Rapsódia em Agosto, Hachigatsu no rapusodî, 1991, Akira Kurosawa
Justiça Cega, Blind Justice, 1994, Richard Spence
Bebê Rena, Baby Reindeer, Minissérie de televisão, 2024, Weronika Tofilska & Josephine Bornebusch
O Alfaiate, The Outfit, 2022, Graham Moore
Kagemusha, a Sombra de um Samurai, Kagemusha, 1980, Akira Kurosawa
O Véu, The Veil, Minissérie TV, 2024, Daina Reid & Damon Thomas
Reservation Dogs, Série de TV, 2021–2023, Sterlin Harjo
Bones of Crows, 2022, Marie Clements
Atanarjuat: O Corredor, Atanarjuat, 2001, Zacharias Kunuk
O Amor e a Fúria, Once Were Warriors, 1994, Lee Tamahori
Night Raiders, 2021, Danis Goulet
Feud, Série de TV, 2017–2024, Gus Van Sant & Ryan Murphy (temporada 2)
Pacto Sinistro, Strangers on a Train, 1951, Alfred Hitchcock
Loving Highsmith, Amando Patricia Highsmith, 2022, Eva Vitija
O Simpatizante, The Sympathizer, Minissérie TV, 2024, Park Chan-wook
Planeta dos Macacos: A Origem, Rise of the Planet of the Apes, 2011, Rupert Wyatt
Planeta dos Macacos: O Confronto, Dawn of the Planet of the Apes, 2014, Matt Reeves
Planeta dos Macacos: A Guerra, War for the Planet of the Apes, 2017, Matt Reeves
Waterloo, 1970, Sergey Bondarchuk
Sargento Getúlio, 1983, Hermanno Penna
Harmada, 2003, Maurice Capovilla
Entre Irmãs, Minissérie TV, 2017, Breno Silveira
A Conversação, The Conversation, 1974, Francis Ford Coppola
O Idiota, Idiot, 1958, Ivan Pyrev
O Idiota, Hakuchi, 1951, Akira Kurosawa
Furiosa: Uma Saga Mad Max, A Mad Max Saga, 2024, George Miller
Antes que Tudo Desapareça, Sanpo suru shinryakusha, 2017, Kiyoshi Kurosawa
A Boa Mãe, Bonne mère, 2021, Hafsia Herzi
A Felicidade das Coisas, 2021, Thais Fujinaga
27/04/04
Rapsódia em Agosto, Hachigatsu no rapusodî, 1991, Akira Kurosawa
Sachiko Murase (1905-1993)
Rapsódia em agosto por Ritter Fan, 08/09/2018
Independente de quaisquer outras considerações – que não me furtarei a fazer mais abaixo – creio que poderia assistir por um dia inteiro, sem cansar, a interação entre Kane (Sachiko Murase), a vovozinha sobrevivente da bomba atômica jogada em Nagasaki, e seus quatro netos em sua humilde, mas linda casa nos arredores da cidade durante as férias de verão deles, o que ocupa os 50 minutos iniciais do penúltimo filme de Akira Kurosawa, já com 81 anos quando do lançamento em Cannes. É de uma ternura e um naturalismo ímpar que se aproxima muito, mas de forma diferente (contraditório, eu sei, mas faz sentido, eu garanto) do que o diretor conseguiu extrair dos protagonistas no inesquecível Dersu Uzala.
Kurosawa, no crepúsculo de sua carreira, cria uma obra simples na superfície, mas impactante e talvez injusta sob um ponto de vista, quando vamos um pouco mais para a profundidade de suas intenções. Na medida em que a narrativa progride, os quatro netos, interessados em visitar o Havaí, para onde seus pais foram conhecer um dos irmãos de Kane, que imigrou bem antes da guerra e tornou-se muito rico com a plantação de abacaxis, vão descortinando o passado traumático da avó e, também, do povo japonês de Nagasaki no dia em que seu mundo foi obliterado por um cogumelo atômico que, dentre centenas de milhares de outros, levou seu avô.
A cada pequena anedota da avó as crianças mastigam o acontecido, primeiro deixando a raiva anti-americana tomar conta de suas mentes, mas, depois, graças à forma como Kane lida com o ocorrido 45 anos antes, relativizando seus raciocínios. Trata-se de um conto de três gerações, a que sofreu as consequências em uma ponta e a que não mais se lembra da magnitude do ocorrido na outra. No meio, há a geração adulta representada pelos filhos de Kane, que Kurosawa usa para representar o egoísmo extremo, em sequências que fazem o estômago revolver quando eles finalmente entram no longa. Em outras palavras – e antes de entrar na polêmica – o diretor e roteirista fazem o papel de observadores da Humanidade, não interessando o rigor histórico ou o olhar equilibrado para os dois lados dessa terrível moeda. Afinal, não se trata de um documentário, ainda que muitos documentários sejam bem mais unilaterais do que Kurosawa fez aqui.
Sim, é verdade que, ao final da projeção do filme em Cannes um repórter americano tenha se levantado e perguntado em alto e bom som “porque a bomba foi jogada, em primeiro lugar?”, e é compreensível uma reação como essa. Os americanos e os japoneses foram vítimas mútuas da guerra, com o Japão atacando Pearl Harbor e catalisando a entrada definitiva dos EUA no esforço de guerra contra o Eixo, o que ajudou a mudar a direção que ela estava indo. Os EUA, por sua vez, jogaram duas bombas atômicas na principal ilha japonesa, em um ato bélico que efetivamente encerrou o conflito, para todos os efeitos. Cada um dos lados desse terrível embate teve suas perdas e elas precisam ser respeitadas, mas não vejo desrespeito no que Kurosawa fez aqui, algo que muito provavelmente é mais fácil para um brasileiro, longe do coração da guerra.
Richard Gere, como Clark, filho do irmão de Kane, ao visitar Kane, pede desculpas pelo ocorrido e foi esse o motivo principal da revolta do jornalista e de vários outros depois. Mas, como nipo-americano, Clark está no meio desse conflito e é bastante crível essa sua reação emocionada e ela não representa necessariamente um posicionamento anti-americano de Kurosawa. Aliás, seria ingênuo demais pensar nessa linha. Afinal de contas, o diretor é normalmente tido como “o mais ocidental dos diretores japoneses” e, de fato, ele o é. Reparem como, em Rapsódia em Agosto, ele faz questão absoluta de determinar que os figurinos dos quatro netos sejam majoritariamente formado de camisetas de faculdades americanas ou com dizeres em inglês.
Além disso, o roteiro constrói o irmão de Kane que só vemos em fotos como o único da família a ter se tornado rico, estabelecendo os EUA firmemente como a famosa Terra da Oportunidade e da Igualdade. E, como se isso não bastasse, Kurosawa não só imprimiu uma estética ocidental a seus filmes, como literalmente deve grande parte de sua carreira a diretores e produtores americanos que, em gestos belíssimos de agradecimento à importância do diretor nipônico, o retiraram do esquecimento a que estava fadado e que o levara a tentar o suicídio nos anos 70.
Isso, porém, não quer dizer que o roteiro seja “à prova de balas”, pois não é. Não só Kurosawa carrega nas cores do didatismo durante os ternos momentos da avó com seus netos em toda a metade inicial da película, como transforma esses momentos quase que em uma jornada turística de auto-descoberta, com ênfase no lado “turístico” da coisa, o que por vezes incomoda.
Além disso, a reiteração e repetição das tomadas dos monumentos aos mortos em Nagasaki aprofundam essa sensação de “lição de história”, o que é ao mesmo tempo o objetivo do diretor, na linha do “não esqueçam o ocorrido” e também a sua forma de quase que fechar uma porta para um momento de sua própria história, ou melhor, da história de sua geração de japoneses, mesmo que ele não tenha ido à guerra em razão de problema de saúde. Da mesma forma, quando os pais das crianças chegam do Havaí, a retratação deles como vilões – por assim dizer – é meteórica e cambando para o diálogo expositivo que logo dão espaço para a chegada de Richard Gere, quase que um literal cavaleiro de armadura em um cavalo branco.
Mas, de alguma forma difícil de explicar, o resultado desse trabalho de Kurosawa é emocionante. Talvez seja a incrível performance de Sachiko Murase como Kane ou talvez a interação dela com os quatro jovens ou, talvez ainda, a forma simples, com câmera parada à meia altura e planos gerais apertados e econômicos com que o diretor captura essas interações. Ou, mais provável, a conjunção de todos esses fatores com um olhar naturalista, alguns arroubos de surrealismo quando o “olho atômico” aparece e até mesmo a estranheza natural causada pela chegada de Gere ao seio do elenco japonês e, ainda por cima, com o ator falando a língua (ele sempre praticou o budismo).
Rapsódia em Agosto sem dúvida é polêmico e as reclamações americanas procedem em parte, se interpretarmos o filme de maneira mais direta e simplista e esquecermos que é a visão de civis sobre atos de guerra, bem diferente da visão militar, obviamente (“a culpa é da guerra”, Kane deixa claro). Mas tenho para mim que essa forma de se ver a penúltima obra de Kurosawa é injusta e glosa a beleza inegável do relacionamento humano que ele deixa como parte de seu legado incomparável.
28/04/24
Justiça Cega, Blind Justice, 1994, Richard Spence
No iutubi aqui
Canaan (Armand Assante) tem um peso enorme a carregar. Dois, aliás: no passado, vacilara na hora de salvar uma menina, na aldeia fustigada pela Guerra Civil. Perdera a garota e também boa parte da visão. Ainda que vendo vultos, conseguira exterminar muitos homens nas terras sem lei do Oeste americano, mas acaba tendo que ficar com o bebê de um deles! Canaan logo se transforma em uma espécie de vingador justiceiro da cidade de San Pedro, assediada por um bando de sanguinários. Ele aniquila o filho do chefão e incita uma raiva ainda maior nos sem-caráter. Apaixonado pela mulher que lhe acolhera, ferido e ao bebê ele quase não transparece o sentimento. Filmow
29/04/24
Bebê Rena, Baby Reindeer, Minissérie de televisão, 2024, Weronika Tofilska & Josephine Bornebusch
Criação: Richard Gadd
“Bebê Rena”: você nunca mais vai ler “enviado do meu iPhone” sem sentir calafrios
BEBÊ RENA - A ST4LKER MAIS TEMIDA DA NETFLIX - QUANDO VOCÊ QUER SER PERSEGUIDO - CRIME S/A
BEBÊ RENA - CONVERSANDO SOBRE A POLÊMICA SÉRIE DA NETFLIX AO VIVO
03/05/24
O Alfaiate, The Outfit, 2022, Graham Moore
A grande qualidade de ‘O Alfaiate’ reside na sutileza, por Giselle Costa, 17/04/2024
Dirigido por Graham Moore em sua estreia como diretor, o filme “O Alfaiate” (The Outfit) nos transporta para a Chicago dos anos 1950 em um suspense de único cenário que entrelaça moda e crime organizado com uma precisão quase cirúrgica. Essa obra, que mistura elementos clássicos de thrillers e dramas de gangsters, foi lançada em 2022 e chega agora ao catálogo do Prime Video.
Sinopse de O Alfaiate: Neste thriller, Mark Rylance estrela como Leonard, um alfaiate inglês de Chicago cujos clientes são um grupo de mafiosos. Mas quando eles pedem mais do que apenas um terno, Leonard deve usar toda a sua inteligência para sobreviver.
Crítica do filme O Alfaiate (2022)
Graham Moore, conhecido por seu trabalho premiado em “O Jogo da Imitação” (2014), traz uma abordagem meticulosa e detalhista também em “O Alfaiate”. A decisão de manter a ação concentrada em um único local poderia limitar a narrativa, mas aqui serve para intensificar o suspense, dando cada diálogo e movimento uma carga dramática ampliada. A fotografia, complementada pela direção de arte de Gemma Jackson, captura a essência de uma Chicago dos anos 50 repleta de tons terrosos e uma atmosfera densamente carregada.
Mark Rylance, com sua atuação precisa e subjugada, é a espinha dorsal do filme. Ele não apenas porta a estética do filme, mas também suas complexidades emocionais e morais. A interação entre personagens é construída com habilidade, especialmente nas dinâmicas entre Leonard e Mable, cuja relação paternal revela camadas de segredos e intenções ocultas.
No entanto, o filme por vezes peca pelo ritmo inconsistente e por um enredo que, embora engenhoso, às vezes se arrasta mais do que o necessário. Além disso, a representação dos gangsters, embora estilisticamente agradável, por vezes carece de profundidade, relegando-os a caricaturas mais do que personagens totalmente realizados.
04/05/24
Kagemusha, a Sombra de um Samurai, Kagemusha, 1980, Akira Kurosawa
Kagemusha, a sombra de um samurai, por Luiz Santiago, 17/08/2018
Os dez anos que separaram O Barba Ruiva de Dersu Uzala foram de transformações pessoais e também artísticas para Akira Kurosawa. Neste período, muita coisa aconteceu em sua vida, entre dificuldades de encontrar financiamento para seus projetos, a fracasso de bilheteria daquele que seria um empreendimento com outros diretores (Dodeskaden), gerando uma tentativa de suicídio do diretor, com medo de que sua carreira tivesse terminado. E então veio o início de um retorno aos eixos, que trouxe a adaptação da obra literária do explorador russo Vladimir Arseniev. Abraçado por diretores icônicos da Nova Hollywood (Spielberg, Lucas, Scorsese e Coppola), Kurosawa conheceria um novo momento em sua carreira, já empregando um diferente tipo de abordagem temática que desenvolveu após O Barba Ruiva. Foi neste cenário — e com ajuda de Francis Ford Coppola e George Lucas como produtores de uma versão internacional, ajudando no financiamento do filme — que surgiu o épico Kagemusha, a Sombra de um Samurai, em 1980.
