável, mas para os outros, passava uma imagem forte", disse Loren durante uma entrevista para a TV no CBS-Morning-Show, programa matinal do canal americano.

Remake realocado para o presente

O roteiro foi baseado no romance A Vida Pela Frente (La vie devant soi, 1975), de Romain Gary. Na época, o livro provocou escândalo na França, pois o autor havia ganhado o prestigioso prêmio literário Prix Goncourt pela segunda vez – irregularmente, como se descobriu mais tarde, sob o pseudônimo de Emile Ajar. Em 1977, o romance foi adaptado para o cinema, com Simone Signoret no papel de Madame Rosa.

Desta vez, porém, o remake literário não está em cartaz no cinema, e sim na Netflix. Como cenário, Ponti optou pelo sul da Itália em vez de Paris, com a crise de refugiados dando um toque contemporâneo ao enredo.

A estreia se deu em Roma no início de 2020 ainda diante do público, mas a pandemia de coronavírus pôs um fim nos ganhos de bilheteria. A exibição em salas de cinema nos EUA – requisito para uma indicação ao Oscar – só foi possível sob rígidas limitações.

A Netflix, desde o início envolvida na produção, começou a exibir o filme em novembro. O sucesso mundial não demorou a chegar: quase meio milhão de telespectadores já viram o melodrama. É um filme pesado, comovente, de partir o coração.

A história é contada a partir da perspectiva de um menino muçulmano refugiado do Senegal que está preso no sul da Itália. Para sobreviver, ele se envolve em roubos e tráfico de drogas. "Tenho 12 anos. Meu nome é Mohammed. Todos me chamam de Momo", diz o rapaz africano em italiano. "Sou órfão. Quando era pequeno, o serviço de assistência a menores me entregou ao Dr. Coen."

Mas Dr. Coen, um médico judeu, está velho e cansado demais para cuidar de rebeldes crianças de rua. Ele decide então levar o menino até Madame Rosa, uma paciente dele. E eis que ela já conhecia esse Momo – ele havia roubado sua bolsa na rua.

Atuação digna do Oscar

Madame Rosa é uma beldade em idade avançada que, em vista de seu passado no mundo da prostituição, resolveu se dedicar a cuidar de crianças filhas de prostitutas. Com um avental gasto, a estrela de cinema Sophia Loren interpreta Madame Rosa com notável grandeza e uma paixão ardente. As mães não têm tempo para seus filhos indesejados e precisam trabalhar duro para obter o dinheiro necessário para que eles tenham também com quem ficar.

Loren, nascida em 1934 num subúrbio da cidade portuária italiana de Nápoles, vem, como o Momo do filme, de origens pobres. Quando criança, ela sentiu na própria pele a pobreza, a fome e a guerra. No papel de Madame Rosa, de uma maneira gentil, mas ao mesmo tempo austera, ela tenta persistentemente fazer com que o menino aceite as regras para viver em harmonia com a família substituta.

Momo é interpretado por Ibrahima Gueye, que, até então, nunca havia estado em frente às câmeras: autêntico, precoce, resoluto e repleto de empatia infantil. Quando o menino acidentalmente descobre o número do campo de concentração tatuado no braço de Rosa, ela calmamente conta a ele sobre suas terríveis memórias de infância em Auschwitz: os médicos dos campos de concentração a haviam torturado com experimentos científicos.

Idade perfeita para o papel 

Quando os demônios do passado não a deixam dormir, Madame Rosa se esconde no porão do cortiço. "Em Auschwitz, sempre me escondia debaixo dos barracões quando havia chamada", relata ela ao jovem africano. Seu cabelo grisalho despenteado e seu olhar perturbado dão uma ideia do que está passando pela sua mente. "Aquele era o meu abrigo; lá eu me sentia segura. Eu tinha a mesma idade que você, Momo."

Todos precisam de apoio familiar neste filme melodramático: crianças, prostitutas, jovens traficantes – e o contrabandista de tapetes muçulmano, em quem Madame Rosa tanto gosta de jogar seu charme já um tanto esmaecido. Todos eles conhecem a amarga sensação de ser um cidadão de segunda classe. Assim como a corajosa Lola, outra prostituta que também deixa o filho aos cuidados de Madame Rosa e que é grandiosamente representada pela transgênero espanhola Abril Zamora, estrela do mundo LGBTQ.

Em Rosa e Momo, Sophia Loren, a estrela de cinema mais famosa da Itália, mudou sua imagem de diva glamorosa. Através de pequenos gestos e uma postura humilde, ela confere dignidade e beleza eterna à sobrevivente judia do Holocausto. No papel de Rosa, reside a esperança de um terceiro Oscar na carreira da atriz de 70 anos, conforme atestam público e crítica.

"A aparência não é tão importante", disse Loren numa entrevista recente à emissora americana CBS. "Mais importante é o que você tem para oferecer – em seu coração e em sua alma. Isso é o que importa na vida." E é exatamente isso que "la mamma" Sophia Loren oferece aos telespectadores da Netflix – de forma comovente e com grande intensidade teatral. Lindo de chorar.

