domingo, 28 de fevereiro de 2021

Filmes parte 13

O Sepulcro Indiano 1959, Fritz Lang
O tigre da Índia 1959, Fritz Lang
O Beijo da Morte (Kiss of Death) 1947, Henry Hathaway
Sublime Devoção, (Call Northside 777) 1948, Henry Hathaway
A Dez Segundos do Inferno (Ten Seconds to Hell) 1959, Robert Aldrich
A Viúva Negra (Black widow) 1954, Nunnally Johnson
O Céu da Meia-Noite, (The Midnight Sky) 2020, George Clooney
O Leque de Lady Windermere (The Fan) 1949, Otto Preminger
O Estranho Caso do Conde (The Scapegoat) 1959, Robert Hamer
Brumas (Moontide) 1942, Archie Mayo, Fritz Lang (não creditado)
M o Vampiro de Dusseldorf 1931, Fritz Lang
O Rio e a morte 1954, Luis Buñuel
As Aventuras Extraordinárias de Mister West no país dos bolcheviques 1924, Lev Kuleshov
Quando Duas Mulheres Pecam (Persona) 1966,  Ingmar Bergman
Lua de Mel de Assassinos (The Honeymoon Killers) 1970, Leonard Kastle, Martin Scorsese (não creditado)
O Padre e a moça 1966, Barba Azul (Bluebeard) 1944, Joaquim Pedro de Andrade
Iman da Morte ou Barba Azul (Bluebeard), 1944, Edgar G. Ulmer
Epílogo de uma Sentença (The Tattered Dress) 1957, Jack Arnold
Protegida de Papai (The Lady in Question) 1940, Charles Vidor
O Testamento do Dr. Mabuse 1933, Fritz Lang
O Som do Silêncio (Sound of Metal) 2019,  Darius Marder
Agnes Joy 2019, Silja Hauksdóttir
Time 2020, Garrett Bradley
Yangguang puzhao (A sun) 2019, Mong-Hong Chung
A febre 2019, Maya Da-Rin
Who Killed Malcolm X? Ninisérie 2019-202, Samantha Grogin
Bela Vingança (Promising Young Woman) 2020,   Emerald Fennell
Anjo do Mal (Pickup on South Street) 1953, Samuel Fuller
Vá e Veja (Idi i smotri) 1985, Elem Klimov
A Infância de Ivan (Ivanovo detstvo) 1962, Andrei Tarkovsky
O Gato Preto (The Black Cat) 1934, Edgar G. Ulmer
Stalker 1979, Andrei Tarkovsky
Cúmplice das Sombras (The Prowler) 1951, Joseph Losey
Quando Voam as Cegonhas (Letyat zhuravli ) 1957, Mikhail Kalatozov
Eu sou Cuba(Soy Cuba) 1964, Mikhail Kalatozov
Soy Cuba, O Mamute Siberiano 1970, Vicente Ferraz
M8, quando a morte socorre a vida 2019, Jeferson De

26/01/2021

O Sepulcro Indiano, (Das indische Grabmal), 1959, Fritz Lang

Debra Paget 

Roteiro: Werner Jörg Lüddecke, Thea von Harbou (novela)

O sepulcro indiano no iutubi

Sobre Thea von Harbou (1888–1954)  e Debra Paget (1933) 

O SEPULCRO INDIANO

Continuação do ótimo O Tigre da Índia (1959) e terceira versão cinematográfica da obra de Thea von Harbou, O Sepulcro Indiano é aquele tipo de filme que facilmente nos enche os olhos com sua beleza, mas consegue, em igual medida, nos fazer revirá-los a cada grupo de cenas, tamanhas são as facilidades e conveniências às quais o roteiro se permite. Tudo isso para narrar a conclusão de uma história de amor improvável (e tornada impossível) entre um arquiteto alemão e uma belíssima dançarina hindu, interpretada por Debra Paget.

O drama segue a mesma linha de argumento deixada no primeiro longa. O narrador faz uma retomada breve dos acontecimentos da obra anterior e dá rapidamente o tom de emboscada e caça a um inimigo, estando, de um lado, o Marajá Chandra (Walther Reyer), lutando contra seus demônios e procurando infligir em Seetha e Harald (Paul Hubschmid) uma punição que o faça se ver livre da vergonha da rejeição e, inconscientemente, que sublime o desejo guardado pela dançaria do templo. Existe uma tensão erótica na obra, que se estrutura na prática como um estranho triângulo amoroso, mas o roteiro se esparrama por tantos lados possíveis que o espectador não consegue aproveitar bem as sugestões mais instigantes do enredo.

Até poderíamos citar a sequência em que Seetha é colocada sob julgamento da deusa e, diante de uma grande imagem, precisa dançar e “encantar” uma serpente, sem ser picada. O figurino minúsculo utilizado por Debra Paget expõe ainda mais a sua beleza e faz de sua presença ali o grande destaque. Mas se compararmos este momento com uma mesma cena de dança do primeiro filme, constatamos que, exceto a beleza da atriz, todas as outras coisas estão muito abaixo em qualidade. A coreografia, a direção e a montagem parecem assinadas por uma equipe criativa completamente diferente e tudo se torna ainda mais problemático quando vemos os fios que seguram a serpente aparecerem o tempo inteiro nas filmagens, com direito a um incompreensível e horrendo close da dançarina diante do animal mortal e os fios ali mostrados abertamente para quem quisesse ver.

À história de amor mistura-se uma intriga palaciana com um golpe de Estado sendo preparado pelo príncipe Ramigani (René Deltgen), o ambicioso irmão do Marajá. Talvez fosse possível aproveitar esse bloco da fita se esses eventos tivessem uma construção mais escrupulosa, algo que não ocorre. A questão é que nem a montagem ajuda a organizar esses eventos e, constantemente, passamos para cenas de amor, cenas de um arquiteto reclamando, cenas da irmã de Harald agindo de maneira estúpida, cenas dos tormentos do Marajá, da prisão de Seetha, da construção de uma tumba… Existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e elas não estão bem conectadas ao longo da obra, o que faz do resultado final uma bagunça que só ganha mesmo algum destaque pela esplêndida fotografia, direção de arte e figurinos. A trilha sonora também tem bons momentos, mas não ao longo de toda a projeção.

Sofrendo da mesma maldição que acometera O Barco de Diamantes, medíocre sequência de O Lago Dourado, o Mestre Fritz Lang vê mais uma de suas obras sequenciais sair bem diferente do que ele tinha imaginado e com resultados que não não fazem jus à sua grandeza como diretor. É aquela história… não dá para ser perfeito o tempo todo.

O Sepulcro Indiano (Das indische Grabmal) — Alemanha Ocidental, França, Itália, 1959

Direção: Fritz Lang

Roteiro: Fritz Lang, Werner Jörg Lüddecke (baseado na obra de Thea von Harbou e no roteiro original de Richard Eichberg).

Elenco: Debra Paget, Paul Hubschmid, Walther Reyer, Claus Holm, Sabine Bethmann, René Deltgen, Valéry Inkijinoff, Jochen Brockmann, Richard Lauffen, Jochen Blume, Helmut Hildebrand, Guido Celano, Victor Francen

Duração: 102 min.

LUIZ SANTIAGO

27/01/2021

O TIGRE DA ÍNDIA (Der Tiger von Eschnapur), 1959, Fritz Lang

filme no iutube

A carreira de Fritz Lang se estendeu de 1919 a 1960, e contou com produções na Alemanha, seu país natal; na França e nos Estados Unidos, onde o cineasta passou vinte anos em exílio político, após fugir da Europa temendo ser perseguido pelo Partido Nazista. O último filme do diretor na terra do Tio Sam foi Suplício de Uma Alma (1956), depois do qual Lang se estabeleceu novamente em seu país de origem e realizou mais quatro filmes. O Tigre da Índia (ou O Tigre de Bengala e O Tigre de Eschnapur) foi o primeiro deles.

Tendo como base um projeto pessoal de levar às telas um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, Fritz Lang lançou seu olhar para a Índia, fez um bom número de visitas ao país e dividiu a aventura em duas partes, sendo a primeira esta que hora escrevemos sobre, e a segunda, O Sepulcro Indiano, lançado cerca de dois meses depois.

A princípio, o diretor queria fazer um filme sobre o Taj Mahal. Encantava-lhe a história por trás do monumento e ele acreditava que tendo uma produção europeia, o filme ficaria exatamente como uma obra cinematográfica sobre o Taj Mahal deveria ser. Mas as dificuldades de levar adiante o ambicioso projeto fez com que o cineasta aceitasse a proposta menos ambiciosa de Artur Brauner (produtor polonês com mais de 300 filmes no currículo, atuante no período de 1946 a 2011!), que lhe oferecia um bojudo orçamento e liberdade criativa para filmar a história novelizada por Von Harbou, cuja origem foi um roteiro que o próprio Lang havia escrito com ela por volta de 1920.

A história de O Tigre da Índia guarda uma forte semelhança com os contos das Mil e Uma Noites, onde um estrangeiro chega a um local, encanta-se com o exotismo daquela terra e por uma bela mulher, cultiva a ira de um poderoso, é perseguido com afinco e tem um destino perigoso traçado, ponto em que a história é interrompida para ter continuação num outro capítulo, em outro dia – exatamente a dinâmica usada nesse roteiro, inclusive com o cliffhanger, um intrigante ponto de interrogação deixado para ser resolvido em O Sepulcro Indiano.

Harald Berger é um arquiteto europeu convidado pelo Marajá Chandra para projetar o que seria a nova face de Eschnapur, a cidade real. Sua chegada à Índia não é vista, mas o início de sua estadia sim, e antes mesmo de seu encontro com o príncipe, temos a primeira quebra dramática do roteiro, que consiste no encontro do protagonista com Seetha, a dançarina de Shiva por quem ele e o espectador se apaixonam. O que se segue é uma versão típica das “aventuras românticas orientais”, sejam elas do médio ou extremo Oriente: um golpe de Estado se estrutura nos bastidores, as aparências são mantidas mas o espectador sabe que há algo de podre no reino, e o amor que nasce entre os pombinhos protagonistas já traz consigo uma semente de tragédia.

Há um quê de banal na história, mas Fritz Lang filma a trama de modo tão preciso e tão elegante, que é impossível se chatear durante a sessão. A montagem também ajuda bastante, com um ritmo equilibrado durante todo o tempo, mesmo quando o roteiro apresente o seu plot de perigo, algo que geralmente faz com que o andamento mude completamente e sem aviso.

Todavia, o que realmente se destaca em O Tigre da Índia é o seu apuro estético, encabeçado por todo o desenho de produção e pela incrível fotografia. Há um rigor tremendo no uso de cores, tons e adereços dos figurinos (excelentes, por sinal), nas paredes, chão e decoração dos jardins, salões e outros ambientes internos visitados pela câmera. O interior do palácio do Marajá impressiona não só pela construção distinta de cada cômodo, mas por locais como a gruta dos leprosos e o labirinto de passagens secretas que ligam o templo a outros lugares do prédio. A predominância do branco e do amarelo tanto no cenário quanto nos figurinos nos dá uma impressão ainda mais exótica e contrastante com a realidade que se desenvolve na tela, uma ótima sacada do diretor e sua equipe técnica.

O Tigre da Índia é uma aventura romântica muito divertida e realidade com grande apuro visual. Eu já citei a aparência banal da história narrada, mas o modo como a vemos faz com que se mantenha em alta conta, mesmo se considerarmos uma incômoda linha de pensamento que destaca a superioridade dos europeus frente aos hindus. De qualquer forma, o filme marca com graça a fase final da carreira de Fritz Lang e, embora não traga os elementos críticos tão presentes em suas obras anteriores, nos brinda com uma concepção visual deslumbrante, fazendo-nos voltar no tempo, para os cenários grandiosos utilizados pelo diretor do díptico dos Nibelungos ou em Metropolis. O mesmo homem, a mesma mão poderosa na direção e concepção de um filme, um outro tempo. Impossível não querer ver um fruto dessa fase.

O Tigre da Índia (Der Tiger von Eschnapur) – Alemanha Ocidental/França/Itália, 1959

Direção: Fritz Lang

Roteiro: Werner Jörg Lüddecke, Fritz Lang (baseado na obra de Thea von Harbou)

Elenco: Debra Paget, Paul Hubschmid, Walter Reyer, Claus Holm, Luciana Paluzzi, Valéry Inkijinoff, Sabine Bethmann, Angela Portaluri, René Deltgen, Guido Celano, Jochen Brockmann, Richard Lauffen, Jochen Blume

Duração: 101 min.

LUIZ SANTIAGO 


28/01/2021

O Beijo da Morte (Kiss of Death), 1947, Henry Hathaway

O beijo da morte no iutubi

Sinopse

Na véspera de Natal, o ex-condenado Nick Bianco e seus três comparsas roubam uma joalheria localizada no andar superior de um arranha-céu de Nova York. Antes de saírem do edifício, no entanto, o proprietário dispara o alarme. Na tentativa de escapar, Nick assalta um policial, mas é ferido na perna e preso.

O promotor-adjunto, Louis D'Angelo, tenta persuadir Nick a delatar seus cúmplices em troca de uma sentença leve. No entanto, confiante de que o seu advogado, Earl Howser, e os tribunais vão cuidar de sua esposa e de suas duas filhas, enquanto ele se achar preso, Nick se recusa a atendê-lo, sendo condenado a 20 anos de prisão. 

Três anos mais tarde, na Prisão de Sing Sing , ele descobre que sua esposa cometeu suicídio, e suas filhas foram enviadas para um orfanato. Mais tarde, ele encontra seu obituário num jornal e descobre que sua esposa estava preocupada com questões financeiras antes de sua morte.

Ao ser visitado na prisão por Nettie Cavallo, uma jovem que costumava cuidar de suas filhas, ele toma conhecimento de que sua esposa fora estuprada por Pete Rizzo, um dos seus cúmplices. Revoltado, ele decide contar tudo para D'Angelo, mas devido ao tempo passado, a informação não pode ser usada para reduzir sua sentença, fazendo com que ele opte por um acordo de delação premiada para conseguir sua liberdade. 

Ao ser liberado em liberdade condicional, Nick visita Nettie, a quem declara seu amor. Por outro lado, continuando a colaborar com D'Angelo, ele consegue um encontro com Tommy Udo, com quem estivera em Sing Sing, o qual o leva a diversos clubes onde narcóticos são consumidos, bem como lhe fala sobre um assassinato por ele cometido para fazer com que a polícia o prendesse. Tais informações levam ao indiciamento de Udo, pelo crime cometido no passado, bem como, à liberdade de Nick. 

Quando Udo é levado a julgamento, Nick, agora casado com Nettie, reluta em testemunhar contra ele, mas percebe que tem obrigação de sustentar sua palavra. No entanto, apesar do testemunho de Nick e de outras evidências, Udo termina absolvido.

Certo de que Udo vai buscar vingança, e convencido de que a polícia não será capaz de protegê-lo e a sua família, Nick envia Nettie e as crianças para o interior.

Dias depois, ao se encontrarem, Nick adverte Udo para ficar longe de sua família, dizendo-lhe que o problema é um assunto estritamente dos dois. Assim, antes de voltar a se encontrar com ele, e pensando na possibilidade de ser por ele emboscado, Nick combina com D'Angelo uma forma de ter uma proteção policial. No encontro que se dá em um determinado restaurante, depois de uma provocação, Udo atira em Nick, mas é cercado rapidamente pela polícia e, ao tentar escapar a pé, é baleado na rua. Ele sobrevive, mas é preso. Por outro lado, embora gravemente ferido, Nick sobrevive e, ao lado de Nettie e das crianças, sonha com uma vida pacífica e feliz.

30/01/2021

Sublime Devoção, (Call Northside 777), 1948, Henry Hathaway

Sublime devoção no iutubi 

Sinopse

Em 1932 em Chicago, durante a Lei Seca, um policial é assassinado dentro de um bar que vendia bebidas ilegais. Frank Wiecek e outro homem são rapidamente presos e ambos sentenciados a 99 anos de prisão. Onze anos depois da sentença, a mãe de Wiecek coloca um anúncio no jornal oferecendo cinco mil dólares de recompensa a quem contar sobre o verdadeiro assassino à polícia.

O editor do jornal Chicago Times, Brian Kelly, envia o repórter P.J. McNeal para investigar o caso. McNeal é cético sobre a inocência de Wiecek mas aos poucos, depois de entrevistar a mãe e a esposa do condenado, além do próprio, muda de ideia e decide ir a fundo na revisão do caso. 

Apesar das várias provas conseguidas que atestam as diversas falhas no processo, o advogado do jornal avisa McNeal que somente se a testemunha ocular do crime, a balconista Wanda Skutnik, que desapareceu, mudasse o depoimento ou se ele provasse que ela mentiu, a comissão de anistia aceitaria rever o caso.

Finalmente, Wiecek é considerado inocente porque, entre outras coisas, a ampliação de uma fotografia mostra a data em um jornal que prova que a testemunha-chave havia prestado falso testemunho.

31/01/2021

A Dez Segundos do Inferno (Ten Seconds to Hell), Robert Aldrich, 1959

A dez segundos do inferno no iutube 

No final da Segunda Guerra Mundial, seis ex-soldados alemães retornam para Berlim e se alistam no desarme de bombas. A pressão de um trabalho tão perigoso começa a afetá-los, ainda mais quando eles resolvem apostar metade dos seus pagamentos de modo que se apenas um deles sobreviver, leva todo o dinheiro. Baixas e atritos são inevitáveis, e ter lidar com bombas britânicas de meia tonelada não é algo lá muito agradável.

A dez segundos do inferno

Anotação em 2005: Sombrio, duro, desesperançado, pesado retrato da Alemanha logo após o fim da Segunda Guerra.

Alemães que tiveram problemas de disciplina durante a guerra se oferecem como voluntários para trabalhar no desarmamento de bombas que caíram sobre Berlim mas não explodiram. Não se pode imaginar atividade mais próxima da morte.  

Jeff Chandler faz o sem caráter, o que procura tirar algum prazer do resto da vida; Jack Palance, em um de seus poucos papéis como herói, faz o antigo arquiteto que mantém nobreza no caráter apesar de tudo o que enfrentou na vida. Os dois vivem na tensão absoluta de poder morrer no trabalho a qualquer momento – e, nos momentos de folga, disputam as atenções de uma bela mulher (Martine Carol).

A fotografia em preto-e-branco da capital alemã em ruínas é extraordinária. O filme foi de fato rodado na Alemanha, no auge da guerra fria.

O ótimo Robert Aldrich (1918-1983) estava no auge da forma. Já havia feito os noirs A Morte num Beijo/Kiss me Deadly, de 1955, e A Grande Chantagem/The Big Knife, também de 1955. Depois deste A Dez Segundos do Inferno, ele faria O Último Pôr-do-Sol/The Last Sunset, de 1961, um grande western com toque de tragédia grega, com Rock Hudson, Kirk Douglas e Dorothy Malone. Em seguida, faria os dois de terror com Bette Davis, O Que Terá Acontecido com Baby Jane?/Whatever Happeened to Baby Jane? (1963) e Com a Maldade na Alma/Hush… Hush, Sweet Charlotte (1964).