Historicamente falando, o filme se passa em um período de grandes mudanças políticas e territoriais no Japão, o Período Sengoku, também chamado de Era dos Estados Beligerantes, com guerras civis assolando clãs através de todo o país. O roteiro de Kagemusha, escrito por Masato Ide e Kurosawa, se passa, então, em um cenário de inquietações e batalhas, e nos mostra uma jornada de controle geopolítico, colocando em cena um ladrão condenado à pena de crucificação que é salvo de sua sentença por guardar uma absurda semelhança com um um dos Senhores de Clã, o que faz desse ladrão o dublê perfeito. Quando o verdadeiro Senhor local morre, as circunstâncias colocam este homem pobre no lugar áureo do Clã, interpretando por um determinado período (a vontade do falecido Senhor era que sua morte fosse oculta por 3 anos) o posto mais alto do local.
A princípio, o roteiro é bastante confuso e parecem faltar elementos sólidos de justificativa para praticamente todos os personagens em cena. A bem da verdade, temos a impressão de que se trata de uma continuação ou da segunda parte de algo a que não tivemos acesso. Kurosawa é corajoso e habilidoso o bastante para começar com essa abordagem incomum de uma narrativa em continuidade e rapidamente nos dar ingredientes dramáticos a partir dos quais podemos entender o que se passa. A guerra é esclarecida. A posição do Senhor Shingen Takeda é apresentada de modo largo e de maneira até um pouco cômica (destaque absoluto para o excelente Tatsuya Nakadai, que interpresa Takeda e, depois, Kagemusha) e a partir de então, seguimos com a preparação para a batalha e uma forma de lidar com as quebras de expectativas de domínio territorial, como se o destino de cada indivíduo aqui (lembrando que o roteiro não se furta em flertar com o místico ou o onírico) estivessem esperando a vez de ser alterado pelos mais banais motivos.
A produção de Kagemusha esteve entre as mais laboriosas da carreira de Kurosawa, mas à parte os esforços de lidar com centenas de figurantes, cavalos e dinâmica cênica funcionando perfeitamente, não houveram grandes contratempos ao longo do processo. O único impasse verdadeiro aconteceu ainda nos primeiros dias de ensaio, quando o então contratado para protagonizar o filme, o ator Shintarô Katsu (da franquia Zatoichi), apareceu com uma câmera no set, dizendo que iria filmar o seu processo de atuação e transformação de Senhor Takeda para Kagemusha. Não deu outra: Kurosawa o demitiu no mesmo dia, contratando rapidamente Tatsuya Nakadai. Ao longo de todo o processo, o cineasta não encontraria mais empecilhos além dos já esperados para uma produção deste tamanho, especialmente quando falamos de uma obra que mantém o rigor e perfeccionismo estético de seu diretor, vide as vestimentas histórias, a representação dos interiores dos castelos, o sistema de estratégias para a batalha e a dinâmica hierárquica daquele período da História do país, filmado com precisão.
Assinada por Takao Saitô (que estreou como fotógrafo ao lado de Kurosawa, em Sanjuro) e Shôji Ueda (em sua primeira parceria com o Mestre), a fotografia de Kagemusha está entre as mais belas construções do cinema, tendo a capacidade de colocar na tela clãs de diferentes bandeiras, sequências de diferentes forças dramáticas atrelada a cores e ângulos próprios, jamais repetidos em contraste a outros Clãs; distintas aberturas e movimentos de ligação entre inimigos; e ainda as construções específicas que mais nos chamam a atenção, como as estonteantes cenas em que o ladrão descobre o corpo do Senhor dentro da jarra; a sequência do sonho em todo o seu mergulho plástico, fortemente colorido e a soberba batalha noturna, momento do filme com um dos mais marcantes trabalhos de edição na criação do suspense diante do público.
Nessas condições estéticas tão imensas, o espectador fica esperando que o roteiro vá expandir a premissa, mas a única preocupação aqui é a exploração da dualidade entre sósia e Senhor mais o possível impacto que isso tem nos chefes de Clãs inimigos. Na minha leitura, essa abordagem do roteiro impede que o fortalecimento de uma investigação mais próxima do Kagemusha seja feita, ao mesmo tempo que impede que as ambições de guerra sejam plenamente exploradas, ficando no meio um grande peso de ordem quase filosófica, onde um ladrão se vê perfeitamente tomado pelas ideias e postura de seu falecido Senhor — dedicando-se com afinco a assumir seu papel –, embora saiba que esta “sombra” deverá sair de cena algum dia. No entanto, essa disposição textual tem peso negativo bastante limitado. A despeito dela (e da forma como o diretor filma o ciclo de ações durante a batalha final, com os chefes dos Clãs aliados praticamente entregando-se à morte), Kagemusha está entre um dos mais incríveis contos históricos sobre este intenso período da história do Japão. Um grande filme sobre o poder de uma figura política, sua representação e as consequências que a sua saída de cena pode trazer para todos. Um épico sobre personalidade, sobre a arte da guerra e sobre o legado de alguém.
05/05/24
O Véu, The Veil, Minissérie TV, 2024, Daina Reid, (3 episodes, 2024), Damon Thomas (3 episodes, 2024)
Criação: Steven Knight
Em O Véu, duas mulheres cruzam a Europa com objetivos opostos que podem provocar uma crise global. Na minissérie, Imogen Salter (Elisabeth Moss) é uma agente do MI6 responsável por casos de alto risco que tem como missão rastrear e interrogar Yumna Marwan (Adilah El Idrissi), uma mulher que esconde um segredo capaz de provocar a morte de milhares de pessoas. As duas se envolvem em uma rede de segredos, mentiras desconfiança e riscos que ainda tem as mais importantes agências de inteligência do mundo por trás. Adorocinema
De Michael Althorp (James Purefoy) para Imogen Salter (Elisabeth Moss)
A luz precisa da escuridão para existir. O equilírio da ordem do mundo oscila como um pêndulo.
Estamos passando de uma era de ouro de tradicionalismo e certa ordem social a uma era obscura.
Em determinado momento, devemos encorajar essa escuridão. Cuidar dela, digamos. Apenas o colapso total de onde estamos agora permitirá o ressurgimento de outra era de ouro. E, como sabemos, onde há caos, também há oportunidade.
Sabe,esperei pacientemente até que você voltasse para casa. E, talvez que enxergasse as coisas com mais clareza.
Abre parênteses
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06/05/24
DW Brasil: Hollywood está começando a falar a verdade? l Camarote.21
Reservation Dogs, Série de TV, 2021–2023, Sterlin Harjo (9 episodes, 2021-2023), Blackhorse Lowe (6 episodes, 2021-2023), Tazbah Chavez (5 episodes, 2021-2023), Danis Goulet (3 episodes, 2022-2023), Sydney Freeland (2 episodes, 2021), Erica Tremblay (2 episodes, 2022-2023), Devery Jacobs(1 episode, 2023)
Criação: Sterlin Harjo & Taika Waititi
A série traz a história de adolescentes em uma reserva de nativos estadunidenses em Oklahoma. A trama gira em torno de quatro adolescentes de descendência indígena vivendo numa reserva no estado do Oklahoma. Com histórias excêntricas e referências à cultura do povo, os jovens Bear, Elora, Cheese e Willie Jack lidam com os problemas locais e também entendem mais sobre suas identidades. A ressaltar as relações entre jovens e as personagens mais idosas da comunidade. Os pós (Bear Smallhill (D'Pharaoh Woon-A-Tai ), Elora Danan Postoak (Devery Jacobs), Willie Jack (Paulina Alexis) e Cheese (Lane Factor)) interagindo com os pré (Gary Farmer, 1953 (Uncle Brownie), Wes Studi, 1947 e (Bucky), Graham Greene, 1952 (Maximus)) numa relação de aprendizagens circunscrita à oralidade. Gary, Wes e Grahan são atores que atuam em roliudi e no cinema independente de há muito tempo. E mais, são militantes da causa indígena estadunidense. Provavelmente a série os homenageiam.
Assistindo a esta série imperdível, da Starplus, lembrei de "havia educação, mas não havia pedagogia" de Dermeval Saviani.
"O exemplo dos Tupinambás ilustra o entendimento de que numa sociedade sem classes, como era o caso das comunidades primitivas, os fins da educação coincidem "com os interesses comuns do grupo e se realizam igualitariamente em todos os seus membros, de modo espontâneo e integral" (Ponce, p. 21). Ou seja: não havia instituições específicas organizadas tendo em vista os fins da educação. Por isso a educação era espontânea. E cada integrante da tribo assimilava tudo o que era possível assimilar, o que configurava uma educação integral.
Podemos dizer que nesse contexto não se punha, ainda, a questão das ideias pedagógicas e da pedagogia. Com efeito havia aí uma educação em ato, que se apoiava sobre três elementos básicos: a força da tradição, constituída como um saber puro orientador das ações e decisões dos homens; a força da ação, que configurava a educação como um verdadeiro aprender fazendo; e a força do exemplo, pelo qual cada indivíduo adulto e, particularmente, os velhos ficavam imbuídos da necessidade de considerar suas ações como modelares, expressando em seus comportamentos e palavras o conteúdo da tradição tribal.
As ideias educacionais coincidiam, portanto, com a própria prática educativa, não havendo lugar para a mediação das ideias pedagógicas que supõem a necessidade de elaborar em pensamento as formas de intervenção na prática educativa. Nessas condições havia, pois, educação, mas não havia pedagogia, ao menos no sentido em que tal expressão está sendo utilizada no presente trabalho.
É com essa forma de sociedade e esse tipo de educação que vieram a se chocar os conquistadores europeus."
Dermeval Saviani, "História das ideias pedagógicas no Brasil", pp.38-39, 5ª edição, Autores Associados, 2019, Ponce, Anibal (2001). Educação e luta de classes. 19ª ed. São Paulo, Cortez
Reservation dogs – 1ª Temporada por Kevin Rick 23/09/2021
É sempre fascinante o poder da representação de minorias no audiovisual, quando bem feito. Seja uma obra com o encargo de expressar uma cultura inteira ou, como no caso de Reservation Dogs, incorporar uma experiência específica e cotidiana de um grupo marginalizado, a importância do retrato de minorias sociais está na simples evidência do “existir”. É como se fosse um grito por pertencimento, um verdadeiro clamor por, bem, representação: Eu existo, meu povo e minha comunidade existem, minha cultura e sua história precisam ser contadas.
Notem que os pronomes acima não estão sendo utilizados de maneira pessoal, mas sim para caracterizar o que a série co-criada pela superestrela Taika Waititi e por Sterlin Harjo personificam em seu discurso sobre quatro adolescentes indígenas que se envolvem em travessuras na esperança de ganhar algum dinheiro e seguirem o sonho nativo-americano de mudarem de vida na grande Califórnia. Pode parecer que estou dramatizando a história simples de estudo de personagem em Reservation Dogs, sobre garotos e garotas delinquentes crescendo em uma reserva indígena da zona rural de Oklahoma, mas a equipe criativa de descendência indígena (não só americana) buscam contar uma história moderna, de novas gerações de nativos como eles.
Utilizando a linguagem de comédia situacional com várias nuances e camadas dramáticas de subtexto racial, os criadores demonstram uma perspectiva autêntica da experiência nativo-americana atual, e não só do genocídio ocorrido há várias décadas – seus descendentes estão aqui e suas histórias são diferentes, ainda que extremamente associadas ao passado. E aí está o poder da representação quando bem feito, como citei no início do texto. Ao colocar a história de trauma e despojo cultural causada por décadas de extermínio, exclusão e realocação em áreas pobres (daí o título da série) pelas lentes de uma juventude em contradição entre costumes indígenas e a criação num mundo capitalista, a obra se solidifica como uma bela representação da experiência desta minoria, tanto para o público-alvo retratado sem os típicos estereótipos hollywoodianos quanto para uma audiência (como eu) que desconhecem sua trajetória contemporânea.
Nossos protagonistas desajustados usam camisas do Wu-tang Clan, têm pôsteres de filmes do Tarantino em seus quartos e conversam sobre cultura-pop, enquanto também equilibram suas tradições familiares indígenas como caçar, falar de espíritos e um sentimento de comunidade que permeiam cada decisão e conflito dos personagens. Em uma cultura destruída aos montes, seja pelo assassinato ou pelo racismo estrutural, o individualismo ou a mudança é sempre evidenciado como um defeito.
Daí entra o ótimo desenvolvimento dramático dos personagens (todos ganham ótimos episódios focados individualmente), em torno de deixarem a vida marginal e os campos abertos sucateados para buscarem uma vida melhor, ao mesmo tempo que abandonam seus familiares, sua comunidade e o próprio grupo. Tudo isso é sempre bem pontuado pelo trauma da perda que acompanha todos os personagens, em um surpreendente estudo de luto à medida que a série avança.