21/11/2020

My Darling Clementine (Paixão dos fortes), 1946, John Ford

Paixão dos fortes no iutubi 

Paixão dos fortes

Por Rubens Edwald Filho  

Ao contar sua versão do famoso confronto no O.K. Curral entre Wyatt Earp e Doc Holliday de um lado, e a família Clanton do outro, o mestre John Ford (1894-1973) produziu uma de suas obras-primas mais perfeitas e queridas. 

Ford, que conheceu Earp pessoalmente quando o famoso cowboy trabalhava nos filmes mudos, sempre disse ter contado a versão dos fatos, conforme a ouviu. Mas a história foi totalmente remodelada em função do estilo e das idéias de Ford, tornada mais idealizada, mítica, romântica (com a inclusão da fictícia Clementine do título original, formando um triângulo amoroso com os heróis, papel que era para ser de Jeanne Crain). 

Rodado no majestoso Monument Valley, em Utah, e não onde realmente sucedeu, traz Henry Fonda (1905-82), um dos atores prediletos de Ford (em seu primeiro filme após voltar da II Guerra), como o xerife Earp, pragmático e controlado, levado a vingar a morte do irmão caçula com a ajuda do médico tuberculoso (na vida real, dentista) Doc Holliday. 

O médico seria feito por outro favorito de Ford, James Stewart, mas o ator estava envolvido com um filme de Frank Capra. Ford escolheu então o sempre subestimado Victor Mature (1913-99), no que seria uma das melhores e mais marcantes atuações de sua carreira. 

Ambos enfrentam a família Clanton, liderada pelo veterano Walter Brennan (1894-1974). Ford fez um filme notavelmente compacto e denso, com diálogos precisos e perfeita caracterização dos personagens, sem cenas desnecessárias ou momentos redundantes. 

Até mesmo seus habituais toques de humor, cenas de dança etc., são sutis e servem para levar a história adiante, um conto do Oeste mítico tipicamente Fordiano, onde o Bem combate o Mal e as pessoas agem de acordo com aquilo em que acreditam, custe o que custar. 

Tecnicamente o filme também é brilhante, com os belos enquadramentos característicos de Ford, sua narrativa sempre despojada e elegante, tudo valorizado pela bonita fotografia em preto e branco. O filme foi um grande sucesso na época, restabelecendo o prestígio de Ford como grande diretor após sua volta à ativa depois de retornar da II Guerra, e permanece como um dos grandes westerns da história do cinema. Boa edição em DVD duplo.

22/11/2020

La caduta degli dei, Götterdämmerung (Os deuses malditos), 1969, Luchino Visconti

Os Deuses Malditos (por Marino Boeira)

Você pode mergulhar na essência de um acontecimento histórico relevante lendo o que os grandes historiadores (Eric Hobsbawm,por exemplo ) disseram dele ou como um grande artista tratou do assunto. Muitas vezes, a segunda opção, mesmo que se percam alguns detalhes, pode ser muito mais importante.

Tomamos o caso do nazismo e sua introjeção na sociedade alemã. Todos nós sabemos que Hitler representou num primeiro momento um movimento contra a nobreza prussiana e até mesmo a alta burguesia alemã. Seus seguidores iniciais oram buscados no populacho de Munique. Sua primeira força de ataque contra as instituições, foi formada pelas SA de Ernst Röhm, herdeira dos freikosp anti-comunistas da República de Weimar.

Quando seu movimento se tornou vitorioso por via parlamentar em 1933, Hitler tratou de se desfazer dessas companhias pouco recomendáveis (Rohm foi preso e assassinado por sua ordem) para se aproximar da alta burguesia alemão, que passou a ver nele o único político capaz de afastar o “perigo comunista” que poderia afetar seus negócios.

Esse momento fundamental na história da humanidade, que permitiu a Hitler dar os passos adiante na consolidação do regime nazista e posteriormente na efetivação das suas guerras de conquista, tem o seu melhor retrato no filme Os Deuses Malditos (Gotterdammerung ´La Caduta degli Dei e em inglês, The Dammed) de Luchino Visconti, rodado em 1969, com Dick Bogard, Helmut Berger, além da brasileira Florinda Bolkan..

Visconti (1906/1976), homossexual e comunista, foi um dos maiores diretores do cinema italiano, se não o maior e tem em sua filmografia obras fundamentais, como Rocco e seus Irmãos (Rocco e suoi fratelli); As Noites Brancas (Le Notti Bianche); O Leopardo ( Il Gattopardo); Senso (Senso)  e Morte em Veneza (Morte em Veneza), além de um dos melhores episódios de Boccacio 70 ( Il Laboro)

Os Deuses Malditos conta a história da família do barão da indústria do aço Joachim Von Essenbeck e mostra a longa desagregação dessa família, oriunda da nobreza, que vai se mesclando com a ralé populista na sua ânsia de preservar suas posses que imaginam ameaçadas pelo comunismo ascendente na Alemanha.

Embora Visconti nunca tenha escondida sua opção pelo marxismo, a maneira como ele mostra esta fusão entre os novos capitalistas, herdeiros da nobreza prussiana, e a direita populista do nazismo, é feita através de imagens cinematográficas poderosas e não com um discurso convencional.

