quarta-feira, 31 de maio de 2023

Filmes parte 31

Kaos, 1984, Paolo Taviani e Vittorio Taviani

Bom Dia Babilônia, Good morning Babilonia, 1987, Paolo Taviani e Vittorio Taviani

1408, 2007, Mikael Håfström

A Voz do Empoderamento, Gangubai Kathiawadi, 2022, Sanjay Leela Bhansali

Perigosa, Dangerous, 1935,  Alfred E. Green

Vitória Amarga, Dark Victory, 1939, Edmund Goulding

Almas em Fúria, The Furies, 1950, Anthony Mann

Anjo de Vingança, Frenchie, 1950, Louis King

Bela Donna, 1998, Fábio Barreto

Corações Divididos, Siege at Red River, 1954, Rudolph Maté

Devastando Caminho, Canadian Pacific, 1949, Edwin L. Marin

Dois Dias, Uma Noite, Deux jours, une nuit, 2014, Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne

Horizonte Sombrio, Way Down East, 1920, D. W. Griffith

Índio Heroico, Sitting Bull, 1954, Sidney Salkow

O Homem da Capa Preta, 1986, Sergio Rezende

Rainha Cleópatra, Queen Cleopatra, Minissérie TV, 2023, Tina Gharavi

Um Lugar Silencioso, A Quiet Place, 2018, John Krasinski

Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola, A Million Ways to Die in the West, 2014, Seth MacFarlane

Viva o México!, ¡Que viva México!, 2023, Luis Estrada

Pai e Filha, Banshun, 1949, Yasujirô Ozu

La extorsión, 2023, Martino Zaidelis

O Teto, Il tetto, 1956, Vittorio De Sica

O Bígamo, The Bigamist, 1953, Ida Lupino

Beijo no Asfalto, 1981, Bruno Barreto

 

07/03/23
Kaos, 1984, Paolo Taviani e Vittorio Taviani

Irmãos Taviani renovaram o olhar de esquerda no cinema

Folhapress | 15/04/2018, INÁCIO ARAUJO   

A morte de Vittorio Taviani em Roma, aos 88 anos, põe fim à dupla mais fértil da história do cinema, talvez desde Laurel & Hardy. Foram mais de 20 filmes feitos em parceria com o irmão Paolo. Colaboração mais complexa, porém, quando se trata de dois diretores-roteiristas, mas de rara constância e entendimento mútuo.
Em resposta a um jornalista que lhe perguntara qual a tarefa de cada um dos irmãos na direção e na escrita de seus roteiros, um deles respondeu: “Nós somos que nem o café com leite. Impossível definir onde termina o café e onde começa o leite”.
Desse entendimento surgiu uma das obras mais significativas da geração italiana que começa a filmar nos anos 1960 na Itália, e que inclui nomes como Marco Bellocchio, Bernardo Bertolucci, Ettore Scola. A questão: como Paolo dará sequência a essa obra sem seu irmão?
Ela começa com a colaboração entre os cineastas nascidos em Pisa, na Toscana, e o amigo Valentino Orsini, da mesma cidade. Juntos os três montarão peças de teatro e se lançarão no cinema com “Un Uomo a Brucciare” (um homem para queimar) (1962) e “Os Fora-da-Lei do Casamento” (1963). Anos antes, em um documentário feito em colaboração com Joris Ivens (1898-1989), já é possível encontrar a preocupação política que norteou o trabalho dos irmãos: “L’Italia non È un Paese Polvero” (a Itália não é um país pobre) (1960).

No início de carreira, eles encontram a esquerda em crise: logo em “Os Subversivos” (1967) é possível ver alguns militantes de esquerda discutirem suas escolhas e os rumos a seguir após o enterro do velho líder comunista Palmiro Togliatti. Uma prefiguração do maio de 68, talvez. Mas tanto “Allonsanfán” (1974) como “Pai, Patrão” (1978) dão sequência a seu trabalho crítico. Esse último será seu primeiro grande sucesso internacional, após ganharem a Palma de Ouro daquele ano em Cannes.

A trajetória de Gavino, menino do sul da Itália que deve abandonar os estudos para ajudar o pai no trabalho diário é recebida como uma renovação na perspectiva do olhar de esquerda. Mais do que se fixar em ideias abstratas, os Taviani observam o que há de concreto.
Segue-se outro triunfo em Cannes com “A Noite de São Lourenço”, (1982), reconstituição de um massacre praticado pelos nazistas na Toscana, já no final da Segunda Guerra.

No que tem de melhor, assim como em suas fraquezas, o cinema dos irmãos Taviani refletiu em grande medida a crise do pensamento de esquerda desde os anos 1960, mas também de um cinema que precisa se impor como produto cultural e cujo apelo popular diminui consideravelmente. É o que se sente em “Kaos” (1984), adaptação de série de contos de Pirandello sobre o Sul da Itália, e o solene “César Deve Morrer” (2012), ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim.

Kaos 1984

Uma bela exceção a essa tendência é “Bom Dia, Babilônia” (1987), homenagem ao próprio cinema na pessoa de D. W. Griffith, aqui apanhado no momento em que filma sua obra-prima “Intolerância” (1917). Mas, sobretudo, tributo à participação dos artesãos italianos (toscanos, aliás) responsáveis pela construção de parte dos cenários. Entre a modéstia e a tradição europeia, de um lado, e a opulência e a vitalidade americana, de outro, Paolo e Vittorio Taviani ergueram um significativo monumento à arte que praticaram.

Arte essa que praticaram com dignidade em meio às turbulências da política italiana, da esquerda, do cinema italiano e do cinema em geral. Menos angustiados e inconstantes que Bellocchio, menos populares que Scola, menos sofisticados que Bertolucci, estabeleceram-se como talvez a melhor representação da solidez de uma tradição.
A questão é: sem Vittorio, conseguirá Paolo dar sequência a essa obra irregular e digna?

Veja abaixo filmografia assinada por Paolo Taviani e Vittorio Taviani, esse último morto neste domingo (15).