No entanto, o aspecto mais legal de Reservation Dogs está no humor que harmoniza todo esse drama. Qual foi a última vez que você viu uma obra sobre nativos-americanos que não os abordasse de maneira sombria e historicamente trágica? Bem, eu nunca tinha visto. Ainda que a série nunca negue (e de maneira bem sutil evidencia vários problemas sociais enfrentados pela minoria), a comédia ganha o fronte da narrativa em uma inovadora forma de contar a verdade desses descendentes para além de caricaturas e estereótipos.
O típico humor satírico de Taika Waititi é evidente em várias piadas sobre a percepção da “gente branca” sobre o mundo indígena – um capítulo em especial trata de um personagem que tem uma tatuagem da bandeira da Confederação com uma ironia maravilhosa -, assim como os nativos veem vários aspectos da cultura americana com muito humor e boas doses de cinismo. Os criadores também tiram sarro de problemas causados pela marginalização da sua minoria (sempre com um subtexto crítico), como no ótimo episódio sobre atendimento hospitalar ou nas várias subtramas sobre a pobreza das Reservas Indígenas.
Contudo, os melhores momentos cômicos da obra estão nas piadas com a própria cultura nativa – rir de si mesmo é sempre revigorante! -, em vários capítulos que dialogam entre o novo (os protagonistas) e o velho (anciões, tios e um policial tradicional) em aventuras típicas de coming of age que fazem um tratamento humorístico tanto pela tradição e os costumes vistos pelo olhar cínico dos jovens quanto pela divertida reação dos personagens mais velhos – há também uma variedade fantástica de figuras inesquecíveis, desde gêmeos rappers até um velhote maconheiro. A série fica ainda mais divertida quando utiliza-se das raízes místicas e supersticiosas da cultura nativa para fazer comédia, incluindo vários momentos semi-surrealistas de espíritos aparecendo na obra, com louvor especial para um espírito-guia que sempre tosse ou arranha a voz quando faz o grito de guerra indígena. Dessa forma, entre o trauma histórico, o drama coming of age da minoria e a marginalização cultural, com a comédia satírica e o humor leve rindo de si mesmo, Reservation Dogs é a definição de uma autêntica representação.
07/04/24
Bones of Crows, 2022, Marie Clements
A psychological drama told through the eyes of Cree Matriarch Aline Spears. As she survives Canada's residential school system, Spears strives to continue her family's generational fight in the face of systemic starvation, racism and sexual abuse. BONES OF CROWS unfolds over one hundred years with a cumulative force that propels us into the future.
BONES OF CROWS amplifies an extremely important message of Truth and Reconciliation. Featuring fantastic performances from CIFF alumni actors Grace Dove (MONKEY BEACH, CIFF 2020) and Phillip Lewitski (WILDHOOD, CIFF 2021,) Marie Clements' BONES OF CROWS already has future plans as CBC is on board to expand the film into a 5 episode mini-series in 2023-2024. CIFF
ones of Crows is a multi-generational epic; a story of resilience and strength told through the eyes of Cree Matriarch Aline Spears. Removed from their family home and forced into Canada’s residential school system, young musical prodigy Aline and her siblings are plunged into a struggle for survival. Over the next hundred years, Aline and her descendants fight for a more just future.
Supported by her daughter Taylor, a determined lawyer, and granddaughter Percy, the family’s creative force, Aline must find the strength to step into her role as family Matriarch and confront the scars of the past. In the face of a rapidly shifting and hostile world, Aline's remarkable journey moves through memories of residential school, perilous adventures across snowy traplines, and classified London bureaus where she works as a code talker in the Second World War.
A sweeping drama grounded in historical truth, Bones of Crows weaves together underrepresented moments in Canadian and Indigenous history, including the Indigenous contributions to WWII, the ongoing cases of Missing and Murdered Indigenous Women and Girls and the Truth and Reconciliation Commission of Canada. Bones of Crows
09/04/24
Atanarjuat: O Corredor, Atanarjuat, 2001, Zacharias Kunuk
Atanarjuat The Fast Runner disponível aqui
Atanarjuat ou Atanarjuat: The Fast Runner, (bra: Atanarjuat O Corredor Mais Veloz) é um filme canadense de 2001 dirigido por Zacharias Kunuk[. É o primeiro filme a ser escrito, dirigido e atuado inteiramente na língua inuktitut. Situada em um passado distante, o filme reconta uma lenda Inuit transmitida através dos séculos pela tradição oral.
Em 2001, recebeu o prêmio Caméra d'or, no Festival de Cinema de Cannes, tendo sido incluído em 2004 na lista do Festival Internacional de Cinema de Toronto com um dos 10 maiores filmes canadenses de todos os tempos.
O filme faz parte da lista dos 1000 melhores filmes de todos os tempos do The New York Times. Wiki
10/05/24
O Amor e a Fúria, Once Were Warriors, 1994, Lee Tamahori
O filme mais famoso da Nova Zelandia
Jake (Temuera Morrison ) é o patriarca da família. Beth (Rena Owen ) é a esposa e mãe de cinco filhos. Vivendo juntos há 18 anos, a vida do casal é um turbilhão de violência e desesperança. Jake não consegue manter-se no emprego, vive entre bebedeiras e festas em sua casa com seus amigos. Seus filhos são negligenciados e vivem dentro de uma cultura em que o homem manda e a mulher obedece sem contestar. Sua filha Grace (Mamaengaroa Kerr-Bell ) tem 13 anos, gosta de escrever estórias e contar para os irmãos mais novos .
Seu melhor amigo vive embaixo de uma ponte, dentro de um veículo velho e abandonado. Mark, outro filho de Jake, é um garoto entrando na adolescência, preso por pequenos crimes e encaminhado a uma instituição de reabilitação mantida pelo estado. Jake, ao saber do fato, alega que será bom para o menino “virar um homem de verdade”, pois sob sua ótica é muito mimado pela mãe. Nig, o irmão mais velho, se junta a uma gangue e passa por um ritual de aceitação que inclui ser brutalmente espancado pelos membros. Sua marca de respeito dentro do grupo é uma tatuagem feita na metade do rosto. As outras crianças limitam-se apenas a viverem, sem compreender o caos em que vivem. Beth é uma Maori, um povo outrora guerreiro e valente. Ao conhecer Jake teve a reprovação da família que não via em seu futuro marido um homem à sua altura. Enquanto a família tenta viver em sua rotina, um acontecimento trágico mudará tudo.
O Amor e a Fúria é um filme Neozelandês, de 1994, falado em inglês e Maori. O filme do diretor Lee Tamahori (filho de pai Maouri e mãe Britânica) mostra de uma forma bem direta a vida e a cultura de uma classe a margem da sociedade. Para o público brasileiro, talvez seja complicado entender algumas situações, visto que pouco se conhece deste país por aqui. Mas nem isso tira o mérito desta excelente produção que tem uma direção segura, uma montagem dinâmica e uma boa história oriunda do livro “Once Were Warrios”, do escritor Alan Duff.
O Amor e a Fúria tem ingredientes diversificados, mas que se misturam de forma homogênea e o tornam interessante. Temos um Jake que prefere viver com o salário do governo do que trabalhar (como ele diz “apenas 17 dólares a menos”). Beth é uma esposa que não aceita tudo que lhe é imposto: protesta, xinga , berra, mas diante da violência de seu marido que a espanca ela vai murchando. Tenta manter sua dignidade em um meio em que as pessoas preferem “não perceber” seu rosto desfigurado pelos murros. Jake é um brigão que quer ser reconhecido como um cara macho: não leva desaforo para casa, bate em quem não lhe agrada e bate na esposa que o repreende na frente de seus amigos. Amigos estes, que adoram sua companhia para bebedeira e que se assustam e se divertem com seu temperamento (assustam-se ao verem sua violência contra a esposa e celebram sua violência em um bar contra um oponente).
Jake pode ser visto como um perdedor, mas acredita ser visto como um guerreiro moderno. Sua baixa estima o leva a lamentar o passado de seus ancestrais serem descendentes de escravos e debocha do povo de Beth que o rejeitou. Jake não se importa com os filhos e estes crescem sem se importarem com ele. Dar amor aos filhos, se importar com seus problemas? Jake dá um teto para morar e arruma dinheiro e, para ele, isto basta. Seu filho mais velho Nig (Julian Arahanga), o despreza e entra para uma gangue que é vista com maus olhos por Jake. Uma forma de afrontá-lo e também de ser acolhido em um meio que se não o amam, pelo menos o respeitam. As tatuagens de seu grupo (principalmente no rosto) mostram sua posição de destaque e pode ser considerada como motivo de grande orgulho. Jake fala de escravidão.
Os Maori tiveram contato com culturas européias (a mais forte a inglesa) que trouxeram várias etnias e até mesmo escravos ao seu país. Com guerras e conflitos, os Maori quase foram exterminados. Logo Jake seria um Heke, um Maori urbano, vindo de uma mistura de etnias e não aceito pela comunidade de Beth (pelo menos é o que se entende pelo filme).
Grace é a filha que talvez seja a grande esperança de Beth que espera que esta saia deste meio e consiga um lugar melhor na sociedade. Jake não vê com bons olhos e acha que seu lugar é ali. Grace é uma menina sonhadora, com uma grande maturidade. Mesmo mais jovem, talvez seja (com na fala de NIg) a pessoa que mais cuidava e se preocupava com seus irmãos. Ou seja , ela é a corrente que não pode se partir, pois é quem segura a família . Mas a vida não é como se sonha, então ...
No elenco temos grandes atores, na verdade todos parecem focados em dar o melhor de si e isto fez a diferença neste filme. Temuera Morrison dá um show de interpretação. Não há como ficar indiferente ao seu personagem: ora temos desprezo por suas atitudes, ora temos pena por um homem escravo de seu passado e de seu meio. Rena Owen faz uma esposa que tenta não ser submissa, mas é subjugada pela violência doméstica. Sua relação amor –ódio pelo marido é intensa. Quando está sóbrio Jake é um cara “quase” legal , quando bebe vira um monstro .
Um homem torturado que só consegue expressar sua dor através dos punhos. Essa dualidade de personalidade faz com que Beth tenha que andar sobre um verdadeiro “papel de arroz”. Mas sua coragem a permite confrontar Jake, mesmo que arcando com as consequências que poderão vir. Beth é uma mulher de fibra. Cria os filhos, vê o mundo sob a ótica correta e suporta uma violência desmedida. Mamaengaroa Kerr-Bell faz a menina sonhadora, a esperança de Beth. Cuida dos irmãos, odeia o pai e sonha em ter uma vida digna, mas nesse meio tudo pode ocorrer e, uma pessoa de bom coração, sempre sofre os abusos dos maus intencionados. O ator Cliff Curtis (como Bully) ganhou o mercado internacional. O restante do elenco saiu-se muito bem levando o espectador a imergir num mundo diferente e que nos leva a muitas reflexões.
O Amor e a Fúria é um filme que merece ser visto, por vários motivos: tem uma ótima história, ótimos personagens , aborda vários assuntos que podem ser analisados de diferente pontos de vista e pode ser propício a vários grupos de debate. É uma produção fora do circuito americano e uma oportunidade de ver uma produção da Nova Zelândia, que passou rápido pelos cinemas brasileiros da época. Quem viu, não se esqueceu
10/05/24
Night Raiders, 2021, Danis Goulet
Crítica de “Night Raiders”, un sci-fi convencional pero necesario (Los Cabos 2021)
Por: Luis Servin, Noviembre 14, 2021
Directa del Festival Internacional de Cine de los Cabos, en su décima edición, nos llega “Night Raiders”, ópera prima de la directora canadiense Danis Goulet y producida por el neozelandés Taika Waititi, un filme que mezcla ciencia ficción distópica con el folclor e historias de los Cree, una de las naciones amerindias más antiguas y grandes de Canadá.
La película nos presenta un mundo postapocalíptico en el cual los niños son separados de sus padres a muy temprana edad para enviarlos a academias militares donde son instruidos y adoctrinados para servir al estado totalitario que ha tomado el control. Aquí seguimos la historia de Niska (Elle-Máijá Tailfeathers), una mujer Cree que ha sobrevivido 11 años escondida en el bosque con su hija Waseese (Brooklyn Letexier-Hart) huyendo de los militares y sus drones, los cuales buscan capturar a la niña. Tras una serie de acontecimientos e infortunios Niska y su hija son separadas: la primera termina uniéndose a la resistencia Cree buscando rescatar a su pequeña, y la niña, a su vez, llega a una de las academias, lugar donde buscan eliminar cualquier rasgo de su vida anterior.
Lo más destacable en “Night Raiders” son las constantes evocaciones al pasado: la colonización e imposición de ideas y cultura sufridas por los pueblos originarios del continente americano al entrar en contacto con los conquistadores europeos; esa historia constante de violencia, segregación e intolerancia es trasladada a un contexto sci-fi con influencias que van desde “Children of Men” de Alfonso Cuarón hasta “The Hunger Games” de Francis Lawrence y Gary Ross.