Um bom exemplo disso, sempre citado pelos críticos, é de que como os símbolos do nazismo, principalmente a suástica, começam pouco a pouco a fazer parte da decoração do palácio da família Essembeck, levando os espectadores a perceber (ou deveriam perceber) que apesar de algumas diferenças iniciais entre seus segmentos ( no caso a nova nobreza capitalista e  os populistas da direita nazista)a história da humanidade é sempre a história das lutas de classe, como Marx já ensinara.

Obs. Não confundir Os Deuses Malditos, com Os Deuses Vencidos (Yong Lions), outro bom filme sobre o nazismo, feito por Edward Dmytryk (também acusado de comunista), de 1958, com Marlon Brando e Montgomery Clift.

24/11/2020

Scarlet Street (Almas perversas), 1945, Fritz Lang  

Almas perversas no iutubi

O alemão Fritz Lang (Metrópolis, Dr. Mabuse) realizou Almas Perversas com o mesmo elenco de Um Retrato de Mulher (The Woman in the Window), os magistrais Edward G. Robinson, Dan Duryea e Joan Bennett. A história foi adaptada de A Cadela (La Chienne), um clássico francês dos anos 30 realizado por Jean Renoir. 

Na refilmagem, Lang fez um film noir hipnótico ao mostrar a obsessão amorosa de um homem de meia-idade (Edward G. Robinson) e de classe média por uma prostituta (Joan Bennett). Vítima do Código Hays, o filme foi bastante prejudicado na sua estréia, quando foi proibido em vários estados americanos acusado de "imoral, indecente, corrupto e por incitar ao crime".

Os quadros que aparecem no filmes são de John Decker

Almas perversas

Por Leonardo Levis

Quando, após uma hora de projeção, Chris Cross – o protagonista de Almas Perversas vivido por Robinson – revela à sua paixão, com um certo sorriso acanhado, que é um fracasso, nada faz além de explicitar aquilo que a obra-prima de Lang demonstra desde o início e continuará a afirmar, progressivamente, pela meia-hora restante de filme. O olhar do diretor dirige-se àqueles que, por qualquer espécie de razão, decidem alcançar um lugar ao sol na sociedade de consumo, mesmo que a chuva seja um fim inevitável. Neste sentido, Almas Perversas é não apenas a tragédia de Chris, mas também de Kitty e Johnny, os três personagens centrais que em algum momento de suas vidas resolvem que, dentro das luzes de Nova Iorque, alguma deveria brilhar para eles. “I’m a failure, Kitty”, e a frase ecoa nas rugas tristes de Robinson, no rosto esbelto de Dan Dureya, na bela face de Joan Bennett, e o fracasso dos três transforma-se na tragédia de toda uma sociedade. Pois, se mencionar que Scarlet Street representa o fim do sonho americano é pouco diante do filme, ao mesmo tempo é inevitável pensar que não são muitos os que conseguiram, tão bem, desmascarar toda uma cultura.

Almas Perversas é a refilmagem americana de A Cadela, de Jean Renoir. Mais do que uma refilmagem, o filme representa, porém, uma afirmação da visão de mundo de cada diretor. Em A Cadela, os atos apaixonados de Michel Simon serviam para, cada vez mais, libertá-lo do mundo burguês ao qual estava submetido. Devido ao amor por uma vigarista, o protagonista desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo e alcança, enfim, a liberdade. No próprio prólogo do filme, bonecos questionam se A Cadela é uma comédia ou uma tragédia. No fim, a resposta tende mais para a primeira opção. Pois é deste ponto-de-partida que Lang sai para fazer seu remake. Em algum momento o diretor alemão deve ter olhado para o filme francês e questionado: “mas isto deveria ser uma tragédia!”. E assim nasce Almas Perversas, uma tragédia sim, sem sombra de dúvidas. 

A mudança no local em que se passam os dois filmes serve como parâmetro para a mudança de gênero deles. Em Paris, desejo é poesia; em Nova Iorque, é dinheiro. Chris Cross desliga-se da esposa, é demitido do trabalho, assassina uma mulher, incrimina um homem, transforma-se em um mendigo, mas, ao contrário de Simon, não alcança liberdade alguma. Lang vai, assim, além de Renoir. Os atos do protagonista agora não são contrários ao mundo onde vive, mas impulsionados por ele, pois esse mundo é regido pelo desejo, e desejo, repito, é capital. Desde o início, esta relação fica clara. Na primeira vez em que aparecem juntos, um longo plano mostra Chris, sentado, de costas, enquanto seu chefe, em pé, de frente para a tela, discursa. Pouco depois, Chris comenta que gostaria de ter alguma amante jovem e bonita apaixonada por ele, como tem seu chefe, e como nunca, em sua vida, teve. Quando se apaixona por Kitty, o desejo que sente é apenas fruto daquilo que gostaria de ser: seu chefe, portanto. Mas Lang não deixa dúvidas; a paixão custa caro, em qualquer sentido, e não é qualquer um que tem o direito de desejar. Se para o patrão a questão moral não se coloca (e seria um tanto hipócrita pensar que Chris tem mau destino porque “peca”, quando o chefe também o faz, e mais naturalmente) é porque ele tem dinheiro e poder para comprá-la, como afirma a cena em que assegura a liberdade de seu funcionário subornando os guardas com uma caixa de charutos cubanos.