01/02/2021

A Viúva Negra (Black widow), 1954, Nunnally Johnson

Nunnally Johnson (1897-1977) é reconhecido como um dos roteiristas mais importantes de Hollywood no século passado. Sua filmografia inclui 74 títulos como escritor e 42 como produtor. Dirigiu, no entanto, apenas oito filmes, entre 1954 e 1960. A Viúva Negra/Black Widow, de 1954, foi o segundo deles. 

E é interessante: assim como os demais sete filmes que Nunnally Johnson dirigiu, A Viúva Negra se baseia em obra de outro autor. Basicamente um escritor, ele só escolheu para dirigir histórias escritas por outras pessoas – em romances ou peças de teatro.

O livro Black Widow – que também teve o título de Fatal Woman – foi lançado em 1952, apenas dois anos antes do filme. Levava a assinatura de Patrick Quentin, o pseudônimo do inglês radicado nos Estados Unidos Hugh Wheeler, sujeito prolífico, autor de várias peças, roteiros para o cinema, librettos para musicais.

Patrick Quentin assinou diversas histórias policiais – e Black Widow é uma delas. Mas Black Widow, o filme, não é apenas uma história policial. É mais. É um daqueles filmes sérios, densos, voltados para platéias maduras; faz um estudo psicológico de seus personagens, um retrato do seu meio social. E, nisso, assemelha-se bastante ao filme mais marcante e conhecido entre os oito dirigidos por Nunnally Johnson, o ótimo O Homem do Terno Cinzento (1956).

De maneira fascinante, o filme destaca a figura da viúva negra – logo após o tradicional logotipo do 20th Century Fox, vemos uma grande aranha, enquanto um narrador diz: “A viúva negra, a mais mortal de todas as aranhas, ganhou o seu sinistro nome pela deplorável prática de devorar o seu parceiro”. Destaca no título e na abertura a figura da viúva negra – mas a personagem que o espectador logo identifica como o Mal em Si é uma alpinista social.

Uma jovem ambiciosa, loucamente ambiciosa, que chega a Nova York vinda da sulista Savannah, Georgia, disposta a ascender haja o que houver, custe o que custar.

Chama-se Nancy Ordway, é conhecida pelo apelido de Nanny; tem apenas 20 anos, e se proclama escritora – autora de histórias que ninguém publicou ainda. É o papel de Peggy Ann Garner – a atriz que, aos 13 anos de idade, em 1945, havia feito o papel principal de Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn, o primeiro filme de Elia Kazan. (Ela está na foto acima.)

A sorte, o acaso, o fado, o destino, tudo conspira para que Nanny fique conhecendo Peter Denver (Van Heflin, na foto abaixo), um muito bem sucedido produtor teatral da Broadway. Boa alma, bom caráter, mas também desatento, ingênuo, pouco perspicaz, Peter Denver simpatiza com a moça – e permite que ela vá se insinuando para dentro da vida dele.

Nanny reclama que não consegue inspiração para escrever no lugar onde mora – e então, num período em que sua mulher, Iris (o papel da linda Gene Tierney, na foto abaixo), está fora, distante, fazendo companhia para a mãe doente em Nova Orleans, Peter deixa que a jovem passe as manhãs e as tardes em seu magnífico apartamento de rico junto do Central Park. A moça fica lá o dia inteiro, enquanto Peter trabalha em seu escritório.

Quando o filme está com uns 16 minutos, Iris chega de volta de Nova Orleans. Peter e ela chegam ao apartamento no final da tarde – e encontram Nanny pendurada, no que tem toda a aparência de suicídio.

Chega a polícia, na figura do tenente detetive Bruce – o papel de George Raft, que tantas e tantas e tantas vezes interpretou gângsteres. A soma de 1 + 1 é imediata: o ricaço senhor teve um caso com a moça, a moça se apaixonou, mas ele era casado, e a moça, desesperada, se matou.

Algum tempo depois, a autópsia mostra que a) a moça estava grávida e b) a moça não se matou, foi assassinada, asfixiada, e depois colocada pendurada para simular suicídio.

A nova soma de 1 + 1 da polícia é imediata: o ricaço senhor teve um caso com a moça, a moça se apaixonou, ficou grávida, o ricaço senhor a matou.

E o tempo todo o espectador sabe muitíssimo bem que Peter Denver não teve caso algum com Nanny. Simpatizou com ela, teve pena dela, deixou-se usar por ela. Seu único crime foi não ter desconfiado de que aqueles favores todos que fez à moça o colocariam numa situação delicada. Seu único crime foi ter feito favores à moça – e ter sido pouco atento, pouco vigilante. Ingênuo, bobo.

Surgirão novos dados, novas informações, novas revelações.

A viúva negra não era a jovem alpinista social que transformou a vida de Peter Denver em um inferno.

O filme mostra Peter e Iris como um belo casal. É visível desde o início que os dois se amam, se respeitam, se entendem. Têm confiança um no outro. É no mesmo dia em que Iris embarca para estar com a mãe em Nova Orleans que Peter fica conhecendo a moça Nanny. Ao telefone, ele conta para a mulher que saiu para jantar com uma jovem que havia conhecido.

Mais tarde ficamos sabendo que o casal já havia enfrentado uma crise: Iris havia conhecido outro homem, se apaixonara. O caso acabou, Peter e Iris se reaproximaram, suplantaram completamente a crise. Casal que enfrenta essa barra e vai em frente é porque é um belo casal, é uma relação boa, profunda, firme.

Iris é uma atriz famosa – mas a fama da mulher não causa problemas a Peter. Afinal, ele é um produtor muitíssimo bem sucedido – não tem por que se sentir inseguro com o fato de a mulher ter fama, reconhecimento.

Os dois são amigos de outro casal em que a mulher também é uma atriz famosa. Ela se chama Carlotta Marin, e é uma grande estrela da Broadway. Na verdade, está trabalhando na companhia dirigida por Peter – em um diálogo, Peter diz que é o patrão de Lottie, como todos a chamam. Lottie é muito próxima de Iris, mas, segundo diz o próprio Peter, na verdade não gosta muito dele.

Lottie Marin é o papel de Ginger Rogers. Uma grande estrela do cinema interpretando uma grande estrela do teatro.

Diferentemente do casal Peter & Iris, que se tratam de igual para igual, no entanto, Lottie é a figura que domina o casamento com Brian Mullen (Reginald Gardiner). Ela é que ganha o dinheiro, ela é que toma as decisões. Brian se acostumou a ser a figura secundária – ao ponto de muitas vezes ser chamado de sr. Marin.

Lottie e Brian vivem no mesmo prédio de ricos de Peter e Iris.

Ginger Rogers, Van Heflin, Gene Tierney, George Raft. Esta é a ordem em que os nomes dos atores aparecem nos créditos iniciais e nos cartazes do filme da época do lançamento.

A ordem com que os nomes aparecem nos créditos e nos cartaze era algo importantíssimo, no cinema de Hollywood, desde sempre. A rigor, continua sendo até hoje. Muitas vezes essa ordem não reflete a importância dos papéis interpretados pelos atores – espelha muito mais a fama dos astros, a cotação dos astros como apelo para que os espectadores compareçam à bilheteria dos cinemas.

Peter Denver, o personagem de Van Heflin, é sem dúvida alguma o mais importante da história, é o que está mais tempo na tela. É em torno dele que os fatos principais se dão. Mas os produtores quiseram agradar Ginger Rogers e deram a ela o chamado first billing, o nome no alto, o primeiro nome nos créditos. Consta que a atriz chegou a pensar em desistir de fazer o papel da estrela de teatro que se julga o centro do mundo. Nunnally Johnson teve que escrever uma carta para ela, argumentando que só ela poderia pegar aquele papel relativamente menor e transformá-lo no mais importante do filme.

Ginger Rogers, Van Heflin, Gene Tierney, George Raft. Os quatro nomes aparecem antes do título do filme, nos créditos iniciais – e só depois do título, em corpo bem menor, é que aparecem os nomes de Peggy Ann Garner, que faz a jovem alpinista social, e de Reginald Gardiner, que faz Brian Mullen, o marido de Lottie. A rigor, a rigor, os seis papéis têm basicamente a mesma importância na trama.

O universo do grande teatro americano, produtores e atores dos teatros da Broadway. Uma grande diva do teatro, interpretada por uma grande estrela do cinema. E uma jovem ambiciosa que faz de tudo para subir na escala social.

Tudo isso faz lembrar demais – é claro, é óbvio – outro filme mais ou menos da mesma época, por coincidência produzido pelo mesmo estúdio, a 20th Century Fox. All About Eve/A Malvada, a obra-prima que Joseph L. Mankiewicz lançou em 1950 é sobre Eve (Anne Baxter), uma jovem que se apresenta toda humilde como fã absoluta da grande estrela Margot Channing (Bette Davis) – e só depois de um bom tempo, bem mais da metade dos 138 minutos de grande cinema, é que o filme começa a mostrar de fato a que veio.

É interessante notar a cronologia. A Malvada é de 1950. O livro Black Widow é de 1952. O filme é de 1954.

O livro The Films of 20th Century Fox comete um errinho na sinopse do filme: diz que a mulher do produtor de teatro muitas vezes sai de casa para deixá-lo “por causa do seu jeito mulherengo”. Bobagem, não é absolutamente nada disso; é mostrado no filme que Peter Denver não é mulherengo, e é apaixonado pela mulher e fiel a ela. O livro conclui que “as atuações cheias de estilo fazem do filme um sofisticado quem-matou”.

Cada cabeça, uma sentença. Acontece muitas vezes de eu achar um determinado filme uma porcaria, e ele ser considerado uma obra-prima por um outro cara, e vice-versa. É assim, e tem que ser assim, e que maravilha que é assim. Leonard Maltin, o cara que mais vendeu guias de filmes nos tempos em que guias de filmes eram vendidos, deu 2 estrelas em 4 e sintetizou o filme assim:

“O produtor da Broadway Heflin coloca a jovem escritora Gardner sob suas asas, e é naturalmente suspeito quando ela aparece morta em seu apartamento. Brilhante mas monótona adaptação do mistério de Patrick Quentin, com atuações admiravelmente pobres de Rogers como um estrela maldosa e Raft como detetive persistente. Johnson também produziu e escreveu o roteiro. CinemaScope.”

Um autor diz que as atuaçõs são cheias de estilo, outro diz que as atuações são admiravelmente pobres.

Pauline Kael, chata que nem resfriado, diz que “nada nesse filme é remotamente crível, mas nada pretende ser, também” – e, remando contra o que diz Leonard Maltin, garante que “Ginger Rogers, que de alguma maneira está mais carnuda do que se poderia esperar, domina o filme de uma maneira muito interessante”.

Já o Guide des Films de Jean Tulard fala bem de La Veuve Noir: “Inspirado em Patrick Quentin (Fatal Woman), um whodunit (quem matou?) muito sofisticado. O elenco é brilhante, assim como a encenação.” Eu, aqui no meu cantinho, concordo com o Guide: são belas atuações desses grandes atores.

Sérgio Vaz 

02/02/2021

O Céu da Meia-Noite, The Midnight Sky, 2020, George Clooney

O Céu da Meia-Noite, sétimo filme dirigido por George Clooney, lida essencialmente com a solidão e a mortalidade tendo como pano de fundo um cenário apocalíptico. É, também, o retorno do cineasta à temática espacial que, como ator, visitou outras duas vezes, no remake de Solaris e em Gravidade. Mas o longa é, na melhor das hipóteses, irregular, transitando de maneira errática entre um sólido drama psicológico que chega a deixar entrever seu potencial e uma aventura espacial divertida, mas ordinária. É, mais do que talvez o próprio Clooney quisesse, um filme dois-em-um sem conseguir sem completamente uma coisa ou outra...

Ritter Fan 


03/02/2021

O Leque de Lady Windermere (The Fan) 1949, Otto Preminger

O leque de lady Windermere no Iutubi 

Ao ver, num leilão, um antigo leque que lhe pertencera, uma senhora evoca os episódios que protagonizara. Sua tentativa de se reaproximar da filha, Lady Windermere, provoca uma série de quiproquós familiares e sociais.

A peça que o dramaturgo, escritor e ensaísta britânico Oscar Wilde estreou com êxito em 1892 expõe, com fina ironia, as hipocrisias da sociedade vitoriana e mantém-se atual ao mostrar como a necessidade de manter as aparências impõe um jogo movido a enganos.

Esta versão do texto foi filmada em 1948 em Hollywood por Otto Preminger, cineasta de origem europeia cuja grande experiência nos palcos o habilitou a representar cenas da vida como se fossem puro teatro.

Cássio Starling Carlos 

04/02/2021

O Estranho Caso do Conde (The Scapegoat), 1959, Robert Hamer

O estranho caso do conde no iutubi 

John Barratt (Alec Guinness), um pacato professor de inglês, passa férias na França, onde é enganado por um aristocrata, fisicamente, muito parecido com ele. Assim, de repente, ele encontra-se vivendo em uma mansão luxuosa, com a identidade trocada, ao lado de três mulheres desconhecidas: sua suposta mãe (Bette Davis), sua esposa infeliz (Irene Worth) e uma filha adolescente. Quando o professor volta à sua vida real, o abastado francês assassina a esposa e não só tenta culpar John como também deseja tirar-lhe a vida para completar seu plano perfeito.

05/02/2021

Brumas (Moontide) 1942, Archie Mayo, Fritz Lang (não creditado)

Brumas no iutube  

Sobre Ida Lupino (1918–1995) 

Marinheiro mal-humorado e beberrão, Bobo acorda de ressaca em San Pablo, sem ter certeza se cometeu ou não um assassinato. Ele enfim encontra a felicidade quando evita o suicídio da jovem Anna. Porém, seu velho amigo Tiny fica enciumado e deseja que Anna vá embora. O crime ainda não esclarecido pode ser o ingrediente que ele necessita para colocar seu plano em ação

Ida Lupino 


05/02/21

M, o Vampiro de Dusseldorf (M - Eine Stadt sucht einen Mörder), 1931, Fritz Lang 

Roteiro: Thea von Harbou e Fritz Lang

M o vampiro de Dusseldorf no iutubi


 'M, O Vampiro de Dusseldorf' e a fragilidade humana pelo olhar de Fritz Lang

Luiz Carlos Merten  

Fritz Lang visitou os EUA pela primeira vez em 1924. O navio ficou atracado no porto e, olhando as luzes de Nova York, os edifícios, ele disse a Peter Bogdanovich – na entrevista para o livro Fritz Lang na América – que foi ali que concebeu Metrópolis. No começo dos anos 1930, Lang já ostentava a reputação de grande diretor. Revisara os mitos do romantismo alemão (Os Niebelungos), viajara ao futuro (A Mulher na Lua), mas sempre revelando uma particular preferência por mentes distorcidas que querem dominar o mundo (o seriado Der Spinnen e o primeiro Dr. Mabuse, O Jogador). Emendou M, O Vampiro de Dusseldorf, de 1931, com O Testamento do Dr. Mabuse. Foi chamado por Goebbels, o temido ministro da propaganda de Adolf Hitler, que propôs fazer dele o cineasta oficial do Terceiro Reich. Lang desconversou, disse que era judeu, e as restrições aos judeus tornavam-se cada vez mais frequentes na Alemanha. Ouviu de Goebbels - “Nós (os nazistas) decidimos quem é judeu.”

Apavorado, Lang fugiu – primeiro para a França, depois para os EUA, onde construiu mais da metade da sua obra, mas a fase norte-americana demorou muito para obter reconhecimento (pelos críticos da nouvelle vague). Lang fez grandes filmes, dos dois lados do Atlântico. Foi ator de Jean-Luc Godard – em O Desprezo, de 1963. Mesmo assim, há uma espécie de unanimidade. Quando se pergunta a críticos, historiadores, cineastas, qual o maior filme do artista, a resposta invariavelmente é M. Steven Jay Schneider conta uma história interessante no verbete dedicado a M em sua série 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. O produtor Irving Thalberg promoveu uma sessão de M para o batalhão de roteiristas sob seu comando em Hollywood. Cobrou deles por que ninguém lhe apresenta propostas de filmes tão inovadores, empolgantes e profundos como aquele. Mas, claro, Thalberg sabia que a história de um serial killer de crianças que, no final, é uma vítima da sociedade jamais seria aceita por um estúdio de Hollywood, nem por ele próprio.

Peter Lorre faz o assassino. Franz Becker parece inofensivo. Assobia obsessivamente uma ária de O Salão do Rei da Montanha, de Grieg. Aproxima-se das crinças, fica subentendido que abusa delas. Tudo é mostrado de forma sucinta – uma bola abandonada, um balão desgarrado que se prende nos fios de luz. A cidade fica apavorada, e Lang superpõe narração às imagens, o que era uma novidade. A polícia vai toda para a rua, atrás do criminoso. O próprio submundo agita-se, porque suas atividades ficam cada vez mais difíceis. O clima é de paranoia. Um inocente que diz as horas para um grupo de crianças é caçado. Finalmente, o criminoso é identificado, e marcado com o M do título na roupa. Levado para um subterrâneo, é julgado por uma assembleia do crime, todos a exigir justiça. A cena é impressionante. O clima opressivo, a deformação plástica do cenário, a massa robótica, a iluminação de claro-escuro, tudo remete ao movimento expressionista, do qual Lang foi um dos artífices.

Hoje em dia, ao rever M, fica difícil não pensar na cena como representação do nazismo. Toda a sociedade está doente, e logo em seguida começariam os crimes inomináveis, o extermínio em massa do regime hitlerista. Peter Lorre é pungente. No limite do desespero, grita - “Alguém me ajude!” É um dos grandes momentos a expressar a fragilidade humana na história do cinema. Peter Bogdanovich, em seu livro, diz que Lang, como criador de pesadelos, não tem igual. M foi refilmado por Joseph Losey em 1950 (O Maldito) e por Robert Hossein em 1965 (mas O Vampiro de Dusseldorf remete-se muito mais à história real que teria inspirado Lang). Em 1958, e numa produção com roteiro de Friedrich Durrenmatt, Ladislao Vaja fez Es Geschah am Hellitchen Tag, Aconteceu à Luz do Dia, sobre um inspetor que usa a filha da doméstica como isca para tentar prender o assassino de crianças interpretado por Gert Froebe, que seria depois o vilão de 007 Contra Goldfinger, em 1964.

Curiosidades sobre M 

Fuga da Alemanha

- Peter Lorre era judeu e teve que fugir da alemanha por medo da perseguição nazista logo depois que o filme foi lançado. Fritz Lang, que era metade judeu, também fugiu dois anos depois.

Mudança de título

- Ao contrário da crença popular, Fritz Lang não mudou o título do filme de "The Murders are Among Us" para "M" por causa da perseguição nazista. Ele o mudou porque durante o filme, influenciado por uma cena na qual os criminosos escrevem a letra "m" na mão, ele considerou naquele momento o título "M" mais atratativo.