La ficción de la directora canadiense resuena fuertemente en el violento pasado de la nación del norte del continente al equiparar las prácticas vergonzosas que llevaron a cabo los gobiernos de Canadá para mantener al límite a la población indígena del país, separando en el proceso a decenas de familias con un régimen militar totalitarista: los métodos son los mismos pero la ciencia ficción le otorga un carácter universal a una temática particular.
Sin embargo, el importante mensaje que Goulet busca transmitir en su película termina por sentirse incompleto debido a la falta de desarrollo en sus personajes, llenos de estereotipos propios del género, y a los constantes clichés narrativos, llevándonos a callejones sin salida de los cuales difícilmente saldría la cinta si no fuera por la magia del guion, un recurso usado demasiadas veces para un filme de tan corta duración como este.
“Night Raiders” nos presenta un mundo por demás conocido dentro de la ciencia ficción pero lo va poblando con el folclore de un pueblo ancestral cuyo único y legítimo reclamo es el derecho a conservar su identidad. A pesar de dar muestras de querer ir más allá, y darlo todo por la cultura aquí representada, se queda a la mitad del camino al ofrecernos poco con su narrativa y eso la condena a no sobresalir dentro de un género que constantemente busca propuestas frescas que se destaquen por encima de las muchas películas de corte postapocalíptico que tenemos al año.
La voz de Goulet es potente y pega sobre la mesa al hacer un gran uso del género para trasladar problemas pasados y presentes a un futuro gris y desesperanzador, uno al que día con día nos acercamos peligrosamente.
“Night Raiders” formó parte de la Competencia del Festival Internacional de Cine de Los Cabos 2021.
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Fecha parêntesis
11/05/24
Feud, Série de TV, 2017–2024, Gus Van Sant & Ryan Murphy (temporada 2)
Criação: Jaffe Cohen &Ryan Murphy & Michael Zam
Minissérie no Star+ tem direção de Gus van Sant e Tom Hollander sobrenatural na pele do escritor
Luciana Coelho, FSP, 09/05/2024
Em novembro de 1975, um raio devastou a alta sociedade nova-iorquina. Nas páginas da revista Esquire, Truman Capote eviscerou a vida de algumas das mais conhecidas socialites da cidade, de seus maridos e das amantes de seus maridos, da forma detalhada como apenas quem viu ou ouviu tudo aquilo em primeira mão poderia fazer.
Capote (1924-1984) estava, então, no auge da sua fama; havia escrito "A Sangue Frio" —um cânone da reportagem que versa sobre o assassinato de uma família do Kansas em 1959— e "Bonequinha de Luxo", conto alçado a clássico do cinema com Audrey Hepburn como garota de programa, além de reportagens para publicações de prestígio.
Mas estava, havia um tempo, sem publicar algo revolucionário. Sua obra-prima, pensava, estava por vir.
Nascido em Nova Orleans, sul dos EUA, Capote tinha na bagagem uma infância de sobressaltos (o pai abandonou a família cedo, a mãe o deixou com parentes variados até se reconstruir com o milionário de origem cubana que lhe passaria o sobrenome consagrado), uma adolescência de privilégio em escolas ricas de Connecticut e um talento para escrever histórias que rivalizava apenas com seu apetite social.
O artigo para a Esquire é, de certa forma, a confluência dessas habilidades. A história de como Capote apurou a reportagem (insidiosa como nenhum manual de jornalismo recomendaria) e o tsunami que reverberou dela estão contados na segunda temporada da série "Feud", "Capote vs. The Swans", que estreou nesta quarta (8) no Star+
"Swans", ou cisnes, era como o escritor chamava esse círculo de socialites —pense nelas como influenciadoras analógicas — devido à sua beleza e habilidade em deslizar placidamente na água camuflando um esforço hercúleo para permanecer na superfície.
A minissérie monta um quadro ferino das vidas reluzentes e ocas, e seria saborosa meramente pela fofoca. A produção de Ryan Murphy, o texto elegante do dramaturgo Jon Robin Bait, a direção lânguida de Gus van Sant e o elenco inspirado a tornam exuberante.
Naomi Watts, Diane Lane, Chloe Sevigny, Demi Moore e uma irreconhecível Calista Flockhart entregam cisnes possivelmente mais interessantes que as reais; Molly Ringwald é a amiga fiel; a maravilhosa Jessica Lange faz a mãe já sepulta que surge em delírios e às vezes se confunde com a própria ideia da Morte.
E Tom Hollander, o "gay assassino" de "White Lotus 2", é a ressurreição em tela do escritor, cuja personalidade peculiar se fazia acompanhar de uma figura extravagante e uma voz anasalada que deixava escorrer suas anedotas, sempre o auge das festas.
Seria fácil recair na caricatura, mas Hollander compõe um personagem múltiplo: solitário, arrivista, genioso, mesquinho, insidioso, genial, carente.
Philip Seymour Hoffman levou um Oscar pelo filme de 2006 com o nome do escritor e parecia imbatível no papel. Hollander confere sutileza aos traços mais tristes de Capote, relutantes sob os gestos maneiristas do escritor, em uma interpretação assombrosa.
Todos os oito episódios de "Capote vs. The Swan" estão no Star+
Truman Capote wiki
Truman Capote "La Côte Basque"
La Côte Basque, Truman Capote - Tradução
12/05/24
Pacto Sinistro, Strangers on a Train, 1951, Alfred Hitchcock
No iutubi aqui
Writing Credits: Raymond Chandler & Czenzi Ormonde & Whitfield
Cook (adaptation) & Patricia Highsmith (from the novel by) & Ben
Hecht (uncredited)
Crítica: Pacto Sinistro (1951, Alfred Hitchcock)
Pacto Sinistro, ou Strangers on a Train no original, filme dirigido por Alfred Hitchcock, é a mais famosa adaptação para cinema do livro homônimo de Patricia Highsmith, uma boa dica de leitura. Esse filme trouxe a Hitchcock o que Truffaut chamou de “retorno espetacular”, fato que acontecia a ele ao lançar um filme de sucesso depois de fazer alguns filmes sem grande representatividade. Segundo ele isso se deve, no caso de Pacto Sinistro, por não terem lhe oferecido a história, como o fizeram com tantas outras, ao ler o romance resolveu adaptá-lo.
A história gira em torno do encontro entre dois estranhos e das consequências deste acontecimento. Ao se conhecerem em uma viagem de trem, Guy Haines (Farley Granger), tenista promissor, começa uma conversa com um admirador seu, Bruno Anthony (Robert Walker), que conhece pelos jornais a situação em que ele se encontra: está viajando para tratar de seu divórcio, para que possa se casar com Anne Morton (Ruth Roman), a filha de um senador.
Sabendo da sua necessidade de tirar a esposa do caminho, Bruno apresenta sua ideia de crime perfeito, a fim de convencê-lo a matar o pai que tanto odeia, enquanto ele o tornaria viúvo: Uma troca de assassinatos entre pessoas que, para todos os efeitos, não se conhecem. A princípio, Guy acredita que se trata de uma piada, de algum tipo de ideia divertida, no entanto, Bruno age “em favor” do amigo e cumpre sua parte do plano, o que o faz procurar o recém viúvo para que ele devolva o favor matando seu pai. Sem ter como provar a sua falta de envolvimento na morte da esposa, graças à proposta feita anteriormente e por ter o motivo para isso, Guy fica de mãos atadas, tendo que mentir a todo o momento e decidir se vai ou não cometer um crime.
O crime perfeito é um tema recorrente nos filmes do diretor, alguém com um grande plano, à prova de falhas, pensado e repensado inúmeras vezes e que acaba se tornando cada vez mais sedutor, o que aumenta o ego de seu idealizador, que separa-se do restante da sociedade, sem perceber, por ver facilmente na morte de outros a solução dos seus problemas. Mas nestes filmes há sempre pequenos detalhes que escapam, e a perfeição é constantemente contestada por um objeto, um atraso ou uma antecipação, uma testemunha imprevista, a própria culpa, uma ponta solta qualquer que não estava nos primeiros rascunhos, e que pode colocar tudo a perder para quem se julgava a salvo.
O filme é bem dinâmico por conta do encadeamento de imagens e ações, acontecem muitas coisas em muito pouco tempo, e aos poucos cada peça se encaixa à parte do quebra-cabeças que já está montada. Totalmente em PB pela época em que foi feito, dos filmes do Hitchcock é um dos que possuem os melhores efeitos especiais, inclusive nas cenas que envolvem o parque de diversões, como a cena do carrossel, que é um capítulo à parte em termos de boa cena. Possui pequenas tensões distribuídas durante todo o filme quanto à realização dos crimes trocados, e também entre grande parte das personagens, as que sabem a verdade, as que suspeitam e as que apenas pressentem algo errado no ar, enquanto é aterrador que muitas outras nem sequer se dão conta da ameaça que as ronda.
Guy e Anne não são um casal encantador, pelo qual se sofre por uma eventual separação futura, inclusive, se o ponto de vista da história não o colocasse como o mocinho ou o herói, teríamos algo um pouco mais parecido com Match Point (2005, Woody Allen). Anne e Guy sofrem sozinhos e em silêncio, ele por ter poucas possibilidades de ser visto como inocente e assim se vê obrigado a entrar no jogo orquestrado por Bruno, e ela por suspeitar cada vez mais que há algo errado com o namorado, que pode ter participação na morte da esposa.
Bruno, sem dúvida alguma é um vilão capaz de encantar o público, o próprio diretor no compilado de entrevistas Hitchcock Truffaut revela que neste filme preferiu o vilão ao mocinho, e demarca com cuidado elementos que façam referência a essa luta entre o bem e o mal, essa dualidade nas histórias e em cada um de nós. Bruno se apresenta a Guy como alguém que deseja experimentar de tudo na vida, pois viver é experienciar, e que, entretanto, não tem nenhum talento em especial, razão de sua admiração por Guy, e ao mesmo tempo a causa do desgosto mútuo entre ele e o pai, que o considera um vagabundo. E, aos demais, conforme vai adentrando o universo de seu “notável desconhecido”, é sempre muito simpático e provoca tanto interesse geral, como terror relativo.
Patricia Hithcock, é Barbara Morton, irmã de Anne, ela entre todos é quem mais se assemelha a Bruno pela sua curiosidade viva pelas coisas, e sua sagacidade em prever as suspeitas da polícia, e ao reafirmar que não seria fácil para Guy ser visto como inocente quando ele tinha o motivo para matar; também é ela que faz comentários impensados para a irmã: “Um homem que te ama tanto que mataria por você”. Porém, ao ser apresentada a Bruno, depois de um vislumbre de admiração, cria-se entre eles uma tensão de encontro fatal, que torna Barbara mais temerosa da crueza do crime que ultrapassa o plano das ideias.
Cenas bem interessantes são as que apresentam detalhes que em conjunto recriam o crime, como a obsessão de Bruno com suas mãos, e o seu irrefletido impulso de mostrar aos demais como seria fácil cometer o crime perfeito. Os óculos de Miriam, que servem para refletir sobre os acontecimentos da noite no parque de diversões, e o isqueiro que se acende na noite, à sua frente, e mais tarde se torna uma chama a perseguir quem não contava com a culpa; e a semelhança entre Miriam e Barbara, algo que lembra de leve o filme Um Corpo que Cai, do mesmo diretor.
Assim como as cenas que causam a lembrança do encontro no trem e reforçam a cobrança do pacto, com as repetidas mensagens recebidas por Guy, algumas contendo as peças chave do plano de assassinato do pai de Bruno; a perseguição para que haja o acerto entre os dois desconhecidos, mostrando a presença dessa sombra que cresce na vida de Guy, e está em quase todos os lugares que ele vai, cercando-o para fazê-lo tomar uma atitude. E quando partimos para a resolução, e enfim saímos do “plano da proposta” e tudo que a envolve, quando Guy e Bruno decidem o que vão fazer, surge um novo plano, em que tudo pode ser esclarecido para o bem ou para o mal.
13/05/24
Loving Highsmith, Amando Patricia Highsmith, 2022, Eva Vitija
Patricia Highsmith (1921-1995)
Baseado nos diários inéditos da célebre romancista, “Amando Patricia Highsmith” foca na busca por identidade da autora e em sua vida amorosa conturbada, lançando uma nova luz sobre sua escrita. Família, amigos, sua própria voz e materiais de arquivo traçam um retrato vívido de uma das escritoras mais prolíficas até hoje. Highsmith escreveu mais de 22 romances, muitos foram adaptados para a tela grande, como os sucessos “Pacto Sinistro”, “O Talentoso Ripley” e “Carol”, este a partir de um romance parcialmente autobiográfico, que foi a primeira história lésbica com um final feliz na América dos anos 50. Filmicca
‘Loving Highsmith’ Review: The Patricia You Didn’t Know
A new documentary makes the case that under her hardened exterior, the novelist Patricia Highsmith was a longing romantic.
By Amy Nicholson, Sept. 1, 2022, The New York Times
“Loving Highsmith,” a constrained documentary by the filmmaker Eva Vitija, tries to make the case that author Patricia Highsmith was prodigious in both writing and romance.
When Highsmith died in 1995 at the age of 74, she left behind several lifetimes-worth of words, according to her biographer: 22 novels, including the best-sellers “Strangers on a Train,” “The Talented Mr. Ripley,” and “Carol” (originally titled “The Price of Salt”), plus over 200 unpublished manuscripts and over 8,000 pages of personal journals.