Não é só Chris, porém, que deseja. Sua cruz é carregada por todos aqueles que o olhar de Lang dá um pouco mais de atenção. Em certo sentido, não há diferença entre o personagem vivido por Robinson, que para conquistar uma jovem rouba seu chefe e sua mulher; Kitty, que para ser uma atriz de sucesso engana Chris; e Johnny, que simplesmente para ter dinheiro transforma-se em um gigolô de sua namorada. Todos, em suma, desejam ser outros – e cada um deles disfarça-se, em algum momento, literalmente em outra pessoa -, ir para o topo da cadeia social (ou pelo menos ter as vantagens desse topo), e a impossibilidade de concretização cai igualmente entre os mesmos. Seja o assassinato da jovem, a prisão e cadeira elétrica do malandro, a crise de culpa do protagonista. A questão que se estabelece não é a da culpa, entretanto, é a do fracasso. A voz que invade a cabeça de Christopher quando ele percebe o crime que cometeu – voz esta que, mais do que revelar para si mesmo um homicídio, prova o fracasso de seu desejo, já que era outro o homem que Kitty amava – é menos uma questão moral imposta por Lang do que o peso imposto por toda uma sociedade.

Dessa forma, a Nova Iorque construída em cenário acaba ultrapassando seu simples simbolismo e ganhando um caráter físico enorme. Seja nas referências de bairros citados pelos atores, nas luzes refletidas em poças de água e rostos infelizes, nos cafés, pontos de ônibus e lojas de jóias, Lang constrói um filme no qual todo gesto participa de uma ambiência. Há, no filme, a consciência de que a moral colocada só pode ser assim se pertencente a um espaço concreto, real, que a justifique. Pois, na Nova Iorque do diretor alemão, não há saída para quem deseja. O problema é que, para que a roda ande, para que o comércio continue, para que a cidade nunca durma, continua a ser preciso desejar. Se as pessoas morrem, são presas ou ficam malucas, no fundo não há problema. Os quadros – antes objeto de arte, agora objetos de consumo – continuam a circular, eternamente.

25/11/2020

Blade af Satans bog (Páginas do livro de satã), 1920, Carl Theodor Dreyer

Páginas do livro de satã no iutubi 

Páginas do Livro de Satã

Segundo filme de Dreyer, "Páginas do Livro de Satã" (1919) é uma espécie de cartão de visitas do que viria a ser o cinema de seu autor.

Inspirado no esquema de "Intolerância" (1916), de Griffith, o filme se divide em quatro episódios ambientados em diferentes épocas históricas: na Jerusalém do tempo de Cristo, na Espanha na época da Inquisição, na Paris da Revolução Francesa e na Finlândia ocupada pelo Exército Vermelho em 1918.

O tema que une esses segmentos é o da tentação exercida pelo demônio. Anjo decaído, Satã recebe de Deus uma maldição: tem que tentar levar o homem a fazer o mal. No dia em que um indivíduo virtuoso resistir a seus apelos, sua pena será diminuída em mil anos.

Do ponto de vista formal, é um Dreyer ainda tateante que se vê aqui. Já domina a forma narrativa e a composição da imagem, mas ainda não cristalizou o seu estilo, embora já se encontre, sobretudo no último episódio, a atenção ao rosto humano que caracterizará toda a sua obra.

Mais que isso, chama a atenção a concentração no tema básico que norteará a carreira do diretor: a guerra permanente entre o bem e o mal no interior de cada homem.Uma espécie de plano-piloto de uma das obras mais fulgurantes que o cinema conheceria. (JGC) 

Páginas do Livro de Satanás, 1920

E disse Deus a Satanás,o anjo caído: "Caíste porque desejou o que Eu não queria."

"Em seu orgulho tentou os homens que Eu criei afastando-os de Mim." E condenou Deus a Satanás:"Continuará sua obra entre os filhos dos homens."

"Habitará entre eles, tomando aparência humana."

"Os tentará para que ajam contra minha vontade e Eu os julgarei."

E amaldiçoou Deus a Satanás:

"A cada homem que não resistir, sua maldição aumentará em mil anos de punição, mas quando alguém resistir, sua sentença será reduzida em mil anos."

23/11/20

O que arde, 2019, Oliver Laxe

Amador Coro foi condenado por ter provocado um incêndio. Quando sai da prisão, não tem ninguém à sua espera. Regressa à sua aldeia, aninhada nas montanhas da Galiza, onde vive a mãe, Benedicta, e as suas três vacas. A vidadeles decorre lentamente, ao ritmo tranquilo da natureza. Até ao dia em que um fogo vem devastar a região. 