Prisão durante as filmagens

- Fritz Lang declarou que o elenco da cena do tribunal no final do filme é formado por verdadeiros criminosos. De acordo com o biógrafo de Paul Jensen, 24 figurantes foram presos durante as filmagens.

A crueldade de Lang com os atores

- A crueldade de Lang com os atores era lendária na época. Peter Lorre foi jogado escada abaixo dentro de um porão pelo menos uma dúzia de vezes. Quando Lang quis contratar Lorre para fazer outro filme (Desejo Humano, 1954) mais de duas décadas depois, o ator recusou.

06/02/21

O Rio e a Morte (El río y la muerte), 1954, Luis Buñuel

O rio e a morte no iutube 

Em uma pequena cidade à beira de um profundo e escuro rio, a vingança não é considerada crime e sim um ato de coragem. Assim sendo, as famílias vivem em guerra vingando a morte de seus antepassados. Gerardo, um jovem de idéias modernas, que estudou medicina na cidade grande, tenta pôr fim a essa cultura.

Em “Rio e a morte” Bunuel mostra o ciclo da violência

Marcelo Miranda, 05/04/2012

06/02/21

As Aventuras Extraordinárias de Mister West no País dos Bolcheviques (Neobychainye priklyucheniya mistera Vesta v strane bolshevikov), 1924, Lev Kuleshov

As aventuras extraordinárias de Mister West no país dos Bolcheviques no iutube  

As Aventuras Extraordinárias de Mr. West no País dos Bolcheviques

Lev Kuleshov (1924), com Porfiri Podobeb, Boris Barnet, Aleksandra Khokhlova, Vsevolod Pudovkin, Serguey Komarov, Vera Lopatina, URSS, 55 min.

Sinopse

Querendo viajar à União Soviética, Mr. West é advertido pelas revistas americanas, os grandes meios de comunicação da época, dos terríveis perigos existente naquele bárbaro país. Para proteger-se, ele leva consigo o caubói Jeddy, seu fiel guarda-costas, mas acaba caindo nas malhas de um grupo de ladrões disfarçados de contrarrevolucinários. Passados mais de 90 anos, a sátira de Kuleshov sobre a visão dos americanos a cerca dos russos pouco perdeu de sua atualidade. No elenco, algumas futuras glórias do cinema soviético: os diretores Vsevolod Pudovkin (Shban), Boris Barnet (Jeddy), os atores Serguey Komarov (Zarolho) e Aleksandra Khokholova (Condessa).

Direção: Lev Kuleshov (1899-1970)

Lev Vladimirovich Kuleshov nasceu em Tambov. Em 1914, entrou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou. Dois anos depois começou a trabalhar como cenógrafo no estúdio de Aleksandr Khazhomkov. Entre 1918-20 cobriu a Guerra Civil. Em 1919, dirigiu os primeiros cursos do que viria a ser o VGIK (Instituto Estatal de Cinema). Entre seus alunos estavam Serguey Eisenstein, Vsevolod Pudovkin, Boris Barnet, Mikhail Romm, Mikhail Kalatozov, Serguey Komarov e Aleksandra Khokhlova que se tornou sua esposa. Foi o precursor da teoria soviética da montagem. Uma de suas experiências – o Efeito Kuleshov, descrito em seu livro “Os Fundamentos da Direção de Cinema” (1941) - consistiu em intercalar o plano onde surgia um o rosto inexpressivo de um ator com os planos de um prato de sopa, de uma criança num caixão e de uma mulher semidespida. Como resultado, apesar do plano do ator ser sempre o mesmo, a plateia “via” no seu rosto a expressão de fome, de piedade e de desejo. Dirigiu cerca de 20 filmes, entre os quais “O Projeto do Engenheiro Pryte” (1918), “Na Frente Vermelha” (1920), “As Aventuras Extraordinárias de Mr. West no País dos Bolcheviques” (1924), “O Raio da Morte” (1925), “Dura Lex” (1926), “O Grande Consolador” (1933), “Siberianos” (1940), “O Juramento de Timur” (1942), “Nós dos Urais” (1943). Seus últimos 25 anos foram dedicados ao VGIK.

Argumento Original: Vsevolod Pudovkin (1893-1953), 

Nikolai Asseyev (1889-1963)

As enciclopédias costumam situar Vsevolod Illarionovitch Pudovkin, ao lado de Serguey Eisenstein e Lev Kulechov, como um dos três fundadores do cinema soviético. Desde o início dos anos 20, eles exploravam as possiblidades da técnica de justaposição de planos para exprimir estados emocionais dos personagens, e viam na montagem o clímax do trabalho criador do diretor de cinema. Experimentaram e escreveram copiosamente sobre o tema.  Nascido em Penza, Pudovkin estudou na Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscou. Gravemente ferido, durante a 1ª. Guerra Mundial, foi feito prisioneiro em 1915. Durante os três anos de cativeiro, aprendeu alemão, inglês e polonês. Fugiu da prisão em 1918. Em 1920, começa a trabalhar com Kuleshov. Desde seu curta de estreia, a comédia “A Febre de Xadrez” (1924), dirigiu 18 filmes, entre os quais “A Mãe” (1926), “O Fim de São Petersburgo” (1927), “Tempestade sobre a Ásia” (1928), “O Desertor” (1933), "Suvorov" (1941), “Em Nome da Pátria” (1943), "Almirante Nakhimov" (1947), “Zhukhovski” (1950), “O Retorno de Vassily Bortinikov” (1953). Como ator, trabalhou em 13 filmes.

Nikolay Asseyev nasceu em Lgov, região de Kursk. Suas primeiras antologias poéticas, publicadas em 1914, "Flauta da Noite" e "Zor", sob influência do simbolismo e do futurismo. Escreveu na revista LEF (Frente de Esquerda das Artes) em 1923, desenvolvendo um estilo construtivista. Colaborou nos roteiros de “As Aventuras Extraordinárias e Mr. West no País dos Bolcheviques” (1924), “O Encouraçado Potemkim Serguey Eisenstein, 1925). Recebeu o Prêmio Stalin em 1941.

07/02/21

Quando Duas Mulheres Pecam (Persona), 1966, Ingmar Bergman

Persona no iutubi 

Quando Duas Mulheres Pecam. Este é o atroz título brasileiro de Persona (1966), a obra-prima de Ingmar Bergman. Talvez ancorado em uma sugestão de lesbianismo que uma das muitas interpretações do filme pode trazer, o título brasileiro dá as cartas para algo que é apenas um pequeno item na grande malha de situações que o longa expõe, apresentando o seguinte resumo, feito pelo próprio Bergman em 1969:

[…] uma história de uma pessoa que fala de outra pessoa que não diz nada. Em seguida, elas comparam suas mãos e finalmente elas se fundem uma na outra.

Os anos 1960 foram de intensas mudanças para Bergman, mas se pudermos realmente encontrar a primeira virada de jogo em sua própria carreira, o momento onde a direção iniciou a curva revolucionária, foi em uma comédia experimental à la Nouvelle Vague Tcheca e pouco admirada do diretor, Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (1964). Em 1965, ele não filmou nada para o cinema. Para a TV, fez apenas uma minissérie chamada Don Juan e, em particular, escreveu o roteiro de um épico, um “filme duplo” como ele mesmo definiu, que deveria ter quatro horas de duração e já tinha Bibi Andersson contratada para um dos papéis principais. O nome desse roteiro era Os Antropófagos, e seu caráter duplo geraria dois filmes do diretor: uma parte traria ideias para a formulação de Persona (embora o filme tenha tido outra fonte de inspiração, chamada Liv Ullmann, por quem Bergman parece ter se apaixonado à primeira vista) e a segunda parte virou, com uma série de mudanças, A Hora do Lobo (1968). Ainda na já citada entrevista de 69, Bergman explorou o contexto que precedeu a criação deste:

Em janeiro, fiquei doente; no começo era um simples resfriado, tinha febre, depois, em março, meu estado se agravou e revelou-se que eu estava com broncopneumonia já há algum tempo. […] surgiram complicações por causa da penicilina, contraí uma infecção por vírus no ouvido, o que me dava vertigens. […] Os Antropófagos devia ser uma grande produção e, pelas circunstâncias, o projeto foi abandonado em março. […] Bibi e Liv tinham ficado amigas em O Verão é Breve (1962) e [tinha] uma foto delas na frente de uma parede. Elas estavam sentadas, se bronzeando e quando vi esta fotografia, pensei imediatamente “meu Deus, como são parecidas!”. Havia uma semelhança bastante estranha. […] A semelhança dessas duas mulheres me intrigava. Eu achava que seria divertido escrever alguma coisa sobre duas pessoas que perdem sua identidade respetiva nas suas relações, e que de certa forma também se parecem. De repente, tive uma ideia. Elas estavam sentadas e comparavam suas mãos e tinham um grande chapéu na cabeça.

Persona. A palavra passou do etrusco “phersu” para o latim, mas sua verdadeira origem é grega, que em definição simples e imediata designa um papel social ou um personagem interpretado por um ator. Como papel social (qualquer profissão, por exemplo), o indivíduo deixa, em alguns ambientes, de ser ele mesmo para viver esta outra versão sua, a de professor, advogado, médico, enfermeiro, ator… Como personagem, a palavra funciona, por excelência, como uma criação exterior que ganha vida através de um corpo, por um determinado período de tempo (normalmente diferente dos papéis sociais, que tendem a ser, na maioria dos casos, para a vida toda — lembrando que cada pessoa representa dezenas de papéis sociais). Ainda no campo das representações, é possível entender melhor a palavra “persona” como uma máscara. E é curioso que um modelo greco-romano, feito com um considerável espaço no lugar da boca para a voz per sonare (soar através de…) seja uma das grandes representantes desse dilema que nos rodeia o tempo inteiro, mas que só em ocasiões muito extremas é que consideramos raciocinar sobre ele. Se a gente representa papéis sociais o tempo inteiro, quando é que somos nós mesmos? Com quem? Por quanto tempo?

Para o suíço Carl Jung, “a persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo”. 

É a partir daí que podemos olhar para a relação que se estreita entre a enfermeira Alma (Bibi Andersson, em uma interpretação visceral, numa roda gigante de emoções) — prestem atenção ao nome de sua personagem — e a atriz Elisabet Vogler (Liv Ullmann, em seu primeiro filme com Bergman, numa interpretação que carrega todas as dores do Universo, dizendo apenas três palavras durante o filme todo) — prestem atenção no sobrenome, Vogler, o mesmo do ilusionista de O Rosto (1958). Durante uma interpretação de Electra, Elisabet tem um colapso nervoso e fica muda. Ou melhor, deixa de falar. Ela assume uma persona de mulher enferma, para, segundo a Doutora que cuidava de seu caso (Margaretha Krook), escapar da versão de mulher que a sociedade queria que ela fosse. Incapaz de amar, Elisabet mergulha e se diverte em seu narcisismo, como um prazer interno que ela é incapaz de transferir para um objeto de desejo ou outro alguém, sob outra perspectiva de amor. Ela demanda atenção e não se importa com mais nada, chegando a escrever para a Doutora que a enfermeira que cuidava dela era um “interessante caso de estudo “.

Junto à imensa transformação técnica que Bergman teve em Persona, um filme que realmente mudou sua vida e o tom de sua filmografia daí em diante, temos mais um trabalho bárbaro de Sven Nykvist na direção de fotografia. Desde o início, o artista procurou marcar as personagens como pedaços de si mesmas, como se estivessem incompletas, algo visualmente indicado com uma parte do rosto das atrizes escurecida e outra com luz frontal. A princípio isso é feito através do ambiente, no quarto de Elisabet, nos tirando da visão ampla do ambiente para focar em uma única coisa: um rosto. A saída do Universal, para o particular. Nykvist classificaria o processo de filmagens Persona como “tedioso”, apesar do soberbo resultado alcançado. E a fala do fotógrafo é compreensível se considerarmos que este é essencialmente um filme que intercala planos-sequências e muitos, muitos closes em rostos, bocas e… mãos. A primeira coisa que chamou a atenção de Bergman em suas atrizes, na pré-produção, e que ele destacou frequentemente no filme. No Prólogo, classificado como um “poema em imagens” onde se unem sacrifício, libido, crucificação, horror e morte, as mãos começam a aparecer com os seus diversos simbolismos, dando ideia de atividade e poder sobre alguma coisa — exceto quando está caída, simbolizando a morte. Ao longo do filme, ações como estender, colocar ou tirar a mão, especialmente do rosto, será uma das formas de comunicação entre as protagonistas.

No geral, existem três vertentes recorrentes de interpretação para Persona. Uma, afirma que Alma e Elisabet são duas pessoas distintas, passando pelo exato problema que o filme apresenta. Outra, diz que Alma é a persona de Elisabet e a última, diz que Elisabet é a persona de Alma. Neste ponto, é preciso ter uma ideia bem clara sobre o filme: ninguém nunca vai entendê-lo por completo. E isso é a melhor coisa da obra. Desde 1966 ela vem acumulando dissertações e teses das mais diversas ordens, debates acalorados sobre personalidade e convivência, críticas sobre técnica e beleza cinematográficas e, mesmo assim, ainda há coisa nova para ver e interpretar no filme, que não envelheceu um único segundo desde então. Experimental e metalinguístico, Persona é uma obra que usa de sua própria temática para descobrir-se, destruir-se e reconstruir-se, seja pelo gancho inicial e final, seja no momento da quebra dramática, no ápice da dissociação de personalidades. O filme simplesmente se queima, no meio da projeção, lançando-nos uma série de imagens — o mundo exterior onde tudo é som e fúria — para então voltar ao ponto em que estava. Ou pelo menos é isso que a gente acredita, a princípio.

Após a sequência em que Alma lê a carta de Elisabet, temos um silêncio constrangedor na casa, seguido por uma cena de um caco de vidro deixado propositalmente no chão para alguém pisar. Muda a cena. Alma está na sala. Vai até uma cortina e a afasta (momento em que o conhecimento oculto é revelado) e justamente neste ponto, o filme se quebra, queima, e então não estamos mais na casa. Vemos cenas aleatórias de uma comédia, um olho (perspectiva do diretor ou nossa?) e a máscara do próprio filme volta a ser colocada. Não a mesma, porém. A máscara de Persona COMO FILME, após os minutos 46 e 48 é outra.

Até ali, se descontarmos o Prólogo, toda a narrativa tinha uma montagem linear compreensível, a cargo de Ulla Ryghe, que fez um excelente trabalho rítmico e de adequação de personagens ou cenários na tela, processo acompanhado por uma trilha sonora (de Lars Johan Werle, que voltaria a trabalhar com Bergman em A Hora do Lobo, e então encerraria sua carreira no cinema) que sabe o momento de aterrorizar e nos deixar apreensivos. Vale também citar, nesse meio tempo, a ocorrência de uma das cenas mais eróticas do cinema, onde Alma relembra uma orgia com dois garotos e uma amiga, e onde Bergman rejeitou o flashback, deixando todo o relato e sua força libidinosa nas mãos da excelente Bibi Andersson. Mas este ainda é o momento da “normalidade”, se podemos falar algo assim, mesmo antes de o filme destruir a sua primeira máscara e então, colocar outra.

Desse ponto em diante, tudo muda. Ele se torna mais selvagem, a edição mais inconstante, com cortes bruscos e comparações visualmente incômodas (no bom sentido). A fotografia vai abandonando a névoa, os momentos difusos, e abraça definitivamente as sombras, que não cedem nem mesmo no momento em que deveria haver uma mudança positiva, com a visita do marido de Elisabet (Gunnar Björnstrand) à casa — que é cego, e sua atitude nesta parte da obra nos faz perceber uma coisa. A fusão de personalidades chegou a tal ponto que nem mesmo os sentidos além da visão conseguem mais captar as diferenças. A trilha sonora entra de vez no campo do terror e o filme se torna mais pesado, com as grandes crises de Alma como motor da história, a indiferença de Elisabet como vampirismo da energia vital de Alma e o tempo sendo plenamente dissociado da realidade comum, plasmado em mudanças de cenário e passagens de dia para noite apenas com um corte simples, como se a percepção dessas personagens estivesse inteiramente comprometida no momento em que se fundem uma à outra, lembrando-nos a situação mental da personagem de Harriet Andersson ao ver o “Deus-Aranha” em Através de Um Espelho (1961), animal que retorna aqui também.

É difícil especificar o que de fato acontece no final da película e nem vou entrar nessa seara, porque é um exercício unicamente pessoal (podemos falar sobre ele nos comentários, se vocês quiserem, é só levantar a questão), mas é importante relembrar que não existe uma interpretação fixa para o destino das personagens aqui. Bergman comentou diversas vezes que o filme pode significar “tudo e nada ao mesmo tempo”, cabendo ao espectador usar do que tem em mãos, ou seja, o próprio filme, para justificar e alimentar sua versão do que é a história. Persona é um filme difícil. É filme que parece não ter sentido algum — e a rigor, ele não tem: é um exercício de troca com o público, que precisa usar as peças e adequá-las, de alguma forma, nas estantes de símbolos que o diretor constrói –; é um filme incômodo e experimental, no sentido técnico e narrativo da palavra. Uma mudança total para Bergman e uma pérola inestimável da Sétima Arte, que se transforma a cada vez que a gente assiste. Um filme como nenhum outro. Um convite à muda de máscaras, à desconstrução e fusão de si mesmo a uma outra coisa. Persona.

Quando Duas Mulheres Pecam (Persona) – Suécia, 1966

Direção: Ingmar Bergman

Roteiro: Ingmar Bergman

Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand

Duração: 85 min.

Luiz Santiago

08/02/2021

Lua de Mel de Assassinos (The Honeymoon Killers), 1970,  Leonard Kastle, Martin Scorsese (não creditado)


The Honeymoon Killers is a 1970 American crime film written and directed by Leonard Kastle, and starring Shirley Stoler and Tony Lo Bianco. Its plot follows a sullen, overweight nurse who is seduced by a con man, with whom she embarks on a murder spree of elderly women. The film was inspired by the true story of Raymond Fernandez and Martha Beck, the notorious "lonely hearts killers" of the 1940s. 

Filmed primarily in Pittsfield, Massachusetts, production of The Honeymoon Killers began with Martin Scorsese as its appointed director. However, after Scorsese was fired early into the shoot, Kastle, who had helped develop the film, took over directing. The film's score comprises the first movement of the 6th Symphony and a section of the 5th Symphony of Gustav Mahler. Released in early 1970, the film was met with critical praise for its performances, as well as remark of its realism. 

The Honeymoon Killers went on to achieve cult status as well as critical recognition, and was named by François Truffaut as his "favorite American film." A digital restoration of the film was released on DVD by The Criterion Collection in 2003, and again in 2015 with a new digital transfer. 

Martha Beck is a sullen, overweight nursing administrator living in Mobile, Alabama, with her elderly mother. Martha's friend Bunny surreptitiously submits Martha's name to a "lonely hearts" club, which results in a letter from Raymond Fernandez of New York City. Overcoming her initial reluctance, Martha corresponds with Ray and becomes attached to him. He visits Martha in Alabama and seduces her. Thereafter, having secured a loan from her, Ray sends Martha a Dear Jane letter, and Martha enlists Bunny's aid to call him with the (false) news that she has attempted suicide. 