Her handwritten entries, snippets read aloud here by the actress Gwendoline Christie, burn with the grievances — class, racial, familial, romantic, professional — that fed her fictional characters’ homicidal impulses and the public’s image of Highsmith as a coldblooded loner who preferred the company of her pet snail, Hortense. Even her sometime publisher called her “a mean, cruel, hard, unlovable, unloving human being.”
Such comments are not included in Vitija’s tale, which is intended to be a counterpoint. “Loving Highsmith” reveals Highsmith’s squishy bits under her shell, the dalliances she tucked into her diaries during an era where queer women like her exited the subway one stop early, lest strangers suspect they were headed to a lesbian nightspot.
Highsmith was something of a playgirl, Vitija finds, an assertion confirmed by several former girlfriends interviewed in the documentary who recall the novelist partying with David Bowie in Europe or outfitting herself in men's wear and grandly buying a round for the bar. Most of her exes’ memories stop short of being psychologically insightful. Strung together, however, these tender confidences shape an outline of a woman who never trusted anyone with her heart. Again and again, Highsmith’s craving for connection is thwarted by her competing desire to be an emotionally invulnerable workaholic.
The film builds its conception of Highsmith selectively from her mercurial notebooks, highlighting excerpts that support its argument that her lovelorn disappointments drove her into isolation (“I am the forever seeking”) while omitting those that conflict (“One situation — one alone, could drive me to murder: family life, togetherness”).
To make her adventures feel alive, the editor Rebecca Trösch stitches clips from Highsmith’s Hollywood adaptations alongside recently shot B-roll of glitter-strewn drag shows. Slow-motion footage of a cowboy roping a baby steer is paired with Highsmith’s turn to gay conversion therapy in a failed attempt to please her conservative Texan family, particularly her mother, Mary, a figure as cruel as any character she imagined.
It’s hard to imagine the author herself would have approved of the documentary’s flowery narration and sentimental acoustic score. More impactful is the realization that Highsmith’s chilliest calculation was correct: She’d inspire more acclaim — and less moral outrage — exposing her murderous hatreds than her strangled loves.
13/05/24
O Simpatizante, The Sympathizer, Minissérie TV, 2024, Park Chan-wook, (3 episodes, 2024), Marc Munden (3 episodes, 2024), Fernando Meirelles, (1 episode, 2024)
Criação: Don McKellar & Park Chan-wook
Uma série sobre o Vietnã que, mesmo pós derrota acachapante dos estadunidenses, termina com críticas aos vencedores. Conversa de perdedores. Robert Downey Jr saiu de uma cretinice (Oppenheimer, 2023) e entrou noutra em 2024. Coisas de roliudi.
Fernando Meirelles, Robert Downey Jr. e Guerra do Vietnã: HBO subverte as fórmulas em nova série
Série da HBO com Robert Downey Jr. parte de uma história inventiva sobre o conflito que durou duas décadas para fazer crítica engenhosa aos filmes de guerra; episódio dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles foi ao ar no último domingo
Por James Poniewozik (The New York Times), O Estado, 10/05/2024
A HBO há muito tempo se define em contraste com a televisão convencional – “Não é TV”, diz o slogan – mas, em muitos aspectos, seu histórico é de revisão e resposta ao cinema. The Sopranos atualizou os filmes de máfia (seus personagens citavam e eram influenciados por longas como O Poderoso Chefão). Game of Thrones trouxe o gênero de fantasia para um outro nível. Deadwood fez o mesmo com o faroeste e Watchmen, com as histórias de super-heróis.
Mas a HBO nunca tinha nos dado sua versão – ou sua refutação – de um elemento básico de Hollywood: o filme sobre a Guerra do Vietnã (a não ser que se considerem aspectos da história alternativa de Watchmen). Agora chega O Simpatizante, adaptação veloz e sombriamente hilária de Park Chan-wook (com o showrunner Don McKellar) do romance do autor vietnamita-americano Viet Thanh Nguyen.
A série de sete episódios é muitas coisas. É uma exploração das identidades duplas: o protagonista, conhecido apenas como Capitão (Hoa Xuande), é um agente duplo do comunismo, meio francês, meio vietnamita, infiltrado como assessor do General (Toan Le), líder da polícia secreta sul-vietnamita. É também um thriller de espionagem, uma sátira do colonialismo e suas muitas faces – muitas dessas faces são de Robert Downey Jr. – e uma exploração das complicações do amor e da memória.
Mas, além de tudo isso, a série promove um debate sobre cinema. É, ao mesmo tempo, um filme sobre a Guerra do Vietnã – ousado, inventivo e, às vezes, sangrento – e um trabalho de crítica cinematográfica preciso e detalhado.
Em O Simpatizante, que começou a ser exibido em abril, os filmes são uma continuação da guerra por outros meios. Sua fixação pelo cinema começa cedo. Ao recontar sua história em um campo de reeducação do pós-guerra – o dispositivo de enquadramento da série –, o Capitão se lembra de ter assistido ao cruel interrogatório de um agente comunista no palco de um cinema, onde estão descendo o letreiro do filme Emmanuelle e subindo o de Desejo de Matar, com Charles Bronson. Mesmo na visão onírica de Hollywood, a beleza dá lugar a um americano apontando uma arma gigante.
Hollywood é uma metonímia para os Estados Unidos em O Simpatizante: é a porta de entrada do país, seu produto de exportação e sua arma. O contato do Capitão na CIA, Claude (Downey), faz uma palestra a seu “protegido” (que ele não sabe que é comunista) sobre a cultura pop americana, explicando os Isley Brothers e a trilha sonora de Herbie Hancock em Desejo de Matar. Mais tarde, Claude fala sobre o interesse da CIA em manter o controle sobre os cineastas: “Enquanto conseguirmos mantê-los dentro dos limites nebulosos do humanismo, mas sem acionar nenhuma ideologia política, eles vão ser completamente inofensivos”.
Para Nguyen, que veio para os Estados Unidos com a família em 1975, os filmes eram potentes e pessoais. “Cresci quando os Estados Unidos estavam travando toda a Guerra do Vietnã de novo, dessa vez na tela”, lembrou ele em um discurso dois anos atrás. “O Vietnã era o nosso país e esta era a nossa guerra, mas nosso único papel nos filmes americanos era sermos mortos, estuprados, ameaçados ou resgatados”.
A adaptação de seu romance dramatiza isso no quarto episódio, que estreou no último domingo. O Capitão, enviado aos Estados Unidos depois da guerra para ficar de olho no General no exílio, é contratado como consultor de O vilarejo, um filme meio Apocalypse Now de um americano fanfarrão chamado Nikos, também interpretado por Downey. (Downey ainda interpreta um acadêmico que vende teorias sobre a mentalidade “oriental” e um político de direita que exibe uma foto sua com John Wayne, cujo filme Os Boinas Verdes tentou angariar apoio para a guerra).
A filmagem leva o Capitão ao coração das trevas da Hollywood dos anos 70. Nikos proclama que está fazendo O vilarejo para dar voz à dor do povo vietnamita, mas não escreve nenhuma fala para seus personagens vietnamitas. Quando concorda em acrescentar diálogos para eles, depara-se com um probleminha: nenhum dos figurantes contratados para interpretar os moradores do vilarejo é vietnamita ou fala o idioma.
(A propósito, os vários papéis de Downey talvez sejam uma espécie de piada visual sobre esse histórico dos filmes que tratam os asiáticos em geral, e os vietnamitas em particular, como intercambiáveis: todos os aspectos do imperialismo, parece sugerir a piada, têm o mesmo rosto, só com uma maquiagem diferente. Mas numa série que pretende colocar os vietnamitas em primeiro plano, o dispositivo é chamativo demais e distrai a atenção porque... bem, é um monte de Robert Downey Jr.)
O Capitão se voluntaria para resolver o problema, reunindo um grupo de expatriados vietnamitas para preencher os papéis dos figurantes, entre eles seu amigo Bon (Fred Nguyen Khan), que demonstra ter talento para ser morto, repetidas vezes, em vários figurinos e maquiagens diferentes.
Mas a solução do Capitão traz suas próprias complicações. Seus figurantes refugiados, que fugiram dos comunistas, não querem interpretar vietcongues na tela. “Por que fazer arte”, o Capitão diz a eles, “se não for para explorar toda a complexidade da vida?”. Seu discurso não convence ninguém. Mas a oferta de um pagamento extra de US$ 10 convence.
Park, diretor do implacável e sanguinário Oldboy, é uma escolha ajustada para essa história, capaz de transmitir a emoção da ação real e de satirizar o absurdo dos filmes de ação. (Park e McKellar escreveram o quarto episódio, que é dirigido por Fernando Meirelles). No set, o Capitão conhece um ator coreano-americano (interpretado por John Cho), cujo currículo inclui personagens de várias etnias asiáticas que foram espancados até a morte por Robert Mitchum, esfaqueados por Ernest Borgnine e baleados por Frank Sinatra. Um arrogante ator do Método (David Duchovny) interpreta seu papel de criminoso de guerra com uma fidelidade perturbadora.
O episódio avança até o clímax do filme-dentro-da-série: o estupro de uma mulher que mora numa aldeia a que Nikos deu o nome da mãe do Capitão. Embora Nikos pense que seja uma “homenagem”, o capitão fica horrorizado. (“Você deveria me agradecer!”, Nikos reclama). É demais para o Capitão, que Xuande interpreta como um especialista em dominar seus afetos e emoções. Ele é demitido, interrompe as filmagens da cena e, ao sair do set, é ferido por uma explosão pirotécnica que simulava um ataque aéreo contra o vilarejo vietnamita.
O Capitão sobrevive à devastação de seu país e acaba explodido pelo simulacro da guerra da qual escapou. Mas Nikos consegue as explosões de que precisa, e O vilarejo é lançado nos cinemas do mundo.
“Esse filme é um lixo”, diz um personagem vietnamita, filosoficamente, “mas só do nosso ponto de vista. Ele é americano e, do ponto de vista americano, é bem progressista”.
Esse tema – perspectivas e as lentes que as expressam e determinam – é o que faz de O Simpatizante uma crítica engenhosa dos filmes de guerra e uma história de guerra inventiva por si só. A série começa com uma declaração na tela: “Todas as guerras são travadas duas vezes / A primeira vez no campo de batalha / A segunda na memória”. Astuto e apaixonado, O Simpatizante se junta a essa batalha em uma terceira frente: as telas. / Tradução de Renato Prelorentzou
13 /05/24
Trilogia "Planeta dos Macacos": além de muito músculo, ideias
Planeta dos Macacos: A Origem, Rise of the Planet of the Apes, 2011, Rupert Wyatt
Planeta dos Macacos: O Confronto, Dawn of the Planet of the Apes, 2014, Matt Reeves
Planeta dos Macacos: A Guerra, War for the Planet of the Apes, 2017, Matt Reeves
14/05/24
Waterloo, 1970, Sergey Bondarchuk
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Ao lado de uma batalha perdida, o mais triste é uma batalha vencida.
Temendo o sedento poder de Napoleão, os reis e rainhas da Europa fazem pressão para que ele renuncie como imperador da França. Depois de se despedir de seus soldados, ele segue para exílio em Elba, que não dura muito. Um tempo depois, Luís XVIII e sua corte descobrem que Napoleão fugiu da pequena ilha e já está reunindo alguns de seus homens para ter o controle em suas mãos novamente. Suas tropas chegam a Paris e ocupam a cidade, fazendo com que Rússia, Inglaterra, Áustria e Prússia, se unam para pôr um fim em suas ambições, na que ficou conhecida como a Batalha de Waterloo. adorocinema
15/05/24
Sargento Getúlio, 1983, Hermanno Penna
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Baseado na obra de João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio é um tour de force de Lima Duarte, interpretando o papel-título. Acompanhamos a trajetória do personagem, seus pensamentos, suas angústias e agruras durante uma missão a qual ele não esperava ser tão difícil em um verdadeiro faroeste nordestino. Por sua performance, o ator recebeu diversos prêmios, dentre eles o de Melhor Ator nos Festivais de Gramado e de Havana, em 1983. O próprio filme também sagrou-se grande vencedor da festa do cinema da Serra Gaúcha e, por isso, 30 anos depois, ganha uma merecida homenagem durante a 41ª edição do Festival.
Com direção de Hermano Penna e roteiro do próprio, ao lado de Flávio Porto e do autor da obra original, Sargento Getúlio conta a história do personagem que dá nome ao filme, um sujeito que recebe a incumbência de levar um prisioneiro, desafeto político de seu chefe, do pequeno povoado de Paulo Afonso, na Bahia, para a capital do Sergipe, Aracaju. Getúlio embarca na viagem ao lado de seu amigo Amaro (Orlando Vieira), mas no meio do caminho, descobre que as ordens mudaram e que o destino daquele refém não poderá ser o mesmo. Não acreditando nesta contraordem, Getúlio resolve levar à cabo sua missão, nem que para isso morra tentando.