O que Arde, O suposto pirômano

por Bruno Carmelo

Um documento policial passa de mão em mão dentro de uma delegacia. “É ele, o pirômano?”, perguntam. “Sim, é ele mesmo”, responde uma voz em off, enquanto se folheia as centenas de páginas do processo. Pelo tamanho do arquivo, pela seriedade das falas e pelo fato de todos conhecerem o caso, deduzimos a gravidade da situação. Na cena seguinte, Amador (Amador Arias) dirige seu carro pelas estradas da Galícia. Através do simples corte de montagem, sugere-se que este homem é o famoso incendiário, o criminoso tão temido da cena anterior. No entanto, em nenhum momento do filme o espectador verá Amador segurar um fósforo sequer.

Oliver Laxe constrói O que Arde sob o formato da provocação conceitual. O único indício da equivalência entre Amador e o criminoso se encontra na linguagem cinematográfica, no caso, a montagem que os aproxima, sem apresentar alternativas de possíveis culpados. Deste modo, o espectador é convidado a julgar o protagonista desde a primeira vez que o vê. Seu rosto chega pré-significado aos olhos do espectador, levando-nos a interpretar cada mínima expressão como um gesto de raiva, de prazer, de tristeza em relação ao crime cometido. Se a cena do dossiê policial viesse mais tarde na trama, Amador ganharia o benefício da dúvida, mas Laxe prefere que o julguemos moralmente, assim como os moradores o fazem. Rumo ao final, um grande incêndio desperta óbvia raiva dos moradores contra Amador. Mas quem dirá que o réu é realmente culpado?

Enquanto isso, a intrusão de uma realidade não simulada contribui a culpabilizar o protagonista. Diversas cenas são concebidas de modo a impossibilitar os truques: presenciamos um incêndio real, de grandes proporções, vemos as árvores de uma floresta sendo derrubadas por um trator imenso, uma vaca lutando para sair do brejo, duas cabras presas dentro de uma casa. Laxe encontra na natureza o registro próximo do documental, uma prova de que aquela história é verdadeira, os cenários são reais, as ações não poderiam ser simuladas. Se tudo aquilo aconteceu de fato diante das câmeras (não sendo criado com efeitos especiais na pós-produção), os crimes de Amador também devem ser reais, certo? Como suspeitar das atividades de Benedicta (Benedicta Sánchez), fazendeira de 84 anos que conduz suas vacas para o pasto com desenvoltura de quem executa aquela atividade há décadas? Pelo reforço do aspecto verossímil, o filme ganha nossa confiança.

Este jogo de acusações é permeado por uma atmosfera misteriosa, próxima da alucinação. As cenas iniciais constituem um puro deleite estético, quando as árvores de uma floresta são iluminadas por alguma fonte desconhecida, e então caem, uma a uma, antes que descubramos a causa da devastação. O cineasta filma o corte dos pinheiros como uma sinfonia macabra, em pleno domínio dos enquadramentos e da montagem, até deslizar sua câmera majestosamente pelos sulcos de uma árvore. Este poderia ser o início de um filme de terror, o que de certo modo condiz com os não-ditos e as sugestões de O que Arde.

A chegada do trem, a cena da vaca ao som de “Suzanne”, de Leonard Cohen, e as interações entre a mãe idosa e o filho são filmadas com uma habilidade poética impressionante. Laxe enquadra a natureza longe de qualquer banalidade, propondo um uso expressivo da trilha sonora e das imagens do fogo. O despertar misterioso dos incêndios condiz com a nossa tendência a acreditar na prova pela imagem, devido à credibilidade do realismo filmado (o “ça a été” de Barthes, ou seja, a ideia de que se algo foi filmado, aquilo realmente existiu). O filme provoca nossas certezas enquanto estimula os sentidos. Ao mesmo tempo, une-se ao recente Em Chamas para comprovar o potencial estético e filosófico da piromania enquanto representação de nossos desejos ocultos.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

25/11/2020

Mank, 2020, David Fincher

David Fincher combina cinema, política e poder no espetacular 'Mank'

Por Roberto Sadovski

"Cidadão Kane" é indiscutivelmente o filme mais importante da história do cinema. Muito do que entendemos sobre técnicas narrativas, sofre o ofício de contar uma história em celuloide, começou com Orson Welles, então um prodígio fazendo seu caminho em Hollywood, em seu filme de estreia, já como astro, autor, produtor e diretor. A origem das histórias, entretanto, nem sempre segue um script linear. No caso de "Kane", sua paternidade foi o foco de uma batalha nos bastidores que ainda reverbera no modo de criar filmes em Hollywood. De um lado, o prodígio deixando sua marca. Do outro, um roteirista que equilibrava-se no sistema dos estúdios, entre sua genialidade e seus vícios, que enxergou na oportunidade de trabalhar com Welles uma forma de exorcizar seus próprios demônios.

Foi uma história que fascinou o jornalista e escritor Jack Fincher, que nos anos 1990 decidiu colocá-la no papel. Mas "Mank", que finalmente foi materializado por seu filho, David, não versa apenas sobre "os bastidores de Hollywood", tampouco sobre "a criação de uma obra-prima". É, acima de tudo, sobre poder, frustração, política - e sobre como sobreviver a tudo isso.

