A Greve, Stachka, 1925, Sergei Eisenstein
Maciste na Terra dos Gigantes, Maciste nella terra dei ciclopi, 1961, Antonio Leonviola
Cais das Sombras, Le quai des brumes, 1938, Marcel Carné
Trágico Amanhecer, Le jour se lève, 1939, Marcel Carné
Trenque Lauquen, 2022, Laura Citarella
O Eternauta, El Eternauta, Série TV, 2025, Criação: Bruno Stagnaro
Louis Theroux: The Settlers, Filme para televisão, 2025, Direção Joshua Bake, Roteirista Louis Theroux
Noites Brancas, Le notti bianche, 1957, Luchino Visconti
O Conto da Aia, The Handmaid's Tale, Série de TV-2017–2025 S06, Bruce Miller-
5 Homens Selvagens, The Animals, 1971, Ron Joy
Andor, Série de TV, 2022–2025 S02, Tony Gilroy
The Last of Us, Série de TV, 2023–S02, Neil Druckmann & Craig Mazin
O Barão Aventureiro, The Baron of Arizona, 1950, Samuel Fuller
O Libertino, The Libertine, 2004, Laurence Dunmore Redação: Stephen Jeffreys
José Lino Grunewald: Ingmar Bergman & Robert Aldrich et cetera
30/04/25
A Greve, Stachka, 1925, Sergei Eisenstein
No iutubi aqui
Crítica | A Greve (1925) por Luiz Santiago 28 de abril de 2025
À luta!
Com um vasto elenco do Proletarskaia Kultura (Proletkult) e imbuído das teorias dramatúrgicas de Meyerhold, Sergei Eisenstein, aos 26 anos, dirigiu A Greve (1925), seu primeiro longa-metragem. Esta obra visionária oferece uma perspectiva didática sobre a união dos trabalhadores contra a exploração e as injustiças no ambiente fabril, ecoando as lutas que precederam a Revolução de Outubro de 1917. Com um vigor revolucionário, o filme captura o espírito de resistência coletiva, utilizando o cinema como ferramenta de conscientização. Inspirado por um evento real — uma greve brutalmente reprimida na Rússia pré-revolucionária –, Eisenstein constrói uma trama universal, capaz de representar qualquer movimento operário pressionado por forças patronais/governamentais/elitistas, consolidando sua relevância atemporal.
Baseado em uma cessação coletiva do início do século XX, A Greve retrata com fervor político e sofisticação estética o cotidiano fabril, as injustiças impostas por empregadores e fiscais, a mobilização dos trabalhadores, os dias de paralisação, a elaboração de demandas coletivas, a reação dos acionistas e o trágico massacre dos manifestantes. Tudo isso é orquestrado por meio da “montagem de atrações”, pilar da teoria de Eisenstein, que prioriza um herói coletivo em vez de indivíduos destacados. A narrativa visual, experimental para a época, reflete os primeiros passos do cinema soviético, mas também dialoga com inovações globais, oferecendo uma visão crua e poética da luta de classes. Essa abordagem, embora desafiadora, mantém a coesão temática, mesmo diante de eventuais ambiguidades narrativas da fita, sobre as quais falarei adiante.
A singularidade de assistir A Greve décadas após sua estreia reside em sua recusa em contar uma história convencional, optando por afirmar uma ideia. Lançado quando o cinema narrativo já estava consolidado e o som era iminente, o filme de Eisenstein não se curva às convenções. Ele é um “cine-punho”, um chamado à luta que ressoava intensamente em um país recém-saído de uma revolução e sob os primeiros anos da Nova Política Econômica (NEP). Apesar disso, a obra gerou divisões: enquanto o Proletkult, o Partido Comunista e parte da sociedade soviética questionaram sua abordagem, a imprensa celebrou a inovação e a potência dramática de Eisenstein. Essa polarização sublinha o impacto de um filme que, mesmo experimental, conseguiu transmitir sua mensagem com clareza e ousadia.
O grande trunfo de A Greve está na montagem, tanto nas comparações metafóricas quanto no ritmo narrativo. Como obra política, o filme apresenta caricaturas mordazes — o “capitalista gordo” equiparado a animais ou os espiões e traidores ridicularizados visualmente. Essas imagens, justapostas a cenários realistas, objetos, animais ou elementos naturais, revelam o meticuloso trabalho de Eisenstein em criar paralelos visuais que reforçam sua mensagem sem sacrificar a unidade estética. Apesar de uma sequência ocasionalmente confusa (como a interação dos grevistas com a campainha da fábrica, que sugere uma incoerência pontual), o filme mantém sua integridade ideológica. Essa riqueza simbólica, aliada à plasticidade das cenas, demonstra a habilidade do diretor em transformar ideias abstratas em imagens concretas e historicamente impactantes.
A inteligência na composição visual, o fluxo coeso de ideias e a plasticidade das cenas — fruto do trabalho excepcional dos três diretores de fotografia: Vasili Khvatov, Vladimir Popov e Eduard Tisse — elevam A Greve a um marco do cinema mundial. A edição confere sentido final à obra, transformando o que poderia ser uma ideia simples demais numa experiência cinematográfica poderosa. Embora haja exageros na representação dos “atores históricos” de ambos os lados, esses elementos alimentam discussões críticas e enriquecem a leitura do filme. A Greve não apenas inaugura um novo modelo de fazer cinema, mas também estabelece a teoria de montagem de Eisenstein, que influenciaria gerações de cineastas. Sua importância histórica, estética e política permanece inegável, consolidando-o como uma obra obrigatória em múltiplas dimensões.
A Greve (Stachka) – União Soviética, 1925
Direção: Sergei M. Eisenstein
Roteiro: Sergei M. Eisenstein, Grigori Aleksandrov, Ilya Kravchunovsky, Valerian Pletnev
Elenco: Maksim Shtraukh, Grigori Aleksandrov, Mikhail Gomorov, I. Ivanov, Ivan Klyukvin, Aleksandr Antonov, Yudif Glizer, Anatoliy Kuznetsov, Vera Yanukova
Duração: 82 min.
OUTUBRO -Octobre - Oktobre (1928), Sergei Eisenstein aqui
O Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein, aqui
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A greve
Review by Neil Bahadur (tradução livre)
Mais moderno do que qualquer outro filme que vi em 2018: não basta mostrar os abusos do sistema, ou simplesmente mostrar que ele existe - é preciso ver suas complexidades e funções. Porque, caso contrário, você estará apenas lutando contra o ar. Não obstante o fato de que é preciso ter um talento quase sobrenatural para que um filme tão brilhante seja o primeiro (nesse ponto, eu diria que Eisenstein é o único gênio que o cinema produziu, mas isso é assunto para outro artigo), não é possível mostrar essas funções com o sistema tradicional de protagonismo ocidental - o próprio cânone é parte da opressão. Não que a manobra seja reacionária: ao abandonar o protagonista, ou os personagens, ou a "história", podemos ter um acesso direto e imediato ao funcionamento de um sistema ou programa - não há necessidade de outras bobagens. Os "momentos" dos personagens são apenas um meio para atingir um fim - o casal brigando, por exemplo, que retrata não apenas um casal brigando, mas como o colapso do trabalho dentro de um sistema capitalista ainda rompe seus relacionamentos básicos - OK, finalmente os trabalhadores estão em greve. Mas agora não há dinheiro entrando e sua família está começando a passar fome.
A greve merece seu próprio ensaio - cada sequência é uma aplicação de uma nova técnica para divulgar mais sobre cada conceito. Eisenstein não tem tempo nem mesmo para saltos no tempo e no espaço, ou para colocar a modernidade na história, como em Outubro - tudo é puro materialismo. Isso não quer dizer que o filme seja completamente árido: muitas vezes é bastante engraçado, e a sequência da eventual greve, com seus trabalhadores correndo pela fábrica, está entre as coisas mais bonitas que Eisenstein já filmou. Mas além de suas imagens e ritmos impressionantes, ou de suas ideias, A greve é, de certa forma, inovador, não necessariamente apenas por sua política, mas porque Eisenstein é o raro cineasta cuja compreensão da política e da filosofia é tão rica quanto sua compreensão da técnica cinematográfica. Na maioria dos cineastas, é o último dos três. É difícil escrever aqui - resumir o filme rapidamente é um desserviço completo, dado o fôlego das ideias e dos momentos: talvez com os maiores cineastas, não seja possível colocá-los de volta em palavras e, se for possível, isso fala da fraqueza do próprio filme.
Com esses três primeiros filmes (A greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro), Eisenstein se dedicou a fazer uma grande arte sobre a libertação da escravidão - e é revelador, no entanto, que Eisenstein nunca mais revisitaria o tipo de derrotismo que vemos no final aqui. O ponto (ou um ponto), finalmente, é que a posição tradicional dos trabalhadores e patrões não é diferente da relação entre humanos e gado. Mais tarde, veremos que a liberdade é possível, mas esse final ainda é incrivelmente poderoso. Não há nenhum martírio cristão bobo aqui: seu sofrimento não tem sentido, portanto, siga o programa e entre na modernidade.
E é claro que o trabalho não é romantizado: romantizá-lo não seria
romantizar os trabalhadores, mas as funções em que eles servem à burguesia.
Você estaria romantizando a maneira como eles servem a <você>, não
demonstrando nenhum respeito por eles. É por isso que é miserável, e é por isso
que eles se revoltam. Letterboxd
01/05/25
Maciste na Terra dos Gigantes, Maciste nella terra dei ciclopi, 1961, Antonio Leonviola
No iutubi aqui
O Povo de Sadok é
aterrorizado por um terrível canibal e gigante Ciclope. Atlas chega a Sadok com
a intenção de derrotar o monstro e salvar a população, mas enfrenta uma outra
batalha.A cruel rainha Capys deseja conquistar atlas e tentará com todo o seu
poder toma -lo para si, agora ele deve derrotar os dois inimigos e resgatar um
bebê descendente de Ulysses, das garras do faminto Ciclope. Filmow
02/05/25
Cais das Sombras, Le quai des brumes, 1938, Marcel Carné
Crítica | Cais das Sombras por César Barzine 25 de janeiro de 2023
Num diálogo com o noir, Carné cria uma obra
romântica sobre o pessimismo e pessimista sobre um romance.
O andarilho à beira da estrada que pega carona com um caminhoneiro desconhecido é o primeiro sinal de pura amargura que há em cada instante e componente de Cais das Sombras. Esta produção de Marcel Carné é daquelas que abraça a tristeza por completa, destilando sem parar a melancolia na atmosfera do filme e toda uma perdição na composição dos personagens. A história é a de um casal cuja principal marca é essa angústia, e, através de um desenvolvimento circular, faz com que todo o percurso deles gire em torno disso: o momento antes de se conhecerem, o início da relação, a consolidação da paixão e o desfecho dela – que finaliza seu arco da única maneira possível: com ainda mais angústia e perdição.
Jean, um desertor do exército, conhece Zabel em condições aleatórias numa modesta casa de um conhecido em comum. A união dos dois não possui maiores contextualizações, e Jean já deixa claro sua atração por ela, o que, sem um extenso desenvolvimento, logo se torna um caso amoroso entre eles. Ambos evidenciam em vários momentos o principal ponto de compartilham: a falta de perspectiva para com a vida, de se sentirem isolados e carentes. E é aqui que fica nítida a escola cinematográfica a qual Cais das Sombras pertence, que é o Realismo Poético Francês. A questão do realismo se dá por um aspecto psicológico que se cruza com a condição externa em que os personagens se encontram. Os dois não se sentem inseridos na sociedade, estão de alguma forma deslocados, mas não por serem marginais (embora Jean seja um desertor) ou indigentes, e sim por simplesmente não terem algo a se apegar (família, casa ou trabalho).
Já o viés poético está no formato com que esse realismo se concretiza, que é através do romantismo e do subjetivismo. Apesar da frieza que existe nos personagens, não há frieza no olhar de Carné; sua abordagem é enfática e sentimental, o que transparece de maneira sublime toda a dureza que os personagens enfrentam. Temos, assim, a união de realismo e poesia que colocam o longa dentro de seu movimento cinematográfico. Porém, mais do que isso, Cais das Sombras abre diálogo com outro campo do cinema, que é o filme noir.
Evidentemente, não dá para encaixá-lo nessa categoria, pois o noir é um subgênero americano que só viria a existir alguns poucos anos depois. Mas as semelhanças entre essa produção francesa e tal estilo são evidentes, e podem ser vistas tanto no enredo quanto na estética de Cais das Sombras. A história envolve conflitos do casal com um gangster que faz com que o filme flerte com o suspense em seu ato final, levando a situações exaltantes dignas de qualquer thriller. Além disso, o vazio e a amargura dos personagens é outra forte característica compartilhada com o noir, em que o extremo pessimismo é um dos pontos chaves. Por fim, a fotografia e a atmosfera soturna são outros locais de encontro. Cais das Sombras é um trabalho em que a noite é uma peça essencial, predominando um clima de quase sempre aflição e com planos que possuem o típico jogo de luzes e sombras tão presentes no noir – e aqui, um plano que contrasta as faces de Jean e Zabel em seus momentos finais é o mais belo exemplo dessa tendência.
Mas não só de tristeza vive o casal, ao passo que o romance se desenvolve, Zabel descobre a felicidade e toma Jean como o porto seguro da qual ela tanto necessitava. Uma lindíssima sequência no final do segundo ato demonstra isso de maneira vibrante, o casal está presente num quarto de hotel e, através de closes entre planos e contraplanos, a beleza de Zabel é capturada desta vez de modo claro, e ela, expressa de forma radiante a alegria em que se encontra. Zabel afirma que na noite anterior Jean disse que ele a amava; ele, mais frio do que a moça, alega que ela deveria ter sonhado. A jovem rebate e pergunta se seu parceiro também sonhou. “Eu não sonho’’, diz ele; “todo mundo sonha’’, reage ela. Apesar de Zabel se entregar à paixão, Jean não faz o mesmo; e as interpretações opostas de ambos exprimem isso.
Logo em seguida, o protagonista olha o exterior do hotel pela janela, e um contraplano apresenta o navio do qual ele irá viajar para a Venezuela sem sua amada. É reforçado o futuro desligamento do casal, e percebemos mais uma vez que a angústia é o único caminho para aqueles dois personagens. A história do longa ganha um caráter fatalista: tudo já está determinado, e a infelicidade é intrínseca à existência daquelas pessoas. O filme em instantes retorna ao seu clima melancólico e, pouco depois, a mera contemplação da tristeza chega em seu estágio trágico, fazendo com que o fatalismo se consolide de vez naquele desfecho – o que é antecipado por uma trilha sonora com ares etéreos, como se Jean estivesse caminhando para a morte. Neste final, o mesmo cachorro que havia aparecido na primeira sequência de Cais das Sombras e acompanhado Jean ao longo de sua jornada reaparece. Ele é o símbolo da circularidade desta narrativa, o que, ao lado do navio prestes a partir, de Zabel caindo em desgraça e da neblina reinante naquele ambiente, demonstra mais uma vez a tristeza como um caminho inevitável naquele mundo.
Cais das Sombras (Le Quai des Brumes, França, 1938)
Direção: Marcel Carné
Roteiro: Jacques Prévert (roteiro), Pierre Dumarchais (romance)
Elenco: Jean Gabin, Michel Simon, Michèle Morgan, Pierre Brasseur, Édouard Delmont, Raymond Aimos, Robert Le Vigan, René Génin, Marcel Pérès, Jenny Burnay, Roger Legris, Martial Rèbe
Duração: 91 minutos.
César Barzine
Redescobri o cinema aos 13 anos, e passei a (tentar) escrever sobre ele aos 14. Percebi que a escrita era um complemento da experiência fílmica, um modo de concretizar e externalizar minhas ideias e sentimentos. Venho encarando o cinema como um instrumento de espiritualização, sendo ele uma forma de viver as vidas que não vivi. Sou entusiasta da década de 1950, mas também abro o meu coração para a Hollywood Clássica por completa - sem dispensar as demais nacionalidades. Tenho Luis Buñuel em primeiro lugar, e mais uns seis diretores em segundo.
03/05/25
Trágico Amanhecer, Le jour se lève, 1939, Marcel Carné (Intervalo de um dia)
"Trágico amanhecer" por José Lino Grunewald
Realizado em 1939, à partir de um script original de Jacques Viot, "Trágico Amanhecer" (Le Jour se Lève) se inscreve entre os maiores filmes de Marcel Carne .
Assistido novamente, hoje, apresenta-se vivo, atuante, evidenciando poucos sinais de desgaste pelo tempo. Deve-se isso, principalmente, ao rigor de sua elaboração artesanal, um trabalho de perfeccionista que, quando deseja, poucos sabem ser como Carné. Um exemplo do empenho do diretor, segundo o relato do crítico Jean Queval, é a cena em que Jean Gabin, simplesmente, sai da janela, apanha o ursinho e volta para o mesmo lugar, o que foi obrigado a repetir durante cinco horas.
Esse rigor artesanal não está apenas caracterizado palmo a palmo, com cada sequência. Ele cumpre severamente as coordenadas de um planejamento estrutural, um sentido de organicidade enfeixando os diversos efeitos de uma vigorosa linguagem visual, oferecendo ao mesmo tempo, uma contida participação das opções de Prèvert, o grande colaborador de metteur-en-scène.
O desenvolvimento da fita compreende duas ações – uma no presente outra no passado - entrecruzadas à base de três flash-backs, sendo o último o trecho inicial da primeira cena do presente. A evolução dramática é rálpida e direta, cumprindo um fluxo ascendente simples, despido de maiores interpolações. No caso da ação na atualidade, o crive é o da tensão, que tem seu desenlace com o suicídio do protagonista no instante em que a polícia atira no quarto uma bomba de gás lacrimogênio.
Não deixa de ser válida a constatação de uma certa primazia de algumas soluções de "Trágico Amanhecer" com relação a muitos filmes norte-americanos posteriores no gênero. Pelo menos, até a epoca da realização de Carné, não havia nenhum que obtivesse idêntica qualidade de impacto.
"Le Jour se Lève" não está tão adstrito à filosofia pessimista de "Cais das Sombras". Se, neste, o ponto de partida já é a marginalidade, a ausência de um ponto de apoio para seus personagens, em "Trágico Amanhecer" os protagonistas saem do equilíbrio, da estabilidade social para, com a intervenção do acaso, serem vítimas de um destino adverso. Consubstancia-se, assim, em tragédia pura, num estrito desdobramento fatalista que não comporta maiores indagações, a não ser aquelas de caráter objetivo, prêsas à conjuntura dramática.