O que chama a atenção logo de cara em Sargento Getúlio é a força do texto de João Ubaldo Ribeiro. Trazendo um pouco do fluxo de consciência que o autor emprega em sua obra original, Hermano Penna consegue nos colocar dentro da cabeça do protagonista, nos mostrando a divisão que aquele homem vive entre cumprir suas obrigações ou manter-se a salvo e bem. Lima Duarte tem ótimas falas e, vez que outra, consegue fazer rir pelo absurdo de seu jeito de ser. O ator é, sem sombra de dúvidas, o grande destaque do longa-metragem. Carregando nas costas o filme e aparecendo em cada uma das cenas dos seus rápidos 85 minutos de duração, Lima Duarte convence como um sujeito perigoso, que não leva desaforo para casa – chegando ao cúmulo de decapitar um inimigo por lhe ter faltado com o respeito. Acompanhamos a espiral de desespero do personagem e todas as suas dúvidas para com o momento em que vive. O ator, que havia ganhado a atenção do Brasil depois de ter interpretado Zeca Diabo em O Bem Amado, volta ao papel do matador profissional, mas sem os maneirismos na voz que o tornaram famoso. Aqui, Lima Duarte parece não utilizar bengalas.
Outros nomes do elenco, como Orlando Vieira como o fiel Amaro e, principalmente, Flávio Porto como o impagável padre, surgem como ótimos coadjuvantes, fazendo dobradinhas formidáveis com o protagonista. O padre é um caso a parte, visto que tem um código de honra bastante pessoal, não se restringindo apenas a seguir a Bíblia. Tentando aconselhar Getúlio no caminho mais correto, mas sem largar sua carabina, o padre é um dos personagens mais curiosos de todo o longa. Cabe ressaltar a montagem competente de Laércio Silva, que inclui alguns flashbacks e elipses sem nunca perder o cerne da história. O único porém do corte final é a presença maciça da narração, que por vezes acaba soando redundante ou literária demais. Excetuando-se isso e alguns problemas na dublagem de certos trechos – a voz da “mocinha” do filme não poderia ser mais falsa e fora de lugar, a experiência de assistir a Sargento Getúlio é bastante positiva.
É salutar que o Festival de Cinema de Gramado, em sua 41ª edição, relembre um de seus vencedores do passado e coloque luz novamente em um trabalho tão interessante quanto este longa-metragem dirigido por Hermanno Penna. Incompreensível é a ausência de qualquer exibição de Sargento Getúlio durante o Festival. Não sabemos os motivos da ausência do filme, mas seria no mínimo coerente que este pudesse encontrar um novo público no local onde se consagrou há 30 anos. Um prêmio tão importante quanto o Troféu Cidade Gramado, louro que a produção recebe em 2013 na cidade gaúcha.
Rodrigo de Oliveira
16/05/24
Harmada, 2003, Maurice Capovilla
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Completamente derrotado em sua carreira, um artista busca encontrar forças para seguir em frente. Através de uma jovem, que pode ser sua filha, ele consegue desenvolver um projeto que muda seu destino. Filmow
Uma emocionante homenagem ao teatro dentro de um filme
Maurice Capovilla (1936-2021)
Paulo César Peréio (1940-2024)
18/05/24
Entre Irmãs, Minissérie TV, 2017, Breno Silveira
‘Entre Irmãs’ continua atemporal por Taynna Gripp, 08/04/2024
Em 2017, a minissérie brasileira “Entre Irmãs”, que chegou agora ao catálogo da Netflix, conquistou o público com sua narrativa envolvente e atuações impecáveis de Nanda Costa e Marjorie Estiano. Ambientada na década de 1930, a trama acompanha a jornada de duas irmãs, Luzia e Emília, separadas por um trágico acidente e obrigadas a trilhar caminhos distintos.
Sinopse de Entre Irmãs: Nos anos 1930, duas irmãs tecem o próprio destino no sertão brasileiro e percorrem diferentes caminhos de coragem, mágoa e redenção.
Crítica da série Entre Irmãs (2017)
A série “Entre Irmãs” apresenta diversos aspectos que merecem uma análise mais profunda. A complexidade e a multidimensionalidade dos personagens é uma delas. Luzia, por exemplo, é uma protagonista forte, resiliente e desafia as convenções sociais em busca de liberdade. Ao mesmo tempo, é marcada por um passado de sofrimento que a torna vulnerável e atormentada. A atuação de Nanda Costa é visceral e transmite com maestria a força e a fragilidade que o papel exigia.
Já Emília é uma jovem sensível e perspicaz que busca uma vida melhor na cidade grande. Ela se depara com os desafios da alta sociedade e precisa aprender a navegar pelas armadilhas desse meio. A atuação de Marjorie Estiano é delicada e captura com precisão a sensibilidade e a inteligência da personagem.
A série ainda apresenta um elenco coeso e talentosos, com destaque para as atuações de Caio Blat, Rafael Cardoso, Débora Falabella, Irandhir Santos e Mariana Lima. Cada personagem contribui para a riqueza da trama e traz diferentes perspectivas para a história.
Trama
A trama de “Entre Irmãs” também é desenvolvida com ritmo ágil e prende a atenção do espectador do início ao fim. A série utiliza flashbacks e flashforwards para contar a história das protagonistas, criando um suspense constante e revelando gradualmente os segredos do passado.
A história é dividida em duas linhas narrativas que se entrelaçam: a jornada de Luzia no bando de cangaceiros e a vida de Emília na cidade grande. As duas tramas são igualmente interessantes e contribuem para o desenvolvimento da história principal. A série explora ainda temas relevantes como o amor, a família, o destino, a luta pela liberdade e o papel da mulher na sociedade.
Reconstrução de época
A reconstituição de época da década de 1930 é um dos pontos fortes da minissérie. O figurino, a cenografia e a trilha sonora transportam o público para o sertão nordestino da época, com seus costumes e tradições. A direção de Breno Silveira é precisa e capta com maestria a atmosfera da época, junto com a fotografia belíssima, que valoriza a beleza natural do sertão.
Temas relevantes e atemporais
Por fim, “Entre Irmãs” aborda temas que são relevantes e atemporais, como o amor, a família, o destino, a luta pela liberdade e o papel da mulher na sociedade. A série explora a força dos laços familiares e a capacidade do ser humano de superar obstáculos.
Conclusão
“Entre Irmãs” é uma obra de grande qualidade que contribui significativamente para o panorama da dramaturgia brasileira. A minissérie apresenta uma narrativa envolvente, personagens complexos e multifacetados, uma reconstituição de época impecável e temas relevantes e atemporais.
19/05/24
A Conversação, The Conversation, 1974, Francis Ford Coppola
A conversação por Roberto Honorato, 18/05/2018
Francis Ford Coppola tem uma filmografia invejável, e mesmo que atrocidades como Jack e o esquecível Peggy Sue, Seu Passado a Espera deixem uma marca feia no currículo, todos vão prestar atenção apenas em seu retrato da guerra em Apocalypse Now e aquela sua trilogia, uma tal de O Poderoso Chefão.
Mas entre os dois primeiros volumes da aclamada trilogia, Coppola lançou A Conversação, um filme pequeno em escala, mas que acaba sendo um dos seus melhores trabalhos atrás das câmeras, infelizmente ofuscado por conta da “família”. Harry Caul (Gene Hackman) é uma referência na área de vigilância. Como especialista em escutas, consegue qualquer informação, se necessário, da maneira mais mirabolante possível. Mas com um trabalho desses, vidas sempre estão em risco, e depois de espionar um casal que pode estar marcado para morrer, Harry faz de tudo para tentar salvá-los, usando suas habilidades.
A Conversação tem um protagonista ambíguo. Harry é reservado e solitário em todas as suas relações, sejam amorosas ou de trabalho, só está confortável em casa, praticando saxofone enquanto escuta seus discos de jazz. Não joga conversa fora, nem mesmo menciona sua vida pessoal, por conta da natureza de seu trabalho. Todavia, por ser um católico devoto, confessa seus pecados, o maior deles sendo a morte de uma pessoa por sua causa. Isso o deixa mais motivado em ajudar o casal que está vigiando, e por não poder contatar os alvos, sente-se cada vez mais desesperado, sem sossego mesmo em seus sonhos, onde tenta alertá-los em vão: “Eu não tenho medo da morte, tenho medo de homicídios”.
Além de Hackman, o filme traz um elenco com nomes que podem ser pouco conhecidos, mas seus rostos estiveram em evidência em um filme ou outro da década, como John Cazale e Allen Garfield, mas sobra tempo para uma cena ou duas com Harrison Ford, que na época ainda não pilotava a Millennium Falcon, portava um chicote ou caçava replicantes. Quando Harry e seus amigos estão reunidos, podemos nos sentir em um filme de assalto, com todas as maquetes e elaboração de planos absurdos. Stan (Cazale) trabalha com Harry e não está feliz com a obsessão e comportamento antissocial de seu parceiro, já Bernie (Garfield) é competitivo e intimidador, não se importa com a situação, apenas em ganhar e se gabar das coisas que consegue fazer com seus dispositivos inovadores.
A atuação de Allen é uma das melhores do filme, com seu sorriso malicioso e diálogos rápidos, é o tipo de coadjuvante para quem você daria mais tempo de tela, se pudesse (eu sei que eu daria).
A paranóia toma conta do personagem e do filme, que tem uma direção mais lenta de um Coppola mais cauteloso. Começamos com uma teleobjetiva do alto de uma praça, pessoas caminhando, música e até um mímico tentando ganhar um trocado. Enquanto a câmera se aproxima do local, ouvimos o ruído dos equipamentos e somos apresentados a Harry e Stan no meio da vigia. A Conversação também tem uma montagem inteligente, que tenta constantemente nos confundir na forma que revela suas informações, mas nunca deixa de fazer sentido. É como ter um quebra-cabeça com todas as peças dispostas, mas sem ter por onde começar. Ouvimos a fita, rebobinamos, alteramos as faixas e descobrimos algo novo.
A composição das cenas comunica muita coisa, como o galpão onde Harry trabalha, ocupando apenas uma das paredes com seu equipamento. Vazio e espaçoso, não fica claro se é tudo apenas questão de acústica ou um bom lugar pra fazer as reuniões com seus companheiros de trabalho. Em outra cena, Harry aproveita o lugar para desviar de perguntas que não quer ou não sabe como responder, utilizando um vidro fosco para separá-lo da conversa. Aí entra outra característica importante de Harry: ele é referência para todos, mas não é o melhor no que faz. Ele tem seus tropeços e nem sempre é cauteloso como sua profissão requer. Esse tipo de ironia narrativa entre o texto e o visual é uma das maiores qualidades do filme, o que o transforma em um estudo de personagem diferente.
É claro, com uma premissa que fala sobre a importância de som, fica clara a necessidade por um trabalho competente desse departamento na produção. Desde o som de uma embalagem sendo aberta até um biscoito quebrando na boca de alguém, a mixagem de som é precisa e cada zumbido ou clique de botão deve ser ouvido no meio do silêncio das cenas cheias de tensão. Já a trilha sonora é acompanhada, em sua maior parte, de um piano melancólico, assombrando a solidão do protagonista, e a música parece chegar cada vez mais perto, mais alta e aterrorizante com o desenrolar da trama.
A Conversação é um dos filmes mais íntimos de Coppola, isso de acordo com o próprio, e pode passar despercebido na sua filmografia para alguns, mas é uma pérola que merece tanta atenção e aclamação quanto suas obras lançadas no auge. Enigmática, rende horas de debate sobre paranóia, alienação e confiança, com ótimo elenco e uma conclusão que vai te deixar pensando por alguns minutos antes de voltar para sua programação normal.
20/05/24
O Idiota, Idiot, 1958, Ivan Pyrev
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Sinopse: O príncipe Míchkin retorna a Rússia após 4 anos em solo suíço. Dotado de espírito humanista, impulsionado por fortes sentimentos passionais terá seus conceitos e valores pessoais confrontados por figuras como Nastácia Filíppovna, possuidora de uma beleza perturbadora e forte personalidade, e com o mundanismo desenfreado de Rogójin. Desse encontro, situações que beiram ao absurdo darão a tópica do enredo. Nessa adaptação para o cinema da primeira parte do romance de Fiódor Dostoiévski, Ivan Pyryev capta com maestria as paixões e contradições de um dos personagens mais complexos da extensa lista do romancista russo, o Idiota, tentativa de fusão da figura do Cristo com Dom Quixote. Além de marcantes atuações, o cenário com requinte e a bela música completam as virtudes desse que é um verdadeiro clássico do cinema. Terra Livre
21/05/24
O Idiota, Hakuchi, 1951, Akira Kurosawa
O idiota (1951) por Luiz Santiago, 03/05/2018
Akira Kurosawa conseguiu desenvolver rapidamente o domínio sobre as regras do cinema. Cinco anos após a sua estreia em A Saga do Judô (1943), ele já apresentava a sua primeira obra formalmente madura, em O Anjo Embriagado (1948), e viria com a sua abertura para uma obra-prima no ano seguinte, com Cão Danado. A visão dos Estúdios para com o diretor era positiva, tanto que ele já tinha controle sobre a forma e conteúdo sua produção desde Não Lamento Minha Juventude (1946), mas isso não o excluía de ser atingido por cobranças vindas de maus resultados dos filmes, sempre que eles acontecessem.