Em fevereiro de 1942, "Cidadão Kane" chegou à cerimônia do Oscar com nove indicações para a estatueta dourada. Levou apenas um prêmio, o de melhor roteiro original, dividido por Herman Mankiewicz e por Orson Welles, então um prodígio que ainda não chegara aos 30 anos, diretor, produtor e astro de "Kane". À época eles já não se falavam, uma contenda que os anos transformaram em uma das histórias mais incendiárias em Hollywood. Pula para os anos 1990. David Fincher, então um prodígio por mérito próprio, deixou de lado uma carreira dirigindo comerciais e vídeos musicais para gente como Madonna e George Michael, abraçando o cinema em tempo integral. Depois de um começo trôpego com "Alien 3", ele ganhou sua independência com o sucesso de "Se7en”

Ele estava finalizando "Vidas em Jogo", com Michael Douglas, mas seu olhar estava no passado. Mais especificamente na gênese de "Cidadão Kane", no choque entre Welles e Mankiewicz, nos conflitos com a era de ouro de Hollywood como pano de fundo. O filme, "Mank", era roteiro de seu pai, Jack Fincher. Mas a insistência do diretor em rodar em preto & branco, com uma preocupação estética particular, não encantou os donos do dinheiro.

Fincher, então, colocou "Mank" na gaveta. O roteiro ainda precisava ter arestas aparadas, e algumas sequências que fugiam do foco cinematográfico o incomodavam. Jack Fincher morreu em 2003. David Fincher somou prestígio ao sucesso em filmes como "Clube da Luta", "A Rede Social" e "Garota Exemplar". O cinema, como acontecera nos anos 1930, experimentou uma nova mudança. E "Mank" finalmente deixou de ser uma ideia.

Que abraçou o conceito de Fincher para "Mank" foi a Netflix, que nos últimos anos tem se posicionado mais e mais não como uma plataforma de streaming, mas como um estúdio aberto ao desenvolvimento criativo, à ousadia, aos gênios modernos. Foi assim que Alfonso Cuarón realizou seu "Roma". E foi pela Netflix que "O Irlandês", de Martin Scorsese, finalmente deixou os abismos do desenvolvimento cinematográfico para ganhar vida como um épico moderno. Enquanto os grandes estúdios apostam cada vez mais na segurança das grandes propriedades intelectuais, a Netflix quer correr antes de aprender a caminhar. A estratégia tem dado certo.

Essa mudança dentro da indústria do cinema, que foi intensificada em 2020 com a pandemia do coronavírus, espelha de certa forma a época em que "Mank" é ambientado. Mais ainda: parte do roteiro de Jack Fincher lida com as ramificações políticas do jogo do poder entre os grandes estúdios nos anos 1930 e 1940. O que parecia gordura a ser eliminada se o filme existisse perto da virada do século, hoje torna-se um de seus aspectos mais urgentes, quase premonitórios.

No centro de todas as mudanças estava Herman Mankievicz. Escritor, crítico teatral e, durante um período, chefe dos roteiristas na Paramount, consertando inúmeros scripts sem receber o crédito devido. O cinema saltava de sua fase muda para o som, e manter um roteirista habilidoso com estrutura narrativa e confecção de diálogos era um bom negócio.

Ao fim dos anos 1930, Mank estava quase falido, quebrado por conta de seu vício em álcool e jogos, equilibrando-se na estrutura dos estúdios. Quando Welles o procurou para desenvolver uma trama para sua estreia, ele agarrou a oportunidade com fúria. Ao longe de semanas, isolado no deserto californiano para convalescer de um acidente automobilístico, ele criou o que seria "Cidadão Kane".

Gary Oldman, em mais uma performance histórica, dá a Mankiewicz um equilíbrio delicado entre vitalidade e decadência - alguém que entende sua situação precária, mas nem todo o peso de uma vida desregrada consegue desligar sua sagacidade e palavras afiadas. Oldman atinge esse equilíbrio à perfeição, elevando o jogo de todo o elenco.

É com ele que duas atrizes entregam o trabalho de suas carreiras. Lily Collins surge irreconhecível como Rita Alexander, secretária contratada para datilografar as palavras de Mank, e termina como sua confidente. Isolados em um hotel no deserto, ela e o roteirista criam uma simbiose sob tensão, com Rita entendendo os limites de Mank e mantendo sua conexão com a realidade.

A outra é Amanda Seyfried. Ela surge como se saísse de uma máquina do tempo no papel de Marion Davies, musa do cinema mudo que encontrou no magnata da mídia William Randolph Hearst (o colossal Charles Dance) seu porto seguro. É com ela que Oldman tem seus diálogos mais espontâneos, e é com ela que Mank encontraria o centro narrativo de "Cidadão Kane".

A amizade de Mankiweicz e William Hearst prosperou ao longo da década de 1930, com o roteirista e sua esposa sempre presentes nas festas opulentas bancadas pelo magnata em seu castelo em Los Angeles. O tempo alimentou a frustração em Mank, e sua língua ferina, potencializada pela bebida, o fez ser banido do convívio de Hearst.