Ray allows Martha to visit him in New York, where he reveals he is a con man who makes his living by seducing and then swindling lonely women. Martha is unswayed by this revelation. At Ray's directive, and so she can live with him, Martha admits her mother in a nursing home. Martha's embittered mother disowns her for abandoning her. Martha insists on accompanying Ray at his "work." Woman after woman accepts the attentions of this suitor who goes courting while always within sight of his "sister". Ray promises Martha he will never sleep with any of the other women, but complicates his promise by marrying pregnant Myrtle Young. After Young aggressively attempts to bed the bridegroom, Martha gives her a dose of pills, and the two put the drugged woman on a bus. Her death thereafter escapes immediate suspicion. 

The swindlers move on to their next target, and after catching Ray in a compromising position with the woman, Martha attempts to drown herself. To placate her, Ray rents a house in Valley Stream, a suburb of New York City. He becomes engaged to the elderly Janet Fay of Albany, and takes her to the house he shares with Martha. Janet gives Ray a check for $10,000, but then becomes suspicious of the two. When Janet tries to contact her family, Martha and Ray bludgeon her with a clawhammer before strangling her to death. They bury her body beneath their cellar floor in her trunk, tossing into the grave's dirt the two framed depictions of Jesus that, Martha notes sarcastically, she'd told them she took everywhere she went. 

Next, they spend several weeks living in Michigan with the widowed Delphine Downing and her young daughter. Delphine, younger and prettier than most of Ray's conquests, confides in Martha, hoping that she will help her persuade Ray to marry her as soon as possible because she is pregnant with Ray's child. Martha is in the midst of drugging Delphine when the woman's daughter enters the room with Ray. He shoots Delphine in the head, and Martha drowns the daughter in the cellar. Ray tells Martha that he must proceed with his plan to move on to one more woman, this one in New Orleans, and then he will marry Martha; he reaffirms his promise never to betray her with one of his marks. Realizing that Ray will never stop lying to her, Martha calls the police and waits calmly for them to arrive. 

The epilogue takes place four months later, with Martha and Ray in jail. As she leaves the cellblock for the first day of their trial, Martha receives a letter from Ray in which he tells her that, despite everything, she is the only woman he ever loved. Titles on the screen then conclude the story, saying that Martha Beck and Raymond Fernandez were executed at Sing Sing on March 8, 1951. 

09/02/2021

O Padre e a moça, 1966, Joaquim Pedro de Andrade

O padre e a moça no iutube 

O Padre e a Moça: censura, igreja e estado “Acredito que as soluções de questões formais em um filme devem ocorrer, quase automaticamente, como decorrência de uma posição ideológica fundamental assumida pelo autor. Acontece que eu ainda ando a procura de minha definição e uso o próprio cinema nessa busca, ou me formo pelos filmes que eu faço.” “O Padre e a moça é uma reflexão de um problema em aberto. É a descrição de uma luta em busca de uma vida melhor

Esse é o problema geral dentro do qual o filme está inserido.” “Havia no poema, entre vários temas, um que me interessou especialmente. É o da dificuldade de viver e de amar, de ter relação com uma pessoa, da importância que essas relações têm para uma vida. Para mim talvez esse seja o tema principal do filme.

(Jornal do Commércio 10/04/1966 – entrevista a José Wolf,

O Padre e a moça: Visão cosmológica de um cineasta (...)

 11/02/2021

Iman da Morte ou Barba Azul (Bluebeard), 1944, Edgar G. Ulmer

Bluebeard no iutube 

Bluebeard é um dos seus melhores filmes

Ulmer: Sim. Foi um filme tremendamente desafiador. Em primeiro lugar, John Carradine era uma pessoa em quem eu podia confiar, do mesmo modo que Arthur Kennedy (em Naked dawn, 1955 https://www.imdb.com/title/tt0048411/). Ele entendia o que estávamos tentando fazer. Sim foi um filme muito gostoso. A PRC não gostou. Foi rodado depressa, em seis dias.

O filme tem uma atmosfera notável

Ulmer: Sim, o filme mostra todo o amor que sinto por Paris

Você criou Paris no terreno do estúdio?

Ulmer: Claro. Eu mesmo fiz os cenários, como fiz para The wife of Monte Cristo. Como diretor de arte, desde o início eu adorava a Ile-de-France, Montparnasse e Montmartre; em tudo o que fazia, sempre me envolvia com aquilo – eu adoro Paris.

Bluebeard ganhou algum dinheiro?

Ulmer: Claro. Foi um dos filmes que ganhou um dinheirão enorme em Paris

(Peter Bogdanovich, Afinal, quem faz os filmes, p. 688, Companhia das Letras, 2000)

12/02/2021

Epílogo de uma Sentença (The Tattered Dress), 1957, Jack Arnold

Epílogo de uma sentença no iutubi 

The Tattered Dress, no Brasil, Epílogo de uma Sentença, de 1957, começa com um crime, mas não é propriamente um policial. O crime acaba virando algo secundário – o mais importante vem a ser o advogado de defesa do criminoso. E The Tattered Dress, como o título brasileiro indica, é filme de tribunal. 

Não é um grande filme, na minha opinião – e nem tem fama nem muitos admiradores fanáticos. Mas tem um ótimo elenco e algumas características bem interessantes.

Uma delas: é bastante arrojado, corajoso, para a época em que foi feito. Avança alguns sinais, naquela década moralista, careta, em que o Código Hays, o código de autocensura dos estúdios, ainda estava em plena vigência.

O Código Hays não gostava de infidelidade conjugal. Casamento era coisa sagrada, não podia ser conspurcado nos filmes. Em seus Princípios Gerais, dizia: “Nenhum filme deve ser produzido de maneira a rebaixar os princípios morais daqueles que o vêem. Desta forma, a simpatia da audiência não deve nunca ser lançada para o lado do crime, do erro, do mal ou do pecado.”

No item “Aplicações Particulares”, o Código especificava: “A santidade da instituição do casamento e do lar deve ser respeitada. Os filmes não deverão inferir que baixas formas de relacionamento sexuais são aceitas ou comuns.”

E em seguida: “O adultério, às vezes necessário como material da trama, não deve ser tratado explicitamente, ou justificado, ou apresentado atrativamente.” (...) 

Sérgio Vaz 

13/02/2021

Protegida de Papai (The Lady in Question), 1940, Charles Vidor

Protegida do papai no iutubi

A protegida do papai

André Morestan, o tempestuoso e bem-humorado dono de uma loja parisiense de bicicletas, é chamado a júri e fica tão comovido por Natalie Roguin, a garota acusada de assassinar seu amante, que ele pede um veredicto de inocente. Assim que Natalie é absolvida, André lhe oferece um emprego e a leva para sua casa sob o pretexto de que ela é filha de um antigo colega de classe. 

 As complicações surgem quando a esposa de André, Michele, começa a suspeitar  de sua história e seu filho Pierre reconhece Natalie e suspeita que ela esteja tendo um caso com seu pai. Logo, Natalie supera as dúvidas de Pierre e os dois se apaixonam. O problema chega aos amantes através de Robert La Coste, o noivo da filha de André, François, que descobre a verdadeira identidade de Natalie e começa a fazer avanços em sua direção. 

 Para evitar mais problemas, Natalie jura deixar a casa de Morestan e Pierre decide roubar a caixa de seu pai para que ele possa fugir com ela. Quando André descobre o roubo, ele acusa Natalie de ser culpada o tempo todo e a manda embora de casa. 

 Convencido por Henri Lurette, um jurado no caso, André vai ao Presidente da Corte para argumentar por um erro judiciário quando o juiz o informa que foram encontradas novas provas que comprovam a inocência de Natalie. André, então, retorna para casa com pesar para receber Natalie em sua família.

14/02/2021

O Testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse), Fritz Lang, 1933

O testamento do Dr. Mabuse no iutubi  

Em 1943, Lang declarou nos Estados Unidos: “Esse filme foi concebido para denunciar os métodos terroristas de Hitler. Os slogans e doutrinas do IIIº Reich foram postos nas bocas dos crimonosos”. De fato, Mabuse professava: “É preciso aterrorizar as pessoas até o ponto em que, perdendo a confiança no Estado, elas nos peçam ajuda. A humanidade deve ser lançada num abismo de terror”, etc. O filme foi logo proibido por Goebbels, a 29 de março de 1933, e Fritz Lang (cujo Nibelungos Hitler adorava), recusando-se a tornar-se diretor artístico da UFA, emigrou para a França. Por outro lado, a co-roteirista do filme Thea von Harbou, já era então membro do partido nazista. Portanto, pode-se perguntar se não foi inventada post-fact (com toda boa fé) essa explicação política de um filme policial de terror, na linha do primeiro Mabuse. (George SadoulDicionário de filmes, LPM, p. 230, 1993).

15/02/2021

O Som do Silêncio (Sound of Metal), 2019, Darius Marder 

'O Som do Silêncio' é audacioso ao retratar um metaleiro surdo

Filme não é uma boa escolha para quem chega em casa cansado procurando repousar

Inácio Araujo

“O Som do Silêncio” trata de um abismo, o de um homem, Ruben, baterista que, subitamente, perde a audição. Não só isso, perde também sua parceira de vida e música, Lou. De uma hora para outra, Ruben se vê recolhido a uma instituição, cristã naturalmente, dedicada ao tratamento de pessoas surdas.

Tratamento não é uma boa palavra. Para Joe, o líder do lugar, não se trata de ensinar a linguagem dos sinais ou coisas assim –a surdez (que adquiriu no Vietnã) é algo absoluto, uma maneira própria de experimentar as coisas. Ele não diz isso com todas as palavras, mas essa é a questão.

Como um músico a pode vivenciar? Num estado de absoluta angústia, é evidente. O som para ele é um absoluto. Sua ausência, a morte.

Eis algo que não é tão fácil de representar, e Darius Marder consegue –a dor, a perda absoluta. Isso vem em grande medida do contraste entre os dois universos –o mundo agitado, gritante, do metal, e o duplo silêncio que Ruben experimentará na instituição, pois não se trata só de estar entre surdos e aprender a ser surdo, mas de viver num lugar isolado, em que seria muito agradável, talvez, passar uns dias depois de um ano de trabalho estafante. Mas não é isso o que Joe promete, é uma vida disso.

Não admira que a instituição seja cristã. Ruben percebe que o silêncio a ele reservado é o dos monges (de certos monges). Isso é o que Joe, no limite, está propondo. O uso apropriado dos contrastes entre som e silêncio, no filme, nos leva a partilhar a experiência do músico.

Ele quer de volta sua audição e sua companheira. Quer o mundo em que vivia e não a vida inexistente, infantilizada, que propõe a ele uma instituição cheia de regras repressivas.

A boa notícia é que ele conseguirá escapar desse inferno, por obra de um implante. A má notícia é que isso está longe de ser o fim do problema.

Ou antes, é sua nova relação com o som que nos põe enfim diante da questão proposta pelo filme —por meio de Joe, que encontra no silêncio a quietude de sua alma (ou, enfim, diz que encontra, ou, em todo caso, a busca).

Ao deixar a instituição, Ruben se vê devolvido ao universo do som. Não o som que conhecera, mas o som distorcido, o som possível que o implante proporciona a ele. Mas esse som distorcido é o do mundo, com todos os seus deslocamentos e encontros. Lá está ele, por exemplo, próximo ao pai de Lou, cuja mulher o abandonou certa vez levando a filha consigo, e depois se matou. Lá está ele com sua própria história, a de um jovem que se cria mudando de uma cidade a outra por causa da profissão da mãe (enfermeira do Exército).

A música, afinal, não traz só o furor do som. O mundo é feito desses deslocamentos, é possível constatar. Pode conter a tristeza, também. Nele a questão proposta de Marder parece consistir em encontrar a quietude, a paz de espírito. Ou, talvez, em perceber, como um todo, o humano e o divino que se manifestam (ou não) nas coisas, mesmo no toque do carrilhão de uma igreja.

Não é um filme para quem chega em casa cansado e procura um repouso. Não há repouso, aqui –nem no som, nem no silêncio. Na busca, talvez. É a audácia da Amazon programar um filme dessa natureza, mas é também uma virtude do streaming –tudo vale sem ser obrigatoriamente um vale tudo.

16/02/2021

Agnes Joy,  2019, Silja Hauksdóttir, Islandia


Em Agnes Joy, seu segundo longa-metragem, a diretora Silja Hauksdóttir apresenta o drama de uma família em frangalhos. A filha única Agnes está se tornando adulta. Mas, ela se sente revoltada e perdida, pois sua mãe está sempre ausente por causa do trabalho. E Rannveig, além do problema de relacionamento com a filha, enfrenta a desmotivação no trabalho, juntamente com a falta de amor do marido. Eventualmente, o ator Hreinn se torna o novo vizinho dessa família. E desperta o desejo dessas duas mulheres.

Drama intimista

Apesar dessa trama novelesca, Agnes Joy assume a faceta de um drama intimista. Por isso, Rannveig deixa sua frustração acumular. Então, busca uma válvula de escape no sexo. Primeiro, se masturbando no escritório. Depois, transando com Hreinn. Mas, quando descobre a insensatez dessa súbita paixão, explode em atos raivosos.

Já Agnes age com a ingenuidade de sua idade. Após transar com Hreinn, logo pensa que ali nasce um relacionamento amoroso. Nesse ponto, o filme se mantém distante, numa posição racional que revela claramente que ela está se iludindo.

Katla M. Þorgeirsdóttir e Donna Cruz interpretam essas duas protagonistas com valentia. Afinal, suas emoções devem vir de dentro, pois não estamos diante de um romance hollywoodiano. Nesse sentido, constroem o melhor ingrediente do filme.

Apesar disso, suas atuações não conseguem esconder a fragilidade do roteiro para aprofundar esses personagens. Por exemplo, o filme não enfatiza que Rannveig sofre tanto em seu emprego. Como resultado, soa exagerada a cena grandiosa que a mostra saindo da empresa rumo à liberdade. Da mesma forma, não encontramos demonstrações de uma paixão arrebatadora de Agnes por Hreinn.

Em suma, Agnes Joy se torna um drama tão austero que, em alguns aspectos, acaba por esconder demais as emoções de seus personagens.

Esse filme foi indicado pela Islândia para a disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional de 2021.

Sinopse:

Rannveig está experimentando um burnout em todos os aspectos de sua vida suburbana. Ela está presa a um trabalho que odeia e um casamento que está morrendo lentamente. Além disso, ela está constantemente lutando com Agnes, sua filha rebelde de 18 anos. Por outro lado, não aceita a possibilidade de Agnes crescer e deixá-la. Quando um novo vizinho, Hreinn, aparece à sua porta, Rannveig e sua família enfrentam novos desafios que estão além de seu controle.

17/02/2021

Time, 2020, Garrett Bradley

Review: ‘Time,’ a wrenching story of love and injustice, is one of 2020’s great documentaries

By JUSTIN CHANG, FILM CRITIC, OCT. 8, 2020

The Times is committed to reviewing theatrical film releases during the COVID-19 pandemic. Because moviegoing carries risks during this time, we remind readers to follow health and safety guidelines as outlined by the Centers for Disease Control and Prevention and local health officials.

The opening sequence of “Time,” Garrett Bradley’s haunting, heartrending documentary, is a nearly six-minute masterpiece in miniature. It’s a montage of home-video snippets, shot over several years by Sibil Fox Richardson, who goes by Fox Rich. We first see her aiming the camera at herself and trying to figure out the best angle — the first of many moments in which she’ll gently assert her authorship, framing and reframing her own image. She speaks of her husband, Robert Richardson, who’s in prison, noting she herself was released about a week earlier. Moving on to a happier subject, she announces she’s pregnant with twins, standing up to reveal her gently swollen belly. Before she can say much more, one of her young sons, Laurence, pops into the frame with a goofy grin — and for the next few minutes the camera is giddily aloft, leaping from one scene to the next, in what almost feels like a single uninterrupted movement. Piano chords flood the soundtrack, and images flood the screen: We see Rich hanging out with her boys at home, splashing about with them in a pool, lecturing them in the car and jostling next to them on a carnival ride. Eventually she addresses the camera again, quietly beaming: “Do you see this smile, Robert?” she whispers. “Do you know how hard I’m gonna be smiling when you come home?”

It’s an intensely intimate sequence, teeming with life, pulsing with joy and yet marked by a powerful, palpable absence. Rich filmed these moments so that her husband could see a little of what he’d missed after his eventual release. Many years later, she turned over her roughly 100-hour trove of material to Bradley, who had already been filming Rich and her six sons (including those now fully grown twins, Freedom and Justus). Bradley and her editor, Gabriel Rhodes, began cutting together the past and present footage and what emerged was a prismatic story of crime and punishment, a critical portrait of the prison system’s many casualties and an 81-minute, two-decades-spanning epic of love, devotion and perseverance.

“Time,” which opens in select theaters this week and begins streaming Oct. 16 on Amazon, is an artful puzzle, a hypnotic game of chronological hopscotch. But as constructed by Bradley, who won a directing prize at this year’s Sundance Film Festival, it’s bound by certain formal unities. Despite the clear contrast between the rough-hewn archival video and the sharp, shimmeringly beautiful newer material (shot by Zac Manuel, Justin Zweifach and Nisa East), the entire movie is rendered in black and white. It’s a visual choice that allows both time frames to gently blur while still remaining distinct, even as they are often tied together by the melancholy strains and surging arpeggios of Jamieson Shaw and Edwin Montgomery’s score.

Most of all, perhaps, “Time” is held together by Rich’s remarkable voice — soft and raspy in the older clips, deeper and more declarative in the more recent ones. It’s clear from the outset that she’s a born storyteller. She tells us how she and Robert fell in love as teenagers, married in 1997 and hoped to open a hip-hop clothing store in Shreveport, La. When their plans fell through, they committed a foolish, desperate act and tried to rob a credit union. Rich, who drove the getaway car, received a plea deal and served three-and-a-half years. Robert was convicted and sentenced to 60 years in prison, a staggering sentence for a robbery in which no one was hurt. (The story of Robert’s nephew, who also participated in the crime, goes untold here.)

“Sixty years … of human life,” an older Rich murmurs, with more disbelief than self-pity. By this point her husband has served 20 years of that sentence, and she’s spent a lot of time petitioning for his release, filing appeals and making endless phone calls on his behalf. She’s also given lectures about her family’s experience and the injustices of a carceral state in which Black people are grotesquely overrepresented, which she and others liken to a modern-day reconstitution of slavery. Rich and her children might not be behind bars but as long as Robert is, they are not, in any meaningful sense, free.