Existe, sem dúvida, uma grau de discrepância entre a parte do presente e a dos flashbacks, tendo muito maior vigor a primeira. O que elide uma desigualdade maior é o aspecto funcional dessa diferença. Os trechos desenrolados no passado, além de mais prévertianos, detendo maior proeminência dos diálogos, apresentam-se arrefecidos em sua fôrça puramente visual. Aqui está a comparação feita através de medidas e recursos diretamente artesanais. A atualidade equivale à tensão, ao clímax dos eventos; o passado é algo que apenas interessa na medida em que explica e modula a crise. Daí, sómente aquêle leve fluir descritivo, entrecortado pelos retornos ao quarto do protagonista ou às tomadas da pequena multidão, aguardando na rua o desfecho dos acontecimentos. Todavia, essa opção que, se não chega a representar um desleixo, impõe uma linear neutralidade para o sentido do ritmo nos três retornos, coloca alguns senões na quase perfeita unidade compacta da fita.
De qualquer maneira, "Le Jour se Lève" marca um ponto forte para Carné, especialmente em paralelo com os outros grandes diretores de sua época, na luta entre os filmes e a erosão do tempo.
Duas colaborações valiosas ao êxito da realização: os cenários de Trauner, criando uma ambiência adequada à tonalidade dramática e permitindo a fixação de um clima denso; a fotografia de Agostini, Curt Courant e André Bac, de admirável riqueza plástica, principalmente nas cenas decorridas no presente.
Entre os intérpretes, há Jean Gabin em um dos seus grandes papéis, rendendo bastante. Jules Berry, muito mais contido do que de hábito, vai bem num tipo que lhe assenta. Arletty, ótima atriz, não tem muita chance de brilhar num personagem de atuação mais passiva dentro da trama; suas grandes oportunidades, excelentemente aproveitadas, chegariam, também pelas mãos de Carné, logo depois, em "Les Visiteurs du Soir" (Os Visitantes da Noite) e "Les Enfants du Paradis" (O Boulevard do Crime): Dominique é a inesquecível Garance.
Tribuna da Imprensa 09/10/1959
04/05/25
Trenque Lauquen, 2022, Laura Citarella
O rádio é um meio cego até você olhar com os ouvidos.
Trenque lauquen resenha filme de Laura Citarella (2022) - Tradução livre
O novo filme de Laura Citarella, “Trenque Lauquen”, lança uma rede ambiciosa sobre seus temas vagos e sedutores, formando um mistério onipresente que incha com uma superabundância exuberante. Embora seu tempo de duração seja de mais de 4 horas, ele é dividido em dois filmes separados, dando aos cansados de tal compromisso de tempo uma maneira mais acolhedora de assistir ao filme em sua totalidade. É um dos talvez meia dúzia de filmes aos quais dei 5 estrelas em 2023 e, coincidentemente, o segundo da Argentina e com a atriz Laura Paredes
Resenha feita por: Aaron Jones | Arquivado em: Críticas de filmes , April 16, 2024
Muitas vezes me peguei desejando ter mais um par de olhos e ouvidos para poder absorver tudo e apreciar a riqueza de ideias que o filme evocava dentro de mim, desde sua partitura peculiar e contagiante até o uso do tempo e as longas tomadas de tempo observando o insignificante. Começamos a nos comunicar mais profundamente com o trabalho de Citarella e a questionar até mesmo a mais vaga insignificância com olhos atentos e pensamentos curiosos, assim como os próprios sujeitos parecem estar fazendo, e entramos em uma consciência espelhada à medida que o filme começa a espelhar suas próprias histórias dentro da narrativa. Foi nesse momento que percebi que, a cada novo conceito que eu agarrava nesse filme e o levava adiante, havia dezenas de outros que me ultrapassavam, movendo-se em todas as direções perceptíveis.
A narrativa assume sua própria forma e fluxo serpentino por meio de correspondências em camadas que cruzam períodos de tempo que nos levam a caminhos que não necessariamente devem ser resolvidos, mas que, em vez disso, questionam seus métodos. Questionando os caminhos que escolhemos, por que perseguimos fantasmas e procuramos indivíduos e sujeitos que não querem ser encontrados? É pelo ego deles ou pelo nosso? Nossas obsessões nos impulsionam? Elas são motivadas pela paixão ou por nossa necessidade de controle? E será que somos tão inconscientes do que nos atrai que não temos ideia do porquê? Uma jornada desconcertante sobre as diferenças entre homens e mulheres, nutrição e controle, e tão compensadora quanto enigmática.
Embora muito possa ser filtrado por meio de sua decodificação, muito é deixado em aberto para interpretação. Embora tenha sido muito claro ao abordar nossas próprias obsessões e nossa necessidade de respostas por meio de nosso próprio objetivo habitual de sensacionalizar aquilo para o qual não conseguimos encontrar respostas, em vez de sermos pragmáticos, o filme é um exemplo de nosso eu irracional e grande parte da postura do filme parece ecoar a psicanálise, dando uma pausa no retrato de Freud que aparece na parede, mesmo que seja visto por um vislumbre momentâneo.
Ele se recusa a ser sobrecarregado por um gênero ou um estilo específico, carregando uma transferência elusiva em sua sedução enigmática que nega ao público qualquer senso de formalidades cíclicas ou encerramento. Ele não se preocupa em amarrar as pontas soltas para a satisfação de fechar as portas para chegar à conclusão; em vez disso, ele nos oferece camadas ricas de pretexto e temas metafóricos no meio, onde cada desvio e toca de coelho em que ele se encontra intoxica o público com uma espécie de amnésia cinematográfica, onde cada nova virada e revelação temática é mais enriquecedora do que a anterior. E quando olhamos para trás e avaliamos nossos passos, nos damos conta de que a passagem em que acabamos de embarcar tem seu próprio ritmo e gramática que, como um todo, rima com cada elevação e descida.
Laura Citarella é um nome que reservarei para sempre em meu Rolodex mental a partir de agora, pois ela criou um filme tão rico e intrigante em termos temáticos e visuais que sei que havia muito mais a ser explorado, mas fiquei tão fascinado e atraído por essa alegoria visual que me deixei levar pelo momento. Deixando tantos detalhes de lado devido à sua superabundância temática, ao vernáculo enigmático que envolve o gênero e ao comprimento de onda totalmente tangencial, precisarei rever este filme apenas para compreender sua enormidade.
.....
Review by Cristhian Flores
Como é injusto e difícil sair para o mundo depois de Trenque Lauquen. Voltar a falar de problemas cotidianos, voltar ao movimento utilitário de um lugar para outro, voltar a falar de coisas que não são conspirações, que não envolvem mapas, cartas escondidas, bibliotecas esquecidas ou criaturas misteriosas. Isso pode ser questionado exatamente como isso, uma evasão da realidade ou um entretenimento fútil, mas essa é a visão opaca da realidade que os filmes de El Pampero questionam. Citarella, Llinás e companhia buscam obstinadamente restaurar à própria vida o efeito profundo da ficção, ou melhor, seu caráter eminentemente ficcional e, portanto, arbitrário e mutável. Não é essa também a operação de Borges? Não há aqui reminiscências do El Sur de JLB? Para que essa saída para o mundo seja menos injusta e menos difícil, o corpo deve ser transformado pela ficção. Sair com a faca que, talvez, não saibamos manejar. Letteroxd
05/05/25
O Eternauta, El Eternauta, Série TV, 2025, Criação: Bruno Stagnaro
'O Eternauta': conheça a tragédia real por trás de novo sucesso com Darín
Janina Martens e Luiza Palermo, UOL, 08/05/2025
A clássica história em quadrinhos argentina de ficção científica "O Eternauta", de 1957, ganhou sua primeira adaptação para as telas. Lançada em 30 de abril pela Netflix, a série de seis episódios é estrelada por Ricardo Darín, que interpreta Juan Salvo, um homem comum que, após uma nevasca tóxica dizimar milhares de pessoas em Buenos Aires, torna-se um viajante do tempo e do espaço em busca de sua família.
Com efeitos especiais de última geração, a produção acompanha a odisseia de Salvo — que se transforma no Eternauta, um viajante eterno — enquanto ele se junta a um grupo de resistência para sobreviver e, mais tarde, enfrentar uma ameaça alienígena que pretende destruir a Terra.
No entanto, a produção traz consigo uma trágica história que envolve o autor dos quadrinhos. Vinte anos depois de escrever a história do Eternauta, o renomado escritor argentino Héctor Germán Oesterheld teve um destino semelhante ao de seu personagem durante a ditadura militar no país.
Em sua história em quadrinhos, alienígenas exterminaram impiedosamente a população de Buenos Aires. Na Argentina real, a junta militar de Jorge Rafael Videla impôs um regime totalitário em 1976, aterrorizando a população. Oesterheld e sua família foram sequestrados pelos militares.
Quando a ficção científica reflete a realidade
"O Eternauta" reflete profundamente a personalidade e os valores de Oesterheld, que colocava na história do quadrinho sua perspectiva social e política em um contexto de Guerra Fria. Mais tarde, isso o levou a se juntar à resistência contra o regime militar, junto com suas quatro filhas.
Eles participaram do grupo Montoneros, uma organização político-militar argentina contra a ditadura. No entanto, em 1977 todos foram sequestrados e acabaram entre os 30 mil argentinos que desapareceram naquele período.
Os corpos do autor e de suas filhas nunca foram encontrados. Desde então, foi estabelecido que suas filhas foram assassinadas, e acredita-se que o próprio Oesterheld foi morto pelo regime em 1979. No caso da família Oesterheld, os militares deixaram vivos apenas sua esposa, Elsa Sánchez, e dois netos pequenos: Martín Mortola Oesterheld, de 4 anos, e Fernando Araldi Oesterheld, de 1 ano.
Símbolo contra o esquecimento
A história em quadrinhos de Oesterheld, com os desenhos de Francisco Solano López, tornou-se um enorme sucesso na Argentina. Até hoje, "O Eternauta" é lembrado como um poderoso capítulo contra o esquecimento - um alerta permanente sobre um dos períodos mais sombrios da história do país. Um capítulo que, para muitos, ainda está em aberto.
Na ficção científica, o herói passa sua vida buscando sua família através do espaço e do tempo. Assim como ele, milhares de argentinos ainda não sabem o que aconteceu com seus entes queridos durante a ditadura militar e seguem procurando pais, filhos e netos desaparecidos.
Há quase meio século, por exemplo, a organização Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio, em português) procura o paradeiro de quase 500 bebês roubados durante a ditadura e criados sob identidades falsas.
A estreia da série lançada na Netflix, inclusive, motivou a volta das buscas pelos dois possíveis netos ou netas de Oesterheld, nascidos em cativeiro. Segundo o El País, Diana Oesterheld, a segunda das quatro filhas do autor, estava grávida de seis meses quando foi sequestrada, enquanto Marina Oesterheld, estava a poucas semanas de dar à luz.
"Você está assistindo 'O Eternauta'? Se sim, e nasceu em novembro de 1976 [data prevista para o parto do filho ou filha de Diana] ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978 [possível nascimento do filho ou filha de Marina] e tem dúvidas sobre sua identidade ou a de alguém que nasceu nessas datas, entre em contato com a Abuelas Difusión", publicou nas redes a organização Avós da Praça de Maio, em parceria com o grupo de direitos humanos Hijos (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio).
Assim, a figura de Juan Salvo, presente em murais e grafites por toda Buenos Aires, continua a representar algo maior do que um personagem de ficção científica. Símbolo político e memorial vivo, o Eternauta segue lembrando aos argentinos a importância de enfrentar o passado e lutar, sempre, pelos direitos humanos.
Os 3 Eternautas: o original, o remake, acontinuação vídeo
06/05/25
Louis Theroux: The Settlers, Filme para televisão, 2025, Direção Joshua Bake, Roteirista Louis Theroux
Assistir aqui
https://x.com/GeopolPt/status/1916812574164763015
https://www.instagram.com/reel/DJH0i7UJTeG/
https://x.com/SerraSilvaSofia/status/1918711686350958922
Bruno Altman: Palestina, Israel aposta na solução final vídeo
Os Colonos do Presente é um soco no estômago por Jair de Souza*
SOBRE A PALESTINA
Muita maldade em um só pacote
Ao assistir ao novo documentário do jornalista britânico Louis Theroux, tive a sensação de que estava diante de uma peça que, embora não ultrapassasse em muito uma hora de duração, nos apresentava de modo cristalino um repasso de alguns dos principais fenômenos da história da Humanidade.
Tenho dúvidas se devo considerar-me feliz por havê-lo visto, ou triste por tê-lo feito.
É que, infelizmente, a retrospectiva que nos vem à mente neste trabalho jornalístico nos traz de volta à memória algumas das fases mais tenebrosas pelas quais as sociedades humanas já trilharam ao longo dos séculos. Assim que, num curto lapso de tempo, podemos sentir a persistência ainda em nossos dias de várias das mais abomináveis atrocidades que a perversidade humana foi capaz de engendrar.
O imperialismo nos dias de hoje
É como se, em pleno século 21, tivéssemos à nossa disposição um laboratório para experiências práticas onde os horrores do colonialismo, do nazismo e do apartheid estivessem sendo novamente exercitados, para que o mundo todo pudesse conhecê-los de modo mais realístico.
E tudo isto entrelaçado com o imperialismo da atualidade.
Por isso, muito mais valioso do que tentar expor em palavras toda a riqueza de informações contida no já citado documentário, gostaria de recomendar ardentemente que cada um o visse com atenção, refletisse sobre seu conteúdo e tratasse de divulgá-lo a quantos outros mais lhe seja possível.
O combate ao etnocentrismo racista, genocida e sociopata depende de que a vacina da consciência e do sentimento de humanidade esteja presente entre aqueles que lutam por um mundo justo e sem exclusivismo nacional ou étnico.
*Jair de Souza é economista e Mestre em Linguística
#18 - THE SETTLERS[CdM1] , de Louis Theroux
Ou: quando religião, racismo e ódio dão as mãos, nada segura a colonização
A contrapelo, Rodrigo Castro, abril 29, 2025
Se eu fosse religioso, e curtisse escatologias como os extremistas sionistas, eu diria que vi a cara do demônio. O sorriso nefasto de Daniela Weiss certamente vai me atormentar por um bom tempo depois de ver sua maldade explícita tão graciosamente nas conversas com Louis Theroux, em The Settlers (2025). O documentário do singapurense foi lançado pela BBC no final da semana passada e, como é de se esperar graças 1) ao tema e 2) à própria cobertura nada exemplar que o veículo britânico vem fazendo do genocídio palestino, está causando (e com certeza ainda vai causar) um bocado de barulho, merecidamente. Aliás, barulho é o que mais se precisa neste momento desde o 7 de outubro de 2023, considerando o desequilíbrio de vozes críticas às atrocidades sionistas no jornalismo e na política mainstream.
Antes, uma breve notinha sobre Louis Theroux, o jornalista/cineasta que conduz o filme do começo ao fim — é dele o roteiro e a direção de The Settlers. Theroux começou seu trabalho audiovisual em TV Nation, hoje uma clássica série criada por Michael Moore, que produzir reportagens provocantes com o humor ácido que o consagrou no cinema. Louis, por sua vez, também já faturou alguns prêmios importantes por aí, como o BAFTA. E o que isso tem a ver com o filme?, já que quase nunca comento as carreiras pessoais dos cineastas por aqui? Bom, se você assistir a este filme, vai notar um humor muito peculiar na forma como Theroux conversa com alguns dos personagens escolhidos.
(Por falar em ver o filme, infelizmente ainda não está circulando no mercado paralelo — bora MakingOff! — e nem é possível acessar via BBC iPlayer, a plataforma oficial dos britânicos. Porém, uma boa alma postou o filme inteirinho no falecido Twitter. Como nem tudo pode ser tão bom assim, só está disponível com os textos em inglês. Porém, como se vê, ainda há resquícios de humanidade por lá…)
Dito isso: The Settlers é, num resumo bem sucinto (e me perdoem a redundância), um retrato cru e lamentável da questão colonial sionista através, principalmente, do movimento de colonos liderado por Daniela Weiss - certamente uma das pessoas mais sádicas que já vi num documentário.
Cru, pois nenhum colono entrevistado, e muito menos Weiss, que é chamada carinhosa e diabolicamente de madrinha dos colonos, sente remorso ou sequer reflete de verdade sobre os atos perpetrados contra a população palestina. Pior: nenhum colono, e com grande influência de Weiss, sequer reconhece a população palestina como formada por seres humanos, que têm direitos e deveres como qualquer outra pessoa deveria ter num Estado democrático [1]. Essa visão deturpada da realidade [2], baseada no direito divino que os judeus sionistas alegam deter sobre o território palestino, é a raiz do problema sionista, já que dá as bases de todos os processos de violência aos quais palestinos e palestinas estão submetidos: o policial, o judiciário, o racial, o psicológico etc. — mas, primordialmente, o processo de violência colonial, intrínseco à própria situação da colonialidade (afinal, é impossível levar a cabo um projeto de conquista territorial sem, em algum momento, ter que lidar com a população autóctone; essa lógica está irônica e cinicamente materializada no slogan que os sionistas adotaram para o movimento, uma terra sem povo para um povo sem terra).
Lamentável porque, a despeito de se mostrarem tranquilos e serenos, os colonos, e principalmente Weiss, que detém um poder descomunal dentro do movimento e da política israelense, não sofrerão nenhuma represália, seja do próprio Estado, seja dos organismos internacionais. Nem hoje, frente ao genocídio mais explícito, nem no passado, nem no futuro — pelo menos não enquanto houver sionismo como forma e ideologia do Estado israelense. É impossível que um etno-Estado fascista responsabilize pessoas que levam à frente a própria ideia deste etno-Estado fascista, através de ações diretas de intimidações, expulsões, agressões e assassinatos. O sentimento exclusivista dos colonos é naturalizado e incentivado, principalmente através do mito da terra prometida e por pessoas como Itamar Ben-Gvir [3], que até pouco tempo era Ministro da Segurança Nacional de Israel e sempre participa de eventos de colonos como o registrado por Theroux em The Settlers.