Filmografia
“L’Italia non È un Paese Povero” (a Itália não é um país pobre) (1960), co-direção com Joris Ivens , “Un Uomo a Brucciare” (um homem para queimar) (1962), “Os Fora-da-Lei do Casamento” (1963), “Os Subversivos” (1967), “Sob o Signo do Escorpião” (1969) , “Um Grito de Revolta” (1972), “Allonsanfan” (1974), “Pai Patrão” (1977), “Il Prato” (o prado) (1979), “A Noite de São Lourenço” (1982), “Kaos” (1984), “Bom Dia Babilônia” (1987), “Noites com Sol” (1990), “Aconteceu na Primavera” (1993), “As Afinidades Eletivas” (1996), “Tu Ridi” (você ri) (1998), “Resurrezione” (ressurreição) (2001), “Luisa Sanfelice” (2004), “La masseria delle allodole” (a fazenda das cotovias) (2007), “César Deve Morrer” (2012), “Maravilhoso Boccaccio” (2015), “Uma Questão Pessoal” (2017)

Em tempo
Kaos é um movie&picture clássico maravilhoso e impactante. 
Assim como O Martírio de Joana D'Arc, La passion de Jeanne d'Arc, 1928 de Carl Theodor Dreyer.

10/03/23

Bom Dia Babilônia, Good morning Babilonia, 1987, Paolo Taviani e Vittorio Taviani

Bom Dia, Babilônia / Good Morning Babilonia
DE: PAOLO E VITTORIO TAVIANI, ITÁLIA-FRANÇA-EUA, 1987

Por Sérgio Vaz

Anotação em 2010: Através da epopéia de dois irmãos artesãos da Toscana, que atravessam dois mares e um continente inteiro até se fixar na nascente Hollywood, para depois retornar à sua terra, os irmãos Taviani fazem uma ode à arte, aos artistas, ao trabalho de equipe, à solidariedade, e um libelo contra a mesma humanidade que destrói o que sabe construir.
Bom Dia, Babilônia faz um paralelo entre de um lado a arquitetura, a escultura, e de outro o cinema, formas de expressão artística que são necessariamente obras coletivas, feitas por multidões, nunca resultado de um trabalho individual, mesmo que dirigidas, conduzidas por um grande artista, um maestro.

Quando o filme começa, um grande grupo de artesãos está dando os toques finais à restauração de uma belíssima igreja centenária, milenar, a Igreja dos Milagres, no coração da Toscana. O mestre da obra, o maestro daquela sinfonia chama-se Bonnano (Omero Antonutti), um patriarca, pai de sete filhos, todos eles artesãos, todos eles envolvidos naquele cuidadoso trabalho de restauração da belíssima igreja. Bonnano senta-se em uma cadeira, a razoável distância da fachada estupenda, e aprecia sua obra, e faz um breve discurso, uma homenagem aos pais dos pais dos pais de seus pais: – “Foram os avós dos nossos avós que a construíram, e que nos transmitiram esse ofício, feito com as mãos e a fantasia.”
Um ofício feito com as mãos e a fantasia. Que bela imagem.

Bonnano havia dado a ordem para que fossem retiradas as grandes lonas que ainda cobriam os diversos níveis, diversos andares da fachada magnífica da igreja. Quase todas são de fato retiradas, mas resta ainda uma. Quando esta última lona cai ao chão, a câmara mostra dois artesãos que ainda trabalham, com o cuidado de ourives, nos últimos retoques na pequena escultura em alto relevo junto da fachada, um elefante de pé.

Os dois heróis partirão para fazer a América

Os dois são os protagonistas da história, os heróis da odisséia que está começando – Nicola (Vincent Spano) e Andrea (o grande ator português Joaquim de Almeida), os filhos mais jovens e mais especialmente talentosos de Bonnano. Os dois descem através de cordas do alto da fachada onde ainda trabalhavam no alto relevo do elefante, e vão se colocar ao pé do pai, que elogia o trabalho deles. Naquele mesmo dia, no jantar de confraternização após o final da obra, no entanto, Bonnano tem uma notícia triste a dar para os sete filhos e os empregados de sua empresa de restauração de monumentos: está falido, vai fechar a firma, vai voltar para sua pequena aldeia. Os filhos que procurem algum trabalho.

Os dois mais talentosos, Nicola e Andrea, nos são apresentados quase assim como irmãos siameses, gêmeos univitelinos, unha e carne, daquele tipo de irmãos que quando um bate o pé numa pedra o outro também sente a dor. Acho que Alexandre Dumas criou personagens assim, não me lembro em qual de seus livros, mas não importa. Nicola e Andrea são assim – iguais em tudo. Decidem, os dois, imediatamente, fazer a América. Era início do século XX, milhares e milhares de italianos de todas as regiões – e europeus de todos os demais países – embarcavam em navios para fazer a América, e Nicola e Andrea estão decididos a fazer isso.

Nas seqüências da travessia do Mediterrâneo e do Atlântico, algumas delas belíssimas, de uma beleza visual que é marca registrada dos Taviani, há uma que acontece durante uma tempestade, o navio adernando ora para um lado, ora o outro. Nicola está de um lado de uma mesa, Andrea, de outro. Cada um deles segura uma colher. O mesmo prato de sopa vai de um lado para o outro da mesa, seguindo o tombo do navio – Nicola dá uma colherada, o navio aderna, o prato atravessa a mesa, vai para o outro lado, Andrea dá uma colherada. Essa seqüência também define uma outra das marcas registradas de Paolo e Vittorio Taviani. Sua narrativa é sempre alegórica, antinaturalista.
Realismo – parecem pensar os irmãos Taviani –, algo que pareça com a realidade, que tente espelhar a realidade, isso é para documentários, ou talvez para essa coisa menor que é o jornalismo. Cinema é fantasia. Cinema é feito com muitas, muitas, muitas mãos, solidariedade e fantasia.

Dois artesãos italianos encontram o criador da gramática do cinema

O argumento e o roteiro são de Paolo e Vittorio Taviani, nos informam os créditos iniciais, ao som do primeiros dos diversos belos temas musicais criados por Nicola Piovani, o Nino Rota deles. Depois os letreiros especificam que Tonino Guerra colaborou no roteiro – Tonino Guerra, um dos maiores roteiristas da Europa de todos os tempos, monstro sagrado, parceiro de Antonioni, De Sica, Francesco Rossi, Elio Petri, Giuseppe De Santis, Damiano Damiani – ou seja, de praticamente todos os diretores importantes da época em que o cinema italiano era indiscutivelmente um dos melhores do mundo, se não o melhor.