Antes que Rashomon (1950) voltasse de Veneza com o Grande Prêmio, Kurosawa foi atingido em cheio pela má recepção de sua película seguinte, O Idiota (1951), uma adaptação da obra homônima de Dostoiévski, que poderia ter sido o fim da promissora carreira do diretor, como ele mesmo escreveu em suas memórias:
"Depois de Rashomon, fiz um filme baseado na obra de Dostoiévski, O Idiota. Era Hakuchi (1951), que fiz para a companhia Shochiku. Esse O Idiota foi uma ruína. Confrontei-me diretamente com a direção do estúdio. Quando as críticas surgiram, pareceram refletir a atitude da companhia para comigo, como um espelho; sem exceção, elas foram sarcásticas."
Na esteira desse desastre, a Daiei retirou sua proposta para que eu fizesse um novo filme.
Os problemas na produção de O Idiota estavam em evidência assim que as filmagens terminaram. Kurosawa tinha em mente uma adaptação fiel aos acontecimentos do livro, modificando apenas questões relacionadas ao tempo e ao espaço onde as coisas aconteciam. Todavia, o primeiro corte da obra teve 4h30 de duração, o que foi negado imediatamente pelo Estúdio, que obrigou o diretor a reduzir a duração e, em consequência disso, obrigando-o refilmar algumas partes e reescrever outros pontos do roteiro para que tudo se encaixasse nas 2h46 que o filme acabou tendo, na versão comercializada. O resultado não foi uma obra-prima, até porque há alguns desencontros narrativos para se levar em consideração, mas mesmo assim, O Idiota é uma obra de destaque na filmografia de Kurosawa, um filme que mostra de maneira muito poderosa a destruição de uma alma pura.
A história escrita pelo próprio diretor, ao lado de Eijirô Hisaita nos traz Kinji Kameda, um homem que ao ser acusado injustamente de traição, é condenado ao fuzilamento, mas vê sua sentença revogada nos últimos instantes. O choque faz com que ele tenha ataques de epilepsia e se torne demente. Todavia, perceberemos que essa demência é diferente daquela que normalmente conhecemos. A única “idiotice” de Kameda é ter o coração puro em um mundo selvagem. Como não consegue diferenciar entre o bem e o mal, ele acaba não tendo muito controle de suas escolhas, já que todas para ele são feitas em prol do bem e do amor ao outro. A incapacidade de odiar e guardar rancor também será uma agravante para a sua vida e abrirá as portas para a sua morte.
A ciranda de amores e desamores que pontua a narrativa do filme é dividida em duas partes e mostra de forma quase épica as modificações sentimentais pelas quais todos passam. Alguns negam o que sentem, outros correm em busca do que lhes é impossível ter, outros ainda doam o que normalmente pegariam para si. Kurosawa encontrou muitas semelhanças entre os personagens de Dostoiévski e os seus próprios, uma vez que a busca por algo, o desejo incontido e a hostilidade do mundo contra os sentimentos verdadeiros são pontos presentes tanto na obra do japonês, quanto na obra do mestre russo.
Em meio a essas buscas, algo se levanta e se destaca na obra: a urgência da realização. Em algum momento da primeira parte do filme, os personagens sentem a imperiosa necessidade de realizar seus desejos, acabar com as frustrações, serem livres e felizes por pelo menos um curto espaço de tempo.
Enquanto essa necessidade se destaca, percebemos que as tentativas para conseguir satisfazê-la são nulas, o que aos poucos paralisa o ânimo dos protagonistas, que na fase final do filme se entregam ao desespero, seja ele mudo ou manifesto violentamente. Kameda, em sua visão amorosa e pura da humanidade, não compreende — porque vê tudo em belas cores — e não escolhe nada, já que não consegue diferenciar as virtudes morais daquilo que lhe é apresentado. Nesse caso, a maldade parece reinar e ceder mais liberdade que a bondade. O bom não escolhe, porque aparentemente não há nada para escolher, é tudo a mesma coisa. Essa angustiante forma de visão se espalha pelo filme na reta final, e as trágicas e últimas sequências acabam selando de vez essa visão.
Interpretado por Masayuki Mori, que já havia feito o samurai assassinado em Rashomon, Kameda é um personagem impressionante. Dócil e portador de tremenda bondade, ele inspira o riso e o desprezo em algumas pessoas. O ator deu um contorno psicológico perfeito ao personagem, principalmente no olhar, na postura das mãos — sempre segurando o sobretudo –, na voz e nas reações nervosas em diferentes partes do filme. Também os personagens de Toshiro Mifune e principalmente de Setsuko Hara são atrativos cênicos impagáveis durante a projeção.
O Idiota é uma obra profunda e realizada com esmero técnico impressionante. A fotografia e a direção de arte se destacam em meio à equipe técnica e conseguem um ótimo resultado na adaptação dos espaços diferentes para cada um dos personagens, como a sombria casa de Denkichi Akama ou a luxuosa residência de Taeko Nasu, a proclamada vilã desde o início, que tem uma postura e um fim muito diferente do que esperávamos. Kurosawa nos apresenta uma obra rica de significados existenciais e expõe os dois lados da moeda, aquele do mundo em que vivemos, avaro, vingativo e maldoso; e o da raridade humana que é o protagonista do filme, aquele que por confundir amor com pena, acaba não percebendo os abismos de rancor e ódio que surgem abruptamente a cada esquina, e sem querer ou merecer, tropeçam à beira de um deles, selando de uma vez por todas o seu destino.
23/05/24
Furiosa: Uma Saga Mad Max, A Mad Max Saga, 2024, George Miller
Roberto Sadovski, Splash, 23/05/2024
Ninguém, absolutamente ninguém, opera no mesmo nível de George Miller. O cinema de ação, só para focar no aspecto mais evidente de sua obra, é conduzido em todo o mundo por grandes cineastas criando grandes filmes. Todos, porém, empalidecem ante o apuro técnico e a bagagem emocional que o diretor australiano de 79 anos injeta em seu trabalho, o que fica absurdamente evidente em "Furiosa".
Este novo capítulo da saga pós-apocalíptica, ambientada num futuro árido de recursos e esperança, consiste em fragmentos flamejantes de caos que, quando conectados, traduzem-se em uma jornada de vingança bem como de autoconhecimento. Miller costura com habilidade elementos do mundo real em uma tapeçaria fantástica, em que ultraviolência é a única linguagem que faz sentido quando a civilização encara seu próprio fim.
Esse vocabulário entrou em seu repertório com "Mad Max" thriller de ação enfurecido que, em 1979, profetizou um mundo cedendo sob o peso de seus próprios excessos. O semblante de civilização deu lugar dois anos depois ao deserto distópico de "Mad Max 2", que desenhou um futuro à beira do abismo, em que guerreiros solitários enfrentam gangues selvagens em busca da última moeda de troca: combustível.
A série passou três décadas dormente depois de "Mad Max Além da Cúpula do Trovão", ressuscitando com um estrondo em 2015 no já clássico "Mad Max: Estrada da Fúria". George Miller então reescreveu as próprias regras, lapidou seu futuro desolado e construiu uma máquina irrefreável forjada com fogo e sangue, em que seu Guerreiro da Estrada encontra uma fagulha de esperança ao cruzar o caminho de outra alma perdida, a beligerante Furiosa.
Quase uma década depois, "Furiosa: Uma Saga Mad Max" retrocede o relógio para narrar um prólogo de "Estrada da Fúria", concentrando-se na jornada da sobrevivente indomada da terra devastada. Embora compartilhe do DNA do filme encabeçado por Tom Hardy, são propostas criativas e narrativas distintas. Enquanto a aventura de 2015 acontece na vibração pulsante da estrada, "Furiosa" segue o ritmo destruidor e paulatino da vingança.
É um animal diferente, mas que apresenta as mesmas garras. Algumas décadas após a civilização retroceder à barbárie, Furiosa, ainda criança, vive em um "lugar de abundância". Não tarda e esse recorte do paraíso é visitado por homens do deserto, bárbaros que abdicaram da própria humanidade, que em seu ímpeto levam a jovem como prêmio - seguidos com determinação assassina por sua mãe. As duas jamais retornarão para casa.
Transformada em troféu de um déspota, o carismático Dementus, ela cresce impelida por um desejo insaciável de vingança, talvez a única forma de encontrar sentido em um mundo entregue à insanidade. Já adulta, agora sob a sombra de outro líder louco, Immortan Joe, Furiosa finalmente enxerga as engrenagens de seu plano se encaixarem em uma corrida final e irreversível.
Enquanto em "Estrada da Fúria" Charlize Theron fez de Furiosa uma personagem endurecida mas impelida por um propósito nobre, ela agora ganha em Anya Taylor-Joy uma intérprete mais crua, sem nenhum refino, alinhada com o momento de sua jornada. A atriz, relevada em "A Bruxa", traz em seu olhar o vazio assustador de quem foi engolido pela terra devastada. Descobrir seu propósito é o caminho de sua reconstrução.
"Furiosa" desenha sua trajetória em paralelo com os esforços quase patéticos dos homens no trono em construir um semblante de civilização. Enquanto Immortan Joe (Lachy Hulme) consolida seu poder na Cidadela, é Dementus, conduzindo uma biga puxada por motocicletas, quem melhor compreende a futilidade de se agarrar a conceitos inócuos como "esperança" em meio ao deserto infinito de um mundo quebrado.
Não é exagero afirmar que Chris Hemsworth nasceu para interpretar Dementus. Sua personalidade explosiva é perfeita para dar corpo a um líder messiânico e extravagante, capaz de romper o equilíbrio precário da sociedade reerguida no deserto ao emparelhar seu narcisismo com sua incompetência. Dementus é um coach distópico que arrebanha seguidores com carisma inegável para colocar suas vidas em risco por total incompetência. Um picareta do fim do mundo.
Embora não alcance a urgência cinética de "Estrada da Fúria" - até por não ser sua proposta -, "Furiosa" reafirma repetidas vezes a supremacia de George Miller como maestro cinematográfico do caos. E não apenas na urgência de sua coreografia violenta e operística, que eleva o jogo do cinema de ação a patamares que, honestamente, não serão alcançados: Miller encontra matéria-prima narrativa nos espaços, na vastidão do deserto, no silêncio que conecta seus personagens.
Existe um oceano a ser lido nas entrelinhas da ação vertiginosa de "Furiosa". Sua busca por vingança levanta a questão do quanto essa jornada seria infrutífera, e como suas ações apenas refletem, de forma incômoda, os movimentos do vilão que compreendeu que um mundo quebrado não tem retorno. Nas mãos de Miller, a densidade emocional rivaliza com o escopo do espetáculo, em uma aventura que ressignifica e enriquece o próprio "Estrada da Fúria".
Em um cenário cinematográfico em que filmes se posicionam como mero produto para consumo imediato, "Furiosa" é o raro blockbuster que tem algo a dizer e muito a mostrar. É uma empreitada que solidifica a escala épica e a desolação profunda do futuro erguido por George Miller, em que o visual inebriante emoldura uma jornada de impulsos primitivos. Talvez seja esse o segredo de "Furiosa": mesmo no fim do mundo, precisamos reafirmar nossa humanidade.
25/05/24
Antes que Tudo Desapareça, Sanpo suru shinryakusha, 2017, Kiyoshi Kurosawa
Três alienígenas viajam para a Terra em uma missão de reconhecimento para preparar uma invasão em massa. Tendo tomado posse de corpos humanos, os visitantes roubam de seus hóspedes a essência do seu ser, o senso do bem e do mal, de propriedade, família e pertencimento. A essência psicológica e espiritual de toda a humanidade está em jogo. Filmicca
Antes que tudo desapareça, por Giba Hoffmann, 14/04/2018
Conhecido principalmente pelas contribuições ao horror japonês, uma das marcas do trabalho do diretor Kiyoshi Kurosawa é a criação em cima de um blend de gêneros e com enfoque no elemento humano e questões existenciais, normalmente com algum toque satírico. Antes Que Tudo Desapareça é um bom exemplo desta abordagem. Mesclando drama, sci-fi e nuances de horror, a película retrata uma invasão alienígena em nível pessoal e em pequena escala, focando nas relações interpessoais e nos efeitos que as perfidiosas investigações dos infiltradores a respeito dos seres humanos podem ter a respeito da própria condição desses confusos seres cujo mundo se encaminha à destruição. E com ela, é claro, o inevitável esquecimento.
A ressonância temática funciona muito bem justamente ao puxar esse aspecto intimista do tradicional cenário da invasão alienígena e explorá-lo através da interessantíssima premissa de ficção científica dos infiltrados e sua busca por “conceitos”. Assim, ao mesmo tempo em que a narrativa se afasta dos lugares comuns do gênero em termos de estrutura, investindo ao contrário no ambiente do drama cotidiano, ela faz ressurgir repentinamente o clima abertamente derivativo no tema da invasão mental, garantindo à coisa toda uma insuspeita consistência.
Enquanto que a curta sequência inicial evoca uma imagética bastante tradicional do horror japonês contando com uma estudante colegial com atitude indiferente em meio a um banho de sangue, rapidamente transitamos para os problemas conjugais de Narumi Kase (Masami Nagasawa), via uma sequência onde a trilha sonora rapidamente despedaça quaisquer expectativas a respeito da pretensão de sobriedade da coisa toda, como que já preparando o espectador para a série de curvas tonais que a obra tomará de forma despojada e surpreendentemente leve. Dessa forma é que a trama se desenvolve intercalando não apenas a tonalidade, mas também os dois núcleos centrais de personagens.