Este sentimento é tão difundido que se materializa na fala de um dos colonos entrevistados (e aqui pouco importa o nome dessas pessoas, exceto o de Daniela Weiss, que se orgulha de seu papel de líder do movimento) que ecoa Golda Meir, outra madrinha do sionismo: eles não creem existir algo como o povo palestino. A desumanização dessas pessoas faz com que colonos e Weiss possam tranquilamente dizer coisas como “eu não vejo isso [e aponta para as vastas terras] como Palestina; não existe Palestina, é Judeia e Samaria” ou “eu não me preocupo com árabes, eu sou judia; não penso em árabes”. Weiss chega a apontar para algumas porções de terra: seu único pensamento é saber onde é possível trabalhar a terra e onde não é possível fazer nada. Seu pensamento não está nos palestinos e nas palestinas porque, no fundo, essas pessoas não fazem parte de seu vislumbramento do mundo; elas não existem enquanto conceito, não são seres humanos, e é por isso que, apesar de insistentemente a madrinha dos colonos dizer que não, é tão fácil clamar pela aniquilação palestina. É por isso, também, que uma simples colheita de olivas se transforma num evento militar grotesco, que impõe aos agricultores humilhações constantes e cotidianas em tarefas tão banais quanto buscar comida ou arar a terra.
É o capital (de novo)
"Eles não nos veem como seres humanos iguais que merecem os mesmos direitos que eles."
Eles, é claro, são os sionistas, e é assim que Issa Amro, um palestino militante que guia Theroux por Hebron, resume a questão que atravessa sua vida desde o nascimento. Diferentemente dos militares que fazem divisa com sua casa, ele pertence a Hebron. E é nesta cidade que fica mais explícito como o capital funciona como braço amigo (e armado) do projeto colonial sionista (já falei disso por aqui outra vez, certo?).
Antes, vejamos o que Weiss diz brevemente sobre sua relação com a Cisjordânia, ao recordar brevemente sua história numa conversa com Theroux:
"Meus pais vieram para cá e investiram fortunas, acreditando que, um dia, haveria um Estado judeu"
O grifo é meu, pois é muito importante entender como esse sonho molhado colonialista se materializou: através de fortes incentivos à imigração de judeus espalhados mundo afora, vivendo em diáspora, uma característica que eles acreditam ser fundante de sua própria judaicidade (apesar de não ser exatamente assim) e que, por isso mesmo, justificaria o retorno à terra prometida (sabe-se lá por quem, já que também não é bem assim) (Sand, 2011). O empreendimento colonial precisa ser integrado ao capital; é por isso que Weiss fala de Gaza devastada como uma oportunidade imobiliária (e, claro, de criação de novos assentamentos): é possível, além de reafirmar a identidade judaica, ganhar dinheiro, muito dinheiro, com a colonização total do território.
Não é à toa, então, que Amro aponta um cartaz pregado na parte palestina de Hebron, uma cidade que usa os famosos checkpoints como ferramentas de segregação espacial urbana:
O cartaz materializa na porta de uma loja palestina fechada pelas FDI a forma como sionistas enxergam os palestinos: são todos, sem exceção, terroristas. Não há nenhuma nuance, nem distinção etária ou de gênero: mulheres são parideiras de pequenos militantes, e estes pequenos militantes são futuros terroristas que ameaçam o espaço sionista: é preciso, também, evitar o comércio dessas não-pessoas ardilosas; é preciso evitar qualquer possibilidade de manifestação de vida.
Para o sionismo, é preciso, é um dever, por fim, e evocando Judith Butler (2017), garantir a escolha de com quem se vai habitar o planeta — e os palestinos e as palestinas definitivamente não são uma das opções viáveis dessa escolha.
Referências bibliográficas
Butler, Judith. Caminhos divergentes. Judaicidade e sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
Sand, Shlomo. A invenção do povo judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
[1] Israel é tratada como a "única democracia do Oriente Médio". Isso está presente em discursos oficiais e midiáticos. Contudo, é um tanto óbvio que democracia e etno-nacionalismo não costumam andar juntos — ou, ao menos, não costumam dar bons frutos.
[2] Essa visão deturpada atinge níveis irracionais, como numa espécie de crítica (que não vou linkar aqui, mas é facilmente encontrada numa busca rápida) feita ao documentário por Eitan Oren, um acadêmico que, tal qual Ross Geller, parece gostar muito de se apresentar ao mundo com seu epíteto “doutor” — pelo menos é assim que ele assina seu texto contra o filme de Theroux. Oren, orgulhosamente nascido e criado em um assentamento sionista, afirma categoricamente que a minoria dos colonos tem para com palestinos um sentimento de ódio — a despeito do que demonstrem gráficos como este, da al Jazeera, que mostra que, desde 2023, acontecem quatro ataques de colonos sionistas na Cisjordânia por dia. Oren também enfatiza que é dever do jornalismo ouvir sempre os dois lados, e que Therous deveria ter escolhido melhor suas fontes, pois ficou preso a, supostamente, uma minoria extremista — neste caso, é só ignorância mesmo, já que um documentário, por mais que esteja exibido num canal de televisão, antes de tudo é uma narrativa audiovisual, e o diretor tem o poder e o dever de escolher quem bem entender relevante para sua obra. Sobre o tema violência de colonos, deixo um bom artigo da Armed Conflict Location & Event Data (ACLED), com mais seriedade que um simples post de um sionista colono orgulhoso da Cisjordânia.
[3] Ben-Gvir é um dos mais esforçados sionistas de nossos tempos. Ele mesmo um colono na Cisjordânia, não se cansa de incentivar a limpeza étnica e o genocídio do povo palestino. Sua demissão do cargo que ocupava no governo de Benjamin Netanyahu se deveu pois discordava irremediavelmente da possibilidadede um cessar-fogo entre o Hamas e o governo israelense e a troca de reféns entre os dois (me recuso a chamar palestinos de prisioneiros de uma forma abstrata): seu desejo era a aniquilação e a expulsão total de palestinos e palestinas do território de Israel, Gaza e Cisjordânia. Contudo, com a retomada dos incessantes ataques sionistas à Faixa de Gaza, o partido de Ben-Gvir, Otzma Yehudit, retornou à coalizão de apoio a Netanyahu e ao Likud — como se vê, Ben-Gvir não disfarça seu gosto pelo sangue do povo palestino.
The Settlers review – this vital film forces Louis Theroux to dosomething he’s never done before
08/05/25
Noites Brancas, Le notti bianche, 1957, Luchino Visconti
Roteiristas: Fyodor Dostoevsky novel "White Nights/Belye noci" (as Fedor Dostoevskij), Suso Cecchi D'Amico, Luchino Visconti
No iutui aqui
Resenha #17 – Noites Brancas (Le Notti Bianche, 1957)
Por Alexandre Cataldo / 25 de outubro de 2015
Luchino Visconti sempre terá seu nome ligado ao movimento neo-realista italiano, afinal, foi um dos seus precursores. Mas a verdade é que a sua “poesia” fez com que sua obra se afastasse um pouco daquelas de seus colegas de movimento, como Rossellini e De Sica, garantindo-lhe sucesso em filmes de vários gêneros.
De seus filmes a que assisti, “Noites Brancas” é o que mais me envolveu (mais até que o excelente “Rocco e Seus Irmãos”). Ouso dizer que se trata de um filmaço, com vários pontos fortes, a começar por uma boa história, baseada no conto homônimo publicado em 1848 pelo escritor russo Fiodor Dostoievsky. Ambientanda em São Petersburgo, a história de Dostoivesky acompanha um protagonista sonhador, que cria uma utopia de amor ideal ao esbarrar com uma desconhecida.
Visconti não apenas “filmou o livro”, mas transportou para as telas a sua própria “leitura” da obra de Dostoievsky, alterando levemente alguns pontos. Além de termos o cenário mudado para Livorno, o protagonista Mario (Marcello Mastroianni) não domina completamente o filme. A personagem da desconhecida, Natalia (Maria Schell), ganha força e passa a ser praticamente a protagonista, já que são as suas utopias (e não as de Mario) que dominam a história.
As noites brancas do título simbolizam a solidão dos dois personagens. Tanto Mario quanto Natalia são seres solitários e ansiosos por encontrar alguém. Ela demonstra, já de início, uma quase infantilidade no modo como lida com o amor. Já Mario, que a princípio parece ser até mesmo um tipo cínico e aproveitador, só mais tarde demonstra ser, ele também, um sonhador.
As filmagens foram todas feitas em estúdio, tendo sido construído todo um quarteirão de uma fictícia Livorno. Visconti orientou os designers para que não se fizesse uma reconstrução perfeita, para que o filme se afastasse ainda mais do neo-realismo.
As interpretações de Maria Schell e Mastroianni são muito boas, principalmente se levarmos em conta que são praticamente os únicos personagens em tela, durante a maior parte do tempo. Maria não sabia falar uma palavra de italiano quando foi contratada para fazer o filme. Aprendeu o suficiente para o filme em apenas 15 dias.
Mas de todos os pontos altos do filme, talvez o de maior destaque seja a belíssima fotografia de Giuseppe Rotunno, ainda em início de carreira. Na década de 60, Rotunno se tornaria um dos mais importantes diretores de fotografia da Europa, trabalhando com nomes como Fellini e, posteriormente, Mike Nichols e Bob Fosse (em “All That Jazz”, trabalho que lhe valeu indicação ao Oscar, em 1979). Neste filme em especial, o trabalho de Rotunno é fantástico, tendo usado, por exemplo, centenas de véus finíssimos, pendurados pelo set, para criar a atmosfera quase onírica de um constante nevoeiro.
Noites brancas por Paulo Ricardo de Almeida
Adaptação de Luchino Visconti e de Suso Cecchi D’Amico (que trabalha, a partir de Belíssima, em todos os filmes do cineasta) para o conto homônimo de Fiódor Dostoiévski, Noites Brancas, Leão de Prata no Festival de Veneza de 1957, representa marco fundamental na carreira do mestre italiano, na medida em que expande as noções de realismo, tão presente nas obras anteriores, rumo à fantasia e à imaginação, seja no tratamento diferenciado dado ao espaço cênico, seja na construção atemporal da narrativa.
Obsessão e A Terra Treme são comumente identificados com o neo-realismo italiano, pois, da mesma forma que, segundo Carlo Lizzani, operam a junção da realidade sócio-econômica das camadas baixas da população, com a tradição cultural erudita do Ocidente, sobretudo literária – a transposição de O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain, para o cotidiano dos trabalhadores pobres do Sul em Obsessão, o uso do clássico de Verga a fim de retratar a vila de pescadores em A Terra Treme –, também encampam práticas de produção que os afastam do sistema de estúdio fascista (o cinema de "telefone branco"), tais quais filmagens em locações, iluminação natural, equipamentos mais leves e atores não-profissionais ou desconhecidos pelo público. Assim, se Sedução da Carne, por um lado, rompe com o neo-realismo – posto que a ação é deslocada da Itália miserável do pós-guerra para o seio da aristocracia durante o Risorgimento –, por outro se mantém fiel, dada a verossimilhança e o detalhismo com que Visconti impregna a narrativa, precisa quanto à reconstituição de época: o realismo praticado pelo diretor, na verdade, decorre da ópera verista, na qual temas fantasiosos e mitológicos são preteridos em troca de histórias calcadas nos contextos sociais em que transcorrem, em que o comportamento, as atitudes e a psicologia dos personagens se subordinam (melodramática e tragicamente) ao mundo restritivo que os cerca.
Em Noites Brancas, porém, a cenografia de Mario Garbuglia aponta justamente para o sonho, para o conto-de-fada. Ao reconstruir quarteirão inteiro de Livorno, com suas pontes e rios, nos estúdios da Cinecittá, Visconti opta, como De Sica já o fizera em Vítimas da Tormenta (em que o dia-a-dia dos garotos engraxates se transforma em pesadelo), por paradoxal antinaturalismo, já que, embora pautado na irrealidade fake do espaço cênico e da iluminação (a cargo de Giuseppe Rotunno), igualmente se esforça para torná-los críveis, não omitindo (e mesmo realçando) a sujeira das ruas, as paredes rachadas, as fachadas velhas e descascadas, as prostitutas e os mendigos que vagam sem esperança, enfim, a atmosfera triste e soturna dos ambientes. Trata-se, para o cineasta, não apenas de representar o real objetivo, mas de articulá-lo a camadas e camadas de imaginação e de fantasia a fim de narrar a eterna e atemporal busca romântica do homem pelo amor do Outro, capaz de libertá-lo da solidão que a sociedade, emocionalmente fria, violenta, distante e cruel, lhe impõe.
Mario (Marcello Mastroianni) retorna de viagem feita com a família do chefe. Andando a noite pelas ruas, de início confunde Natalia (Maria Schell), a qual chora sobre a ponte, com prostituta, para depois se apaixonar por ela. Marcam novo encontro para o dia seguinte, no mesmo local e na mesma hora, mas Natalia, ao avista-lo, foge. Mario a persegue, e por fim lhe arranca a verdade: todas as noites, há um ano, ela espera a volta do amado, misterioso inquilino (Jean Marais) que veio morar na casa em que Natalia e a avó viviam a solitárias.
O inquilino representa o príncipe encantado de Natalia: não se sabe quem ele é, de onde veio ou para onde vai; quase não fale, quase não aparece ao longo do filme, mas ainda assim povoa os pensamentos e os sonhos da jovem apaixonada. Por mais que Mario lhe procure defeitos, por mais que tente com que Natalia o esqueça, não consegue. O que tem, afinal, este trabalhador, que sobrevive graças a emprego miserável, que habita pensão caótica longe da família, que vez ou outra briga nas ruas, que é perturbado pelas prostitutas, que só encontra amizade em cão vadio, para lutar contra a imaginação romântica de uma mulher?
Mario é humano, demasiado humano. No triângulo amoroso criado por Visconti, ele representa a vida em si, com seus erros e acertos, com suas misérias e belezas, enquanto o misterioso inquilino, ao contrário, encarna o homem ideal, o cavaleiro de armadura brilhante egresso dos contos-de-fadas. Natalia, por sua vez, é o meio termo entre os dois, entre o real e o imaginado: meiga, tímida, ingênua, apaixonada, inocente, pura, amorosa e sonhadora, ela, ao mesmo tempo em que espera o grande amor, também integra os sonhos de Mario, conquanto se constitui na mulher que ele próprio idealiza.
Natalia, a qual sempre aparece nas sombras, a qual sempre é vista de relance, talvez exista apenas no pensamento de Mario, já que mesmo o homem, imperfeito por natureza, possui o direito de sonhar, de buscar a felicidade no mundo padrasto em que subsiste, com sofrimento e com alegrias. Na seqüência que justifica o título da obra, Natalia, desgostosa com seu príncipe, que não veio, resolve se entregar a Mario. Ela não o ama, mas quem sabe, no futuro? Felicíssimo, ele a leva para passeio de barco e, sob a ponte, onde se acotovelam mendigos e prostitutas, começa a nevar. Trata-se da indicação simbólica de que Mario, enfim, toca o conto-de-fada, materizaliza o sonho, funde a realidade à fantasia.
Quando cessa de nevar (sem antes o comentário de que o sobretudo de Natalia coberto pelos flocos brancos será seu vestido de noiva), é hora de voltar à terra. Sobre a ponte, encontra-se o inquilino, o cavaleiro encantado: ela corre para seus braços, desculpando-se com Mario, o qual lhe responde, sem mágoa, que, por um momento – de que sempre se lembrará – foi feliz. O tempo ínfimo, mas eterno, que justifica toda a existência.
A impossibilidade de concretizar a idealização do mundo (através do amor) mostra que o homem está condenado a vagar ao sabor dos quatro ventos, sempre à procura da felicidade, com a incômoda lembrança do Paraíso do qual foi expulso. Pelo menos, o cão vadio, fiel, continua a seu lado, para ajudá-lo: em Noites Brancas, não estamos sós.
Noites brancas (tradução direta do original russo) Capa comum – Livro interativo, 1 janeiro 2009
Edição Português por Nivaldo dos Santos (Tradutor), Fiódor Dostoiévski (Autor)
Editora 34, 3ª edição (1 janeiro 2009)
1951 Bellissima [Luchino Visconti] assistir aqui
1965 Sandra - Of A Thousand Delights assistir aqui
09/05/25
O Conto da Aia, The Handmaid's Tale, Série de TV-2017–2025 S06, Bruce Miller-
A última travessia de June: um começo potente para o fim de ‘O Conto da Aia’
Giselle Costa Rosa 09/04/2025
Depois de uma longa pausa, “O Conto da Aia” (The Handmaid’s Tale) retorna com a temporada 6 prometendo finalmente encerrar a jornada de June Osborne — e, quem sabe, dar ao público um pouco da catarse tão adiada.
Os dois primeiros episódios da última temporada não apenas retomam a narrativa exatamente de onde parou, como imprimem um novo ritmo à série, que por anos oscilou entre sofrimento extremo e avanços mínimos na trama. Agora, com um destino à vista, os caminhos de June, Serena e tantos outros personagens se cruzam novamente em meio ao caos e à reconstrução.
Sinopse da temporada 6 da série O Conto da Aia / The Handmaid’s Tale (2025)
A temporada começa com June (Elisabeth Moss) fugindo com a filha Nichole num trem rumo ao Alasca, após sobreviver a uma tentativa de assassinato em solo canadense. No mesmo trem, está Serena Joy (Yvonne Strahovski), também em fuga e com seu filho recém-nascido, Noah. O reencontro tenso entre as duas, agora em circunstâncias improváveis, cria uma das dinâmicas mais interessantes da série até aqui.
Enquanto isso, Luke está preso, Nick lida com pressões internas em Gilead, Moira se aproxima da resistência Mayday e uma revelação inesperada: Holly, a mãe de June, dada como morta nas Colônias, está viva — e em solo americano. A série acelera, mas sem perder o peso emocional que sempre a definiu.
Crítica da temporada 6 de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), do Paramount+
A relação entre June e Serena sempre foi o coração moral e ambíguo de “O Conto da Aia”, mas nos dois primeiros episódios da sexta temporada ela ganha contornos ainda mais humanos — e contraditórios. No trem, Serena tenta se aproximar, como se o passado pudesse ser varrido sob o tapete.
June, carregando traumas incontornáveis, tenta ao mesmo tempo manter distância e sobreviver. O momento em que Serena é reconhecida por outras refugiadas e quase linchada — salvo por um ato inesperado de compaixão de June — mostra o quanto a série ainda sabe construir tensão com domínio absoluto de espaço e silêncio.