Mas os créditos iniciais esclarecem ainda mais: dizem que o argumento e o roteiro dos Taviani, com colaboração de Tonino Guerra, se baseia numa idéia de Lloyd Fonvielle. Lloyd Fonvielle. Não sei nada sobre essa pessoa – e a Wikipedia e os dicionários de cineastas de Jean Tulard e do Rubinho Ewald também não. O iMDB diz que ele escreveu o roteiro de oito filmes, e dirigiu um filme para a TV, Gotham, de 1988, com Tommy Lee Jones e Virginia Madsen.
Não dá para ter certeza, é claro, mas imagino que a idéia de Lloyd Fonvielle a partir da qual os irmãos Taviani construíram a sua catedral Bom Dia, Babilônia, tenha sido a de criar dois personagens, dois irmãos italianos, que acabam indo para a América, a terra dos sonhos dos imigrantes, mais exatamente para a Califórnia, a terra dos sonhos de todos os imigrantes do mundo, inclusive os próprios americanos, mais exatamente para Hollywood, a indústria dos sonhos do mundo ianteiro que então nascia, e aí então os dois irmãos italianos conheciam D.H. Griffith (na foto acima), e trabalhavam com ele na criação dos cenários de Intolerância.

Repito que não dá para ter certeza. Mas deve ter sido essa a idéia básica a partir da qual se construiu Bom Dia, Babilônia. O encontro de dois artesãos italianos imigrantes com o homem que construiu a primeira gramática do cinema, que estabeleceu os princípios fundamentais da linguagem do cinema.
 Alguns encontros produzem tragédias, outros resultam em maravilhas
E aí tergiverso um pouquinho.

No início dos anos 60, Paulo Mendes Campos, um dos melhores textos do idioma português, fez uma crônica em que falava sobre a inevitabilidade do encontro entre o iceberg e o Titanic. Falava do início do iceberg, da formação dele, a partir de uma pequena placa de gelo no Ártico, enquanto, naquele mesmo momento, num estaleiro da Irlanda, os operários começavam a fazer as placas de aço que seriam a origem do até então maior e mais imponente transatlântico do mundo.
Essa imagem criada por Paulo Mendes Campos nunca saiu da minha cabeça, ao longo de meio século; outro dia, ao fazer uma anotação sobre um filme belíssimo, A Filha de Ryan, me lembrei dela, e escrevi que os caminhos dos personagens de Charles, o professor pacato de meia idade interpretado por Robert Mitchum, e de Rose, a jovem filha de Ryan, que jamais deveriam ter sido cruzado, ter se encontrado, afinal se encontram – e o resultado do encontro é como o do encontro do Titanic com o iceberg.
Bom Dia, Babilônia fala do encontro dos dois artesãos toscanos com o capomastro, o mestre, o maestro, o restaurador de catedrais, como o contrário, o oposto, o antípoda do encontro entre o Titanic e o iceberg. Este foi uma tragédia; aquele resultou numa obra de arte.

Os encontros são assim. Alguns produzem tragédias, outros resultam em maravilhas.
A capacidade que os homens têm para construir e destruir coisas belas, como diz Caetano. Ao fim e ao cabo, é sobre isso que fala esta pequena catedral dos irmãos Taviani. A capacidade que temos para construir é a mesma que usamos para destruir coisas belas.
Uma homenagem ao faroeste, uma homenagem ao musical
A seqüência em que David Wark Griffith (Charles Dance) se encontra com o mestre de obras italiano que restaura catedrais faz lembrar um bangue-bangue, o mais americano de todos os gêneros cinematográficos. Cada um vem de lado, vão se aproximando – parece que vão sacar as armas. Sacam elogios uns aos outros.
Há seqüências que fazem lembrar musicais, outro gênero cinematográfico em que os americanos foram mestres.

Naturalismo, realismo, algo próximo da realidade, disso está em falta Bom Dia, Babilônia. Quem quiser algo próximo de retrato realista da realidade deve passar longe dos irmãos Taviani – e em especial deste filme aqui, talvez o mais alegórico, o mais antinaturalista de todos os filmes dessa dupla. O filme é tão chocantemente alegórico, antinaturalista, que até mesmo eu, que tinha me encantado com o filme décadas atrás, não deixei de ficar assustado.
 Nenhum renascentista criou rosto tão belo quanto o de Greta Scacchi
Ao rever o filme, e ficar até assustado com seu tom brutalmente alegórico e antinaturalista, pensei em John Lennon e em Milos Forman. Mas, antes de chegar a eles, gostaria de registrar duas palavrinhas sobre Joaquim de Almeida e Greta Scacchi.

Joaquim de Almeida é um grande ator. Há grandes atores que têm menos oportunidades do que merecem. Acho que Joaquim de Almeida é um grande ator que tem também alguma sorte – porque os atores, assim como os goleiros, assim como qualquer ser humano (Woody Allen volta e meia diz isso), precisam ter, além de talento, alguma sorte. Joaquim de Almeida teve uma grande sorte na vida ao ser escolhido pelos Taviani para o papel de Andrea. E ele é um sujeito que consegue estar bem em todo tipo de filme, de Bom Dia, Babilônia, co-produção ítalo-francesa-americana, a Xangô de Baker Street, co-produção lusa-brasileira, passando por Vidas Que Se Cruzam/The Burning Plain, a estréia na direção do mexicano Guillermo Arriaga em filme americano com a sul-africana Charlize Theron e a hollywoodiana Kim Basinger.
E Greta Scacchi…

Neste filme aqui, em especial (assim como em Acima de Qualquer Suspeita), Greta Scacchi é uma das coisas mais belas que já passaram pela face da Terra. Em diálogos do filme, há elogios à arte produzida ao longo de 2 mil anos naquela península em forma de bota – fala-se de Michelangelo, de Rafael, de Da Vinci; Boticcelli não é citado – mas acho que nenhum desses senhores conseguiria a magia de criar um rosto tão belo quanto o de Greta Scacchi.
Ela faz Edna, amiga de Mabel (Desiree Becker), duas lindas jovens que lutam para conseguir um lugar como figurantes na nascente indústria de cinema de Hollywood. Não são personagens propriamente bem construídos – naturalismo, argh, diriam os irmãos Taviani. Não sabemos de onde elas vêem, exatamente quem são – não importa. São ninfas, são anjos, são duendes, lindas, as duas, colocadas ali para uma ser a mulher do herói Nicola, a outra ser a mulher do herói Andrea.