Por isso é difícil duvidar da paternidade de "Cidadão Kane". Embora o filme seja fruto da genialidade de Orson Welles (que surge aqui em cenas breves, defendido pelo ator Tom Burke), a história deixou claro que Mank usou sua criação como avatar para Hearst. Este ficara tão furioso com o filme que baniu qualquer menção a ele ou a Welles em sua rede de jornais.

Fincher foi inteligente em não transformar "Mank" em um embate entre Welles e Mankiewicz. Em seu lugar, ele usa esse recorte de história hollywoodiana para mostrar que um mundo em constante renovação termina, muitas vezes, girando em círculos.

Essa é a genialidade em "Mank". Assim como "Kane", o filme de Fincher entrecorta presente e passado, e aos poucos entendemos a dimensão do homem que era Mankiewicz. Mas ele vai além, colocando sua relação com Hearst e depois com Welles como espelho para mudanças que a indústria atravessava, assim como o mundo sob o qual ela se erguia.

Por isso "Mank" é feliz ao expandir seus personagens aos chefes de estúdio da época, notadamente Louis B. Mayer e Irving Thalberg, cabeças da poderosa MGM. O clima político da época, com a disputa para o governo da Califórnia, em que o candidato republicano (o status quo) era o preferido dos executivos para "deixar as coisas como estavam", e o emergente democrata (o socialista) visto como "agitador", poderia estar na CNN de 2020. Se pensarmos bem, meio que esteve...

Toda essa massa política e social, essencial para potencializar uma cidade em mutação, é costurada por Fincher na narrativa de "Mank" como parte do poder renovador de "Cidadão Kane". É como se a inovação técnica e visual promovida por Welles tivesse marcado não só a indústria, mas também toda a sociedade erguida em torno dela.

Para deixar seu filme como um simulacro da realidade ainda mais profundo, David Fincher rodou "Mank" com as mesmas técnicas desbravadas por Welles décadas atrás. A trilha de Trent Reznor e Atticus Finch foi executada com instrumentos da época. A montagem de Kirk Baxter espelha o estilo dos clássicos da RKO e MGM. A fotografia de Erik Messerschmidt imprime um brilho opaco ao preto e branco, ecoando o cinema noir da era de ouro.

Tudo isso faz com que "Mank" não pareça fruto de 2020, e sim uma pérola perdida nos cofres dos grandes estúdios, redescoberta agora como uma cápsula do tempo. Isso vai além do apuro visual, atingindo também estrutura narrativa e também as performances. A sessão dupla com "Cidadão Kane" aumenta ainda mais seu impacto - mas aconselho assistir a Welles depois de visitar o mundo de Fincher.

Mank, recriado por um Gary Oldman confortável em seus extremos, olhava para o futuro mas não viveu para vê-lo. Sua história - ou pelo menos uma fração dela - ganha agora a eternidade com o trabalho de um gênio moderno, um cineasta obcecado pela perfeição que também joga pelas próprias regras. E que o Oscar, reconhecimento máximo de seus pares, ainda lhe fuja ao alcance.

Talvez por isso David Fincher tenha sido a pessoa perfeita para biografar a colaboração de Mankiewicz e Welles, dois gênios à sua maneira. "Mank" pode ter demorado algumas décadas para passar de ideia a filme completo, e isso custou a Jack Fincher o prazer de ver suas palavras traduzidas em som e imagem por seu filho. 

Assim como "Cidadão Kane", "Mank" é fruto de um legado. E neste momento em que a experiência cinematográfica pode se deslocar quase que totalmente das salas de cinema para as plataformas de streaming, essa parceria de visionários com a Netflix pode se tornar um marco de igual importância para a história do cinema.

David Fincher fala de 'Mank', seu filme mais pessoal, sobre roteirista de 'Cidadão Kane' 

27/11/2020

Gertrud, 1964, Carl Theodor Dreyer 

Gertrud no iutube 

Quase uma década depois de A Palavra (Ordet), Dreyer faz aquele que seria seu derradeiro filme, o estonteante Gertrud. Um trabalho de depuração se observa em seus dois últimos filmes, uma purificação da forma e também do texto: só se fala e só se mostra o essencial. Na montagem não há nenhum contracampo: este se torna um local imaginário, um segundo compartimento que a mente do espectador constantemente acopla às imagens mostradas no filme, para ao fim se completar um drama em dupla camada que ressoa a substância mesma de Gertrud, e quem sabe de toda a obra de Dreyer: o material e o idealizável, a fé e a experiência concreta, o que é visto e o que só pode existir sob uma crença compartilhada (no caso, a assimilação de um fora-de-quadro que não precisa aparecer para ser real). 