Direção precisa e atuações intensas
Elisabeth Moss, que também dirige os dois primeiros episódios, dá uma aula de como captar emoções cruas sem exagero. A cena do reencontro entre June e Holly é exemplar: o uso da música, a câmera que hesita antes do abraço, tudo comunica dor, alívio e, acima de tudo, exaustão.
Cherry Jones, como Holly, entrega uma performance comedida e poderosa. Há uma tensão entre mãe e filha que ultrapassa a simples alegria da sobrevivência: são duas mulheres marcadas por escolhas e perdas que não têm como voltar atrás.
Serena, a sobrevivente disfarçada de mártir
Serena é lançada de um trem com um bebê nos braços e, no melhor estilo da personagem, cai em pé. Seu abrigo numa comunidade religiosa feminina chamada Canaan parece, à primeira vista, um retiro espiritual. Mas rapidamente entendemos: ela está apenas esperando a próxima oportunidade de retomar o controle.
Seu retorno a Gilead — agora sob o disfarce da reformulação em New Bethlehem — mostra que Serena nunca quis redenção, apenas um novo púlpito. Seu discurso messiânico no jantar em Canaan é assustador pela calma com que ela reivindica um papel de salvadora, sem jamais confrontar o que realmente foi.
A série encontra propósito e urgência
A sexta temporada parece ter aprendido com seus próprios erros. Se nas últimas temporadas a história andava em círculos, agora ela tem rumo. A reintrodução de personagens como Holly, a volta do núcleo da resistência com Moira e Mark, e o novo papel de Luke na Mayday dão dinamismo à trama. Até o salto temporal de dois meses — algo que normalmente pareceria artificial — funciona como ferramenta para limpar o terreno e posicionar as peças para o confronto final.
Nick continua sendo um personagem que flerta com o desgaste. A série parece não saber muito bem o que fazer com ele, e o roteiro o transforma mais uma vez em uma ponte entre Gilead e a resistência. Ainda assim, sua relação com June continua sendo emocionalmente potente, mesmo que agora com mais dúvidas do que certezas. A tensão entre ele e o sogro, o novo Comandante Wharton, adiciona um novo elemento político à narrativa que ainda pode render.
Conclusão
Os dois primeiros episódios da temporada 6 de “O Conto da Aia” funcionam como um verdadeiro reinício. Com direção afiada, foco narrativo e diálogos emocionalmente carregados, a série parece finalmente disposta a entregar um encerramento digno ao seu universo distópico.
June segue sendo o centro moral da história, mesmo quando suas escolhas são difíceis de apoiar. Serena, por sua vez, confirma-se como a antagonista mais fascinante da TV atual — complexa, calculista, e quase sempre um passo à frente.
Mais do que redenção, a temporada promete confronto. E se a série mantiver o nível apresentado nesse início, “The Handmaid’s Tale” poderá se despedir com a força que fez dela um marco na ficção contemporânea.
12/05/25
5 Homens Selvagens, The Animals, 1971, Ron Joy
No iutui aquiNuma super produção da METRO GOLDEN MAYER, esta aventura de western mostra um grupo de assaltantes que querem a todo custo resgatarem seu chefe Pudge que está preso e roubar um carregamento de ouro. Associados à índios renegados, os cinco homens selvagens saqueiam, violentam e sequestram para alcançarem seu objetivo. Somente Chatto e sua tribo poderá impedi-los. Filmow
15/05/25
Andor, Série de TV, 2022–2025 S02, Tony Gilroy
Andor S02 por PH Santos
ANDOR - Resumo da 1ª Temporada
ANDOR 2: Parte 1 - Vida instável | Análise2x01 2x02 2x03
ANDOR 2: Parte 2 - Rebeldia x Revolução |Análise 2x04 2x05 2x06
ANDOR 2: Parte 3 - Quem vai ajudar? | Análise2x07 2x08 2x09
ANDOR 2: Parte 4 – Por um amanhã possível |
Análise 2x10 2x11 2x12
20/05/25
The Last of Us, Série de TV, 2023–S02, Neil Druckmann & Craig Mazin
The last of us S02 por PH Santos
THE LAST OF US - Resumo | 1ª Temporada
THE LAST OF US 2x01 - Paralelos e contrastes |Análise do episódio
THE LAST OF US 2x02 - E agora, Ellie? |Análise do episódio
THE LAST OF US 2x03 - O Caminho | Análise doepisódio
THE LAST OF US 2x04 - Um dia ou dois | Análise
THE LAST OF US 2x05 - Que abismo | Análise
THE LAST OF US 2x06 - Feliz aniversário |Análise
THE LAST OF US 2x07 - O Que Restou | Análise
THE LAST OF US - Temp 2: Boa ou decepção? |Saldo Final
27/05/25
O Barão Aventureiro, The Baron of Arizona, 1950, Samuel Fuller
No iutubi aqui ou aquiThe Baron of Arizona (Lippert, 1950), May 3, 2018
O melodrama gótico vai para o Oeste (tradução livre)
The Baron of Arizona foi estrelado por Vincent Price. Price é mais conhecido pelos cinéfilos pelo gênero de terror, mas, na verdade, ele também fez alguns faroestes na tela grande e pequena, e acho que ele foi bom neles.
Para ser honesto, no entanto, The Baron é mais um melodrama gótico do que um faroeste durante a maior parte de sua duração e é realmente muito caro, pois Vincent, de barba cortada e, às vezes, com uma capa, vagueia pela Espanha e Paris. Ainda assim, ele faz o filme (acho que sem ele o filme teria sido um verdadeiro fracasso). Price afirmou que esse foi seu papel favorito.
O projeto foi divulgado pela primeira vez antes da guerra e deveria ter sido um filme da Warners, Prince of Imposters, com Edward G. Robinson como Reavis, mas nunca aconteceu.
Ele foi dirigido e escrito por Samuel Fuller - na verdade, a tela de título o anuncia grandiosamente como Samuel Fuller's The Baron of Arizona. Estou longe de ser um fã de Fuller. Os cinéfilos o adoram, especialmente aqui na França, onde eles podem ser bastante pretensiosos em relação aos filmes, que eles chamam de sétima arte (depois da arquitetura, escultura, pintura, música, poesia e dança), e são autoristas inveterados, atribuindo tolamente ao diretor toda a contribuição criativa em um filme.
Ainda assim, como Fuller frequentemente dirigia, escrevia e produzia seus filmes, que tinham certas tendências artísticas (para compensar o tema sensacionalista), suponho que às vezes eles tinham razão. De qualquer forma, Fuller é admirável no que diz respeito aos franceses. Eu mesmo acho seus westerns escabrosos e de aparência barata. Esse foi seu segundo filme, depois do polpudo I Shot Jesse James, do ano anterior. Run of the Arrow, de 1957, foi absolutamente terrível, com Rod Steiger atuando ainda mais do que o normal, e Forty Guns, do mesmo ano, foi um lixo. O melhor filme de faroeste que ele fez foi The Command, com Guy Madison no papel de um médico do exército obrigado a assumir o comando de uma tropa de cavalaria em território indígena, mas mesmo esse foi apenas razoável. No entanto, para ser justo (e seu Jeff sempre tenta ser assim, provavelmente falhando), se você chamar The Baron of Arizona de faroeste, ele foi um dos melhores de Fuller. O slogan era típico de Fuller: 'MULHERES lutaram por seus beijos! HOMENS clamavam por sua vida! Mas, na verdade, não era tão sensacional assim.
Foi um filme de Lippert, filmado em quinze dias. Como você provavelmente sabe, Robert L Lippert (1909 - 1976) foi o proprietário de uma cadeia de cinemas que, irritado com os preços cobrados pelos estúdios, começou a produzir. “Todo dono de cinema acha que pode fazer filmes melhores do que os que lhe enviam”, disse ele. “Então, em 1943, tentei fazer isso.” Ele ajudou a financiar cerca de 300 filmes, todos de baixo orçamento. Ele disse sobre si mesmo: “O que se diz em Hollywood é: Lippert faz muitos filmes baratos, mas nunca fez um filme ruim”. Ainda assim, acho que seremos nós que julgaremos isso. Lippert fez alguns bons filmes de faroeste, é preciso dizer. Gosto especialmente de Little Big Horn, por exemplo, um filme de 1951 com um excelente John Ireland e Lloyd Bridges.
Além de Vincent estar à espreita sinistramente como um Drácula do Oeste, há mais boas notícias: o filme foi filmado por James Wong Howe, um dos melhores diretores de fotografia que Hollywood já produziu. Ele era um mestre do preto e branco e das sombras e, com a inclinação de Fuller para o noir, isso resultou em algumas cenas incrivelmente boas, especialmente, na minha opinião, quando a multidão de linchadores estava nas sombras, pronta para atacar. As cenas noturnas e de chuva também são maravilhosas. Howe era um verdadeiro artista, e há cenas em The Baron em que isso realmente fica evidente.
É uma história bastante fantástica de James Reavis (Price), um funcionário do cartório de registro de imóveis que elabora um esquema para colocar as mãos em todo o Arizona. Ele se esforça ao máximo para falsificar documentos, chegando a ir à Espanha e passar três anos como noviço para ter acesso à biblioteca do monastério onde estão guardadas as concessões de terras originais. Em uma espécie de Anastasia, ele escolhe uma jovem órfã e faz dela a herdeira de uma fabulosa concessão de terras do rei Fernando VI da Espanha em 1748. Ao se casar com ela, ele se torna o Barão do Arizona.
Surpreendentemente, James Addison Reavis (1843-1914) foi, de fato, uma pessoa real que se tornou um barão de terras ultra-rico, foi recebido pela Rainha Vitória e apoiado pelo pai de William Randolph Hearst, mas acabou sendo considerado culpado de tentar roubar a maior parte do Arizona falsificando documentos de concessão de terras. Ele pagou uma multa de US$ 5.000 e cumpriu dois anos de prisão.
De certa forma, o herói da história é Griff, um escritor e especialista em falsificação que trabalha para o governo, interpretado por Reed Hadley, um dos destaques de Lippert. Há uma relação bastante interessante ao longo do filme entre o barão e o escritor. O primeiro usa a obra do segundo como uma bíblia, mas finge que não a leu.
Cada um parece ter uma admiração furtiva pelo outro. É uma imagem de flashback, com Griff em 14 de fevereiro de 1912, quando o Arizona já era um estado, contando a história a outros cinco senhores idosos.
Ellen Drew interpreta a garota órfã que se transforma em uma bela baronesa sob a tutela de Vincent. Drew foi notada por William Demarest enquanto trabalhava em uma sorveteria de Los Angeles, um conto clássico de Hollywood, e recebeu um contrato com a Paramount. Mas ela nunca chegou a fazer sucesso. A biografia do IMDb diz: “Ela nunca conseguiu se destacar entre o bando de beldades de Hollywood em exibição e, portanto, permaneceu na periferia durante a maior parte de sua carreira.” No faroeste, ela estrelou com Preston Foster o filme Geronimo, de 1939, e foi a protagonista, oscilando entre Glenn Ford e William Holden em The Man from Colorado. Ela foi bastante memorável, mas os doze filmes de faroeste que fez foram, em sua maioria, trabalhos de baixo orçamento.
Os monges e ciganos espanhóis com quem Vincent se envolve depois de fugir do mosteiro parecem ter sotaques muito americanos, mas não importa. Na verdade, acho que Gene Roth, o padre superior, era de Dakota do Sul, mas ele certamente parece e soa como um brutamontes do Bronx. É muito divertido.
Os fazendeiros e agricultores de Arizon que foram desapropriados pelo barão e pela baronesa ficam um pouco irritados. Então, eles recorrem a uma instituição americana muito querida, tão popular quanto o jantar de Ação de Graças ou o desfile de 4 de julho: o linchamento. Isso dá a Fuller um final satisfatoriamente (melo)dramático.
Ainda assim, há um final emocionante. Como eu odeio final emocionante. Ah, bem.
Assista, por causa de Vincent Price e da fotografia de Jimmy Howe. Mas não espere um ótimo faroeste.
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Review by Rafael "Mister Movie" Jovine - (tradução livre)
Ação! - Três autores: The Narrative Tabloids Of Samuel Fuller
Para o segundo filme de Fuller, o diretor revisita o gênero faroeste da mesma forma que fez com o primeiro, deixando para trás os cowboys e os tiroteios em favor de um estudo de personagem baseado em uma história real sobre um homem que quase tomou conta de todo o estado do Arizona e o romance que pode trazê-lo de volta à razão. O filme também tem a distinção de ser um dos primeiros trabalhos de Ed Wood como dublê.
Mas a bobagem não termina aí, pois Vincent Price, o astro do filme, traz consigo uma certa teatralidade que caracterizou toda a sua carreira. Isso torna esse melodrama ainda mais divertido. Para a surpresa de ninguém, a cinematografia do famoso pioneiro James Wong Howe é de primeira linha. Ele pega um roteiro simples e muita ambição e o transforma em um filme realmente excelente.
Em suma, embora tenha um tom um tanto melodramático que prejudica o filme, ainda vale a pena assisti-lo devido ao seu contexto histórico e às boas atuações. Letterboxd
28/05/25
O Libertino, The Libertine, 2004, Laurence Dunmore Redação: Stephen Jeffreys
No iutubi aqui
- Eu te condeno a ser você pelo resto dos seus dias.
Quando o Rei Charles II dirige estas palavras ao poeta e dramaturgo John Wilmot, em certo momento de O Libertino, sua condenação traz o peso do reconhecimento de que aquele é um homem cuja vida tornou-se um fardo: consumido pela doença e odiado por muitos, Wilmot parece mais abatido por permanecer vivo do que ficaria caso fosse sentenciado à guilhotina. Isto, porém, não vem como surpresa para o espectador, já que, na introdução do filme, o protagonista rompe a quarta parede e, dirigindo-se ao público, manifesta orgulho pela própria falta de caráter, avisando-nos de que não gostaremos dele.
Uma das figuras mais conhecidas da Inglaterra durante o período pós-restauração da monarquia britânica (1660), John Wilmot, o Segundo Earl de Rochester (título que herdou do pai), era um autor conhecido, entre outras coisas, por seus textos picantes e nada comportados – e uma de suas peças, Sodoma, é considerada o primeiro exemplar impresso de pornografia da História. Arrogante, egoísta e inconseqüente, casou-se por interesse financeiro com uma jovem herdeira, chegando a seqüestrá-la a fim de obrigá-la a aceitá-lo – um plano frustrado pelo próprio Rei Charles II que, mesmo sendo seu amigo, ocasionalmente o enviava para o exílio como punição por seus exageros (eventualmente, a tal herdeira, Elizabeth Malet, se casaria com Wilmot por vontade própria). Hedonista convicto, não desperdiçava a chance de ir para a cama com quem quer que fosse – homens ou mulheres – e, entre suas “conquistas”, encontra-se a renomada atriz inglesa Elizabeth Barry, cujo imenso talento nos palcos teria sido lapidado justamente por Wilmot, seu “tutor” (algo que o filme retrata, embora ainda haja grandes discordâncias sobre o fato entre historiadores).
Aliás, um dos pontos fracos de O Libertino diz respeito justamente às inúmeras sessões de ensaios entre os amantes: pretensiosas e inverossímeis, as “lições” dadas por Wilmot parecem sair de um manual de auto-ajuda – e se Barry realmente dependesse daquelas aulas para se tornar uma grande atriz, seu futuro no elenco de Malhação estaria assegurado. Um dos principais problemas atribuídos à moça pelo filme, por exemplo, é o pouco alcance de sua voz - e mais tarde, quando a vemos “brilhando” no palco, sua performance contida funciona para o Cinema, mas continuaria inaudível para qualquer membro da platéia que não se encontrasse na primeira fila. Como se não bastasse, Samantha Morton, embora seja uma atriz talentosa, parece determinada a quase sempre transformar suas personagens em figuras extremamente frágeis e vulneráveis (observem como ela cobre o rosto ao ir para a cama com Wilmot) e, neste caso, esta característica soa implausível, desnecessária e enfraquece o impacto que Elizabeth Barry deveria causar em Wilmot.
Enquanto isso, a bissexualidade do protagonista é praticamente ignorada pelo roteiro de Stephen Jeffreys (também autor da peça que deu origem ao filme), que limita-se apenas a insinuar o interesse de John Wilmot por outros homens. Da mesma forma, O Libertino jamais se preocupa em explicar por que o sujeito era tão respeitado profissionalmente – o que fazia dele um autor tão conceituado, bem-sucedido? Seu processo criativo jamais é abordado pelo longa, que se mostra muito mais interessado em seu dom para a auto-destruição. Desta forma, a impressão que temos é a de que Wilmot não era verdadeiramente talentoso; apenas tinha coragem para ser vulgar em seus textos, o que o diferenciava de boa parte de seus contemporâneos.
Por outro lado, o filme demonstra coragem ao abraçar um protagonista tão desprezível: sempre com um olhar inegável de desprezo para todos que o cercam, o escritor não faz o menor esforço para ocultar seu egoísmo monstruoso – a não ser, é claro, ao julgar estar perdendo sua influência sobre alguém, quando, então, volta a utilizar todo seu charme para reconquistar sua “vítima”. Em certo instante, por exemplo, sua esposa manifesta sua frustração em um pequeno monólogo escrito com grande elegância:
- John, eu poderia suportar nosso casamento mais facilmente caso não houvesse fingimento. Caso eu fosse uma mera dona-de-casa e um passaporte para que você tivesse acesso à linhagem nobre. Mas quando você está longe, escreve tão convincentemente sobre o quanto me ama e... não acho que queira me torturar, mas é uma tortura ser informada à distância sobre sua paixão e, então, ser tratada com tamanha frieza pessoalmente.
Ainda assim, há momentos em que O Libertino parece tentado a justificar as ações de seu protagonista: além da cena introdutória (que fará uma rima narrativa com o desfecho do longa), que busca mostrar um John Wilmot mais razoável, ainda que ciente de sua própria canalhice (se ele nos alerta contra si mesmo, não pode ser tão mau!), o filme investe no intenso amor do escritor por Barry como forma de torná-lo mais vulnerável e menos frio – e o fato é que o interesse romântico do sujeito jamais soa realmente convincente. Felizmente, por mais que o roteiro busque aproximar o espectador de seu personagem-título, mostrando-o apaixonado, retratando sua busca pela redenção ou mesmo confessando seus pecados, o brilhante Johnny Depp simplesmente não permite que isto aconteça. Sempre que o filme cria uma situação que possa inspirar nossa simpatia por Wilmot, Depp carrega no cinismo, como para nos lembrar de que não devemos confiar no sujeito – o que engrandece a produção.