É bela, Desiree Becker, a atriz que faz Mabel, que cabe a Andrea, enquanto Edna cabe a Nicola. É bela, e deve ser uma figura fascinante, a atriz que, segundo o iMDB, se chama Désirée Nosbusch, nascida em Luxemburgo, em 1965, e já usou alguns outros nomes, na vida artística – Desiree Becker, Desirée Becker, Désirée Becker, Desiree Becker-Nosbusch, Desiree Nosbusch-Becker, Désirée Nosbusch-Becker. Para mim, seu rosto lindo fez lembrar outra grande diva, Stefania Sandrelli.
Mas a verdade é que Desiree Becker, embora linda, não faz páreo para a beleza insana de Greta Scacchi. Nem mesmo La Sandrelli faria.
Greta Scacchi é mais bela que qualquer pintura renascentista.
Egito para fazer pirâmides, em Hollywood para fazer filmes

E então John Lennon, e finalmente Milos Forman.

Depois que deixou de trabalhar em conjunto e passou a ser solista na vida (embora, na verdade, em dueto com a japa estridente), John Lennon cometeu uma frase que, embora não transcrita aqui literalmente, quer dizer o seguinte: “Gosto de viver na capital do mundo. Se vivesse dois mil anos atrás, viveria em Roma. Como vivo hoje, moro em Nova York.”

O checo Milos Forman falou mais ou menos a mesma coisa, embora com muito mais elegância. Depois de escapar da Checoslováquia que havia tentado o sonho louco do socialismo com face humana, e que por isso foi invadida pelos tanques soviéticos em 1968, Forman recomeçou a carreira nos Estados Unidos a partir do quase zero, com um filme pequeno, de orçamento baixo, Procura Insaciável/Taking Off. Quase como nossos heróis Nicola e Andrea, que, ao chegarem à América terra dos sonhos (distantes), comem o pão que o diabo amassou antes de ter chance de mostrar que sabem (re) construir catedrais.

E então Milos Forman, um dos maiores cineastas da História, acho que mais ou menos na época em que construiu a catedral Um Estranho no Ninho/One Flew Over the Cuckoo’s Nest – primeiro filme a conquistar os cinco principais Oscars desde que outro imigrante, Frank Capra, havia conseguido a proeza, em 1935, com Aconteceu Naquela Noite –, disse uma frase mais ou menos assim:
– “O desejo de todo engenheiro, na época das pirâmides, era ir para o Egito. Como meu ofício é o cinema, vim para Hollywood.”

Ao final de uma filmagem babilônica, uma bela catedral
Em Bom Dia, Babilônia, os filhos dos filhos dos filhos dos filhos dos homens que construíram as grandes catedrais da Itália, então, foram para Hollywood e se encontraram com o homem que construiu a primeira gramática do cinema. É uma bela igreja, uma bela pirâmide, uma bela sinfonia, um belo filme, isso que os irmãos Taviani construíram.

Pequenos detalhes. O título do original italiano é Good Morning, Babilonia – uma propositada mistura de línguas. Na versão que saiu em DVD no Brasil, pela séria e competente Versátil, fala-se em italiano o tempo todo, com exceção de algumas poucas frases em inglês.

No monoglota mercado americano, o filme virou, claro, Good Morning, Babylon.
A filmagem deve ter sido babilônica. Como nota Pauline Kael, os Taviani não falavam inglês, a nascente Hollywood foi recriada nos estúdios italianos, e as seqüências dos desertos do Oeste americano foram filmadas na Espanha. A atriz principal era inglesa, e um dos dois atores principais era português.

Bom Dia, Babilônia, Good Morning, Babylon! Os que vão morrer te saúdam.

15/03/23

1408, 2007, Mikael Håfström

No iutubi aqui 

CRÍTICA | 1408 (2007)
por RAFAEL LIMA 22 de julho de 2019

Quartos de hotel são o que chamamos de “não lugares” por natureza. Eles são impessoais, projetados para que praticamente qualquer um possa chegar, dormir e ir embora, sem deixar rastros do que fez ali, ou que tipo de demônio interno enfrentou naquele lugar. A natureza estranha desses “não lugares” onde pagamos para habitar quartos de pessoas que não conhecemos, sendo servidos por pessoas que não conhecemos, vem sendo fonte de inspiração para a ficção de horror há anos, gerando clássicos como Psicose (1960) de Alfred Hitchcock, e O Iluminado (1980) de Stanley Kubrick, este último baseado em um dos mais populares romances de Stephen King. O autor voltaria a este universo, onde estes “não lugares” representados por hotéis e seus quartos impessoais, funcionam como purgatórios para os seus personagens, através do conto 1408 (que não li) que ganhou uma ótima adaptação em 2007, estrelada por John Cusack.

Na trama, Mike Enslin (Cusack) é um escritor descrente que ganha a vida escrevendo sobre locais supostamente assombrados, onde ele passa a noite, somente para desacreditá-los em seus livros. Ao ser desafiado a investigar o caso do 1408, um suposto quarto maldito localizado no luxuoso Hotel Dolphin, em Nova York, onde uma dúzia de pessoas cometeu suicídio, Mike aceita prontamente o desafio. Apesar dos esforços do gerente do hotel (Samuel L. Jackson) de demover o escritor da ideia de pernoitar no quarto, Mike consegue se hospedar no 1408 ao ameaçar processar o hotel. Dentro do quarto, Mike Enslin logo é confrontado por seus piores temores, tendo todas as suas crenças postas à prova.

Escrito á seis mãos por Matt Greenberg, Scott Alexander, e Larry Karaszewski, o roteiro de 1408 acertadamente passa boa parte de seu primeiro ato construindo o seu protagonista, apresentando gradualmente como Mike vive atualmente, como ele encara a sua profissão, a sua vida pessoal, e como algo aconteceu para levá-lo até o estágio em que o encontramos. Todo este investimento inicial feito de forma contundente, mas econômica, mostra-se extremamente importante, tendo em vista que passaremos mais da metade da história tendo o escritor como único personagem na tela.