And the devastating loss they feel is somehow made more acute, rather than less, by the very real counterpresence of joy, success and fulfillment in their lives. “Time” is a patchwork of moments big and small: We see Freedom speaking in a political science debate, Justus impressing his mom with some of his college French and their older brother Remington graduating from dental school. Most of all, we see Rich gradually (though not always chronologically) coming into her own, whether she’s publicly reckoning with her long-ago crime at church, taping a TV commercial for the car dealership she now runs or speaking publicly about the pain of growing older without her husband — and seeing her boys grow up without their father.

Rich rarely looks more radiant than she does in those speeches, partly because we can see the effect of her words on her listeners — most of them other Black women held rapt by her intensity of feeling — and partly because of the unapologetic glamour with which she’s presented. That glamour suffuses nearly all the recent footage, bringing an intense, almost sacralizing beauty to bear on simple deeds and gestures: a young man ironing a shirt, a woman steeling herself for another dispiriting phone call. Some of these images recur steadily throughout, as if to remind us of the repetition that comes with waiting, the ritualistic despair that seeps into every moment.

The saddest recurring image is a silent God’s-eye view of the Louisiana State Penitentiary, which is as close as we get to seeing Robert during his incarceration, apart from the life-sized cardboard cutout of him that graces the Richardsons’ walls. His absence quietly haunts the movie even as it builds toward a moment of such shattering emotional force that the screen can hardly contain it; it all but ruptures the surface of a movie that is already a record in fragments. “Time” can make you weep for a hundred reasons, from joy, pain or recognition, but its wounds and its glories are finally inextricable from one of the paradoxes of moviemaking itself. Cinema can magically compress decades into hours and transform lives into narratives, but what it erects here is ultimately a monument to something irretrievable. Cherish every moment of this movie, because each one stands in for all the others that have been lost.

Los Angeles Times

18/02/2021

Yangguang puzhao (A sun), (2019), Mong-Hong Chung

'A Sun' ('Yang Guang Pu Zhao'): Film Review | Tokyo 2019

Deborah Young 

In his fifth feature, Taiwanese director Chung Mong-hong finds tenderness and violence in a hard-working family whose two sons grow up facing in opposite directions. 

A family scrambling for economic survival falls to pieces when the two teenage sons make devastating life decisions in the moving drama from Taiwan, A Sun (Yang Guang Pu Zhao). Directed and co-written by Chung Mong-hong (Soul, Godspeed), it poses the moral question of whether it’s possible to survive as a wholly good person in a treacherous world. This thought-provoking drama is long but well-paced, full of incident but at the same time intimate — though shocking violence occurs just offscreen. Illuminated by deeply nuanced performances and characters to care about, it positions itself somewhere between the loving but messed-up families of Edward Yang and Ken Loach. It's one of the memorable Asian films this year, well worth the effort of tracking down after bows in Toronto and Tokyo, and could work well in limited release with Asian cinema fans.

Chung, a former director of TV commercials who also handles the lighting of his films under the name Nagao Nakashima, is very much in control of the desolate but poetic mood that makes the film feel so distinctive. For his part, A-wen (Chen Yi-wen), the crabby and inordinately proud father of the family, sets a tone of tension in the kitschy apartment he shares with his hairdresser wife, Chin (the magnetic Samantha Shu-chin Ko), and their sons. However, A-wen only recognizes his sensitive, considerate premed boy A-hao (Xu Guang-han); the punky A-ho (Wu Chien-ho), black sheep of the family, he self-righteously chooses to ignore.

In a dynamic opener set in a busy restaurant, A-ho is the accomplice of a mad dog pal called Radish (Liu Kuan-ting), who chops off a rival’s hand in a restaurant, a scene that sets the action bar high. The time is 1996, a year of presidential elections in Taiwan when tensions with China were particularly high — but this is just background to the domestic story. A-wen, a crabby driving instructor whose graying hair suggests he’s chastised a few too many student drivers in his time, attends his son’s hearing only to urge the judge to lock him up as long as possible. His wife is furious with him, but A-ho just looks defeated. This brief scene speaks volumes about the family dynamics that have left this son out in the emotional cold and probably pushed him into bad company.

The other mark against A-ho is the constant comparisons Dad makes with his brother A-hao, who is undoubtedly the “sun” of the title. He always takes the high road, but his pure heart and sunny reputation deprive him, he tells a girlfriend, of "a dark corner to hide in." It's the first hint that no living being can be all light, all the time. When he goes to visit A-ho in a juvenile detention center that looks very much like a prison, he brings with him a young girl who is carrying A-ho’s baby. Her family has dumped her on their doorstep and their good-hearted mother has taken her in. A-ho doesn’t take the news well.

Out of the blue, in a plot twist no one is expecting, A-hao drops out of the story, and it’s like the center of the family has fallen out; the sunshine has vanished from their lives. A few years pass and A-ho and Radish are released from detention. A-wen remains stonily unforgiving and refuses to even talk to the boy, who now has a wife and child on his hands.

The second half of the film shows how a youth who has been marked as a social liability has very little chance of fulfilling his good intentions. Sober-faced but unbowed, Wu Chien-ho does a fine job making the rebellious A-ho into a human being who matters, tough enough to stand a fighting chance of straightening out his life against overwhelming forces of darkness. On a lonely road one dark and stormy night, a final, heart-rending twist shows he's not as alone as he feared.

The last scenes, which again turn to criminal violence, broach gangster film territory, while they underline how morally messy life is. Even murder may be a necessary part of it. It’s an idea worth pondering, one that Chung reinforces with a light touch when A-ho and his mother go for a stolen bike ride in the dappled shade of their pleasant street. 


18/02/2021

A febre, Maya Da-Rin, 2019

Filme 'A Febre' nos faz mergulhar em Brasil que dificilmente alcançamos

Olhar documental de Maya Da-Rin não faz sobrevoos, não oferece visões aéreas e idílicas das nossas verdes matas

Cássio Starling Carlos

O índio, no cinema da matriz de Hollywood, foi durante décadas o inimigo, o selvagem que deveria ser abatido, a natureza em estado bruto à qual o homem branco se impunha. No nosso cinema, o índio não ameaça, já aparece romantizado, folclorizado, idealizado como bom selvagem ou é exibido como resíduo histórico, com pouca visibilidade e nenhum nome.

“A Febre” não busca essa suposta origem perdida, nem opta pelo discurso de denúncia de injustiças. Em seu primeiro longa de ficção, Maya Da-Rin retorna ao território de seus primeiros trabalhos documentais e nos faz mergulhar num Brasil que dificilmente alcançamos.

Avesso ao padrão Globo Repórter, o olhar documental de Da-Rin, intacto mesmo na forma da ficção, não faz sobrevoos, não oferece visões aéreas e idílicas das nossas verdes matas. Sua perspectiva é de imersão nos espaços, nas condições de vida, nos modos de ver.

Por isso, a entrada de “A Febre” no catálogo da Netflix tem a vantagem de nos mostrar um Brasil que a gente não vê ou prefere deconhecer. Mas tem a desvantagem de concorrer com a ligeireza das narrativas que ocupam tempo demais de nossa atenção volátil.

Justino, papel de Regis Myrupu, e sua filha, Vanessa, vivida por Rosa Peixoto, não são representados como outros. Eles estão integrados nessa sociedade que se enxerga como branca, foram assimilados via trabalho, vivem em espaços urbanos, têm acesso à educação.

Ao mesmo tempo, por meio da língua nativa, eles se comunicam entre si, enquanto usam o português para falar com brasileiros como nós, que somos outros. Essa duplicidade reaparece na interpretação que o irmão de Justino faz do animal que ronda a vizinhança. Segundo ele, essas criaturas pertencem a dois mundos, vivem lá e cá. Seu modo de existência não exclui outros, não se reduz ao outro e permanece inassimilável.

A febre que acomete Justino é sintoma de alguma doença, alegoria do mal-estar de viver numa sociedade que só o identifica como “índio” ou expressão enviesada de saudade da filha que está de partida?

Em vez de dar respostas simples e incompletas, “A Febre” nos atrai para os outros mundos da existência de Justino, o das origens no espaço da natureza e o da exploração do trabalho, o do pensamento mágico e o da existência sem horizontes, o de um Brasil que não é mais e o de um país que não será.

A Febre

A Febre é um filme franco-teuto-brasileiro de drama e suspense dirigido por Maya Da-Rin. Falado em português e nas línguas indígenas tukano e tikuna, é escrito por Maya Da-Rin, Miguel Seabra Lopes e Pedro Cesarino, e protagonizado por Regis Myrupu e Rosa Peixoto.[1] Seu elenco principal é composto por atores indígenas do Alto Rio Negro, pertencentes aos Desanos, Tucanos e Tarianas, tendo sido para muitos deles a primeira experiência no cinema.

O filme estreou na competição internacional do 72º Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, onde ganhou o Leopardo de Ouro de Melhor Ator para Regis Myrupu, o prêmio da crítica internacional da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI) e o prêmio Environment is Quality of Life concedido pelo júri jovem.[2] Além do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, Regis Myrupu também recebeu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília, tendo sido a primeira vez que um ator indígena é premiado em ambos festivais.

...

A Febre é uma co-produção entre o Brasil (Tamanduá Vermelho e Enquadramento Produções), França (Still Moving) e Alemanha (Komplizen Film), produzida por Maya Da-Rin, Leonardo Mecchi e Juliette Lepoudre e co-produzida por Pierre Menahem, Janine Jackowski e Jonas Dornbach. O projeto participou da residência de roteiro Cinéfondation do Festival de Cannes e dos laboratóris Script&Pitch e FrameWork promovidos pelo TorinoFilmLab. Foi rodado na cidade e zona metropolitana de Manaus, durante 7 semanas e meia, entre os meses de abril e junho de 2018. Sua equipe e elenco são majoritariamente formados por nomes locais amazonenses.

19/02/2021

Who Killed Malcolm X? TV Mini-Series (2019–2020), Samantha Grogin

Assassinato de Malcolm X pode ser reinvestigado após documentário na Netflix revisar provas

Série argumenta que a polícia identificou os homens errados, da mesquita errada

Meagan Flynn  

The Washington Post

Por décadas, depois do assassinato de Malcolm X, o réu confesso do caso sustentou que os dois outros homens condenados como seus cúmplices nada tinham a ver com o homicídio.

Historiadores acreditam há muito que a polícia e os procuradores públicos erraram na investigação.

Teorias de conspiração sobre desvios de conduta policial e provas que teriam sido ocultadas circulam há muito tempo. E alguns críticos acreditam que a maioria dos homicidas que dispararam suas armas contra o líder dos direitos civis conseguiu escapar, o que resultou na condenação indevida de dois integrantes da organização Nação do Islã.

Agora, depois que uma série documental na Netflix revisou extensamente as provas que apontam para a inocência dos dois condenados, o infame homicídio pode voltar a ser investigado.

A Procuradoria Pública do distrito de Manhattan informou em email ao The Washington Post no domingo que iniciaria “uma revisão preliminar” do caso a fim de decidir se deveria haver uma reinvestigação. O desdobramento havia sido noticiado anteriormente pelo The New York Times, antes do lançamento da série “Who Killed Malcolm X?” pela Netflix.

Se a procuradoria distrital reabrir o caso, a revisão pode tentar responder perguntas complicadas sobre possíveis suspeitos adicionais ou erros policiais em um dos assassinatos políticos de maior destaque na história dos Estados Unidos. Danny Frost, porta-voz da procuradoria de Manhattan, disse que Cy Vance Jr., o procurador público do distrito, havia tomado a decisão de iniciar uma revisão depois de assistir a uma apresentação feita algumas semanas atrás pelos advogados de defesa de Muhammad Abdul Aziz (antes conhecido como Norman 3X Butler), um dos homens condenados pelo homicídio de Malcolm X. O Innocence Project, que está cuidando do caso em companhia do advogado David Shanies, insiste em que Aziz, 81, passou 20 anos na penitenciária por um crime que não cometeu. Ele recebeu liberdade condicional em 1985.

O outro réu que também afirmou inocência, Khalil Islam (então conhecido como Thomas 15X Johnson), morreu em 2009. O terceiro dos condenados, o homicida confesso Talmadge Hayer (então conhecido também como Thomas Hagan e Mujahid Abdul Halim) sustentou desde seu julgamento em 1966 que Aziz e Islam eram inocentes.

“Estamos gratos ao procurador distrital Vance por ele ter concordado rapidamente em conduzir uma revisão da condenação de Muhammad Aziz”, disse Barry Scheck, um dos fundadores do Project Innocence, em um comunicado divulgado na sexta-feira.

O documentário “Who Killed Malcom X?” acompanha o trabalho do historiador Abdul Rahman Muhammad, que também é guia turístico em Washington; ele passou anos recolhendo documentos antes confidenciais liberados pelo Serviço Federal de Investigações (FBI), entrevistando antigos membros de mesquitas da Nação do Islã em Nova Jersey e na cidade de Nova York, e rastreando quatro outros potenciais assassinos, apontados por Hayer, mas jamais investigados formalmente pelas autoridades.

“Li o bastante para acreditar que os assassinos continuam à solta”, disse Muhammad no documentário. “Jamais tive medo da verdade. Sempre quis saber qual era a história real. Afinal, é de Malcolm X que estamos falando.”

No ano anterior ao seu assassinato, Malcolm X havia abandonado a Nação do Islã e rejeitado seu líder, Elijah Muhammad, a quem ele definiu como um “forjador religioso” que promovia uma ideologia racista. Malcolm X começou seu próprio movimento, a Organização de Unidade Afro-Americana, e fundou a Muslim Mosque Inc. A Nação do Islã o via como traidor. Louis Farrakhan, que na época estava ascendendo na hierarquia da Nação do Islã, havia escrito no jornal da seita que Malcom X “merecia morrer”. E uma semana antes de seu homicídio, a casa de Malcolm X foi atacada com uma bomba incendiária.

Em 21 de fevereiro de 1965, múltiplos atiradores abriram fogo contra Malcolm X, 39, enquanto ele discursava diante de um público que incluía sua mulher e filhos, bem como numerosos informantes da polícia. Hayer foi capturado enquanto fugia do local do crime, portando um pente de munição para uma arma do calibre usado para o crime. Na perseguição policial aos demais atiradores, membros da Nação do Islã provaram ser os principais suspeitos, mas o documentário argumenta que a polícia identificou os homens errados, da mesquita errada.

O foco da atenção policial era a mesquita da Nação do Islã no Harlem, na qual Malcolm X costumava pregar até se desligar da organização.

Em poucos dias, a polícia capturou Aziz e Islam, que eram frequentadores da mesquita do Harlem e membros de um grupo com traços paramilitares chamado Fruto do Islã. O grupo era conhecido por disciplinar e espancar qualquer membro da Nação do Islã que violasse as regras da organização, mesmo as menores. “Se apanhássemos alguém fumando um cigarro na mesquita, o jogávamos escada abaixo de cabeça”, disse Islam em uma entrevista à revista New York em 2007

Aziz afirmou no documentário que o papel deles como capangas pode ter atraído a atenção da polícia, mas não queria dizer que tivessem tido qualquer coisa a ver com o homicídio. Islam e Aziz afirmaram que estavam em casa, incapacitados, no momento do homicídio. Islam disse que sofria de artrite reumática e um médico testemunhou, no julgamento de Aziz, atestando tê-lo tratado no hospital por um ferimento na perna algumas horas antes do homicídio de Malcolm X.

Os dois homens também disseram que teria sido impossível para eles entrar no Audubon Ballroom, onde Malcolm X estava discursando. Os membros da mesquita do Harlem, que na época consideravam Malcolm X como traidor, haviam sido proibidos de comparecer, e Aziz e Islam disseram que teriam sido reconhecidos imediatamente pelos seguranças.

Tampouco havia provas físicas que os conectassem ao crime, de acordo com o Innocence Project.

“Eles sabiam que eu não era culpado”, disse Aziz no documentário. “Mesmo que eu quisesse fazê-lo, não teria como. Assim, isso significa que [a polícia] sabia o que estava fazendo ao me prender. Se não houve um delito de conduta policial. o que houve, então?”

Durante seu julgamento em 1966, Hayer confessou seu papel no assassinato mas insistiu em que a polícia havia capturado os cúmplices errados. “Eu estava lá. Sei o que aconteceu, e sei quem eram as pessoas que estavam lá”, disse Hayer no banco de testemunhas, de acordo com os arquivos do The New York Times. Ele voltaria a insistir na inocência de Islam e Aziz em uma declaração juramentada de 1978, mas dessa vez foi um passo além e identificou as quatro pessoas que afirmou serem os verdadeiros assassinos, e descreveu até as responsabilidades de cada um dos envolvidos no atentado.

Todos eles, de acordo com seu depoimento, pertenciam a uma mesquita da Nação do Islã em Newark, a cerca de 30 quilômetros da mesquita do Harlem.

Apesar disso, um juiz estadual de Nova York negou uma petição do advogado de direitos civis William Kunstler pela reabertura do caso, em 1978.

“O ponto mais importante quanto a tudo que temos aqui é que as autoridades judiciais brancas jamais, ao longo de todo esse tempo —décadas—, demonstraram interesse sério por investigar, acompanhar e resolver o caso do homicídio de Malcolm X”, disse David Garrow, historiador dos direitos civis, no documentário. “Para Abdur Rahman Muhammad, essa foi uma cruzada muito solitária.”

Muhammad terminou por localizar um dos supostos assassinos identificados por Hayer em 2010, Al Mustafa Shabazz, que continuava a viver em Newark. Nas décadas transcorridas desde o homicídio de Malcolm X, o criminoso condenado, detentor de uma longa ficha policial, havia mudado seu nome, originalmente William Bradley, e se casado com uma ativista dos direitos civis em Newark. Ele chegou até a aparecer, “por um milissegundo”, em um comercial de campanha pela reeleição de Cory Booker para a prefeitura de Newark em 2010, disse Muhammad. (Booker disse no documentário que conhecia bem o homem, mas que “não estava ciente” de que ele era um dos supostos assassinos.)

“Foi simplesmente chocante. Era a primeira vez que o mundo via o rosto do homem que tirou a vida de Malcolm X”, disse Muhammad no documentário. “Ele nem estava tentando se esconder... Acreditava que seu processo de reinvenção fosse completo, e foi audacioso a ponto de aparecer em um filme, um vídeo de campanha de um prefeito muito popular, que hoje é senador.”

Shabazz negou qualquer envolvimento no homicídio, quando o jornal New York Daily News o confrontou, em 2015. http://www.nydailynews.com/new-york/nyc-crime/malcolm-x-assassination-mystery-article-1.2115843  “É uma acusação”, ele disse ao jornal, então. “Eles jamais falaram comigo. Só me acusaram de algo que não fiz”. A teoria quanto ao homicídio também foi mencionada em “Malcolm X - Uma Vida de Reinvenções” (Cia. das Letras, 672 págs.,  R$ 87,90) biografia premiada escrita por Manning Marable.

De acordo com o Innocence Project, os documentos liberados pelo FBI sustentam o relato de Hayer, mas a procuradoria pública de Manhattan afirma que não estava ciente dos documentos e que não os havia visto, no momento do julgamento.