Enquanto isso, o diretor estreante Laurence Dunmore revela um moralismo irritante ao encenar as cenas de sexo (e orgias) de maneira carregada, desagradável, como se víssemos um quadro do Inferno na Terra. Em contrapartida, demonstra sensibilidade ao manter sua câmera afastada do protagonista enquanto este mantém uma conversa delicada no fim de um corredor, como se quisesse preservar sua intimidade (o que me fez lembrar de Taxi Driver, quando Scorsese desvia o olhar de sua câmera enquanto Travis se embaraça ao telefone com Betsy). Da mesma forma, Dunmore faz uma escolha particularmente interessante quando Wilmot, já com o rosto desfigurado pela sífilis, faz um discurso: mantido fora de foco, o personagem caminha em direção à câmera, mas, sempre que se torna claramente visível para o espectador, o cineasta volta a se afastar, como se a repulsa provocada pela figura grotesca do personagem não permitisse sua aproximação.
Trazendo ainda o sempre competente John Malkovich (que retrata a ambigüidade de sentimentos de Charles II com relação a Wilmot de maneira sensível), O Libertino é mais um veículo que comprova o imenso talento de Johnny Depp e seu eterno interesse por personagens malditos, à margem da Sociedade. Taí um ator que, mesmo em filmes irregulares como este, é sempre capaz de despertar o interesse do espectador.
05 de Julho de 2006
Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
Stephen Jeffreys (1950-2018)
30/05/25
José Lino Grunewald: Ingmar Bergman & Robert Aldrich et cetera
Ao propor a postulação dos principais atores que atuam positivamente na estética de Bergman não nos podemos furtar, de início, a chamar a atenção para sua obsessiva paixão pelo enquadramento e composição. Todas as cenas são confeccionadas com um rigor poucas vezes notado até então. Procura ele tirar do "décor" o máximo de suas possibilidades plásticas, possuindo, além disso, um acurado senso no controle de iluminação do detalhe.
Nesse ponto é que se deve observar um fator da mais alta relevância em seu esteticismo – o ultrapassar dos efeitos de montagem pela "qualidade'' do "shot". Não queremos dizer, com isto, que o cineasta sueco desdenhe da função montagem, o que seria absurdo por ser esta de natureza orgânica para qualquer processo de elaboração da linguagem cinematográfica. Ocorre que, ao contrário de um Eisenstein, por exemplo (o maior teórico de montagem, aliás), não é o efeito proveniente dos recursos de montagem que incide imediatamente como elemento direto a atuar na sensibilidade do espectador, no papel de agente de impacto emocional. A não ser dentro de seus recursos acessórios - um corte deliberadamente utilizado para funcionar em dado momento - a montagem permanece em sua função estrutural, condicionando justamente a eclosão dos efeitos provocados pelo incansável perscrutar da câmera.
Surge, por conseguinte, um fenômeno que vem novamente situar Bergman em posição bem distinta da grande maioria dos realizadores até então aparecidos. Dentro dessa sua rigorosa manipulação do enquadramento e da composição, valorizando consequentemente a função do "décor" e da iluminação, êle atinge em cada filme, ao contrário de quase todos os "metteurs en scène", a superação do que poderíamos chamar de uma energia visual nas cenas de interiores.
A cena em exteriores, com a concepção paisagística inerente à sua projeção, sempre foi um campo aparentemente mais fácil, e consequentemente mais explorado, quando necessário era uma maior amplificação temática em função das possibilidades da simbologia contida puramente nos efeitos plásticos. Porém, no caso em que o momento de detonação do elemento simbólico esteja pré-ajustado a uma visualização estática, não existe tal imposição. E é nisso que Bergman rompe com uma longa tradição na qual se pautava a orientação de grande maioria de responsáveis pelo roteiro.
Claro que em condições opostas, quando essa visualização se mantém adstrita a um sentido de movimento de massas, dinâmica portanto, torna-se forçosa aquela concepção de amplitude a ser proporcionada pela cena. Bergman entretanto não é um épico; no sentido de que a acepção de expansão, ligada a êsse conceito, não está vinculada à, periferia de suas obras. Poucas vêzes manuseia com as massas num sentido dinâmico, nem possui uma preocupação imediata com as repisadas variações panorâmicas ensejadas pelos exteriores. Seu problema é o individuo; e a reação do meio vem geralmente simbolizada na atitude de determinado personagem, que também muitas vêzes surge com foros de entidade mítica. É o Copelius de "Juventude, Eterno Tesouro" ou o velho que susta o suicídio do desesperado espôso no primeiro episódio de "Enquanto as Mulheres Esperam".
Porém, exatamente para assinalar o que anteriormente já sublinháramos, que êle procura sempre se renovar, nunca se repetir, que, justamente, a melhor sequência que construiu e talvez, a melhor que tivemos ocasião de apreciar até hoje, em tudo a que já nos foi dado assistir em cinema, apóia-se principalmente em efeitos imediatos de montagem e foi filmada em exteriores. Referimo-nos à inesquecível passagem de "Noites de Circo", em que o palhaço vai buscar a espôsa que se banhava diante dos soldados em manobras, encerrando-se admiràvelmente com um marcar sonoro de sua volta - apenas o vulto, com a mulher nos braços, caminhando trôpego - o cenário estático, as linhas de composição, simples; uma autêntica reedição do calvário. Nesse trecho, assume a montagem um papel da mais alta relevância: a perfeita utilização dos cortes, a impressionante interseção dos planos com a gradação dos "shots", o "close-up" brusco significativo; tudo compassado pelo extraordinário acompanhamento musical expressionista de Karl Bigger Blondhau. Tal sequência é, sem dúvida, um dos pontos; mais altos que atingiu o cinema.
Jornal do Brasil 03/03/1957
Irgmar Bergman II
Ao contrário dos realizadores neo-realistas, Bergman jamais procura imprimir um sentido imediatamente social em sua obra. Esta liberdade de compromisso é que justamente faculta um maior empreendimento às perquirições formais necessárias para que se mantenha um constante revigoramento dos meios de expressão na sétima arte. Moço ainda, já possui uma filmografia extensa, sendo que dois de seus filmes, entre os que aqui foram exibidos, constituem obras maiores, antológicas mesmo: "Noites de Circo" (Gyrcklanas Afton) e "Juventude, Eterno Tesouro" (Sommarlek); e outro, malgrado se trate de uma realização algo desigual, não deixa de ser um filme importante: "Enquanto as Mulheres Esperam" (Kvinnors Vantan). "Monika e o Desejo" (Sommaren Med Monika), embora paire num plano inferior e tenha menos densidade, apresenta também excelentes momentos de cinema, como o inesquecível "close up" de Harriet Anderson, em que ela fita longamente o espectador enquanto se ouve ao mesmo tempo um dixieland.
Bergman não é entretanto somente "metteur en scène"; em boa parte de suas fitas é o próprio autor do cenário. Suas atividades nessa função também desenvolveram-se fora de suas produções e tiveram um papel marcante. Basta lembrar "A Tortura de Um Desejo" (Hets), de Alf Sjoberg, pelicula que serviu exatamente para chamar a atencão aos olhos do mundo, no após-guerra, do novel cinema sueco. Em "Eva" de Gustav Molander, percebe-se de um modo claro a sua incisiva influência na confecção de certas passagens, como a do sonho do protagonista, compassado pelo tambor do colega de quarto, que está provocando-o a seduzir sua espôsa - uma sequência insólita, inusitada e criando, às vêzes, a impressão de um macabro divertissement.
A constante em sua obra - a tentativa de fuga do ambiente que sufoca e a busca de um outro rumo - tem sempre o amor como veículo impulsionador, a concretizar essa ânsia e, transfigurando o pathos, Bergman transporta o pequeno drama do homem comum às últimas consequências do grande trágico. Um modo reflexo de valorizar o humano, partindo do particular, e assim conferir ao impasse e à conjuntura dramática do indivíduo, a intensidade que só este mesmo poderia avaliar. Essa uniformidade de pretensões pressupõe, destarte, um caráter funcional ao seu esteticismo e os personagens, incorporados a uma nova dimensão do patético, assumem uma figuração que transcende os limites que permitiriam os efeitos estritamente vinculados a um esquema puramente realista e, consequentemente, direto de focalizar o tema. Saindo do campo oposto, foi justamente com um objetivo análogo que Renato Castellani, em "Romeu e Julieta", carregou o toque neorealista na atuação dos intérpretes, a fim de humanizar o grande trágico em Shakespeare.
Tal estilização, por si alcançada, e que é uma das razões que faculta a sua ascensão entre os maiores realizadores da sétima arte, não o cingiu entretanto a um modus faciendi uniforme, cujo excessivo repisamento acabaria redundando na esterilidade. Não se prendeu à categoria de mestre, isto é, dominando os instrumentos e portanto atendo-se principalmente a uma correção artesanal, como o Wyler dos últimos anos. Ao contrário, procura sempre utilizar-se de um modo inventivo dos processos e elementos formais. Domina amplamente seu estilo, porém, dentro disso, renova-se de filme para filme, criando diversas soluções inesperadas com relacão ao que já tinha sido aplicado. E nesse ponto, pela maneira com que concebe o detalhe, pelo arrôjo inventivo que imprime a certas sequências, poucos realizadores, hoje em dia, podem sofrer um paralelo com Bergman em sua dinâmica de criador - um Aldrich, um David Lean, um Visconti, um Elia Kazan ou um Charles Laughton (pela amostra de "The Night of the Hunter”).
Jornal do Brasil, 24/02/1957
Ingmar Bergman - IV
Ainda a propósito de "Noites de Circo", iremos agora nos reportar a outra das características do "regisseur'' sueco, vinculada à sua técnica de narrativa no cinema - a liberdade temporal. Tal processo invoca, de imediato, um dos recursos mais utilizados no ecran, que é o flash-back.
Em grande parte dos filmes o flash-back é perfeitamente substituível pelo monólogo ou pelo diálogo, cabendo a opção aos próprlos realizadores, que procuram, de acôrdo com o esquema traçado, verificar por qual dos meios poderiam melhor apurar a linguagem cinematográflca.
Entretanto, Bergman, ao se utilizar do flash-back, confere a este uma função saliente - essencial, nunca acidental - dentro da estruturação da obra. Não atua o flash-back apenas incidentalmente, a qualificar uma das ramificações acessórias da temática do filme; é uma parte consubstanciada visceralmente ao todo, contribuindo para condicionar o sentido do movimento de temas nas diversas áreas a serem delineadas pelos vetores da estrutura.
Mediante essa ruptura da lógica do tempo, amplia-se e, ao mesmo tempo fertiliza-se o campo de operação dos agentes simbológicos. Nisso ele segue em paralelo com a técnica do romance moderno, rompendo uma longa tradição da linguagem direta e talvez seja Faulkner, de "O Velho", "Santuário'' e “Uma Fábula", principalmente - com quem mais se assemelhe na conjugação dos métodos.
Voltando à mencionada sequência de "Noites de Circo", à primeira vista parece, embora esteticamente admirável comum, no que se refere ao modo como o flash-back foi inserido no começo da película e extremamente deslocada do ritmo e da própria história. Terminada, porém, a fita, desvenda-se a sua importancia vital. Colocada assim no princípio, anuncia o fim, antecipando os efeitos de repercussão dramática a serem desfechados pelo patos criado. O que ocorre durante o banho de Alma não será senão um reflexo do que acontecerá no fim, quando Albert, o dono do circo, provoca em pleno picadeiro o sedutor de sua companheira, a jovem amazona. Este último, saltando na arena, surrará zombateiramente o pobre ofendido, diante da assistência, que na cena do banho eram os soldados e os colegas do palhaço.
Essa sequência da briga, também excelente, reveste-se de brutal selvageria, atuando o diretor com invulgar maestria, desde o início, quando, após o primeiro murro desferido sôbre Albert, provoca um corte brusco para a cara de um palhaço assustado, com a boca exageradamente esparramada, de tinta. Servindo-se principalmente de recursos de pura imagem, consegue Bergman atingir o que grande parte dos estilistas dda violência do cinema americano alcançam mediante recursos enfaticamente sonoros.
Após o triste papel ridículo, tentará Albert o suicidio e, numa cena igualmente admirável, em que os olhos de um gato condicionam as variações da tensão do espectador, ele desistirá porque seu destino irremediavelmente traçado é o de rodar à toa, com sua carroça, de cidade em cidade, e mais que tudo, porque não é um personagem metafisicamente responsável nem consciente. Jamais poderá assumir uma atitude literária, pois não tem capacidade especulativa sobre o significado mítico das coisas - é quase um animal doméstico e, nessa oportunidade, o instinto de auto-preservação superará a noção do trágico.
Destarte, não seria funcionalmente adequado que a grandlosldade, a amplitude do drama, em estado bruto - latente, fosse lapidada mediante as reações do próprio protagonista. Daí ter sido antecipada a eclosão que transferida para aquele memorável flash-back inicial, atordoante tanto pela sua grandeza como pelo mistério, despertará o poder catártico do espectador para todo o resto do desenrolar da fita.
Já a linha de tensão dramática de Ana (Harriet Anderson), conduzida de maneira direta, com respeito à gradação de intensidade, atingirá seu ponto alto de saturação, decorridos dois têrços do tempo de projeção. É o momento em que se entrega ao cínico ator, um dos típicos e frequentes personagens satanicos de Bergman, com o tio da heroína, em Sommardeck, ou o sedutor do 2º episódio de “Enquanto as Mulheres Esperam”, breve aventura de Ana constitui uma das figuraças das tentativas de fuga do cotidiano, próprias da temática bergminiana. Aqui, todavia, a protagonista conhece sua pequenez, e só terá coragem de se arriscar quando o outro a livra dos escrúpulos oferecendo paga pelo amor e, consequentemente, dando enfase à sua mediocridade. E, noutra cena antológica, volta a "meteur en scène" a atingir uma auto-superação de energia visual, quando todos os elementos postos em cena funcionam com perfeita coesão: os espelhos, além do caráter simbólico, ampliado o campo visual; a jóia, balançando em primeiro plano, numa variação de enquadramento quase que compassada em tempo de ballet; finalmente, a exatidão dos diálogos, conferindo perfeita naturalidade à cena.
Sôbre essa legítima obra-prima que é "Noites de Circo", deve-se ainda chamar a atenção para a impecável fotografia de Sven Nykvist e Hilding Bladh, o acompanhamento musical de Karl Birger Blomdhau, conseguindo em muito intensificar o sublinhamento expressivo da fita, e para a interpretação de Ak Gromberg, que compõe um dos grandes tipos grotescos da sétima arte.
"Noites de Circo” foi considerada pela crítica uruguaia e argentina a melhor película exibida nos anos em que respectivamente foi lançada em ambos os paises, tendo no último superado, inclusive, "La Strada", de Fellini, julgamento que, sob diversos aspectos se reveste de plena razão.
Jornal do Brasil, 17/03/1957
Ingmar Bergman - V
A função do ''flash-back" assume um caráter mais complexo em "Kvinnors Vantan" (Enquanto as Mulheres Esperam). O argumento, em linhas gerais, se constitui na história de três mulheres que numa casa de campo, enquanto aguardam a chegada dos respectivos maridos, começam a narrar, cada uma por sua vez, os acontecimentos mais incisivos que lhes marcaram a grande aventura que, para Bergman, é a do amor, com suas variedades, ético e mórbido-sexuais.
Destarte, o filme se apresenta fragmentado em três partes distintas, cuja fusão temática das respectivas narrações haverá de se plasmar no momento em que aflore uma idéia do irrisório. Em virtude disso, o ritmo da película, por outro lado, não obedecerá a um sentido de crescendo em tensão - pelo contrário: a fita em vez de vir em direção do espectador, descerra-se à sua frente, tal qual se fôra um painel, cujo findar-se é a própria consequência de uma forçosa volta ao princípio, mediante a aventura que será encetada pelos dois jovens que fogem pelo mar.
As mulheres são as três grandes vencidas, e que agora a experiência ensinou a aceitar a cômoda isenção do alheiamento burguês. Falam dos acontecimentos passados com uma certa frieza e o sublinhamento nostálgico constitui mais uma falácia em esconder a fraqueza do que um anelo pelo que passou. Bergman circula com a câmera pelas suas cabeças, trazendo à tona as mais variadas concepções de composição com esses elementos e assim confere a impressão de um moto-perpétuo, provocado pela atenção de tôdas no clima evocativo da conversa.
Nesse caso, romper com uma estrutura linear da narrativa, já seria uma consequência lógica para esquematisação do cenário. Porém, o realizador foi mais longe e incluiu, no segundo episódio, outro "flashback", abrindo mais uma válvula de escape a fim de inserir as sequências melhores de "Enquanto as Mulheres Esperam". Tais sequências funcionam como contraponto à solidão de uma mulher grávida (Maj Britt Nilson) que rememora a féerie de encanto que precedeu a sua noite de amor. Primeiro, o cabaré, onde Bergman, retomando o mais íntimo contato com o expressionismo alemão, constrói uma passagem admirável, mediante o ambiente esfumaçado, a cara dos espectadores e as coristas no palco, tudo conferindo um caráter extremamente bizarro ao ambiente, graças também ao hábil jôgo de cortes.
A cena da sedução, que vem a seguir, é das mais características como demonstração da fecunda imaginação do cineasta sueco: a jovem no quarto escuro, ligeiros ruídos, um sôpro é a mão que brilha, como se flutuasse no espaço. Finalmente a voz do corredor, entoando uma canção bela, estranha.
Outro excelente momento de cinema, que ocorre durante êsse segundo episódio, é o detalhe do telefone, apresentado de tal forma que desperta na platéia a mesma ânsia da moça em ouvir o seu tilintar.
O primeiro episódio do filme é, entretanto, o melhor, pela sua impecável unidade plástico-ritmica e também pela extraordinária interpretação de Anita Bjork, cujo papel de casada insatisfeita ela vive ainda melhor que seu famoso desempenho em "Senhorita Júlia", de Alf Sjoberg. Do início ao fim, o tratamento visual é vazado dentro de um rigoroso manusear do enquadramento, conjugado, ao mesmo tempo, com o incessante perscrutar dos travellings curtos (interiores), em busca do mais satisfatório ponto estático de composição.
O terceiro episódio, amoralmente saboroso, passa-se quase que inteiramente dentro de um elevador que enguiça, quando levava um casal de meia idade. Lembrando um pouco os realizadores britânicos, tanto pelo assunto, como pelo "toque" imprimido, Bergman consegue num "tour de force" manter viva essa parte da fita, por todo o tempo.