Embora não chegue a se destacar, a condução do diretor sueco Mikael Håfström merece elogios por conseguir transmitir todo o horror e surrealismo das situações que Enslin passa a enfrentar no momento em que entra quarto, sem nunca descambar para o trash, o que jogaria contra a densidade psicológica que o cineasta parece perseguir. Håfström também merece créditos por dar verdadeira personalidade ao quarto do título, devido aos diferentes cenários que ele cria para torturar o seu ocupante, seja um cômodo congelado, ou um local em ruínas. E isso não somente por estes aspectos mais flagrantes, mas por discretas alterações no desenho de som e no enquadramento que mostram como o quarto vai reagindo às ações de Mike, de seu ceticismo irônico inicial, ao desespero crescente. O diretor consegue transmitir uma atmosfera sufocante em seu filme e, em um projeto como esse, tal conquista é metade do caminho andando.

Deve-se voltar a elogiar o trabalho do trio de roteiristas, que manipulando com competência os clichês do gênero, constroem de forma orgânica e gradual o antagonismo que vai se desenvolvendo entre Mike e o quarto, evitando uma estrutura episódica na forma como a entidade representada pelo cômodo vai jogando com os erros e traumas do passado do protagonista. Por outro lado, deve-se criticar uma excessivamente esticada transição do 2º ato para o clímax da trama, que embora faça sentido narrativamente, rouba um pouco do ritmo da obra.

Mas de nada adiantaria toda essa construção de atmosfera se não tivesse um bom ator pra segurar a onda de contracenar com o grande personagem que é o quarto, mas John Cusack cumpre a tarefa com louvor. Embora seja irregular em muitas ocasiões, quando acerta, Cusack acerta em cheio. O ator consegue dar a Enslin o ar de homem comum confrontado pelo fantástico que é tão importante nos protagonistas das histórias de Stephen King, mas sem com isso transformar Mike em um tipo raso, trabalhando bem os nuances dos conflitos de seu personagem.

1408 é um filme que, muitas vezes, acaba sendo esquecido entre as boas adaptações da obra de Stephen King, mas que merece ser mais valorizado. O longa de Mikael Håfström, contando com um John Cusack inspirado à frente do elenco faz justiça à tradição de filmes de terror onde hotéis, estes não-lugares por excelência, servem como purgatórios onde podemos enfrentar nossos demônios interiores ou ceder de vez a eles. Meu conselho final é: ignore o conselho da gerência e passe uma hora no 1408.

PS: O filme contém simplesmente quatro finais alternativos. Para esta resenha, foi levada em conta o final exibido no cinema e nas cópias de DVD.

20/03/23

A Voz do Empoderamento, Gangubai Kathiawadi, 2022, Sanjay Leela Bhansali

Gangubai Kathiawadi (A VOZ DO EMPODERAMENTO) trailer

A VOZ DO EMPODERAMENTO – A EXTRAORDINÁRIA HISTÓRIA DE GANGUBAI KOTHEWALI (DA PROSTITUIÇÃO AO ATIVISMO)
FILME INDIANO NARRA A DIFICIL JORNADA DE MILHARES GAROTAS QUE SE TORNAM PROSTITUTAS DEVIDO A UMA CULTURA MACHISTA

Paulo Sanseverino

A Índia é um país extremamente cultural, o destaque fica por conta de seus rituais, e o cinema indiano segue em constante crescimento, conhecido por Bollywood, em referência a cidade de Bombaí e Hollywood (centro cinematográfico norte-americano). Produtos agrícolas e o setor industrial ganham destaque na economia local, mas algumas cidades e bairros periféricos possuem uma cruel tradição – a prostituição infantil.

UM AGRESSOR FOI PRESO. MAS QUANTOS NÃO FORAM?   

 “Fui abusada por muitos homens quando ainda era uma criança. Ainda me lembro vivamente de como, quando eu tinha nove anos, um dos clientes da zona me colocou sentada no seu colo e introduziu seus dedos na minha vagina”, diz Shweta Katti em entrevista ao El País. Essa prática é normal no país, mas não deveria, muitas famílias preferem gerar filhos homens, pois a comunidade Bacchara, obriga a filha mais velha de uma família a se prostituir a partir dos 10 anos de idade, assim que ela envelhece a caçula ocupa seu lugar.

Kamathipura é um bairro conhecido pela prostituição dessas garotas, a maioria entra para o oficio por conta de suas famílias, que muitas vezes acabam vendendo a própria filha para a esbórnia. Gangubai Kothewali ganhou notoriedade em meio à situação que foi lançada contra sua própria vontade, foi vendida ao submundo da prostituição pelo próprio noivo, aos 16 anos, seu sonho era ser uma famosa atriz de cinema, se recusou a fazer parte do esquema inicialmente, mas se não o fizesse, morreria, com sua postura e determinação, não demorou muito para se tornar a rainha do prostíbulo.

Devido sua história comovente, a Netflix lançou “A Voz do Empoderamento”, filme baseado no livro “Mafia Queen of Mumbai”, do escritor Hassain Zaidi que traz a história de Kothewali, e várias informações verídicas de sua vida. Logo, Gangubai se torna Ganga, onde sua missão é dar voz as mulheres oprimidas e legitimar a profissão mais antiga da humanidade, para isso se une ao maior traficante de sua região, onde solicita proteção para sua garotas, já que foi brutalmente espancada por um cliente, desde então, se recusa a vender o corpo, e abraça definitivamente a causa de suas companheiras que fazem a prática sexual por escolha própria e não forçadas. Sua fama inicia quando a escola católica pune severamente os filhos das prostitutas os impedindo de frequentar as aulas, no caminho conhece um jornalista que fica apaixonado por sua postura e história e a projeta para todo o país.