A unidade de integridade de condenações da procuradoria está revisando as provas. Um dos procuradores encarregados da revisão, Peter Casolaro, ajudou a reinvestigar o caso dos Central Park Five, no começo da década de 2000, o que resultou na libertação de cinco homens condenados erroneamente pelo estupro de uma corredora.

Tradução de Paulo Migliacci

No iutubi

Malcolm X’s Daughter Ilyasah Shabazz on Her Father’s Legacy & the New Series “Who Killed Malcolm X?” 

20/02/2021

Bela Vingança (Promising Young Woman), 2020, Emerald Fennell

A surpresa, em meio às bombas que o Globo de Ouro nos reserva, foi “Bela Vingança” de Emerald Fennell que chega como o melhor filme da competição. O longa se utiliza de uma série de dispositivos de gêneros industriais, para compor uma obra que assume-se como produto mas zomba de um arquétipo consolidado socialmente. Incluindo os mediciner (cujo significado determina a realidade de todas as coisas: pessoas, objetos, sensações, sentimentos, etc.).

A estrutura segue como uma secção de tarefas, que são cumpridas conforme a narrativa avança. Existe aqui uma estrutura de vingança que não segue o fetiche clássico em torno de violência e sangue, mas de uma dívida que deve ser cobrada. O benefício da dúvida é a saudação que mantém uma sociedade presa aos grilhões da misoginia, do feminicídio, uma cultura de estupros, abusos e assédios que são perdoados com mais rigor que qualquer outro crime. Mariana Ferrer ter de conviver com seu agressor André de Camargo e o cúmplice de um crime teatralizado pela classe dominante, Rudson Marcos é um crime que o Brasil deveria pagar. É sobre isso que se trata “Bela Vingança”: Criminosos como André de Camargo e Rudson Marcos sendo expostos às atrocidades de seus atos. O amiguinho do “eu não fiz nada, só assisti” também. Ah, o do “mas eu só filmei” também. E a que “mas nossa, você tinha fama de sair com vários caras” igualmente.

A protagonista joga com o “benefício da dúvida” ao seu favor. Mas quando o barato é bem utilizado, bate um desespero né?

Bela Vingança, Carey Mulligan and Emerald Fennell

A linguagem entra aqui cadenciando a narrativa a partir de uma estrutura que compreende os espaços de ação e os de repouso. A composição da casa de Cassandra (Carey Mulligan) é distinta dos demais locais, os enquadramentos são mais incisivos, centralizadores, ora afasta, ora acolhe. Quando os homens sentem-se acuados, expostos aos próprios crimes, a câmera acompanha a provocação feita por Cassie e a “virilidade” dos homens indo “pras cucuias”, as desculpas esfarrapadas, as ofensas infantis e recalcadas. “Bela Vingança” entrega um trabalho feito para concatenar uma série de crimes cometidos diariamente e jogar na mesma moeda (não de maneira tão suja, baixa e criminosa) o retorno de uma cultura que está a serviço do homem. Aqui, há um recorte majoritário de classe, onde essa burguesia acadêmica, intelectual, branca e de “família de bem” é desfigurada em seu próprio banho de sangue. A questão de classe surge a partir da impunidade generalizada através do poder, seja ele da influência ou do capital em si.

Enquanto boa parte da cinematografia se pergunta como um estupro pode ser enquadrado na tela, “Bela Vingança” dá um aula de como não fazer. Ensinando também, que uma morte como quebra dramática de um processo de clímax, pode ser uma das cenas mais agonizantes do ano, provavelmente dos próximos anos. A resolução do filme não está em uma catarse pragmática como uma mensagem programada… Será? Esses artifícios que servem como uma grande ironia macabra de uma sociedade que esconde seus monstros em jalecos e máscaras sociais do “cara bacana” transformam a obra em uma projeção que não é fácil de assistir, pois limites dessa representação na ficção são esgarçados para que haja uma provocação diante do fato. Ainda que pelo virtual.

“Bela Vingança” fosse um documentário como ele seria? Os exemplos são inúmeros e semanalmente se amontoam novos casos. A própria reitora assume “Um ou dois por semana”, em uma universidade nos EUA. Vale lembrar que aqui no Rio de Janeiro, as universidades possuem casos assombrosos de estupro que são engavetados ou acobertados, pois “não vamos acabar com a vida de um jovem”. Claro, não? Porque a da mulher já foi arruinada. E digo isso, por uma proximidade com quem já sofreu abuso e viu a pessoa acordar chorando inúmeras vezes pela madrugada.

Por algum momento o texto pode ter deixado de ser uma crítica convencional, acontece, paciência. Mas o longa de Emerald Fennell fica ecoando por um tempo na cabeça. Um bom tempo.

Vitor Velloso  

Festival de Sundance 2020

21/02/2021

Anjo do Mal (Pickup on South Street), 1953, Samuel Fuller

Anjo do mal no iutubi 

Crítica

O ritmo ágil de Anjo do Mal torna sua violência ainda mais visceral.

A estória

O batedor de carteiras Skip (Richard Widmark) se aproveita do metrô lotado para colocar sua mão na bolsa de Candy (Jean Peters). E, sem querer, toma posse de um microfilme com segredos de estado que seriam vendidos a comunistas. Enquanto isso, agentes do governo americano estavam de olho espionando a moça, planejando prender os inimigos em flagrante.  Mas o furto de Skip atrapalhou os planos. Agora, eles o procuram para recuperar o microfilme, enquanto ele tenta vendê-lo por um alto preço, usando Candy como intermediária.

Análise do filme

O diretor Samuel Fuller percorre lugares nada turísticos de Nova York. Por exemplo, a beira do rio onde Skip mora, para contar com agilidade essa estória policial onde o protagonista é um ladrão. No escuro, sem saber de quem se trata, Skip dá um soco em Candy, quando ela invade sua casa. Apesar de se encontrarem nessas circunstâncias, uma forte atração sexual nasce entre os dois.

Acima de tudo, a violência em Anjo do Mal possui uma crueldade chocante. Nesse contexto, personagens importantes simpáticos podem ser executados sem maiores cerimônias. Candy é espancada ferozmente pelo espião Joey em um angustiante plano sem cortes.

A sensualidade também marca presença forte em Anjo do Mal, estampadas na maquiagem e na roupa de Candy e na ousadia agressiva de Skip. Tudo envolto na trilha sonora jazzística insinuante.

Além disso, há um cinismo por parte de Samuel Fuller, um ex-jornalista policial. Quem acaba salvando os Estados Unidos de ter seus segredos vazados são três personagens marginais. O batedor de carteiras, a garota de programa e a informante (papel de Thelma Ritter). E não os policiais ou os agentes federais. De fato, Fuller sempre foi mais próximo desses perdedores, que a sociedade normalmente despreza.

22/02/2021

Vá e Veja (Idi i smotri), 1985, Elem Klimov

Vá e veja

O capítulo 6 do Apocalipse de João (ou Livro das Revelações), possui uma constante repetição de chamado ao apóstolo: “vem e vê“. Neste capítulo temos os ‘quatro cavaleiros do Apocalipse’ e entendemos que cada um deles anuncia a chegada de ondas de destruição e desgraças contra milhares de pessoas. Foi desse contexto bíblico que o diretor Elem Klimov e o roteirista Ales Adamovich tiraram o “Vá e Veja” para o título deste longa, já que o nome original entregue aos censores, “Matar Hitler“, havia sido rejeitado.

Filmado durante nove meses, depois de ter passado oito anos para ser aprovado pelo Goskino (Comitê Estatal Soviético de Cinematografia), Vá e Veja tornou-se um dos retratos mais impiedosos, crus e amplamente dramatizados sobre a Segunda Guerra Mundial. Acompanhamos a história de Florya (Aleksey Kravchenko, na época com 16 anos, em uma atuação lancinante), um garoto de 13 anos que se junta à guerrilha soviética contra os nazistas na Bielorrússia (ou Belarus), e em pouco tempo se vê afastado dos companheiros, o que o força a realizar uma jornada de dor, medo e violência à medida que vê as horrendas atitudes de seus inimigos e de seus compatriotas pelo caminho.

Através da forte exploração sentimental e dramática do protagonista e de um roteiro que tem a evolução do olhar desse adolescente para o mundo à sua volta — proposta de pessoalidade destacada pelo amplo uso de steadicam em todo o filme –, Klimov chega o mais próximo possível da visão geral de Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (1963), mostrando o curso da História, do lirismo das paisagens e da descoberta do amor (à família, à terra, ao outro) até o momento onde a maldade se torna constante e passa a ser abstraída pelo indivíduo como algo trivial, um estado das coisas acompanhado pela literal explanação de um militar nazista que dizia “só estar fazendo o seu dever“.

Durante muitos anos eu ouvi pessoas reclamando do “exagero” de Klimov ao representar os rostos dos protagonistas ou da sua forma “quase vazia” de retratar o massacre de uma vila bielorrussa, rebatendo as ações de maldade por muito tempo na tela. Essas reclamações, no entanto, são de espectadores que olham o filme como uma obra de caráter romântico sobre a guerra, mas não é disso que ela se trata. Mais ou menos na linha de A Infância de Ivan — porém menos poético e inteiramente exposto aos horrores do acontecimento –, Vá e Veja mostra o crescimento de um garoto, o avanço da guerra e… como ambos se modificam. O aumento do ódio, as pequenas vitórias de um e outro grupo, o massacre organizado ou por um ideal ou por vingança, a apropriação de coisas como espólio ou como direito de um combatente; tudo isso vem para a tela como se grandes quadros fossem misturados e exibidos em movimento por mais de duas horas: intragável e ao mesmo tempo esteticamente muito bonito...

23/02/2021

A Infância de Ivan (Ivanovo detstvo), 1962, Andrei Tarkovsky

Em 1957, o escritor soviético Vladimir Bogomolov escreveu um conto chamado Ivan, obra de estilo narrativo similar a um relatório de campanha militar. A história estava centrada na vida de um garoto que, ao ter sua família morta durante a guerra (Segunda Guerra Mundial), passa a trabalhar como espião para o Exército Vermelho. Seu ódio ao inimigo e a incrível disposição para atuar em campo fez com que se destacasse em suas funções e se tornasse conhecido e querido em um determinado QG.

Por se tratar de uma história de forte cunho nacionalista e a despeito de sua peculiar estrutura narrativa, a Mosfilm se interessou em adaptar a obra para o cinema. O estúdio já havia conseguido impressionar a comunidade cinematográfica com o estupendo Quando Voam as Cegonhas (1957), de Mikhail Kalatozov, obra de cunho bélico muitíssimo bem realizada e vencedora da Palma de Ouro em Cannes. Agora, de posse de outro promissor material literário (sempre muito presente no cinema soviético), os produtores queriam emplacar mais um sucesso cinematográfico e entregaram a tarefa ao roteirista Mikhail Papava, que deveria escrever o seu roteiro da forma mais fiel possível à história narrada em Ivan.

O filme começou a ser rodado em 1960, mas a empreitada não demorou muito tempo. O estúdio não gostou do rumo que a obra seguia e resolveu nomear o recém-formado Andrei Tarkóvski como o novo diretor da película. Mas a Mosfilm não esperava que o novato fosse fazer tantas modificações na concepção geral da obra e no roteiro. Ao lado de Andrei Konchalovsky, escreveu uma outra versão para o conto (que foi odiada pelo autor) e iniciou o processo de filmagens. As modificações acabaram, por fim, sendo aceitas e o filme foi um grande sucesso, ganhando o Leão de Ouro no Festival de Veneza.

Tarkóvski retirou o eco da narrativa militar e realizou um filme plenamente humano, uma obra que traz elementos de uma infância passada (um idílio de paz) versus a violência de uma infância durante a guerra, pontuada por um ódio e um desejo insaciável de vingança. O novo título dado ao filme pelo diretor, A Infância de Ivan, traz essa dualidade entre o mundo pré-guerra e o mundo em guerra. O mesmo garoto sorridente que olhava através de uma teia de aranha e sorria para a mãe, chamando sua atenção para o canto de um cuco, no prólogo da obra, é o pequeno soldado que embarcará no território alemão em busca de pistas e informações para o Exército Soviético.

Em meio a essas diferentes fases da vida e em um curto de espaço de tempo (pelo menos quatro anos, uma vez que a URSS só se torna inimiga da Alemanha em 1941, quando o Pacto Germano Soviético é quebrado por Hitler), o espectador percebe que o Ivan passou por uma verdadeira metamorfose e essa sensação é perfeitamente clara na prodigiosa interpretação de Nikolai Burlyaev, então com 15 anos.

Passado e Presente

Talvez por aparecer dentro de uma realidade onírica, o passado ganhe mais contraste em relação ao presente do que se fosse exposto como um prólogo linear ou em uma narrativa paralela. A questão do sonho que aparece esporadicamente pode até ser lida como um eco da memória dos tempos de paz. Cada vez mais esparsada e com constituições estéticas diversas, como a magnífica sequência do poço, onde temos um inteligente jogo de percepção; ou a cena de Ivan com a garota das maçãs, que recebe um tratamento em negativo ao fundo. Cada sonho ganha uma iluminação e composição de imagem específicas, o que não os descaracteriza como memória, mas pontua essa alteração pessoal que a imagem do passado vai tendo com o tempo e, se virmos essa situação como oposição ao presente, as nuances utilizadas pelo diretor acirram ainda mais a distância de um tempo de paz oposto ao presente de guerra e morte.

A memória volta a aparecer com a derrocada nazista, quando os soviéticos tomam Berlim. Livros, arquivos e pastas diversas estão espalhados pelo salão principal e é onde alguém lê o destino dos prisioneiros soviéticos: fuzilamento ou enforcamento. A foto de Ivan (memória) é reconhecida por um companheiro militar (se podemos dizer assim) e mais uma vez temos a oposição colossal entre passado e presente. Mesmo que se possa reconhecer um ódio absoluto no olhar do Ivan prisioneiro, a visão que o soldado tem da sala dos enforcamentos e todo o seu entorno consegue deixar a situação ainda mais lancinante. Tarkóvski leva até os últimos momentos essa grande oposição entre os dois mundos, com exceção, talvez, da última cena, quando Ivan, numa brincadeira, corre atrás de uma garota. É importante observarmos que isso só acontece DEPOIS da morte do jovem no mundo presente. E nessa memória do passado (ou não seria uma memória, seria uma projeção do garoto em busca de um desejo, no início da puberdade?) é bruscamente interrompida quando esbarra em uma árvore. E então o filme termina. Independente de qual for a leitura do espectador, essa interferência vinda do mundo onírico – seja como memória ou como possibilidade futura – marca o fim das coisas para Ivan, em qualquer um desses mundos. Sua infância, sua sexualidade, seus prazeres como homem em formação e como ser humano lhes foram negados pela guerra. De bom, em sua vida, apenas houve a infância. Ou parte dela.

Outros Temas

As únicas sequências de que não gosto em A Infância de Ivan são relacionadas à jovem Masha, especialmente a sequência que ocorre no bosque de bétulas. Não vejo nenhuma justificativa dramática ou mesmo narrativa para um diálogo frouxo e deslocado da trama geral, como o que acontece ali. Aliás, se a presença da personagem se resumisse ao primeiro flerte, ainda numa das partes do QG, sua participação seria aceitável, porque serviria como ponte de construção psicológica para os dois soldados. Mas a longa sequência entre as árvores só tem como ganho a belíssima captura de imagem e som, com destaque para a cena em que Masha é beijada, tendo ao fundo o onipresente som do pica-pau. Nada mais justifica a existência da cena e, mesmo a tentativa do diretor em tornar Masha uma espécie de subtrama (aparecendo brevemente mais duas vezes) sua aparição não consegue emplacar um sentido orgânico no filme, destoando de todo o restante.

Sendo o primeiro longa-metragem de Andrei Tarkovski, A Infância de Ivan se consagra como uma das melhores estreias de diretores no cinema. Além disso, o filme está repleto de referências imagéticas e poéticas que seriam usadas muitas outras vezes pelo diretor em seus seis longas vindouros.

Ivan é uma ode à tristeza. A guerra é trabalhada por Tarkóvski como opositora, inimiga e destruidora da vida, e muito mais que isso, a guerra se torna um evento capaz de fazer com que toda a memória do passado seja diminuída e dê lugar a um presente que envolve, unicamente, eliminar o inimigo e sobreviver a qualquer custo. Tentativas como a apreciação da arte (pintura e música, só para citar dois exemplos do filme) e a ocorrência do amor, são postos de lado. Os exemplos são sempre os mesmos, em todos os tempos. E por mais triste que pareça, há muitos Ivans hoje habitando países em guerra civil ou atacados por outros países. A guerra persiste roubando infâncias e vidas. O homem parece não aprender lições de humanidade.

Luiz Santiago

25/02/2021

O Gato Preto (The Black Cat), 1934, Edgar G. Ulmer

... E ninguém jamais realizou bons filmes mais depressa ou com menos dinheiro do que Edgar Ulmer https://www.imdb.com/name/nm0880618/ O que ele era capaz de fazer a partir do nada permanece uma lição para os diretores que reclamam de orçamentos e prazos apertados. Edgar raramente dispunha de mais de seis dias para fazer um filme (...). Mas ele conseguia isso, e o fez mais de uma vez, realizando clássicos da pobreza como o definitivo filme do gênero “aconteceu quando eu passava numa noite escura”, Detour (Curva do destino), 1945 https://www.imdb.com/title/tt0037638/ ; o místico thriller Karloff – Lugosi, The black cat (O gato preto), 1934 https://www.imdb.com/title/tt0024894/ ; os melodramas psicológicos Ruthless (O insaciável), 1948, https://www.imdb.com/title/tt0040751/ e Naked dawn (Madrugada da traição), 1955 https://www.imdb.com/title/tt0048411/ ; Bluebeard (Barba azul), 1944 https://www.imdb.com/title/tt0036653/ apenas para mencionar os primeiros que vem à mente.

... The black cat é um dos seus melhores filmes

Ulmer: Sim, mas naquele filme boa parte do crédito deve ir para Carl Laemmle Jr. (...) Ele me deu carta branca para escrever uma história de terror ao estilo do que tínhamos começado a fazer na Europa, com Caligari.

De onde surgiu a ideia de fazer com que o castelo (de The black cat) fosse erigido no cemitério de um campo de Batalha?

Ulmer: Isso se originou muitos anos antes. Eu tinha visitado Praga e havia trabalhado em Der Golem. Na época conheci Gustav Meyrink, que tinha escrito Golem como romance. Meyrink era um desses estranhos judeus de Praga, como Kafka, muito ligado à herança mística talmúdica. Discutimos bastante, e naquela época Meyrink estava considerando a ideia de escrever uma peça baseada em Doumont, uma fortaleza francesa que os alemães tinham destruído na Primeira Guerra; houve sobreviventes que levaram anos para sair de lá. O comandante era uma figura estranha, reminiscente de Eurípedes; três anos depois, ele enlouqueceu ao ser levado de volta para Paris, por ter andado por sobre aquela montanha de cadáveres. Imaginei que era um assunto importante, um sentimento que estava no ar durante os anos de 1920.