Jornal do Brasil, 24/03/1957
Ingmar Bergman - VI (conclusão)
A fuga dos jovens, que se verifica no final de "Enquanto as Mulheres Esperam", não diferirá, em essência, da aventura de Monika. A suprema felicidade eclode e dura como um verão para, posteriormente, se dissipar. Daí, a razão da persistência do têrmo (sommar) no título de boa parte das realizações. Mesmo quando não seja a perversidade do mundo ou a própria falácia da tentativa, a fatalidade se encarregará de quebrar êsse período de ventura, como em “Juventude, Eterno Tesouro" (Sommarleck).
Nesse filme, aliás outra obra de grande envergadura, todas as constantes e variantes de sua temática se concentram num todo compacto, assumindo, destarte, invulgar importância entre as fitas de Bergman. Narra a história de uma bailarina que, na dúvida em imprimir novamente um significado à sua vida, através do amor, volta à casa de campo onde, há 14 anos, floresceu seu verão. O "flash-back" ocupa então quase todo o desenrolar do filme, com breves interrupções.
Ao escolher as cenas de ballet como contraponto dos dois tempos da história, tinha o diretor a imediata consciência das conotações simbológicas entre a dança e o verão. A dança, com a sua alegria, leve - absoluta - forçosamente efêmera, atua inclusive em paralelo com os aspectos mórbidos das introversões sentimentais de seus personagens. Essas passagens de ballet lembram também, sob alguns pontos de vista, as mesmas de "Limelight”, de Chaplin, embora, ao contrário desta última película, a intensidade da visualização em "Juventude'' possua um carater mais transfigurador, não incidindo apenas como qualificativo dos fluxos e refluxos emocionais do protagonista.
Todas as cenas dos jovens em seu pequeno paraíso correm num amplo diapasão, em que o sol, a natureza, a mocidade e a própria quietude das paragens são os principais elementos constitutivos. Bergman não perde ocasião para criar seus preciosos achados, como, por exemplo, o diálogo das mãos: os amantes deitados no divã, e a câmera focalizando apenas os braços levantados e as mãos em movimentos constantes, tocando-se, entrelaçando-se em belos e sugestivos efeitos.
Até a cena da morte de Henrik, permanece num clima alegórico, sob um ritmo algo moderado, calcado numa pertinaz contenção dos efeitos mais vibratórios. Porém, a partir do acidente, até o fim, o realizador entra com o máximo de sua capacidade criadora para uma elevada tensão da energia visual e nos brinda com sequências de extraordinária beleza, a começar justamente com a queda de protagonista, que ao tentar dar um mergulho, vai de encontro às pedras. A cena é impressionante. A câmera foca seu impacto na rocha, fazendo depois, Bergman, uma admirável fusão da cabeça pendida com a nuvem escura que paira no céu. A seguir, as sequências no hospital com a posterior saída de Mari, em que, noutro excelente recurso de fusão, os lençóis do quarto do paciente confundem-se com as paredes do corredor. E, no carro onde ela retorna, um peculiar jogo de claro-escuro ilumina seu rosto num compasso macabro.
Logo após, chegamos a um trecho decisivo no desfecho da película, onde os requintes formais de Bergman atingem ao paroxismo. Já estamos no tempo presente. Mari, findo o espetáculo, volta ao seu camarim e senta-se frente ao espelho. Surge então Copelius personagem estranho - ainda com as vestes com que aparece no palco. Entabulam diálogo: ele é incisivo - não adianta mais alimentar esperanças. A cena torna-se admirável: ela, o maquilagem em deconposição, a intensa iluminação interior, mediante as lâmpadas que circundam os espelhos; estes, ao mesmo tempo, ampliando o campo visual, desvendando novos espaços de composição num enquadramento apurado ao extremo. Transfigura-se o ambiente por completo e os personagens transcendem a estreita realidade sensível. Esta fantástica passagem dura até o momento em que chega o repórter que com ligeiras frases e breves acenos espanta o gênio mau, quem sabe, talvez o próprio Bergman. O amor reflorirá e, por isso, a última sequência focaliza novamente a dança.
"Juventude" é, de certo modo, a menos caótica das fitas de Bergman que abordam o mesmo tema. É verdade que não se pode assegurar uma totalidade absoluta a êsse visIumbre de esperança. Será o advento de outro verão ou a integral acomodação a uma vida burguesa?
O filme repousa quase que inteiramente na interpretação de Maj Britt Nilson. Não é a mais bem dotada das artistas suecas que atuam sob a batuta de Bergman. Em "Enquanto as Mulheres Esperam", suportou mal o confronto com Anita Bjork e Eva Dahlbeck. Mas para esta realização, além de seu tipo físico ser adequado ao papel, correspondeu com êxito às nuanças de interpretação.
O próprio diretor escreveu o argumento e a cenarização, esta juntamente com Herbert Grevenius. Para a fotografia e a música, contou com dois habituais colaboradores, Gunnar Fisher e Erik Nordgren.
''Sommarlek" foi produzida em 1950 e até hoje está mofando nas prateleiras de uma distribuidora, sem ter sido ainda exibida aqui no Rio.
É anterior a· "Monika e o Desejo", "Enquanto as Mulheres Esperam" e "Noites de Circo". Após esta última, Bergman enveredou para o gênero da comédia satírica que, segundo ele, é o que mais se ajusta ao seu temperamento. Realizou então "Uma Lição de Amor" e "O Sonho das Mulheres", das quais não possuímos referências de ordem crítica, e “Sorrisos de Uma Noite de Verão”, muito bem recebida por toda a crítica européia. Parecia, portanto, estar com razão e esperamos que nos seja dado assistir esta sua incursão num terreno em que existem na verdade muitas afinidades com certos aspectos de seu temperamento.
Jornal do Brasil, 31/03/1957
Produção - Svenskfilmindustri; Direção e cenário- Ingmar Bergman
Fotografia - Martin Bodin; Música - Dag Wiren
Argumento e diálogos – Ingmar Bergman; Cenografia - P. A. Lundgren
Elenco - Gunnar Bjornstrand , Eva Dahlbeck, Ake Gromberg, Harriett Anderson, Yvonne Lombard, Birgit Reimers, Olof Winerstrand, Renée Bjorling, John Elfstrom, Dagmar Ebbesser, Sigge Furst.
Após ter concluído essa fascinante película, verdadeira obra-prima, que é "Noites de Circo" (Gyrcklanas Afton), Ingmar Bergman surpreendeu a todos, declarando que passaria a se dedicar à comédia satírica, que considerava o gênero ao qual melhor se adaptaria, na realidade, o seu temperamento - o novo objetivo, enfim.
O inesperado, quanto a isso, provém não de que se pudesse conjeturar que as suas possibilidades de sucesso na comédia fôssem menores, ou mesmo, duvidosas. Pelo contrário, não apenas através de certa maleabilidade de seu temperamento, por demais evidenciada, mas, por razão de uma série de elementos formais integrantes da técnica em construir a linguagem cinematográfica e adequados ao novo estilo, dos quais é inegável a sua extraordinária capacidade de se utilizar com privilegiado domínio, facultava-se a previsão da perfeita viabilidade do fato. A noção exata, de que é possuidor, de como jogar com o detalhe, as variadas nuances de interpretação que obtém dos atores, o cinismo frio, o superior desprêzo (superior, dizemos, em oposição à ánsia mais direta de agressão, manifesta pela grande parte dos temperamentos latinos, tanto no que se refere ao desejo de ridicularizar, como ao de chocar) denotado em relação às instituições burguesas - tudo isso constitui um fator positivo para o manejo da comédia satírica com credenciais para êxito.
O que viria, portanto, surpreender era o repentino abandono de uma saga por êle mesmo criada: a do mundo caótico do indivíduo, atormentado pelo efêmero, pelo irrisório das coisas que o cercam, ocasionando, por conseguinte, a tentativa de fuga, quase sempre através do amor, êste com suas implicações mórbido-sexuais e metafísicas. E, a metafísica, assolando, inclemente, os seus personagens, quando, mesmo intuitivamente, lutam contra o destino, é a fôrça motora que dinamiza o impacto dramático.
"Noites de Circo" foi justamente o grau máximo a que a tensão se dilatou, a figuração do paroxismo da saga; depois, o autor talvez percebesse então ter-se:esgotado no caminho do trágico, isto é, sentiu a impotência de ir mais adiante em seu poder de expressão nesse caminho.
O pathos bergminiano já apresenta, entretanto, um caráter antológico e ficará provavelmente na história da sétima-arte. Corresponde para o próprio cineasta a uma escala forçada no evoluir de sua formação como pensador - que permite que transpareça em suas obras um reflexo de sua automaturação. Tais considerações se apropriam mais ainda, em especial, ao caso de Ingmar Bergman, se levarmos em conta que, de suas 16 realizações até "Sorrisos de Uma Noite de Verão", foi o cenarista de 13 e, dessas, 7 possuíam o argumento original de sua própria autoria.
Assim, agora que a aventura ética fôra desenvolvida até às extremas consequências, cabia ,a incursão por novos rumos - o fabulista, como pensador, torna-se mais experiente e seguro de si; e pode troçar.
A certeza de uma transitoriedade permanente de todos .os valores obrigará a uma atitude despojada de intenções falsamente construtivas. Para o indivíduo responsável, a solução definitiva é tão irreal ou absurda como o próprio esquema da aventura que a invoca. Esta, não passa de uma irrisória plaisanterie e será ridícula e falaz além dela mesma. Daí, o artista consciente estará munido de bastante senso de rigor para consigo e se despoja, não coloca em cheque a problemática de sua vivência particular dentro do que vai realizar. A sua liberdade não será jamais fazer o que queira, mas sim, saber o que faz - uma· vontade firmemente dirigida e concentrada na criação do objeto. E tôda a sua ontologia se espraiará (aqui falamos no homem de cinema) entre os seus personagens como uma estratificação ou uma busca, mediante os vários métodos dos quais se serviu, intuitivamente ou não, para o estudo do comportamento. Trata-se da nocão exata de uma liberdade essencial – “freedom", em contraposição a "liberty"(1).
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Quando analisamos a obra de Bergman e o seu papel saliente como uma contribuição de extraordinária e inobjetável importância para o cinema moderno, pensamos logo em Malarmé. Assim como o autor de "Un Coup des Dés", nenhum cineasta é mais consciente do que êle quanto ao objetivo de seu trabalho. Ninguém se afasta tanto da obra para melhor servi-la. A obra de arte não é a cristalização de um subjetivismo latente, nem uma expressão da realidade exterior ou interior - porém, desde que consumada, uma realidade que independe por si - autônoma. Da mesma forma que no grande poeta, nele constatamos o apuro artesanal elevado à máxima potência, e também a inventiva constante e o caráter encantatório de sua linguagem, com os recursos de pontuação cinematográfica (corte, fusão, fade-in, fade-out, etc.) utilizados sempre com um cunho de originalidade. Malgrado a incompreensão de muitos, um impacto revitalizante, um discernir de novas perspectivas para alguns. Os seus filmes demandam que sejam assistidos mais de uma vez, não somente para que se.possa captar tôdas as pulsações radiais e acessórias de sua estruturação temático-formal, como também para que se perceba todos os achados preciosos que encerram.
Mesmo a idéia do "jôgo" surge também em Bergman com uma recorrência afluente. Diz Eric Rohmer: 'Cette phrase
- Dieu n'existe pas - il la place à plusieurs reprises dans la bouche de ses personages. Le mal dont nous souffrons est métaphysique. Chacun de nos regards jetés sur le monde nous oblige à remonter jusqu'à cette évidence dont rien, pas même le jeu, ne peut naus distraire" (2).
Finalmente, outra característica que apresenta, a reforçar a semelhança com Mallarmé, é a de não ser um épico. Não se prende em demasia a exteriores e o sentido de tal expansão nunca aflora à periferiá de suas obras. Ao contrário de Eisenstein, os efeitos de montagem são geralmente superados ou dosados pela "qualidade" do "shot''. Raramente vêmo-lo se utilizar da eclosão mediante o movimento de massas (3). E, justamente, em virtude dêsse maior consumar de sua energia visual nas cenas de interiores, da transfiguração pelo barroco e do consequente detonar do elemento simbólico, através dos diversos fatôres de detalhe pré-ajustados a uma concepção estática dos elementos básicos de composição - sob o incessante perscrutar da cúmera – que se torna ainda mais viável a sua adaptação à comédia satírica, sofisticada.
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A caixa de música com os três bonecos que dançam; um raio cruza a tela - corte brusco, e o "close-up" da jovem, dizendo: "ridículo". É assim que começa, e de maneira admirável, "Uma Lição de Amor", verdadeira obra-prima no gênero. Desde o princípio nota-se claramente o habitual rigor artesanal do "metteur en scène" sueco, traduzido no esmerado conceber do enquadramento, o uso inteligente e muitas vêzes inventivo dos recursos da linguagem cinematográfica e também no perfeito desembaraço dos intérpretes em cena. Este último aspecto vem corroborar a impressão que Bergman despertava de ser dono de um preciso contrôle sôbre o jôgo dos atores. Todos os quatros personagens principais foram vividos por elementos que já tinham mais de uma vez figurado como protagonistas de seus filmes dramáticos: Eva Dahlbeck, Gunnar Bjornstrand, Ake Gromberg e Harriett Andersson. E, nessa ocasião atuam, embora ainda mais empenhados, em razão da maior importância do caráter interpretativo dentro de realizações de tal teor, com a mesma eficiência demonstrada nas fitas anteriores. Pelo que conhecemos do ciclo bergminiano, apenas Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand já tiveram oportunidade de se aplicar na criação de papéis semelhantes. Referimo-nos ao terceiro episódio de "Enquanto as Mulheres Esperam" (Kvinnors Vantan), quando o diretor, num invejável "tour de force", manteve viva a passagem de quase meia-hora de duração na história do casal que ficara prêso dentro do elevador enguiçado. Aqui podemos achar o germe do assunto que voltará a ser desenvolvido mais tarde. Justamente a sátira a respeito da gravidade ou do irremediável do que se denomina de infidelidade conjugal no mundo burguês tem o seu primeiro tratamento resumido em "Kvinnors Vantan" e agora, posteriormente, virá o tema a ser fartamente esmiuçado em "Uma Lição de Amor".
Um ginecologista e sua espôsa, após longo período matrimonial, resolvem se separar. Ele, malgrado não funcionasse a contento como verdadeiro marido, teve suas amantes quase que inadvertidamente. Ela, decidida por seu lado a não permanecer em estéril e absurdo conformismo, volta às relações com um ex-noivo. O esposo se arrepende e fará o possível para reencetar o casamento...
A extraordintíria lucidez, exatidão e vivacidade dos diálogos, de autoria do· próprio Bergman, constituem um dos pontos marcantes que em muito auxiliaram ao êxito artístico do espetáculo. Saborosamente amoral, com tiradas de fino gôsto, o diálogo sustenta sozinho algumas sequências apoiadas inteiramente nele, como os trechos da viagem no trem. Para tanto, contribui a perfeita adequação expressivo-fisionômica de Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand, principais responsáveis por essa parte.
Alguns recursos e características típicas do seu estilo foram ao mesmo tempo transportados para a comédia. O "flash-back", por exemplo, que já apontáramos como detentor de função orgânica no processo de estruturação formal de suas películas, ressurge com as mesmas propriedades conferidas em filmes como. "Enquanto as Mulheres Esperam", "Juventude, Eterno Tesouro" ou "Noites de Circo". Faculta novamente uma liberdade temporal para que se desenrole a narrativa, quando, inclusive, em determinado momento, o diretor ilude a assistência fazendo que esta julgue, através de um corte rápido de uma cena para outra, que a ação se encaminha para o futuro, quando ocorria exatamente o opôsto, ao se saber posteriormente que a mulher que viajava no trem era, na realidade, a espôsa do protagonista – em suma, êste não estava empenhado numa conquista amorosa (embora, por duas vêzes ganhe uma aposta feita com o engraçado e aturdido passageiro que os acompanha na cabina), e sim, numa reconciliação.
A constante utilização do "flash-back" permitiu que se imprimisse uma permanente fluidez ao transcorrer do entrecho, mantendo aceso por todo o tempo o interesse da platéia para as cenas subsequentes. E, é a propósito disso, que se pode ainda ressaltar que, ao contrário das outras películas, a extrema unidade de "Uma Lição de Amor" salta de imediato aos olhos. Deve-se também notar que quase todos os momentos de transição de tempo se consumam mediante excelentes recursos de fusão, existindo, no entanto, exceções qual o magnífico achado da súbita freiada do automóvel.
Porém Bergman não permanece durante a totalidade da fita prêso apenas ao "'humour" vinculado a um "mood" cínico-satírico. Por duas vêzes vai ao "non-sense", tateia o pastelão, em sequências admiravelmente bem construídas e dotadas de elogiável sobriedade no desencadear dos efeitos. Primeiro é a passagem da "homérica" festa de casamento, em que o papel de Ake Gromberg, que se tornará, finda a cena, ex-futuro noivo, assume faceta em muito parecida com o desempenho por Victor Mc-Laglen, em "The Quiet Man", de Ford. E aqui eclode, outrossim, uma briga quase-homérica, só que, desta vez, entre noivo e noiva, a circularem em tôrno do saiote do padre completamente atarantado que nada sabe o que fazer, assistindo mais aterrado e mais calmo do que os convivas ao desenrolar da querela.
Na outra sequência, perto do desfecho, vai o trio a um esfusiante cabaré, onde o marido, disposto a tudo para retomar a espôsa do amante, porta-se qual um turbulento apache, assumindo o primeiro plano no exótico clima de folia que lá impera até a chegada da polícia. O ambiente é retratado mercê a utilização de precisos recursos plásticos, com um esfumaçado claro-escuro predominando na composição dos corpos que se movem incessantemente no ritmo do "jazz".
O acompanhamento musical e a fotografia não representam função apenas adequada linearmente, no sentido de uma plena coesão do espetáculo. O critério concebido para sua integração é altamente inventivo, singular às vêzes, e, em certos trechos, fornecem inusitada fôrça e palpitação às sequências.