Surge uma moção política, organizada pela igreja católica para remover os bordéis do bairro, afim de torná-lo “moralmente correto”, Ganga lutou contra. Com isso, se reuniu com o primeiro-ministro do país e apresentou suas propostas e ideias em defesa dessas mulheres que precisavam do oficio para sustentar a si mesmas e suas famílias. A proposta foi aceita, e a moção retirada.
Gangubai Kothewali faleceu em 2008, aos 69 anos, até os últimos anos de sua vida, dedicou na luta a favor dessas mulheres, sua história até hoje é celebrada na região e uma estátua foi erguida próxima sua residência em Kamathipura. 

Em tempo

Ao som de 'Lança Perfume', maior zona de prostituição do país escolhe miss

Marie Declercq, Do TAB, em Campinas (SP), 07/06/2023

O vai e vem pode até diminuir, mas nunca para. Nas ruas estreitas, carros de todos os modelos — dos populares aos importados — reduzem a velocidade para conversar com uma das dezenas de mulheres paradas no quarteirão. No banco de motorista, quase sempre tem um homem.
"É começo de mês, minha filha, aqui tá bombando", diz uma moça usando shorts e top dourado, com os braços cruzados para espantar o frio. Esse é só um mais fim de tarde no Jardim Itatinga, em em Campinas (SP). O bairro concentra uma das maiores zonas de prostituição da América Latina, e a maior do Brasil.

Naquela tarde de sexta-feira (2), no entanto, uma das ruas havia sido foi bloqueada para a realização de um evento que não era centrado nos milhares de clientes, mas sim nas prostitutas que vivem e trabalham no bairro. Era a 8ª edição do Puta Dei, celebrado no Dia Internacional da Prostituta, organizado pela Associação Mulheres Guerreiras, que funciona como um sindicato que atua na defesa dos direitos das profissionais do sexo do Jardim Itatinga e região desde os anos 2000. Só no bairro, são cerca de 1.700 trabalhadoras do sexo, entre mulheres cis, trans e travestis.
A sede da associação funciona em uma casa simples e acolhedora, na mesma rua onde as trabalhadoras atendem os clientes. Na casa, uma espécie de QG da profissão, elas retiram camisinhas, têm acesso a informações burocráticas para regularizar o trabalho e onde, simplesmente, podem parar para bater um papo.
A atração principal do Puta Dei foi o concurso "Miss Guerreira" — com direito à faixa, coroa e prêmio em dinheiro para quem fosse eleita pelos jurados. Dentro da associação, uma arara lotada de vestidos brilhantes estava à disposição das garotas do Itatinga para montar um look digno de miss.

Cis de um lado, trans de outro

A moça do top dourado é Marcelinha, 20. Pequena e tímida, ela interage com todo mundo com simpatia e um sorriso no rosto. Marcelinha nasceu não muito longe de onde está, no bairro de Campo Grande.
No Itatinga, mulheres trans e travestis só podem trabalhar em duas vias. O restante do bairro é atendido por mulheres cis. "É para não confundir, sabe? Às vezes o cliente acha que a gente é cis e fica nervoso", explica ela. "Aqui a rua é do c*", complementa, abafando o sorriso com a mão.

"A associação é muito importante pra gente", conta Marcelinha. "A Betânia ajuda muito. Camisinha, documentação pra mudar o nome. Elas ajudam até a gente ter acesso à hormonização."
Betânia é Betânia Santos, 50, coordenadora da Mulheres Guerreiras que trabalha como prostituta há 32 anos e atua na associação desde 2006. De salto alto dourado e um vestido vermelho transparente, a militante e trabalhadora sexual começou o evento fazendo uma pergunta: "Alguém foi assediada aqui?"

Todas as mulheres que vieram assistir o Puta Dei balançaram a cabeça, em um gesto negativo.
Santos tem três filhas e uma delas acompanhava a mãe, orgulhosa, segurando um pequeno cachorrinho no colo. Quando foi apresentada à plateia, foi chamada de "filha da puta" por Betânia.
"Muitas mulheres que trabalham aqui têm vergonha de aparecer. Sustentam a família e construíram a própria casa com o dinheiro que conseguiram aqui", complementa ela, sob aplausos. "Foi esse trabalho que me deu a garantia de criar essa filha da puta, essa filha da luta."
Luta pela conscientização

A Mulheres Guerreiras não é a única organização de defesa dos direitos e das profissionais do sexo, mas é uma das poucas que nutre uma relação próxima à CUT (Central Única de Trabalhadores). Mais especificamente, com a subsede de Campinas. "Não é focada só na prevenção de ISTs", frisa Ivone Gosse, 55, militante e funcionária da CUT que frequenta o Itatinga. "Aqui o foco é dar humanização e apoio para que as trabalhadoras tenham condições dignas de trabalho."

A prostituição é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações. Por disso, uma profissional tem direito a regulamentar a atividade como qualquer outro profissional autônomo. No entanto, a precariedade do trabalho, somada à falta de informações e divergências no movimento feminista de reconhecer a prostituição como atividade profissional, dificulta a organização da classe.
"Ter de conscientizar o trabalho de qualquer categoria sobre seus direitos já é um trabalho difícil. Imagina fazer isso com uma categoria tão dispersa? Muitas migram muito, não se fixam, não criam raízes e relações de confiança no local", relata Ivone.

Segregação das 'mulheres de bem'

De certa forma, a história do Jardim Itatinga reflete exatamente os conflitos morais em torno da prostituição — que nunca foi proibida no país. Nos anos 1960, início da ditadura militar, foi feita uma operação pelas autoridades para varrer qualquer indício de prostituição do centro de Campinas.
A chamada "Operação Limpeza" foi pioneira não apenas na segregação de "mulheres da vida" das "mulheres de bem", mas também por ter criado o primeiro bairro planejado para prostituição no Brasil. Tudo que era reprovável foi transferido para os loteamentos no Jardim Itatinga. Os donos das "casas de tolerância" transferiram seus negócios para o bairro, e as mulheres que trabalhavam na rua foram sendo varridas até o local desejado.

Quarenta anos depois da criação do bairro, nasceu a Associação Mulheres Guerreiras em 2006. Uma de suas fundadoras era Sandra Cabelão, uma prostituta trans conhecida como "Mãe da Rua" entre as trabalhadoras. Sandra foi assassinada em 2017, vítima de transfobia. Uma placa em homenagem à fundadora foi pendurada em uma das paredes da associação.