Primeiro momento mágico do filme: o plano-sequência que começa com o olhar lançado ao espelho. Essa superfície que reflete o mundo em profundidade reenvia a Gertrud sua verdade mais implacável: a solidão que redireciona e torna secundária toda outra característica possível (a começar pela vaidade). É o começo de um plano em que muita coisa está para acontecer, e a câmera se move até com alguma ansiedade, quase afoita para nos mostrar o decorrer do filme (ou talvez ela mesma precise descobrir o que vai acontecer). Em Gertrud, Dreyer consegue de sua câmera um interessante comportamento duplo, pois a precisa marcação do plano divide espaço com um sentimento espontâneo do instante, ou uma espécie de sensibilidade pontual da cena, no sentido de fazer pequenos movimentos que são como respostas instintivas ao ritmo que os atores encontram durante a cena, diferentemente dos grandes travellings e das panorâmicas reveladoras que dão a espessura de um exaustivo ensaio prévio. Gertrud é a escrita livre de uma tragédia perfeitamente estudada. Do início ao término dos planos, a palavra e o pensamento devem se encontrar numa expressão comum.

Dreyer sugere à sua personagem-título uma saída bastante iluminada, mesmo que não pareça acolhedora de todo: uma saída para o branco, uma desaparição súbita no excesso de luz e de claridade. Toma-se o branco, de maneira geral, como mistura de todos os matizes – o Todo indistinto. Pois Dreyer ilustra através do branco um mergulho violento na idealidade que serve como fonte de toda a tragédia de sua personagem. É a busca evasiva por um amor ideal o que ele simboliza. O filme conflui para um retiro radical de Gertrud, uma vez fracassado seu projeto emocional grandioso porém irrealizável. Na cena em que Gertrud olha para o quadro atrás de si e reconhece exatamente a cena de um sonho que teve, o filme trai suas palavras, sua defesa do livre-arbítrio em oposição ao fatalismo de que seu pai fora um árduo defensor. A câmera faz um recuo ameaçador e enquadra em maior ângulo a imagem da mulher nua sendo devorada por lobos. A cena é análoga àquela do início, mas agora se trata de um outro tipo de espelho, mais adequado à figuração evocativa do sonho. A revelação, contudo, é a mesma.

Num flash-back iluminado por um branco alusivo e obsedante, Gertrud encontra junto ao desenho de seu perfil, feito por um amante do passado, as palavras que a devastam: "o amor de uma mulher e o trabalho de um homem são inimigos mortais". Entre o jovem pianista com que vive uma relação frívola e passageira, o marido de quem não gosta mais e o ex-amante que não corresponde a seus anseios, um mosaico incompleto se desenha sobre o coração de Gertrud. Ela está em contato com o mundo através de toda a superfície de seu ser, mas ainda assim o experimentando com uma grande parcela de desafecção. Ela diz coisas como: "Não há felicidade no amor", ou "Meu coração envelheceu". A forma narrativa busca um certo grau de desligamento físico na descrição de como ela se porta e se desloca no mundo. O olhar lasso de Gertrud é o signo mais forte e pregnante do filme, talvez seu único fato incontestável, sua única evidência verificável. Mas é um signo sem significação. A beleza de Gertrud – como de praxe na obra de Dreyer – é de uma tal ordem que não se descreve. À semelhança de A Palavra, o filme realiza uma condensação de diferentes níveis de entendimento do mundo. Mesmo o místico e o obscuro se sucedem na ordem natural das coisas. Dreyer invoca uma permutabilidade com o mundo, e uma presença nele, muito anterior à inteligência.

Segundo uma inscrição original e inesperada, os corpos do filme parecem representações espelhadas na antiga arte egípcia. Os movimentos das pessoas não dispensam uma organicidade, mas são também assustadoramente mecânicos. As partes da figura humana são dispostas de tal forma que se apresentam ou em projeção totalmente frontal, ou em puro perfil. Vale lembrar que a intenção artística egípcia era dirigida não à variável, mas à constante, não à simbolização do presente vital, mas à realização da eternidade intemporal (por isso, ao contrário dos gregos, reproduziam a forma e não a função orgânica do ser humano). Com essa inusitada aproximação, Dreyer põe às claras sua expectativa em relação às vidas mostradas no filme. Trata-se menos de simular uma vida do que de criar substrato material para outra vida: rosto semi-mumificado, Gertrud está praticamente à espera de reanimação, ou ao menos de uma recarga afetiva.

É só a uma personagem que dizem respeito a mise en scène e o drama do filme; os demais corpos são agentes de reforço, estão ali para construir ao lado de Gertrud seu sentimento de "a sós com o universo". Os personagens não se olham enquanto dialogam não por uma exigência da sociedade em que vivem, mas por uma premissa dramatúrgica colada à natureza da protagonista, que só enxerga um alhures, um mundo formado por tudo que não está ao seu alcance. Gertrud é portanto uma dramaturgia do inalcançável, ou daquilo que está ainda – e eternamente – por suceder. Já na velhice, visitada pelo amigo de longa data, Gertrud diz que vive como uma eremita, esquecida por todos, mas que precisa da solidão e da liberdade. Ao amor incompleto, a irredutível Gertrud prefere a reclusão. Tudo ou nada: o coração não trabalha com meias-medidas. Qual será seu mistério? Na seqüência final, Gertrud concorda com seu amigo e afirma: "O amor é tudo". Mas a solidão é o absoluto, o que prevalece.

Luiz Carlos Oliveira Jr.



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