Dag Wiren sublinhou o correr do celulóide baseado sempre numa quantidade discreta de instrumentos, predominando os de sôpro ou corda. Utilizou-se de efeitos correlatas à música moderna, mas com uma estrita funcionalidade no que tange à aplicação dos recursos de distorção. Sua originalidade e precisão calcaram de modo magnífico a cena final, principalmente no cadenciar dos passos, quando cupido aparece no corredor e cerra a porta da câmara, onde acaba de se restaurar o leito nupcial. Ateve-se o acompanhamento musical ao segundo plano, quando o ritmo visual dispensava perfeitamente o refôrço sonoro, como a cena da cozinha no dia de aniversário do avô, em que seis personagens se locomovem quase que em tempo de ballet.
Martin Bodin pela primeira vez se encarrega da fotografia de uma realização de Bergman. Este, que sempre procurou criar uma equipe de trabalho, servia-se inicialmente de Goram Strindberg, tido em elevado conceito e que há pouco se destacou nos exteriores de "A última Felicidade", de Arne Mattsson. Após, contou com a colaboração quase permanente, do excepcional Gunar Fisher. Em “Uma Lição de Amor", experimenta Martin Bodin, obtendo êxito além de qualquer expectativa. Em todas as cenas de interiores, o enquadramento e iluminação estão utilizados com mestria e, a tôda solução mais inventiva propiciada pelo regisseur, conferiu o mais adequado tratamento plástico, o mais rigoroso cunho tonal. Nas cenas filmadas em exteriores sua capacidade se agiganta, revelando, em especial, uma nítida preferência pelo "long-shot", quando sua noção de ângulo de visão em função de valorizar a passagem denota amplitude nunca antes recordada.
A sequência do passeio no bosque é inobjetavelmente antológica, na hora em que o diretor, o fotógrafo e o músico se reunem para proporcionar autêntico "show" de cinema puro. O casal, solitário, passeia fumando, os dois, o mesmo cigarro. A tomada se realiza de longe, e a fumaça, quando entra na área de luz, existente devido aos poucos raios que atravessam a espessura das árvores, cria belíssimos efeitos, em contraponto ao movimento irregular do homem e da mulher que perambulam. Em determinados instantes, a câmera focaliza o tôpo das árvores, de baixo para cima, e imediatamente faz lembrar "Rashomon" pela luminosidade intensa, aparentemente lá no alto retida, que consegue captar. Quando ambos se deitam na grama, a câmera se aproxima para o grande primeiro plano, e então o "metteur en scène" joga com as cabeças de maneira excepcional, usando as mais ousadas disposições para efeito de composição.
Como sempre também, o poder criativo de Bergman manifesta-se em pequenos recursos e, aqui, repetidamente. O mais frisante e que se figura em verdadeira amostra de sua inteligência, do seu virtuosismo, ocorre no trecho em que a espôsa sai do consultório de seu marido e se prepara para ir ao hotel em quedescobriu que provavelmente êle irá ter com a sua amante. A fusão se processa assim: o médico fica só, pensativo e, de repente, num rompante de irritabilidade vira a lâmpada de sua mesa em direção da platéia. A violência da luz como que queima ou apaga o próprio filme e, quando o espectador se refaz, enxerga, exatamente dentro do mesmo círculo ocupado pela lâmpada, o emblema do hotel no primeiro plano e para onde agora se encaminha, mais ao longe, a espôsa.
Entre os intérpretes, Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand estão praticamente perfeitos no casal. Harriett Andersson é a filha que sofre com o comportamento dos pais, em aparente descaso, absorvidos em sua questão amorosa.
Ela reage calma, quase meiga e, ao mesmo tempo, lastima ser mulher, porque talvez assim perderá sua condição de criança mais cedo. É a mágoa estampada no momento em que narra a mudança de uma de suas amigas que já passou a se pintar. Seu papel trai aparentemente uma afluência reflexa do tema do filme: a ânsia consciente de inocência, já que ser mais velho é fingir apenas que não se está brincando.
Ake Gromberg não tem a mesma chance que em "Noites de Circo", porém revela versatilidade, pois talhou as reações de seu tipo (outro grotesco) de modo saboroso.
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"Uma Licão de Amor" se constitui num filme dê imensa importância, uma das melhores comédias realizadas para o cinema. Ultimamente só encontra paralelo com "Les Vacances de M. Hulot", de Jacques Tati, embora esta se consista numa incursão em outros aspectos do gênero. A fita de Tati é um achado por si e todo o seu dinamismo visual pré-existe, isto é, já vem incorporado à sua essência. A película sueca, ao contrário, exige um acurado trabalho de adaptação, uma concepção de como estruturar seu "script" nos mínimos detalhes para evitar o perigo de cair no teatral, na monotonia, no vulgar e, até mesmo, no mau gôsto. Tal não deve incidir num critério comparativo para julgamento ou aferição de valores das duas obras – interessa o resultado final - porém contribui para mais uma reafirmação do fabuloso talento e capacidade de Ingmar Bergman. Revelando, além de tudo, versatilidade, passou para a comédia, superando logo de início tudo que se levou a efeito até então em determinada área. Conta, entretanto, com ampla liberdade de ação num país onde felizmente o clero, um comitê de atividades antiaméricanas ou o partido comunista parecem não exercer influência, pelo menos quanto ao cinema.
Posteriormente a "Uma Lição de Amor", foram produzidas mais duas comédias suas: "O Sonho das Mulheres" e "Sorrisos de Uma Noite de Verão". Se, da primeira não possuímos referência, a segunda, mais ambiciosa, foi contudo motivo de grandes aplausos da crítica européia. Sua derradeira realização, "O Segrêdo do Sêlo", apresentada em Cannes no corrente ano e, da mesma forma que "Cabiria”, de Fellini, sob manifestações de estranheza do público preteridas pelo estagnatário Wyler, parece fugir ao assunto.
(1) Herbert Read, em "Anarchy and Order", pag. 163, chama a atenção para o fato de a língua inglêsa possuir duas palavras para cada uma das características do que conhecemos por liberdade. Os outros idiomas mais conhecidos não apresentam essa peculiaridade. Assim, segundo ele, para o inglês "liberty é concreta: existencial; freedom é abstrata: essencial" .
(2) "Esta frase - Deus não existe - ele coloca por diversas vêzes na bôca de seus personagens. O mal que sofremos é metafísico. Cada um dos nossos olhares lançados sôbre o mundo, nos obriga a remontar até essa evidência, da qual nada, nem mesmo o jôgo, pode nos fazer esquecer." Eric Bohmer - Cahiers du Cinema nº 61, julllo de 1956 - pag. 8.
(3) Vide artigo publicado neste suplemento “Ingmar Bergman III” e, 8/3/56
findo o primeiro semestre do corrente ano, apresentamos uma resenha resumida das realizações de maior interêsse, lançadas nos cinemas desta capital. na relação abaixo disposta, a ordem em que colocamos as películas consideradas merecedoras de destaque não é qualitativa, e sim, cronológica. quando terminar 1957, então procuraremos organizar uma relação, de acôrdo com um critério de classificacão em ordem mais ou menos decrescente, conforme os méritos artísticos dos filmes a serem, para tal, discriminados. deve-se ressaltar que, apenas com a contribuição parcial dêsses seis primeiros meses, o presente ano já oferece perspectivas bem superiores a 1956. enquanto neste último, não assistimos nenhuma fita que julgássemos se revestir de valor excepcional, já, em 1957, pelo menos até agora, "la strada", de federico fellini, e "les vacances de m. hulot", de jacques tati, preenchem condições suficientes, a nosso ver, para que se lhes confira. um cunho antológico. isso, sem falar também no admirável "uma lição de amor", de ingmar bergman, exibido em sessão especial no teoatro da maison de france, e que, segundo consta, estreará antes do mês de outubro. também a excelente produção japonêsa, "a bela e os ladrões", de keigo kimura, apresentada num festival-fantasma (porque sem a mínima publicidade) da tabajara filme, no cinema "eskye", da tijuca, oçupará posição de evidente realce, caso venha a público normalmente até o fim de dezembro.
rastros de ódio (the searchers) - john ford, de volta ao seu grande habitat, o western, gênero por excelência do cinema americano, constrói a sua melhor realização nesses últimos anos. na realidade, posteriormente a "the quiet man", nem "a paixão de uma vida", nem "o sol brilha na imensidade", nem "mister roberts" - embora produções de certo nível - conseguiram acrescentar, no sentido artístico, alguma coisa a mais na extensa e invejável filmografia do mais importante edificador da mitologia do filme de "far west". agora, com "the searchers", provando ser dono ainda, apesar da idade avançada, de certa energia e bastante maturidade, leva a efeito uma película de elevada categoria, fator denotável desde a primeira cena, com o admirável enquadramento da tomada, por detrás da porta da casa, da chegada de john wayne, habitual protagonista de seus filmes. Louvável e funcional a fotografia de winston hoch e, cenas como a da chacina da indefesa família pelos índios - sugerida por elipse, a partir do grandioso close-up do cacique, ou do aparecimento do extravagante don emílio gabriel fernandez y figueroa e seu bando demonstram a perfeita assimilação do diretor de uma série de novos recursos, tanto no que se refere à parte técnica, como no tratamento de determinadas passagens, onde a dissonância propiciada pelo toque irônico-bizarro constitui atualmente um método de revitalização da "partitura" para o ritmo interior nas películas de ação.
o quinteto da morte (the lady killers) – alexander mackendrick reafirma, com essa comédia, a indiscutível hegemonia da "ealing tradiction" no gênero. "lady killers" coloca-se na mesma altura de "o mistério da tôrre", de charles crichton, "as oito vítimas", de robert hamer, ou de "o homem do terno branco", também do próprio mackendrick – no momento, talvez, o mais empenhado entre os realizadores dos estúdios de sir michael balcon. alec guiness, protagonista dos outros filmes acima mencionados, proporciona, mais uma vez, uma performance de grande classe; mas, quem rouba o espetáculo é a velhinha katie johnson, em fabulosa interpretação, no “supporting-cast” figuram atores do porte de cecil parker e herbert lom, e o diretor soube imprimir um ritmo precisamente lento a fim de esmiuçar todas as possibilidades de um argumento que, por si só, já se constitui em valioso achado.
as férias de m. hulot (les vacances de m. de hulot) - jacques tati lança a comédia mais importante dos últimos anos- ''les vacances de m. hulot" - após a lnteressante experiência com "jour de fête". revelando-se como mais um dos autênticos inventorores do cinema atual, ao lado de um bergman, de um aldrich, apresenta um filme com imagens dosadas de extraordinário dinamismo interior. prescinde quase que completamente do diálogo, e, quando este surge, jamais assume o primeiro plano no que se desenrola em cena. cria, por outro lado, um singular ritmo burlesco e utillza-se dos ruídos de modo inusatado, revolucionário, mesmo, em alguns instantes, aproveitando o máximo de suas possibilidades físicas como agente imediato de efeito sensorial sobre a platéia. sequências como a de homérica viagem de hulot, em seu bizarro veículo, as passagens que se desenvolvem na praia, ou a do entêrro são, além de originais, antológicas. jacques tati, como intérprete, compõe um tipo inesquecível, malgrado não seja rico em nuances de expressão fisionômica.
rififi (du rififi chez les hommes) - jules dassin, o diretor de "cidade nua" e "mercado de ladrões", leva para a frança o filme de gangsters com êxito. filia-se a película a um ciclo que possui, até o momento, como centro de convergência, o imortal "the asphalt jungle", de john huston. dassin houve-se com mestria na direção, principalmente na longa sequência, com mais de meia-hora de duração, do assalto à joalheria. agiganta-se a fita nos trechos finais e, em especial, na derradeira cena, quando um automóvel à tôda velocidade leva consigo o gangster gravemente ferido e o menino fantasiado para "brincar de mocinho", a agitar constantemente o seu revólver de brinquedo.
na estrada da vida (la strada) - federico fellini cria uma verdadeira obra-prima com "la strada", uma fita que, dentro do terreno ocupado pelo moderno cinema italiano, apenas suporta um paralelo com "ladrões de bicicleta", de sica-zavattlni. giulieta masina, sua espôsa, estréia com estupenda interpretação. sua gelsomina vai para a galeria dos tipos imortais na história da sétima-arte. "na estrada da vida" focaliza a luta entrê o bem e o mal puros, porque brotam diretamente da singeleza ou da estupidez. dentro dêsse esquema, gelsomimi e zampanô são dois personagens depurados de qualquer implicação metafísica, agem de acôrdo com o instinto que a natureza a cada um proporcionou. vivem juntos em virtude de a coexistência entre os dois polos opostos ser praticamente fatal – um processo de mútua alimentação. a cena final em que zampanô consegue chorar pela primeira vez é das mais pungentes já apresentadas. anthony quinn também cria um grande tipo e richard basehart, como o louco, está excepcional. bom o acompanhamento musical de nino rota e, otello martelli, na fotografia, volta a brilhar intensamente, como já o fizera antes, principalmente em "roma às 11 horas".
o grande golpe (the killing) - stanley kubrick é a grande revelação do cinema americano que tivemos este ano. mediante uma modesta produção b, realiza uma película que o coloca logo no primeiro plano entre os cineastas que despertam maior interêsse na atualidade. The "killing" é cinema como nicholas ray ainda não o fêz superior ao dassin, de "riflfi", nas pegadas do melhor huston, de "the asphalt jungle”, kubrick denota parentesco inclusive com ingmar bergman, através da utilização de caráter orgânico que faz do "flash-back" - elemento vital na estruturação rítmica do filme, assim como pelo insólito que marca certas sequências, como, por exemplo, a espôsa alvejada pelo marido, de pé ao lado da gaiola do papagaio, o trecho, em que sterling hayden assalta a caixa-forte do hipódromo ou o encontro da esposa com o amante. Colaboram para o sucesso total da produção, a extraordinária fotografia de lucien ballard e o original e preciso acompanhamento musical de gerald fried.
folhas mortas (autumn leaves) - aldrich em espetacular "tour de force" consegue promover um argumento fadado ao insucesso. Até joan crawford, que atravessava período de, aparentemente irréparável, decadência, brinda-nos com uma performanoe de mérito. “autumn leaves", embora não seja das melhores realizações que dirigiu, serve para evidenciar a capacidade daquele que, por ora, é o cineasta de hollywood do qual mais se pode esperar. o "flash-back" inicial, quando a protagonista rememora durante o concêrto a sua mocidade desperdiçada ao lado de um pai enfêrmo, se processa de modo admirável, tanto no que diz respeito à fusão, como no uso de detalhe.
o homem que sabia demais (the man who knew too much) - hitchcock leva a cabo uma pequena obra-mestra do divertissment. uma história plena em quiproquóos, clima de expectativa, mistério - enfim, os ingredientes habituais para fertilizarem o campo de ação a fim de que eclodam as sensações do thriller e se crie a desejada atmosfera de suspense. cenas como a do assassinato de daniel gélin, a luta e perseguição na sala dos bichos empalhados ou a da batida dos pratos que precederá imediatamente a tentativa de crime no teatro, confirmam a impressão de que hitchcock se encontra em perfeita forma. robert burks valoriza a película com a sua fotografia, dando um caráter às vezes, diretamente simbólico ou insólito ao uso da côr. o filme somente cai um pouco no final, no trecho da recepção em casa do embaixador, em que james stewart procura o filho, enquanto doris day canta o intolerável "que será".
a trágica farsa (the harder they fali) – mark robson, realizador muito irregular, acerta em cheio com esta película que, por outro lado, já se reveste de um caráter histórico, em virtude de ser a derradeira aparição de humphrey bogart, o grande ator recentemente falecido. a narrativa se reporta à descrição do processo de rapinagem que pauta as atividades dos empresários e de todos que procuram negociar com êsse verdadeiro eldorado do esporte que é o boxe. o diretor mantém sempre um clima de elevada tensão e a fita apresenta como lacuna contundente apenas o método de fabulação do tema - muito simplório, diríamos - demasiado direto em sua intenção, isto é, acusando mais do que sugerindo. o diretor fornece autêntico show de eficiência no manejo da montagem nas sequências de luta, conferindo às mesmas violências inaudita. A fotografia do grande burnet guffy visivelmente prejudicada pela cinegráfica são luiz e pelos exibidores que espicharam as imagens até uma dimensão de 18 cruzeiros.
o caso maurizius (l'affaire maurizius) – julien duvivier continua brilhando em grande estilo e confere ao famoso romance de jakob wasserman uma eficiente adaptação para o écran. o filme se vaza através de perfeita unidade de seu ritmo dramático. cenas dotadas de vigor mantêm aceso todo o incisivo libelo de ordem social que o livro criou. a sequência final, com o suicídio de maurizius e logo após o trem entrando no túnel para sair a palavra fim, se constitui num feliz achado. all star cast compõe o elenco: daniel gélin, madeleine robinson, eleonora rossi drago, charles vanel, anton wallbrook - este último, naturalmente, sobreissaindo.
o balão vermelho (le ballon rouge) – albert lamourisse é o realizador deste curta-metragem premiado em festival. Tocante singeleza, a inocência ridiculariza e teme o mundo cruel dos adultos. O vermelho vivo do balão, um constante contraste ao décor de cunho tonal formado somente por cores mortas. a cena em que o menino, no fim, sobe com os balões seria fruto de lugar comum, caso o metteur en scène não imprimisse excepcional fôrça às imagens; é, por exemplo, o close-up do pequeno protagonista, antes de ser levado para cima, cuja alegria estampada na face, se configura numa perfeita irradiação do que denominaríamos pureza.
morte sem glória (attack) - aldrich, outra vez, com a sua produção mais ambiciosa, com exceção de "the big knife". Tratamento rigorosamente cinematográfico às imagens, isoladamente, graças também à contribuição do camera-man joseph biroc. Falta, entretanto, maior amplitude à película, isto é, o impacto descarregado se evola com a solução final - nítida oposição a "um passo da eternidade", de fred zinneman que, pelo contrário, desperta muito mais o nosso poder catártico. Inferior a "a grande chantagem" e "kiss me deadly", ligeiramente acima de "vera cruz", todas do mesmo realizador, "attack", no entanto, oferece bons momentos de cinema, embora não seja a fita corajosa que supúnhamos: se um capitão covarde comanda uma companhia, logo surgirá um coronel venla, que é seu cumplice e lhe mantém nessa posição por interesses políticos. Está salvaguardado o exército como instituição e a guerra não é absurda, pois a companhia quer lutar, apenas o capitão não deixa fazê-lo direito. alguns trechos lembram muito o milestone de "sem novidade no front" e "um passeio ao sol", do qual, aliás, aldrich já foi assistente.
grilhões do passado (confidential report) - orson welles retorna, como sempre munido de grandes intenções. malgrado se denote um caráter algo desconjuntado ao imenso aparato de seu esteticismo, leva a efeito uma realização fascinante sob diversos aspectos. a passagem inicial do assassinato nas docas é antológico é o baile em que se revive, através do barroco e do expressionismo, o goya das máscaras. o ritmo exterior, entretanto, começa a entrar em desconexão com o ritmo psicológico desenvolvido para o espectador e, em consequência, algumas cenas tornam-se sôltas do contexto incluso numa área essencial de aceitação intuitiva. welles nos obriga então a sair da fita para raciocinar como êle, isto é, a fim de procurarmos a justificação disto ou aquilo e, nessa altura, é o que se perde. a história, simples. sem invocar problemática de alcance, não encontrou a valoriilação formal mais adequada que conferisse ao filme a amplitude desejada. de qualquer forma, porém, é um espetáeulo, como já o dissemos, fascinante.
blefando a morte (the man from del rio) - harry horner realiza o seu melhor filme, na sua primeira incursão ao western. uma obra de intenções moderadas e que se resolve inteiramente em si mesma, quer dizer, os objetivos se cumprem com frieza e sobriedade. Anthony quinn compõe um outro tipo muito-bem marcado: david robles, o ingênuo e tímido matador, que se torna xerife da pequena cidade, nesse ponto, surge o inevitável parentesco com "high noon", embora a narrativa ofereça solução das mais originais. todavia, o dono do espetáculo é stanley cortez que, mesmo sem a oportunidade propiciada em "the night of the hunter" (mensageiro do diabo), fornece ao aspecto essencialmente visual da fita um caráter marcante.
o último ato (die letste akt) - g. w. pabst, já consagrado como realizador clássico do cinema, lança um filme de grandes proporções mediante a narração dos últimos dias de hitler. um impacto dramático de alta significação histórica - um libelo contra a guerra, não sendo, aliás, o primeiro de pabst. o ambiente sufocante que consegue criar domina todo o desenrolar da fita, cujo patético lembra, outrossim, o da tragédia grega. Extrema unidade, um crescendo admirável no quarto final - cenas impressionantes, qual a da completa folia e desespêro no refeitório, a enchente ou a da visita do fuherer aos feridos. albin skoda está excelente na figura de hitler, e oskar werner repete a eficiente performance, em papel também semelhante, que teve no extraordinário "decision before dawn" (decisão antes do amanhecer), de anatole litvak.