Desde a criação, a associação fez uma série de mediações para ajudar as trabalhadoras sexuais nos mais diversos casos — de calote à oobtenção do auxílio emergencial distribuído na pandemia. Assim quem começou a vacinação para covid-19, foi a Mulheres Guerreiras que trouxe o imunizante para o bairro. "Mais de 900 trabalhadoras se vacinaram", conta Santos.

Vermelho, a cor mais quente

A sala da associação está mais cheia. Agora, mais mulheres estão na frente da arara experimentando vestidos. Alfinetes eram o item mais pedido para ajustar as roupas no corpo das participantes do concurso Miss Guerreira. A cor vermelha foi a mais preterida.

O desfile aconteceu sob o som de "Lança Perfume" de Rita Lee. Ao todo, oito trabalhadoras desfilaram na passarela, iluminada de vez em quando pelos faróis dos carros que entravam na rua desavisados. Todas as participantes eram trans. "As mulheres cis têm vergonha de aparecer", explica Betânia, sentada em uma das cadeiras de plástico. "Mas eu acho importante dar visibilidade para as trans. Elas não podem sair das ruas."

A Miss Guerreira de 2023, Lauany Ribeiro, escolheu um conjunto vermelho com pedrarias para desfilar perante os jurados. Foi quase aplaudida de pé. A maquiagem felizmente resistiu ao banho de champanhe que tomou das amigas para celebrar a coroa.

Distante pouco mais de 100 metros da passarela, o tráfego de carros seguia intenso nas ruas principais, alheio ao que acontecia na associação. Aos poucos, as participantes do concurso trocaram de roupa para partir para mais uma noite de trabalho no Jardim Itatinga.
 

22/03/23

Perigosa, Dangerous, 1935,  Alfred E. Green

"Perigosa", de Alfred E. Green

Octávio Caruso

Perigosa (Dangerous – 1935)

Joyce Heath (Bette Davis) é uma atriz alcoólatra e autodestrutiva que abandonou os palcos prematuramente. Um rico e comprometido arquiteto, Don Bellows (Franchot Tone), encontra-a em um bar e a ajuda a se recuperar para que ela volte a trabalhar. Os dois se apaixonam e ele resolve terminar o seu noivado. Don também decide produzir a volta de Joyce em uma peça e se casar com ela após a noite de estreia. Mas Joyce tem um segredo em seu passado que irá afetar suas vidas para sempre.

Pra que se tenha noção da força de Bette Davis, no auge de sua juventude aos vinte e sete anos, basta constatar que, sem ela, esse filme, dirigido por Alfred E. Green, teria se perdido nas brumas do passado. A atuação dela como Joyce Heath, outrora uma estrela promissora da Broadway, cujos caminhos foram fechados por seu descontrole emocional e pelo vício do álcool, faz com que relevemos os problemas de narrativa e o desfecho pouco inspirado. Ela engrandece a obra a cada diálogo, insinuando uma personalidade que só pode ser suportável enquanto está no palco, extravasando seus demônios internos, o que justifica o seu primeiro prêmio da Academia. 

Quando ela ataca seu benfeitor, vivido por Franchot Tone, ela está se autoflagelando, já que sabe que, com sua arte, foi a grande inspiração para as escolhas do rapaz. Ela diz: “Eu vivi mais em um dia, do que você em sua vida inteira”, consciente de que, ao invés de ódio, irá fazer nascer piedade, exatamente o que ela precisa para conquistar sua chance de redenção artística, claro, com o investimento financeiro dele, já que ninguém na indústria teria coragem de bancar alguém tão problemática. Determinada como poucas, ela é capaz de colocar sua própria vida em risco num acidente de carro, como o terceiro ato demonstra. Atuar, para a protagonista, não passa de terapia para controlar frequentemente sua raiva e mascarar sua vulnerabilidade psicológica. 

O roteiro de Laird Doyle questiona se uma atriz pode ser impecável nos palcos e plenamente feliz em sua vida privada. Um tema ousado e que havia sido trabalhado no ano anterior pelo diretor Max Ophüls, no injustamente esquecido: “La Signora di Tutti”.
Na época do filme, Davis ainda não havia construído sua marcante imagem pública, então dá pra imaginar o impacto dessa abordagem nos espectadores. 

24/03/23

Vitória Amarga, Dark Victory, 1939, Edmund Goulding

Vitória Amarga (Dark Victory - 1939)

Edmund Goulding queria Greta Garbo para o papel principal, mas ela estava ocupada com “Anna Karenina” para a MGM. A peça original, defendida nos palcos por Tallulah Bankhead, não era um primor, precisou ser reescrita várias vezes, mas o diretor enxergava na trama um forte potencial cinematográfico, algo que ficou comprovado quando o roteirista Casey Robinson entregou a adaptação. 

O melodrama poderia facilmente pender para o sensacionalismo em seu terceiro ato, mas o tom que se estabelece já nos primeiros minutos é de reverente piedade, respeito pelos personagens, com atuações contidas de todo o elenco, com exceção de Ronald Reagan, equivocado tipo que parece verdadeiramente ter entrado no set de filmagem errado. Os produtores odiaram a ideia, quem pagaria ingresso para ver algo tão depressivo? O competente britânico só conseguiu sinal verde para o projeto quando Bette Davis, ciente das tangíveis possibilidades de conquistar um Oscar, abraçou a causa e lutou bravamente por ela. A atriz, em um de seus melhores momentos, eleva a qualidade do texto com insinuações de olhares e gestos. A cena final é tão simples e, ao mesmo tempo, tão profunda. A vitória suprema, a redenção à beira do abismo.

Judith (Bette Davis) se esquiva com grosseria quando as pessoas próximas tentam ajudar, jovem despreocupada e mimada pela vida, ela teme os sinais físicos de que algo está errado. A alegria das festas, aquela que sempre tinha uma resposta rápida para qualquer coisa, sofre agora com dores de cabeça constantes. Aconselhada a procurar um especialista após um grave acidente enquanto cavalgava, ignora que sofre de um maligno câncer cerebral. A cirurgia pode apenas garantir mais alguns meses. O médico Steele (George Brent), encantado com a força da paciente, sente que está se apaixonando pela primeira vez. A mulher, que nunca se doou a ninguém, precisou cair do cavalo para encontrar o homem de sua vida. Ao escolher não revelar para a esposa que a cirurgia apenas adiava um pouco o fim, ele conscientemente retira da equação o elemento do medo, o real problema que precisa ser subjugado. E ela, no emocionante desfecho, mentindo para ele sobre a cegueira que já a dominava, devolve com classe a gentileza. Judith havia se tornado uma pessoa melhor, ela existencialmente foi salva por aquilo que precocemente acabou com sua vida.