The black cat tem um impacto visual notável.

Ulmer: Decorreu muito do meu período Bauhaus.

(Peter Bogdanovich, Afinal, quem faz os filmes, p. 665 a 667, Companhia das Letras, 2000)

25/02/2021

Stalker, 1979, Andrei Tarkovsky

Assistir às cenas “imóveis”, típicas de Tarkovski, é um verdadeiro desafio hoje, quando a cultura de massas criou uma nova percepção da realidade, marcada pela alternância frenética das informações. Sendo assim, por que assistir Tarkovski hoje? Como toda obra genial, Stalker (1979) ultrapassa os limites de sua época e de seu país, permanecendo sempre atual, sempre aberta a novas leituras. Hoje, é difícil imaginar como foi possível o surgimento de um fenômeno como Tarkovski em um ambiente de tamanha censura como a União Soviética. Há, no mínimo, duas explicações para isso: a primeira, o abrandamento do regime pós-Stalin, e a segunda, é claro, o sucesso de sua estreia como diretor na obra A infância de Ivan (1962), que seguia a orientação do partido de abordar um lado menos oficial e mais humano da Guerra.

Os anos em que Tarkovski estudou no Instituto Cinematográfico de Moscou coincidiram com a assim chamada época de “degelo”, conduzida por Nikita Krutchióv e marcada pela renovação de todas as artes fossilizadas na época stalinista. O degelo entreabriu a cortina de ferro e trouxe consigo a influência da cultura ocidental e oriental em vários sentidos, inclusive no cinema: de Akira Kurosawa ao neorrealismo italiano e à Nouvelle Vague, que, com a ideia de cinema de autor, contradizia o coletivismo soviético. 

Ao contrário da maioria dos filmes de Tarkovski, Stalker foi exibido em todo o território da União Soviética, praticamente sem cortes da censura. Ao mesmo tempo, foi o último filme produzido pelo diretor em solo soviético. Antes do início das filmagens, Tarkovski vivia sérios problemas financeiros e sua salvação seria esse novo projeto. Porém, rotulado pelas autoridades soviéticas como um diretor de mensagens pouco claras, ele tinha imensa dificuldade em conseguir recursos para financiar seus projetos. A solução foi se unir aos irmãos Arkadi e Borís Strugátski e trabalhar com textos de cunho fantástico. Após inúmeras propostas, o livro Piquenique na beira da estrada foi aprovado como roteiro para o novo filme. O texto original foi radicalmente alterado, os autores, que então viraram roteiristas, tiveram que reescrevê-lo inúmeras vezes até conseguirem agradar o diretor. Foi especialmente difícil chegar a um acordo quanto ao personagem principal, Stalker. A própria palavra é um neologismo criado pelos irmãos Strugátski, que hoje faz parte da língua, e define guias que levam excursões às construções abandonadas, como à cidade de Pripiat, próxima ao local da catástrofe nuclear de Tchernóbyl. Se, no romance original, Stalker conduzia expedições à “Zona” para ganhar dinheiro, no filme ele adquiriu traços de um louco, um mendigo vidente, personagem muito querido na cultura russa, e único a ter permissão de falar verdades desagradáveis mesmo diante do tsar, mesmo se este fosse Ivan, o Terrível. Assim, o próprio Tarkovski (assim como Pasternak, Brodsky e tantos outros) torna-se uma espécie de Stalker que, em sua obra, se opõe ao regime. 

O início dos trabalhos data do final de 1974. Elementos sombrios rodeavam o filme desde a sua criação. Em primeiro lugar, devido a um terremoto, foi impossível usar o cenário escolhido inicialmente, no Tadjiquistão. Em vez disso, foi escolhida a Estônia, um lugar onde antes funcionava uma usina elétrica e uma fábrica de celulose que ainda lançava dejetos no rio. Após o término das primeiras filmagens, por motivos desconhecidos, os rolos de filmes não puderam ser aproveitados. Tal fato resultou em um enorme conflito com o até então amigo inseparável de outros filmes, o cinegrafista Geórgui Rerberg. Durante todo o processo ocorreram discussões com os roteiristas devido às exigências intermináveis do diretor que, quando queria uma cena com grama verde, mandava arrancar todas as graminhas destoantes. O elevado nível de estresse levou Tarkovski a um infarto. No entanto, a perda da filmagem inicial serviu de alavanca para que o diretor pensasse em um outro filme, já abandonando o lado ficcional e se concentrando em um texto muito mais psicológico. Essa parecia ser a última cartada do diretor.

O enredo se mostra inicialmente bastante simples: vinte anos antes dos acontecimentos narrados durante o filme, um local denominado Zona foi alvo de uma suposta queda de um meteorito; então a Zona passa a ser cercada e vigiada pelo seu caráter desconhecido. Entretanto, o risco de invadir um espaço restrito pelo governo não impede as ações dos stalkers. No cerne da Zona há um Quarto onde, supostamente, os desejos mais secretos e velados são realizados. A Zona pode ser interpretada como um lugar sagrado – vale lembrar que há passagens bíblicas no filme mencionando o apocalipse e a ressureição. A mensagem de Tarkovski parece ser a da impossibilidade de nos escondermos de nós mesmos, dos nossos medos e dos verdadeiros desejos. Porém, Tarkovski mostra uma outra ideia de fé: diante do medo do desconhecido, deve-se elevar a crença em si mesmo e a necessidade de confiar no próximo. Em um dos monólogos, Stalker relata suas impressões sobre o homem que, segundo ele, ao se comportar como uma criança e se livrar dos seus pré-conceitos e percepções acumuladas do mundo, passa a entender melhor a si mesmo, e só assim se realizar plenamente.

A trama se desenrola em torno de três personagens sem nome e sem esperanças na vida: o Stalker, o Escritor e o Professor. Os três vivem uma vida sem cores, como mostra o início e o final do filme, e apenas quando eles se distanciam do cotidiano e adentraram a Zona, as cores aparecem, como uma esperança, pois lá há liberdade de as pessoas externarem os seus medos, falarem sobre sentimentos e desejos. O Escritor pode se assemelhar a Chingachgook, O último dos moicanos, de James Fenimore Cooper que, assim como Stalker, é um intermediador entre os dois mundos, o seu e o desconhecido. O estranho “condutor”, um ex-presidiário, parece ser o único capaz de guiar os “sem esperança” para a aventura da superação, pois a cada cena os personagens são testados, enfrentando os seus medos e a intolerância. A imagem do Stalker pode até mesmo ser associada à imagem de Jesus ou à Santíssima Trindade, ponto central da doutrina cristã e um de seus mistérios mais difíceis de decifrar. Além disso, o Escritor e o Professor podem ser vistos como discípulos (profetas) de Stalker e, ao mesmo tempo, as suas representações, uma espécie de duplos.

Entre outros símbolos presentes na obra, a água tem uma função substancial. Aliás, como em todos os filmes de Tarkovski, a água é também uma personagem. Ela representa a nossa relação, infelizmente, cada vez mais distante, com a natureza e, além disso, mitologicamente, indica a travessia dos mundos, um ritual de passagem. Tarkovski usa a imagem da água como um reflexo do tempo, a história narrada e a previsão do futuro. Em uma das cenas do filme, pela água corrente é possível ver ícones, imagens de textos sagrados e um calendário que mostra a data de 29 de dezembro, um prenúncio da morte do próprio diretor. Já no contexto bíblico a água é um símbolo da palavra de Deus, em sua ação purificadora, relacionada à vida espiritual. O rito de purificação acontece antes da entrada no suposto Quarto onde são realizados os desejos. Durante o percurso são anunciadas diversas “armadilhas”, que na verdade parecem nada mais ser do que a nossa própria dificuldade de entender os percalços da vida. Porém, o medo do desconhecido faz com que os personagens não entrem no Quarto, que também pode ser interpretado como um confessionário. O Escritor tem medo de revelar sua vida pregressa e o Professor quer destruir a fé, pois, se todos acreditarem nesse lugar, será ainda mais difícil viver. Nesse momento a nova tomada traz de volta a cor inicial do filme, ou melhor, a ausência de cores.

Tarkovski lança muitas perguntas para as quais não há resposta. A célebre frase do filme Solaris, “O homem precisa do homem”, retoma, de alguma forma, a expressão “É preciso encontrar o humano no homem”, de Dostoievski. A mulher de Stalker (uma alusão ao feminino e, em especial, à mãe do diretor) e a filha doente, suposta vítima da influência maligna da Zona, na verdade parecem ser a salvação, as únicas que aprenderam a amar e aceitar as diferenças. Não é por acaso que, no filme, a cor retorna quando elas aparecem. 

Após o auge da literatura russa do século 19, é comum perguntar se ela teve alguma continuidade à altura nos séculos 20 e 21. Em parte, ela se deu por meio de uma nova linguagem artística, o cinema, linha que se inicia com a obra de Eisenstein e depois se prolonga através dos filmes de Tarkovski, Aleksandr Sokúrov e Andrei Zviágnintsev (esse último, aliás, revela uma influência fortíssima de Tarkovski). A literatura clássica russa adentra fortemente o cinema do século 20, no qual são retomadas as mesmas indagações: Quem somos e para onde iremos? Qual seria a verdadeira verdade? Seriamos nós capazes de saber o que realmente desejamos? O que é felicidade? Quem realmente é feliz?

Ekaterina Vólkova Américo e Edelcio Américo, 14 de junho de 2017 

26/02/2021

Cúmplice das Sombras (The Prowler), 1951, Joseph Losey

Cúmplice das sombras no iutubi 

Crítica

Cúmplice das Sombras apresenta um dos mais perturbados vilões do film noir.

No início de sua carreira, o diretor americano Joseph Losey realizou alguns bons longas dentro do film noir. Dentre eles, Cúmplice das Sombras é o mais interessante. Principalmente, por causa do complexo personagem Webb Garwood, interpretado por Van Heflin. 

Caught in a Webb

Afinal de contas, Webb Garwood é um frustrado policial que ambicionava uma vida melhor. Porém, jogou fora suas chances de ganhar uma bolsa na faculdade como atleta, porque agrediu o treinador. Desde então, seguiu a carreira policial, mas a contragosto e, pior ainda, desprezando sua profissão. E isso reflete em seu comportamento.

Quando ele atende um chamado policial, a oportunidade aparece para que seus instintos obscuros venham à tona. Logo de pronto, ele se sente atraído por Susan, uma atraente mulher que passa as noites sozinha em uma casa, porque o marido trabalha como locutor noturno em uma rádio. Em pouco tempo, ele consegue seduzí-la e um tórrido caso extraconjugal se inicia. 

No entanto, Webb Garwood é mais complexo do que os costumeiros vilões do gênero. Diante da recusa de Susan de largar o marido, ele a repele, para desespero da agora apaixonada amante. Além de sentir prazer por vê-la sofrer, Webb ainda põe em marcha o plano diabólico e arriscado de assassinar o esposo.

Losey & Trumbo

Posteriormente, a estória ainda reserva mais reviravoltas, que levam o casal até as ruínas de Calico Ghost Town, na Califórnia, onde acontece o tráfico desfecho. Esse intrincado roteiro foi escrito por Dalton Trumbo, apesar de que ele já estava na lista negra anticomunista do senador Joseph McCarthy. Por isso, ele não foi creditado na época. Aliás, como Joseph Losey era contra essa perseguição política, ele ousadamente pediu a Trumbo que narrasse as locuções do marido radialista de Susan. Por fim, Losey acabou se exilando em Londres, onde continuou a dirigir filmes. 

Com tudo isso, Cúmplice das Sombras impressiona pelo comportamento imprevisível do seu protagonista, essencialmente dúbio por ser policial e criminoso, mas com motivações bem mais profundas. Mesmo hoje, continua sendo um personagem difícil de se decifrar. Nesse sentido, a cena em que Webb Garwood se deita na sua cama com um sorriso de satisfação por ver sua amante sofrer é impactante.

Ficha técnica: Cúmplice das Sombras (The Prowler) 1951. EUA. 92 min. Direção: Joseph Losey. Roteiro: Hugo Butler, Dalton Trumbo. Elenco: Van Heflin, Evelyn Keyes, John Maxwell, Katherine Warren, Emerson Treacy, Madge Blake, Wheaton Chambers. 

26/02/2021

Quando Voam as Cegonhas (Letyat zhuravli ), 1957, Mikhail Kalatozov

Até a morte de Stalin, e ainda alguns anos depois, a arte produzida na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) tinha como base o conceito de Realismo Socialista, em que a estética da criação estava minada pelos agentes do Estado, que decidiam o modo que a arte deveria ser produzida, e comumente apresentava o bem-estar soviético, o proletário como força de movimento, as paisagens rurais e o êxito do regime, como Lênin em Outubro (1937), de Mikhail Romm e Dmitri Vasilyev. Logo após essa centralização artística na URSS – que, convenhamos, não há nada de novo sob o sol de um regime totalitário, ainda que socialista -, a chave vira e Stalin morre, em 1957, e é então o momento em que a produção cinematográfica ganha novos ares e uma maior liberdade no ofício das artes. No ano seguinte da morte de Stalin, Quando Voam as Cegonhas ganha a Palma de Ouro no Festival de Cannes ao retratar amor e guerra em um longa real e sentimental. Diferente da grande idealização de mundo proposta pelo realismo, Quando Voam as Cegonhas, ainda que dentro da influência do Partido, mostra também o outro lado da moeda ao filmar os destroços da Grande Guerra. É a partir deste instante que o cinema soviético abre caminho para a transição, cujo grande nome dessa mudança estética é Andrei Tarkovski com seu projeto simbólico e poético. 

Particularmente, vejo que esse filme se aproxima de muitos outros que foram lançados mais para frente, como A Infância de Ivan (1964), do Tarkovski, e A Russian Youth (2019), de Alexander Zolotukhin. O traço comum em todos eles é que decidem tratar de um tema tão difícil com sensibilidade e delicadeza, com belos enquadramentos e um descritivismo excelente através da mise-en-scène. Se em Tarkovski e em Zolotukhin a guerra é vista pela ótica de uma criança, em Quando Voam as Cegonhas este mesmo tema é visto por sobre as lentes do amor entre dois jovens, que têm suas vidas mudadas pela tragédia. 

Boris (Aleksey Batalov) e Veronika (Tatyana Samoylova) caminham pela avenida, embebidos de paixão um pelo outro em um cenário hollywoodiano onde o amor é possível: É assim que começa o longa.  Enquanto isso, no Céu, lá no alto, cegonhas voando, indicando mudança: é amor ou guerra? O diretor apresenta, com uma disposição cênica cheia de poesia, o casal de namorados, que segura um primeiro ato com planos e uma intensa vontade de estarem um ao lado do outro. É uma paixão jovem, avassaladora, que vai sofrer um processo de ruptura doloroso. Boris é proletário em uma fábrica, Veronika, uma enfermeira. Enquanto planejam uma vida juntos, a dois, Boris não deixa de pensar, por outro lado, que a guerra está batendo na porta e ele quer servir como voluntário – novamente esse heroísmo remanescente do realismo socialista aparece -, mas Veronika não concorda com essa ideia, e quando chega a carta de convocação, se desespera. Para ela, não é justo. E então Boris parte para a guerra, deixando Veronika, mas prometendo voltar. É um jovem nacionalista que quer salvar a sua nação do imperialismo nazista. Ao se separarem, ela acaba se casando com o primo de Boris algum tempo depois, enquanto este acaba por falecer no campo de batalha. Ela, em uma esperança quase messiânica, espera que o seu grande amor retorne, mas infelizmente já não é mais possível. 

O diretor vê o seu próprio filme através de uma técnica chamada Chiaroscuro, apostando em contrastes tonais de Luz e Sombra para dar conta de uma carga dramática que oscila entre os temas do amor e da guerra. O uso estético diz tanto quanto o diálogo, já que a fotografia conta, por si só, a história. A câmera de mão visita minuciosamente, no primeiro momento, a beleza da cidade de Moscou. As luzes e a clareza da cidade se confundem com esse lirismo dos pombinhos enamorados. Vestida de branco, Veronika vive os seus melhores dias e é por ela que a gente conhece as belezas de uma Rússia pré-guerra. É lindo no ato inicial quando luz e sombra se camuflam e se sobreposicionam, como se uma entrasse dentro da outra, algo parecido com o que o Bergman fez em Persona (1966) quando funde e mescla Alma e Elisabet. 

Quando Boris vai para a guerra, predominantemente a sombra toma conta da ambientação, e o que antes era um cenário límpido e de possibilidade, como as ruas de Moscou no início do longa, dá lugar a um cenário de guerra, com trincheiras e barreiras por toda parte. A direção insiste em fazer esse contraste: o antes e o depois, demonstrando desastres por onde passa. É a versão soviética da guerra, abrindo para o público os horrores que a invasão alemã causou. Quando a direção decide retratar o abrigo, lugar que todos vão quando eclode uma guerra, ela o faz de maneira a mostrar o desespero e a desesperança em cada rosto, junto de um sombreamento característico. 

A cena da explosão no apartamento, em que ela já está com o primo de Boris – e insatisfeita, óbvio, pois não o ama -, é um ótimo momento para mostrar a força desse expressionismo de luz e sombra, preto e branco, que atuam na construção cênica, como Murnau faz em Fausto (1926). Nesta cena, do segundo ato, Moscou sofre um ataque aéreo, enquanto isso, o casal está dentro de casa tentando se proteger. A sombra toma conta da ambientação, junto com a carga dramática de um piano feroz. Veronika está vestida com uma mescla de cores brancas e pretas, e logo em seguida ela passa o resto do segundo e do terceiro ato vestida de roupas pretas. É a própria figura da sombra, representação da guerra e do luto. Ela passa por uma perda objetal e sofre de melancolia por essa perda causada pela guerra. Mesmo que demore a descobrir que seu amado foi morto, ela sofre pela ausência e as cores do seu vestuário denunciam esse sentimento de falta, bem como a acentuação de luz ou de sombra também indicam os sentimentos do momento. Ao final do filme tudo retorna em branco: A luz do dia, a roupa de Veronika, as flores brancas. É o fim da guerra. As últimas cenas têm um forte apelo socialista, e é visivelmente influenciado pelos filmes de King Vidor, sobretudo pelo espírito de coletividade em O Pão Nosso (1937).

Cada cena parece ser pensada com detalhe, além de ter uma importância única na construção fílmica. Tudo é aproveitado. O plano-sequência de Veronika atravessando a casa indo abrir a porta para a mulher que entrega cartas, ansiosa para ver se tem algum recado para ela, é esteticamente lindo e tecnicamente impecável, com foco em cada movimento de avanço, em cada passo que ela dá. A câmera espiral, no momento em que Boris falece, seguida da alucinação é outro trunfo. Muito semelhante ao que Alejandro Jodorowsky fará em seu A Montanha Sagrada (1973), com movimentos de câmera que se afastam do objeto como em um zoom, levando a quem assiste a um efeito hipnótico, o diretor aposta nesse distanciamento objetal no momento da morte de Boris, construindo um efeito prazeroso de assistir. Bem como a cena de Veronika atravessando os tanques de guerras numa atitude épica. Não surpreende em nada Quando Voam as Cegonhas ter obtido a Palma de Ouro em Cannes. 