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outras realizações menos importantes, porém de interesse, em virtude de determinados aspectos positivos que ofereceram: "o planeta proibido", de fred m. wilcox - "a última carroça", de delmer daves - "o homem do braço de ouro", de otto preminger - "a rua da esperança", de carol reed" - "sêde de viver", de vincente minelli - "entre o céu e o inferno", de richard fleisher - "um ianque na escócia", de alexander mackendriek - "a loteria do amor", de charles crichton - "suplício de uma alma", de fritz lang - "quem foi jesse james?” de nicholas ray.
Jornal do Brasil, 07/07/1957
Muito mais que a de Nicholas Ray, que juntamente com êle forma o duo de cineastas americanos atualmente mais discutidos e estudados, avulta, no momento, a importância de Robert Aldrich.
Com relação ao primeiro se verifica uma injustificada euforia de exaltações ao seu talento após o lançamento de suas derradeiras produções, principalmente da parte de alguns elementos da nóvel equipe de críticos de "Cahiers du Cinema" (François Truffaut, Jean Domarchi, Jacques Rivette - até mesmo um Eric Rohmer bem lúcido no que. se refere a vários assuntos, não escapou ao contágio), sendo que, um dêles já o comparou com Bach – caracteristica típica do que poderíamos denominar de processo post-surrealístico para equiparação de valores. A carreira de NichoIas Ray até hoje tem sido desigual e mesmo "Juventude Transviada", a sua realização decisivamente marcante, não deixa de apresentar alguns fatôres negativos sob o ponto de vista da tabulação temática, isto é, dentro de seu critério de elaboração através do complexo argumento-cenário. E, muito menos concebível ainda são os esforços para conferir méritos a "Sangue Ardente", um filme absolutamente indefensável.
Aldrich, pelo contrário, a partir de "Bronco Apache" até êsse admirável "Attack" vem palmilhando uma trilha que o coloca, por ora, como o realizador mais inventivo de Hollywood e, ao mesmo tempo, como um dos mais importantes, na linha de frente - logo acima ou abaixo, conforme as circunstâncias delimitantes de um critério de comparação – com Mankiewicz, Huston, Kazan, Stevens, Zinneman, Ford e Billy Wilder.
Emhora não oferecendo ainda as nítidas características do que definiríamos como "estilo Aldrich", "Apache” foi uma realização muito digna, mantendo seu responsável as tonalidades mais sóbrias para seu sentido épico. Filia-se a uma série de filmes, iniciada com “Broken Arrew”, de Delmer Daves, cujo objetivo precípuo é o de humanizar os índios, focalizando os diversos problemas acarretados a toda uma raça em virtude de uma existência, insegura, nômade, a que era acarretada a enfrentar.
A seguir, no fantástico e desconcertante "Vera Cruz", podemos aproximá-lo do John Huston “blagueur” de "Beat the Devil'' e "The African Queen”. Nesse filme já se observa a cristalização de uma apurada estilística, sempre calcada em evidentes imperativos de ordem estética. Invertendo por completo as equações necessárias para o desenvolvimento de um melodrama, o "metteur en scène" cria um ritmo extravagante, situações paradoxalmente inesperadas e, pelo menos, uma sequência antológica: a do duelo final de Gary Cooper e Burt Lancaster. Nessa ocasião, o bem e o mal que "funcionavam" como aliados para criar uma supra-ambiguidade a atuar como fator de decomposição dos clássicos postulados que regem a grande farsa, que para Aldrich seria a da aventura por um ideal, tornam a se desmembrar num irônico e nostálgico sublinhamento dessa mesma concepção. Noutras palavras: a história de mocinho pura, quer dizer, despida dos falsos preconceitos estruturais a justificar a aventura, seria ridícula por ser absurda, caso essa peculiaridade não fôsse propositadamente adaptada ao contexto. Uma lúcida reintroversão dos preceitos temáticos elidirá por completo a ameaça do irrisório de se fantasiar a sério, frente a um espelho.
Posteriormente, revelando estupenda versatilidade, vêmo-Io passar para o filme de "gangsters" com "Kiss Me Deadly" - um dos melhores no gênero dos últimos anos, apenas pouco inferior a "O Grande Golpe" (The Killing), de Stanley Kubrick (1).
Apesar de ter-se empenhado nessa realização contra a vontade, segundo mesmo declarou em recente entrevista ao "Cahiers du Cinema”, forçado a lidar com um argumento que lhe foi impôsto, malgrado êle próprio, construiu uma bela película. Partindo então da novela de Mickey Spillane, Aldrich se aproveitou para, mediante a própria história, fazer um impressionante apanhado de uma civilização caótica, a qual justamente é quem possibilita o aparecimento das· histórias em quadrinhos ou de indivíduos como o autor do entrecho. Mesmo o herói, bem interpretado por Ralph Meeker, um personagem frio, praticamente amoral, não estaria jamais consciente do que aflora nas entrelinhas. Apenas e exclusivamente se atém a desempenhar sua parte no jôgo - o jôgo a que o diretor obedece friamente para espelhar o clima da falta de sentido das coisas, da ausência de uma convincente fixação de valores. E, em tais condições, movimenta-se incessantemente, livrando-se sempre com desembaraço da traição das louras, das agressões traiçoeiras ou da bomba que lhe colocam no motor do automóvel. Finalmente, na derradeira cena, à constatação de um mundo alucinante, é conferida uma transcendência cósmica através da explosão que sacode toda a paragem.
"A Grande Chantagem" (The Big Knife) se constitui na produção mais ambiciosa e, por enquanto, também, no melhor filme de sua carreira. É, por outro lado, o libelo mais incisivo e corajoso feito em Hollywood contra a própria Hollywood. Deve-se ressaltar que a amplitude temática de "A Grande Chantagem'' avulta em contraposição a "Attack". Enquanto no último tôda a tensão criada pelo impacto dramático se evola com a solução fornecida para o destino de cada personagem, no primeiro a tese permanece viva. Apesar de ser a Meca do cinema o objetivo de mira imediato, o que fica após o término da película é o choque provocado por um dos exemplos mais tocantes do triste processo de rapinagem e degradação que pauta todo um complexo de vida no mundo de hoje, principalmente o mundo supercapitalista, do qual Hollywood é um dos exemplos mais característicos. Vale lembrar, sob êsse aspecto, a admirável composição do tipo do produtor de filmes levada a cabo por Rod Steiger, na qual todas as características físicas, todas as reações estão concentradas numa rara e eficiente figuração do sórdido businness-man.
No sentido formal logo de início se denota a extraordinária e inventiva concepção do enquadramento. Cenas como a de Jack Palance tomando massagem, enquanto palestra com seu agente, realçam a extrema valorização visual de imagens que se dinamizam; através da tomada estática, somente pelo esmerado uso da iluminação e do enquadramento, prescindindo do "travelling". O corpo do ator, no grande primeiro plano, atravessado quase em diagonal com a posição do interlocutor, destaca-se com nitidez e cria um efeito tridimencional em virtude da interseção dos elementos de composição e a precisa graduação fornecida pelo iluminador.
"The Big Knife" talvez não tenha sido a grande obra-prima que merecia, por razão de não ter o regisseur conseguido superar certos aspectos teatrais da trama. Entretanto serviu para demonstrar a capacidade de um realizador que atingia plena maturidade em seu metier sem necessitar de diluir fórmulas já por demais desgastadas. Ao contrário, revelava uma notável concepção de como utilizar o "shot'', ao conferir um vigor quase inusitado às magens mediante perfeita noção de como aprofundar o campo visual e, ao mesmo tempo, colocar em evidência o detalhe convergente de tôda a estruturação dos elementos que, em cada sequência, deverão concorrer para compor o quadro.
É exataniente na concepção da tomada, no método de angulação do enquadramento, no "travelling" sinuoso, por vêzes em movimento de câmera inesperado, que se pode basear uma conceituação do que seja o estilo Aldrich. Para êle, a angulação do "shot" obedecerá sempre a um critério que torne impossível ao espectador enxergar mais do que o "metteur eu scène" deseja. O julgamento da assistência não interessa porque não é esta que faz o filme. Destarte, é mister que se impeça que as deduções sejam por demais diferentes das que possui o realizador. Assim, por intermédio de recursos quase sempre novos, inesperados, pelo método insólito de chamar a atenção sôbre as peças que mais interessam, é fácil manter o espectador num transe que o impeça de "enxergar" em demasia. Em "Fôlhas Mortas", por exemplo, após um determinado corte, aparece de súbito um enorme telefone que nos entra pelos olhos de imediato, antes que pudéssemos reparar até mesmo onde se localizava. Nessa fita existe um dos melhores "flashbacks" já imaginados. Logo posteriormente ao princípio da história, Joan Crawford assiste a um recital de piano, e vemos o seu rosto entre os dos muitos espectadores. Depois, a tela vai escurecendo até que apenas a sua face fique iluminada. Isto se constitui já, em si, num admirável recurso de efeito simbólico a fim de demonstrar que, embora se encontre entre um grupo enorme de pessoas, acha-se só, pois sua atenção não se concentra no palco, como todo mundo, e sim na rememoração do que vem a seguir: um passado de privações quando se sentia obrigada a cuidar exclusivamente de um pai doente. Aqui, Aldrich dando vasão outra vez à sua extraordinária capacidade inventiva, consegue se expressar com perfeita economia de linguagem, focalizando apenas o tronco da atriz em volta do leito em que está o velho.
A propósito de "Autumn Leaves", deve-se lembrar outro admirável "tour de force" do diretor ao extrair uma grande performance de Joan Crawford, que, aparentemente, atravessava um período de irremediável decadência. Com uma exagerada e, por vêzes, ridícula exuberância, a famosa atriz vinha se tornando um autêntico Kirk Douglas feminino, o qual nem também Nicholas Ray, em "Johnny Guitar", tinha conseguido controlar.
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É, através do espírito e de um pálido sublinhamento poético, o Milestone de "Sem Novidade no Front" em "Um Passeio ao Sol", quem mais nos recordamos, ao assistir "Attack". Dêle, Aldrich já fôra assistente de direção, e pode-se logo de início verificar ter assimilado o essencial das qualidades do outro grande "metteur en scène" do passado sem deturpar a sua própria personalidade. Aliás, boas foram as suas convivências numa fase que denominaríamos de aprendizado: além de Milestone um Chaplin, um Zinneman, um Renoir, uma fonte de influências invejável e, mais do que tudo, eclética.
A fita talvez tenha consistido para o realizador um empreendimento mais ambicioso ainda que "The Big Knife". Baseia-se num cenário de James Poe, oriundo da peça teatral "Fragile Fox", de Norman Brooks. E, justamente o caráter do argumento é que nos parece ter impedido o diretor de conferir a transcendência temática que era de se esperar a um filme rigorosamente exato, perfeito em tudo que envolve os critérios de solucão formal encontrados para a sua confecção. Como já foi acima assinalado, a tensão dramática existente tem apenas sua razão de ser enquanto o jôgo com os diversos elementos estruturantes do entrecho se encontra vivo. Findo o espetáculo, não permanece um impacto maior a traduzir qualquer tese antibélica ou autimilitarista. O filme se encerra em si mesmo, ficando todos os acontecimentos narrados condicionados a um aspecto meramente acidental. Não que faltasse coragem a Aldrich de ir mais longe - "A Grande Chantagem" prova exatamente o oposto - mas para tanto era necessário quebrar o sentido do "script", o que não quis ou não pôde fazê-lo. Sob êsse ponto de vista, "From Here to Eternity", de Fred Zinneman, foi muito mais amplo, aberto. Observe-se nessa altura a diferença entre o comandante que apreciava o boxe, dessa última realização, com o covarde capitão de "Morte Sem Glória”. Se no primeiro constata-se facilmente que grande parte dos defeitos de sua formacão foram criados ou alimentados pela vida em caserna, já o outro na menos convincente cena do filme, explica ter sido o pai, através da educação que lhe proporcionara, o maior culpado. A indagação que, de pronto, virá de como permitem que um incapaz comande uma companhia, surge como resposta um coronel venal, com êle ligado a interêsses políticos e que tudo fará para ocultar o fato. Fica portanto fechado o círculo que caracteriza a exceção, mesmo porque, no fim, o tenente Woodruff ligará para o general Parsons relatando as ocorrências anormais.
Abstraindo tôdas as consideracões enunciadas e, agora, encarando o filme sob o aspecto da ação imediatamente correlacionada com a trama, pode-se dizer que "Attack" é cinema no mais elevado nível, desde a apresentacão dos letreiros até a derradeira cena. O capacete que rola a encosta e fustiga a flor é um eficiente contraponto lírico à violência que se desencadeará e, por outro lado, lembra em muito a passagem final de "Sem Novidade no Front", de Lewis Milestone, quando Lew Ayres ao se esgueirar pela trincheira para apanhar uma borboleta é alvejado pelo soldado inimigo. Daí em diante, é um puro clima de guerra, estúpida, brutal, mas necessária, que virá a imperar.
A fim de conferir fôrça às imagens, principalmente nas sequências em exteriores, torna -se quase tirânico o empenho de Aldrich sôbre o fotógrafo, Joseph Biroc. Não há uma cena sequer que não obedeça a um rigoroso aprimoramento visual, o enquadramento preciso, dentro de uma constante variação nas tomadas, desde a vertical, como o trecho do jôgo de poquer até à quase paralela ao solo, no avanço dos soldados contra o inimigo.
A compacta densidade dramatica, obtida mediante êsses recursos, cria uma ambiência alucinante para o entrecho. Se não existe a configuração de um libelo atuante, chega-se, em certo sentido, a um paroxismo do absurdo sartriano de "Mortos Sem Sepultura". Nesta peça o que há de aterrador é o sofrimento sem razão de ser daqueles presos que são submetidos a torturas para confessar o que desconhecem. Aqui, é um grupo de soldados que deseja lutar, mas cuja ârisia fica sufocada pelo conhecimento da imposibilidade em realizar pelo menos um ataque que resulte em sucesso, em virtude da insana covardia de seu comandante. Contra êle se insurgirá o tenente Costa (Jack Palance) cuja luta é pelo direito. Costa, na realidade, corresponde a uma pura incarnação do justiceiro e, quando no final morre, tôda a impressionante distorção de seu rosto denota a dor em não ter podido cumprir a missão, à qual se propusera, isto é, vingar-se do culpado pela trucidação de seus companheiros.
Os tanques (que, aliás, o realizador viu-se nas contingências de comprar, já que o Exército negou-se terminantemente a auxiliá-lo para esta película) representam também um papel marcante. Parecem seres vivos pelo modo com que se locomovem ou, quando param, como se es tivessem a espreitar a prêsa e, na sequência mais violenta, um dêles esmaga o braço de Jack Palance, que, acuado, contra a parede encarava-o aterrorizado como se fôsse um monstro que iria devorá-lo.
No que se refere ao tratamento emprestado ao personagem do capitão, vivido por Eddie Albert, existe um certo excesso em caracterizar um homem medroso. A interpretação carecia ele maior sobriedade, bem como o modo de conceber certas reações deveria obedecer a um processo mais sutil. Em relação aos métodos de equacionamento do impacto dramático, o ridículo, pelo que às vêzes passam certas atitudes do personagem, é inteiraimente inaceitável. Psicologicamente encarada, parece também estranha a moderação com que enfrenta Costa, no momento em que êste se predispõe a cumprir o que prometera, isto é, matá-lo.
Tal pormenor e as limitações para uma maior diretriz existentes no argumento são as duas únicas lacunas que impedem que "Morte Sem Glória", assim como "A Grande Chantagem", seja a obra-prima que Robert Aldrich há muito tempo vem prometendo lançar. Porém, de qualquer forma, sua filmografia se estende já com cinco realizações de indiscutível valor e, no momento, talvez seja o cineasta de Hollywood que mais mereça nossa confiança, devendo temer mesmo, nesse terreno, mais que os veteranos, os novos: o Charles Laughton de "Mensageiro do Diabo", o Stanley Kubrick, de "O Grande Golpe", ou um Gilbert S. Kay, de "The Three Bad Sisters".
Jornal do Brasil, 12/05/1957
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