De um lado, temos o sardônico reporter Sakurai (Hiroki Hasegawa) que, investigando o misterioso ocorrido com a estudante colegial, acaba encontrando Tachibana (Yuri Tsunematsu) e Amano (Mahiro Takasugi), dois jovens que alegam ser muito mais do que aparentam. Interessado na história dos alienígenas infiltrados utilizando-se de humanos como avatares para uma complexa investigação a respeito de nossa natureza, Sakurai permanece ao longo do roteiro como um ponto de vista mais cético sobre os absurdos da trama, ao mesmo tempo em que sua interação com os jovens proporciona contornos de humor situacional muito bem construído, que ajuda a quebrar o tom cínico de algumas das passagens mais sóbrias do filme.
Do outro, temos o casal disfuncional Narumi e Shinji Kase (Ryûhei Matsuda), cujos problemas se agravaram a partir da total mudança de comportamento de Shinji, que aparenta estar com um tipo muito característico de amnésia. Aqui é onde concentram os aspectos mais interessantes do filme, com diversas cenas explorando muito bem um espectro de emoções que vai desde o humor nonsense até o drama angustiante, mudança que é acompanhada pelos movimentos de câmera e trilha sonora de forma escrachada, criando um clima derivativo porém com bastante delicadeza. O flerte com diferentes abordagens ao tema é feito com simplicidade e de forma direta, decisão que, se não garante a consistência tonal da obra tomada como um todo, ao menos empresta à narrativa ares de leveza, de modo que o espectador se mantém interessado e envolvido pelas mudanças bruscas tanto quanto pelas cenas alongadas.
Adaptado de uma peça de Tomohiro Maekawa, as origens teatrais do roteiro se denunciam justamente pela frequência e centralidade que certas cenas adquirem no desenvolver da trama, identidade que é abraçada de forma explícita pela direção, que consegue combinar bem a fragilidade humana envolvida com as situações apresentadas ora com acolhedoras paisagens interioranas, ora na frieza de estacionamentos e asfalto a perder de vista. Neste sentido também Kurosawa trabalha bem as forças do roteiro, garantindo tempo de tela necessário para o desenrolar dramático de cada uma dessas situações menores, mesmo que ao custo de uma duração um tanto extensa, que por sorte raramente se faz sentir enquanto tal.
A premissa central da busca pelos “conceitos” é explicada de forma clara e direta em um momento oportuno logo ao início, evitando voltas desnecessárias e guardando a construção da tensão para o desenrolar da trama. Sem entregar mais do que essa premissa central aqui, podemos dizer que alguns dos momentos mais marcantes do filme são justamente esses da colheita de “conceitos” efetuada pelos infiltrados, que envolve um invasivo processo de indagação telepática que visa isolar componentes básicos da experiência humana de mundo. O efeito que isso tem sobre as vítimas é explorado de forma explícita em estruturas que funcionam quase como esquetes, enquanto que os efeitos das descobertas sobre os alienígenas e sua real natureza astutamente permanece encoberto para audiência. A leveza destes momentos comédicos garante passagens comédicas, poéticas e trágicas, que mantém a curiosidade do espectador ao longo dos dois primeiros atos, quando então recebem mais centralidade nossos protagonistas.
A película intercala dois desfechos, um deles trazendo um pouco da ação que se espera de um filme sobre invasão extraterrestre, enquanto que o outro continua a mergulhar a fundo no significado desse encontro entre o humano e esse ser vazio que lhe infringe (ou agracia com) o completo esquecimento. Trata-se aqui não do esquecimento da memória, mas do esquecimento do que se pode ser e dos modos como se é, fardos da condição humana que são pintados de forma equilibradamente sarcástica e sensível pela direção, o que sustenta o drama da resolução final mais do que poderia se imaginar de início.
Com uma mistura sincera e inspirada de gêneros e explorando de forma sensível uma premissa notável, Antes Que Tudo Desapareça é uma boa e original exploração do cenário mais que consagrado da invasão alienígena. O filme começa muito forte e por uma ou duas vezes parece perigar perder o seu fio apenas para provar que, por entre seus movimentos despojados, há no fim das contas uma visão unitária que une a comédia, a sátira e o derivativo em um todo coeso (e um tantinho assombroso).
26/05/24
A Boa Mãe, Bonne mère, 2021, Hafsia Herzi
Nora trabalha como faxineira e cuida de sua pequena família em um conjunto habitacional no norte de Marselha. Ela está preocupada com seu filho Ellyes, que está preso há vários meses por roubo e aguarda seu julgamento com um misto de esperança e ansiedade. Nora faz tudo para que essa espera seja o mais indolor possível…
Vencedor do prêmio de Melhor Elenco na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, “A Boa Mãe” é o segundo longa-metragem da diretora francesa Hafsia Herzi. Este retrato lumininoso é uma carta de amor a todas as mães corajosas que lutam diariamente pelo futuro dos seus filhos. No papel principal, Halima Benhamed entrega uma atuação poderosa, sendo que este foi seu primeiro trabalho como atriz. Filmicca
Crítica por Eduardo Kaneco, 31/05/2022
A Boa Mãe (Bonne Mère) é o segundo longa-metragem que a atriz Hagsia Herzi realiza como diretora. Na comédia romântica Tu Mérites un Amour (2019), Herzi divertiu o público com as dificuldades de uma mulher (interpretada por ela mesmo) após se separar de seu namorado. Mas, desta vez, constrói um drama tocante sobre uma mãe de classe baixa que tentar dar a melhor vida possível para seus três filhos e seus netos.
A inspiração para contar essa história Hagsia Herzi encontrou em sua própria família. “Fui criada sozinha pela minha mãe, que era faxineira, pois meu pai faleceu quando eu era muito jovem. Eu tenho uma admiração sem limites por esta mulher que, quando acordávamos pela manhã, tinha preparado tudo para nós e já tinha saído para o trabalho. Eu queria fazer um filme sobre ela e todas as mulheres, sejam quais forem suas origens, que esquecem a si mesmas e constantemente colocam seus filhos em primeiro lugar.”, diz a roteirista e diretora.
A protagonista Nora (Halima Benhamed) trabalha na limpeza de aviões durante a noite, e cuida de uma senhora idosa durante o dia. Além disso, ajuda a cuidar da neta de três anos, pois a filha, mãe solteira, não assume essa responsabilidade. Mas, o que mais a atormenta é o fato de um de seus filhos estar na prisão. Por isso, visita-o sempre, e até se arrisca a levar um pouco de haxixe para ele. E ainda abdica da dentadura que tanto precisa e vende suas poucas joias para poder pagar a advogada que pode tirá-lo do encarceramento.
Realismo
Nora se sacrifica, mas com um zelo sincero em tudo o que faz. A admiração da cineasta pela sua mãe, que lhe serviu de modelo para esse personagem, resulta numa abordagem absolutamente favorável em sua construção. Assim, não há máculas nela, todos os seus atos revelam seu amor incondicional. Nesse ponto, é um retrato menos realista do que vimos em filmes recentes como o brasileiro A Felicidade das Coisas (2021), https://leiturafilmica.com.br/a-felicidade-das-coisas/ de Thaís Fujinaga, que não fugia dos defeitos da mãe protagonista. Por outro lado, busca o realismo nas locações em bairros pobres do norte da Marselha, na França. Em relação a isso, é particularmente marcante a montagem com rápidos planos de lugares abandonados, vazios, com entulho espalhado; um retrato próximo de Projeto Flórida (The Florida Project, 2017), de Sean Baker. São dois filmes que revelam a pobreza em países ricos.
O roteiro assume o formato narrativo de um breve instantâneo da vida do protagonista. Não há começo, meio e fim; salvo pela participação da senhora idosa na trama. O final abrupto, após uma montagem que mostra o bairro pobre e flagrantes da família de Nora, deixa a sensação de que nada mudará, a despeito do ritual esperançoso sugerido por uma cartomante. Mas, há mudança no arco de uma das personagens, a filha Sabah (Sabrina Benhamed), que, enfim, ajuda a mãe.
Diante desse formato, A Boa Mãe busca a emoção do espectador na figura forte de sua personagem principal. Interpretada com uma autenticidade ímpar por Halima Benhamed, em sua estreia como atriz, Nora se assemelha a uma mártir cristã. O filme não mostra seu sacrifício recompensado na tão desejada libertação do filho, mas nas pequenas doses de retribuição inesperada que ela recebe (do filho da senhora idosa, da sua própria filha, dos amigos do trabalho). O suficiente para nos emocionar.
26/05/24
A Felicidade das Coisas, 2021, Thais Fujinaga
Paula, 40 anos, está esperando seu terceiro filho, enquanto passa seu tempo entre uma praia feia e uma recém-adquirida e modesta casa de veraneio, no litoral paulista, onde ela pretende construir uma piscina para seus filhos. Quando seus planos se desfazem por conta de problemas financeiros, ela se torna cada vez mais sufocada pelo peso de suas responsabilidades. Deixada sozinha pelo marido e lidando com as constantes demandas de seu filho adolescente, que está conhecendo um novo mundo, Paula precisa confrontar suas próprias expectativas e frustrações, o que nos revela uma associação profunda entre amor e perda. Filmicca
Crítica por Eduardo Kaneco, 15/05/2022
A diretora paulista Thaís Fujinaga estreia em longa-metragem com A Felicidade das Coisas, cuja maior força é a autenticidade. Fruto de suas experiências pessoais, o filme traz um rastro de nostalgia, embora desmentido em sentido estrito, por não se situar no passado. E, acertadamente, Fujinaga filma com a câmera essencialmente fixa, com poucos movimentos que poderiam nos afastar desse realismo.
Na trama, a grávida Paula (Patrícia Saravy) passa as férias na casa comprada há pouco tempo em Caraguatatuba, no litoral de São Paulo. Junto com ela, estão seus filhos, o adolescente Gustavo (Messias Gois) e a criança Gabi (Lavinia Catelari), além da sua mãe (Magali Biff). O marido permanece em São Paulo, trabalhando. Paula imagina que ali será seu paraíso, um lugar de descanso e alegria, e está instalando uma piscina de fibra de vidro no quintal da frente para incrementar ainda mais esse olimpo. Mas, a falta de dinheiro e de apoio torce contra seu sonho.
Gente como a gente
A autenticidade presente no filme começa pelos personagens, que são pessoas comuns. Não há nada de extraordinário neles, nem em seus comportamentos ou ações. Da mesma forma, evita-se qualquer busca de heróis ou vilões. O sonho de Paula não é algo de outro mundo, é alcançável, mas inviabilizado porque o marido usa o dinheiro destinado às prestações da piscina para pagar outras dívidas “mais importantes”, segundo ele. A própria mãe dela também a critica: “Mania de gastar o que não pode.”. A tudo isso, Paula retruca em momento posterior do filme: “Mania de achar que a gente não pode ter nada.”.
Logo após essa fala, temos o único instante no longa que foge desse realismo. A tela permanece escura por alguns segundos desconcertantes. Então, vemos Paula em um barco no mar, no meio da noite, e uma enorme baleia emerge das águas para respirar. Essa breve escapada fantástica parece revelar a ilusão da protagonista por acreditar num sonho que durou tão pouco. A piscina e a baleia, em suas enormidades deslumbrantes, encantaram, mas já sumiram.
Prestes a perder a piscina pela falta de pagamento das prestações, a mãe de Paula, pragmática, manda deitar e encher de água essa coisa gigante que nem foi instalada. Pelo menos, a família brinca um pouco nela, lembrando a adaptação frustrante, mas criativa, da “alegria de pobre” da caixa d’água que vira jacuzzi no filme Febre do Rato (2011), de Cláudio Assis.
Nem heróis, nem vilões
A autenticidade de A Felicidade das Coisas, porém, implica na dificuldade em torcermos pelos personagens. Não há dúvidas que eles criam uma identificação rápida, porém tocando nas nossas fraquezas. Afinal, muitas vezes agimos como Paula, adquirindo coisas pensando que elas nos trarão felicidade. O filme joga isso na nossa cara. Afinal, onde está a alegria de Paula e sua família nessa casinha? As visitas à praia são raras, esses personagens passam o tempo sem ter o que fazer, ou pior, lidando com os problemas que surgem por causa desse bem material.
Nesse sentido, a estrutura narrativa assume a forma de um snapshot, ou seja, um instantâneo desse momento da vida de Paula. Não é uma história com começo, meio e fim. Na verdade, concentra-se nessa última etapa. Vemos o fim das férias, do sonho da piscina, talvez do casamento que já está em ruínas. Por último, na cena derradeira, a troca de olhares entre Paula e Gustavo indica, também, o fim daquele contato mãe e filho mantido até então, pois ele amadureceu e precisa de outras experiências além de subir numa roda-gigante.
À primeira vista, pensamos que a A Felicidade das Coisas nos conduzirá por uma tocante viagem nostálgica que resgata as alegrias gozadas em família. Contudo, o que encontramos aqui é um duro retrato, sem sentimentalismo, da vida como ela é.
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