Para falar de amor, o longa é apenas um soco no estômago. A trama da promessa de um amor eterno e do encontro de almas entre Boris e Veronika é de um romantismo ímpar. No entanto, tudo isso rompe com a eclosão da guerra. O tema da ausência e do abandono é o que impulsiona o drama. O diretor deixa a temática muito explícita na cena em que ouvimos o lamentar de um soldado ao descobrir que sua esposa o abandonou, e ele então deseja morrer naquele exato instante em que descobriu que foi trocado. O filme se utiliza da guerra para discutir também o amor. Veronika é, de algum modo, abandonada pelo marido que vai à guerra, e ela, por outro lado, não o espera retornar, casando com seu primo. Isso reverbera na própria situação das milhares de mulheres que perderam seus maridos, ou ficaram a uma eterna espera pelo retorno de alguém que não vai mais voltar. É uma fratura amorosa causada pela guerra. Se de um lado é a história épica dos perrengues e da vitória soviética em relação aos alemães, como numa hino de vitória e exaltação da própria União Soviética, por outro lado, é a narração de um coração partido e de uma mulher que sofre com um estado permanente de ausência e abandono em relação à sua perda amorosa, que se perde duas vezes: a primeira quando ele parte, a segunda quando ele morre. Mais a fundo, o roteiro trabalha de modo excelente a partir do mito do eterno retorno, reatualizando um motivo clássico nas artes e adaptando-o para a realidade soviética. 

Um belo filme russo, Quando Voam as Cegonhas trata de uma situação comum no momento de guerra, que é quando o homem precisa partir, deixando família, esposa e filhos. Sem medo de que o melodrama possa atrapalhar a narrativa, a direção aposta justamente nela como fio condutor e obtém um resultado esteticamente impecável e uma narração excelente. Além disso, figura entre os filmes favoritos de Scorsese e do Coppola, o que não é pouca coisa. 

Quando Voam as Cegonhas (Letyat Zhuravli, Rússia, 1957)

Diretor: Mikhail Kalatozov, Roteiro: Viktor Rozov

Elenco: Tatyana Samoylova, Aleksey Batalov, Vasiliy Merkurev, Aleksandr Shvorin, Svetlana Kharitonova, Konstantin Kadochnikov, Valentin Zubkov, Antonina Bogdanova, Boris Kokovkin, Ekaterina Kupriyanova

Duração: 95 min.

Fernando JG  

27/02/2021

Eu Sou Cuba (Soy Cuba), 1964, Mikhail Kalatozov

Soy Cuba: um filme esquecido da Guerra Fria

Luiz Zanin Oricchio, 02 de julho de 2007 

Amigos, um visitante deste blog me pediu informações sobre Soy Cuba, filme do cineasta soviético Mikail Kalatosov. Como ele está disponível em DVD, achei que poderia interessar a todos e exumei um texto meu sobre o assunto, publicado no jornal. O texto fala também de um documentário, Soy Cuba – o Mamute Siberiano, que Vicente Ferraz fez a respeito dessa co-produção Cuba-URSS nos tempos da Guerra Fria. 

Soy Cuba – O Mamute Siberiano, documentário de Vicente Ferraz, pode bem fazer a função de balanço das múltiplas recepções possíveis de uma obra segundo momentos históricos diferentes. O documentário de Ferraz é um filme sobre outro filme. Seu objeto é a “saga” de Soy Cuba, que o russo Mikail Kalatosov (de Quando Nascem as Cegonhas) filmou na ilha de Fidel no início dos anos 60. 

Era um tempo em que a revolução cubana já havia se desentendido com os Estados Unidos e pendia para o lado soviético, ficando em sua área de influência num mundo dividido pela guerra fria. Assim, o filme funcionaria como uma espécie de “política da boa vizinhança” entre os dois países socialistas. 

Para fazê-lo da melhor maneira possível, a União Soviética mandou para a ilha seu cineasta mais famoso, equipamentos de ponta para a época e um fotógrafo da pesada, Serguei Urushevski, técnico dotado de grande imaginação visual e capaz de realizar seqüências cinematográficas incomuns. 

O filme de Kalatozov tem como tema a vitória da revolução cubana contra o governo corrupto de Fulgêncio Batista, mas o que fica mesmo na retina são as cenas magníficas engendradas pelo fotógrafo russo. 

Numa delas, registra-se o enterro de um estudante, morto em manifestação contra o regime de Batista. O funeral transforma-se em ato político contra o governo e é registrado, do alto, com a câmera viajando por entre os prédios de Havana, entrando numa fábrica de charutos, saindo de novo para acompanhar por cima a multidão. Em outra cena, há o registro da “burguesia decadente” da era Batista bebendo em companhia de belas mulheres à beira da piscina do Hotel Capri – que pertencia à máfia americana e seria nacionalizado depois pela revolução. Aqui também há um longo plano-seqüência com a câmera acompanhando os personagens e finalmente “mergulhando” na água da piscina. 

De tirar o fôlego de quem gosta do virtuosismo cinematográfico.

Há também uma longa seqüência em que uma mocinha cubana é tentada pela “vida fácil” num cabaré, acaba dormindo com um americano e é surpreendida pelo namorado, um vendedor de laranjas. Na hora em que o americano sai furtivamente da casa da moça, a câmera se ergue e então o espectador vê o entorno – uma favela miserável, com suas vielas e esgotos a céu aberto, mendigos e crianças doentes pelas ruas. 

A “mensagem” é evidente – a exploração dos seres humanos só é possível nesse ambiente de miséria, fruto das “contradições do capitalismo”, como se dizia então.O tom do filme é todo assim, grandiloqüente, épico, demonstrativo. Por isso foi associado ao realismo soviético, a escola oficial do stalinismo, o que em parte explica seu destino depois de concluído. 

No documentário sobre Soy Cuba, Vicente Ferraz entrevista sobreviventes cubanos que participaram das filmagens, como o ator Sérgio Corrieri – famoso como protagonista da obra-prima do cinema cubano, Memórias do

Subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea. Entrevista também o diretor do Icaic (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica), Alfredo Guevara, e vários integrantes técnicos da equipe do filme. Os depoimentos são importantes pois dão idéia da grandiosidade do projeto. Ficamos sabendo que as filmagens duraram 14 meses e mobilizaram grandes recursos da ilha,pois deveria ser um épico celebratório e portanto importante na luta de propaganda da guerra fria. 

Para se ter idéia, para uma cena de batalha, Kalatozov solicitou nada menos do que 5 mil soldados, numa ambição de artista que faria inveja a Fellini. Fidel mandou vir esses soldados de Santiago de Cuba para a região de Havana e o deslocamento de tropas teve de ser comunicado à população para que ninguém pensasse que uma guerra tivera início. Além disso, todo o extremo oriental da ilha ficou vulnerável enquanto esses figurantes de luxo obedeciam às ordens do cineasta russo. 

Mas nem esse esforço, nem o talento de Kalatozov ou de seu fotógrafo deram qualquer resultado prático. Quando o filme ficou pronto não comoveu ninguém. Nem em Cuba e nem na União Soviética. No documentário de Ferraz, vários dos cubanos envolvidos no projeto se queixam da “falta de autenticidade” de Soy Cuba. Como se Kalatozov, apesar da sua competência e da dedicação com que se entregou ao projeto, não tivesse sido capaz de captar o tom da coisa, o ritmo cubano, os tempos, o perfume do Caribe. Havia uma incompatibilidade básica entre a alma eslava, trágica, e a malemolência da ilha. O filme não “dava liga”, como se diz no métier cinematográfico a respeito desse tipo de obra que tem tudo para dar certo e mesmo assim não funciona. 

Desse modo, Soy Cuba submergiu no esquecimento e tornou-se uma curiosidade exótica da indústria cinematográfica soviética. Consta que Kalatozov teria morrido, em 1973, ainda amargurado pelo fracasso de uma obra que lhe exigira tanta dedicação, tempo e energia. 

Durante a guerra fria Soy Cuba não foi exibido nos Estados Unidos, é claro. Por ironia, saiu do limbo graças a dois cineastas norte-americanos, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, que promoveram a estreia do filme nos EUA em 1995 – 31 anos depois de ter fracassado nas telas do “socialismo real”. Hoje é tido na conta de um clássico e o espectador pode vê-lo em ótima cópia em DVD da Magnus Opus. 

Há quem ainda o classifique como obra de propaganda, e Soy Cuba não deixa de ser isso também, assim como Outubro, de Sergei Eisenstein, ou It’s All True, de Orson Welles. Mas é como se o tempo depurasse esses filmes do seu conteúdo ideológico e deles deixasse apenas o que tinham de força e invenção formal. Quer dizer, justamente o que escapa da intenção política consciente: aquilo que fica por conta do talento e da imaginação subliminar do artista. Por isso, esses filmes são tudo, menos datados. 

Essa “atualidade” da obra fica evidente no documentário de Vicente Ferraz. Nesse nosso tempo de neutralidade ideológica (quem acredita numa ameaça comunista, fora os conservadores paranóicos?), filmes como Soy Cuba podem ressurgir e serem apreciados com mais imparcialidade. Se em muitos pontos ele envelheceu, exibe ainda momentos de grande cinema. E são esses que ficam.

Não deixa de ser uma boa idéia chamar de Mamute Siberiano a este documentário sobre um filme clássico, mas insuficientemente apreciado como Soy Cuba. De fato, quem vê o filme de Kalatozov experimenta sentimentos contraditórios. Se for cinéfilo, sente admiração, sem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, vive algum desconforto diante de uma obra fora do seu tempo, grandiosa e desajeitada, como se supõe fossem esses animais pré-históricos. 

Ninguém sabe muito bem por que motivo certas obras deixam de repercutir em seu tempo, caem no limbo da história e, mais tarde, como por milagre, são redescobertas e apreciadas. O filme de Vicente Ferraz apresenta um trabalho de arqueologia e, ao mesmo tempo, fornece pistas para entendermos o que se passou com Soy Cuba. De certa forma, é uma lição de história política e da cultura.

Mostra-nos como se concebe uma obra como esforço de guerra. O tempo era de guerra fria e, no enfrentamento entre União Soviética e Estados Unidos, Cuba ocupava posição estratégica. Para a União Soviética, Cuba era a linha avançada do regime no Ocidente. Para os Estados Unidos, um amigo do rival, implantado em seu “quintal”, a cem milhas da Flórida. Basta lembrar que esse contencioso quase levou o mundo à breca na histórica crise dos mísseis, em 1962.

A ideia dos produtores era refazer uma épica da revolução a partir do regime anterior ao dos barbudos, o de Fulgêncio Batista. Desvendar, como se dizia, as condições de exploração de um povo, de um país transformado em cassino e bordel pelos vizinhos ricos. Tudo isso está no filme de Kalatozov. E como Vicente Ferraz o interpreta? Ouvindo pessoas que participaram dele. Ou seja, que viviam na Cuba já revolucionária e falavam da Cuba anterior.

Eram pessoas, portanto, refazendo a sua própria história, como povo. O documentarista as entrevista. Entre elas, o ator Sergio Corrieri, famoso protagonista de um clássico do cinema latino-americano, Memórias do Subdesenvolvimento. Corrieri fala do filme, mas não se lembrava de ter participado dele como ator. Como se esquece uma coisa dessas? 

Outros se referem ao filme de maneira um tanto depreciativa. Descrevem a recepção do público quando foi lançado: indiferença tanto na ilha como na União Soviética. Ora, um filme feito justamente para celebrar a amizade entre esses dois povos, sendo recebido com tal frieza. Que prova maior de um fracasso do que essa? E, no entanto, essas mesmas pessoas, quando hoje sabem que aquele velho filme se transformou em objeto de um documentário, acabam por reavaliá-lo. 

O fato é que essa peça política, que deveria funcionar não só como laço entre dois países, mas propaganda de um tipo de regime, não funcionou devido ao seu caráter híbrido. Tanto esforço de Kalatozov e sua equipe, tantos cubanos envolvidos nesse projeto, e não se conseguiu fazer dele uma fusão de sotaques e estilos como se desejava. O internacionalismo comunista nesse caso não deu certo e todos se sentiram estranhos a uma obra grandiosa porém pouco amigável. Foi preciso o trabalho do tempo para que fosse reassimilada e portanto reinterpretada. 

E, nesse sentido, o depoimento mais agudo, o mais lúcido, aquele que desvenda o segredo íntimo de um filme fracassado, talvez seja o de Alfredo Guevara (sem parentesco com o Che), diretor do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos. Diz Guevara que, na época em que Soy Cuba poderia significar alguma coisa, foi ignorado; agora, quando não assusta mais ninguém, pode virar objeto de culto num museu da história do cinema. Como um animal pré-histórico. 

(Estadão, Caderno 2, 12/1/2006)

27/02/2021

Soy Cuba, O Mamute Siberiano, Vicente Ferraz, 2004

JOSÉ GERALDO COUTO, 13 de janeiro de 2006

Um filme sobre um filme que quase ninguém viu pode parecer algo de escasso interesse. Mas o documentário "Soy Cuba - O Mamute Siberiano" é o contrário disso. Vibrante, inventivo, dá vida a uma obra que jazia esquecida e ilumina um momento crucial da história e da cultura.

A co-produção cubano-soviética "Soy Cuba" (1964), de Mikhail Kalatozov, foi o que se pode chamar de um esplêndido fracasso. O documentário de Vicente Ferraz investiga os dois termos da equação, expondo o que havia de esplêndido no filme e buscando entender seu fracasso.

Narrada em primeira pessoa pelo diretor, essa busca é feita de riquíssimo material de arquivo, depoimentos atuais dos envolvidos e uma exegese tão cuidadosa quanto possível do filme de Kalatozov. "Soy Cuba" é o centro, mas o documentário se detém também no antes (o clima de euforia da Revolução Cubana), no depois (os efeitos da experiência em seus participantes) e no entorno (as relações entre russos e cubanos). Um super "making of", em suma, tão fascinante quanto o original.

As impressionantes imagens de arquivo dos primeiros anos da revolução servem para comunicar o entusiasmo que movia os cubanos envolvidos na empreitada, e que contagiava artistas do mundo todo, entre eles os excelentes realizadores soviéticos enviados à ilha de Fidel para a produção daquele que deveria ser um épico de propaganda e acabou se tornando um mamute branco. Por que houve essa rejeição unânime àquela que é hoje tida como obra-prima por gente como Coppola e Scorsese? "Mamute Siberiano" indica várias razões históricas, mas mostra que o pecado essencial de "Soy Cuba" estava em sua origem. Sua estranheza vem da dificuldade de a equipe soviética, com sua severa formação eslava, compreender o temperamento afro-caribenho dos cubanos.

A despeito da excelência cinematográfica de "Soy Cuba", da exuberância de seus movimentos de câmera e da beleza de sua composição plástica, há no filme uma visão hierática da luta política que tem mais a ver com o Potemkin do que com a Bodeguita, mais com os sisudos bolcheviques do que com a malemolência cubana.

Na reconstituição da vida cubana pré-revolução, Kalatozov pretendia mostrar uma imagem de decadência moral, mas acabou criando as cenas mais alegres e sensuais do filme, retratando a Cuba de Fulgencio Batista como um paraíso a beira-mar. É esse trânsito de mão dupla entre o real e a representação que "Mamute Siberiano" dá a ver e a sentir. 


28/02/2021

M8, quando a morte socorre a vida, 2019, Jeferson De

Andreza Delgado 

"M8 - Quando a Morte Socorre a Vida", adaptação do livro homônimo de Salomão Polak, ganha uma nova visão com o diretor Jeferson De, o filme brasileiro que estreou no começo de dezembro, toma as telonas do cinema para pôr em destaque um assunto que tomou conta do debate público quase que o ano inteiro.

A discussão racial que se torna personagem principal dessa trama, que decide didaticamente às vezes até que exageradamente, mostrar como a vida de um jovem negro pode ser afetada por esse, vamos dizer mal.

Na trama ambientada no Rio de Janeiro hiper militarizado que de longe é ficção, acompanhamos o jovem Maurício (Juan Paiva) que acabou de ingressar no curso de medicina. Sem muita cerimônia, Maurício se depara com o cadáver M8, ele e seus colegas brancos vão estudar usando o corpo, a partir daí a trama começa.

A escolha do Diretor Jeferson De, de partir para um terror mais psicológico, mas que também se envolve com um drama, aponta para a fórmula que vimos bastante nos últimos anos. Como o terror e temática racial de "Corra" ou até mesmo o filme que estreou na Netflx esse ano, chamado "O Que Ficou para Trás", que dedicou a trama para falar de violência racial com imigrantes.

Falando em especial do diretor do filme, vale a pena conhecer o trabalho de Jeferson. A primeira vez que ouvi seu nome foi assistindo o filme "Bróder" que é estrelado pelo Caio Blat e que muito me marcou, não só pela escolha do Capão Redondo como território onde se passa o filme, mas também a história consistente e que me prendeu.

Mas, diferentemente de "Bróder", Jeferson ousou mais em, "M8". Fica muito claro que ele se preocupou em trazer um mal-estar para o telespectador, no sentido de que a angústia que o protagonista Maurício (Juan Paiva) vive para descobrir de quem é aquele corpo e se debruça nos seus próprios desafios para se manter vivo.

Existe não só sua jornada em nomear aquele corpo, mas também se encontrar no espaço da universidade. Vale ressaltar os dados: em 2013 apenas 2,7% dos formandos eram negros, o avanço das cotas mudou um pouco o cenário, que agora atinge 24,6% de ingressantes, mas ainda é pouco para o cenário do curso e da quantidade de negros no país.

O filme que ainda conta com participação de atores como Lázaro Ramos, Rocco Pitanga, Zezé Motta e Aílton Graça, e Mariana Nunes que interpreta Cida mãe de Maurício, também aponta para uma diversidade no elenco e de talentos da antiga e nova geração.

Uma das interpretações que mais me conectou com toda a história é justamente a de Raphael Logam, que assume a interpretação do corpo M8. Sem falar nada, Logam diz tudo. Correndo o risco de parecer clichê, mas realmente era preciso falar com os olhos e conseguir passar todo aquele cenário de desespero para o telespectador, coisa que o ator brilhantemente conseguiu.

Esse filme tem muito para apontar sobre violência racial, medo e superação, mas também sobre conquistas pessoais e coletivas. Maurício o protagonista do filme consegue transportar ao mesmo tempo, uma sensibilidade gigante, junto com o medo e as suas próprias descobertas sobre aquele corpo negro que ele tanto desejar saber quem é, mas também o seu próprio corpo negro no mundo. Loucura né!? Mas esse é o novo filme de Jeferson De.

"M8 - Quando a Morte Socorre a Vida" além de tudo nos convida para um final espetacular, de tirar o fôlego. E lágrima também. O filme deixa um recado que extrapola o final, a tela e o enredo todo, que nos chama para realidade da violência racial vivida nesse país.




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