1939 foi um dos melhores anos na história do cinema, “Vitória Amarga”, usualmente eclipsado por outros medalhões, não envelheceu sequer um dia!

 Octavio Caruso, sexta-feira, 28 de julho de 2017

27/03/23

Almas em Fúria, The Furies, 1950, Anthony Mann

No iutubi aqui 

Almas em Fúria / The Furies
DE: ANTHONY MANN, EUA, 1950

The Furies, que Anthony Mann lançou em 1950, é um filme que mistura gêneros. A princípio, é um western – a ação se passa no Velho Oeste, mais exatamente no Novo México, em algum ponto não explicitado do final do século XIX. Tem também um lado economicista – fala muito sobre currency, moeda corrente –, algo tipo os filmes sobre Wall Street, um tanto antes de Wall Street ser o que é hoje.
Mas é basicamente um drama familiar. E também um melodramão misturado com épico, daqueles que mostram empreendedores construindo ou desenvolvendo impérios, tipo Assim Caminha a Humanidade/Giant (1956), ou Alma em Suplício/Mildred Pierce (1945), ou ainda Imitação da Vida (1934 e depois 1959) e Esquina do Pecado/Back Street (1961).
O título escolhido pelos exibidores brasileiros, Almas em Fúria, salienta esse tom de melodrama. Remete a Alma em Suplício, o título brasileiro de Mildred Pierce, feito cinco anos antes.

O título original, The Furies, remete mais diretamente à tragédia grega.

Como sou terrivelmente preguiçoso, transcrevo o que diz a Wikipedia em português sobre as Fúrias:
“As erínias (em grego: Ἐρīνύς), na mitologia grega, eram personificações da vingança. Enquanto Nêmesis (deusa da vingança) punia os deuses, as erínias puniam os mortais. Eram Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Inominável). Na mitologia romana, eram chamadas fúrias – Furiæ ou Diræ. Viviam nas profundezas do Tártaro, onde torturavam as almas pecadoras julgadas por Hades e Perséfone. Nasceram das gotas do sangue que caíram sobre Gaia quando o deus Urano foi castrado por Cronos. Pavorosas, possuíam asas de morcego e cabelo de serpente. As erínias, deusas encarregadas de castigar os crimes, especialmente os delitos de sangue, são também chamadas Eumênides (Εὐμενίδες), que em grego significa as bondosas ou as Benevolentes, eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome, por medo de atrair sobre si a sua cólera. Em Atenas, usava-se como eufemismo a expressão Semnai Theai (σεμναὶ θεαί), ou deusas veneradas.”

Tal como a Electra da mitologia grega, a heroína tem veneração pelo pai
Há caminhos mais curtos entre, de um lado, a mitologia e a tragédia gregas, e, de outro, o western do que pode sonhar nossa vã filosofia, Horácio – ainda mais se Anthony Mann for o diretor do filme. Anthony Mann botou Freud no meio do faroeste. E se Freud foi buscar na mitologia grega a expressão de várias de suas descobertas sobre o que acontece dentro do cérebro humano, por que não ir diretamente até Electra?

Em The Furies, Barbara Stanwyck interpreta uma filha tão fascinada pelo pai – interpretado por Walter Huston, em seu último filme, fazendo um exercício maluco de over-acting – que, quando ele anuncia que vai se casar de novo, ela agride fisicamente a possível futura madrasta de uma forma violentíssima, absurda, inimaginável, que causará profundo dano à mulher que ousou querer chegar perto de seu pai.

The Furies é isso aí

O espectador que gosta de bangue-bangue porque gosta mesmo é de ver tiroteio, e montanhas de índios caindo mortinhos da silva, esse aí, tsc, tsc, provavelmente não vai gostar muito de The Furies.
Anthony Mann foi o mestre do western psicológico.
Se houvesse psicanalista no Novo México daquela época, Vance Jeffords – esse é o nome da personagem da maravilhosa, fantástica, extraordinária Barbara Stanwyck – deveria consultar umas cinco vezes por semana, e ainda assim provavelmente levaria uns 35 anos para se livrar de tanto problema.

A mãe morreu cedo. Era uma dama, um ser um tanto puro demais, pelo que podemos perceber. O pai, T.C. Jeffords, era homem bruto, o tipo exemplar dos construtores de império daquela época muito distante desta nossa de hoje, em que do empreendedor se exige apenas cérebro e esperteza. T.C. Jeffords começou do nada – como todo herói de história americana – e construiu um império no Novo México. O filme não gasta tempo explicando como isso aconteceu, mas dá a entender que ele foi comprando ou simplesmente invadindo diversos terrenos antes pertencentes a mexicanos, e, após muitos anos, passou a ser o dono de uma propriedade rural de tamanho assombroso. A tal imenso latifúndio, deu o nome de The Furies.
Teve dois filhos, um homem e uma mulher. Clay (John Bromfield, na foto abaixo) não é amado ou respeitado pelo pai. Já pela filha, Vance, T.C. tem todo o amor da vida.

O latifundiário pagava os empregados com notas que ele mesmo imprimia

O roteirista Charles Schnee apresenta essa família complicada de maneira inteligente, ágil, esperta, rápida. Primeiro de tudo, o espectador vê Clay chegar de cavalo à grande casa principal do latifúndio. Ainda lá fora, Clay olha para cima, vê que o quarto da mãe está com as luzes acesas. Após a morte da mulher, T.C. havia determinado que o quarto dela não sofreria mudança alguma, ficaria exatamente como estava no último dia de vida dela. Naquele dia em que a ação começa, Vance, contrariando as ordens do pai, havia entrado no quarto-santuário. Procurava algum vestido lindo que pudesse usar no casamento de Clay, que aconteceria dali a pouco.

O primeiro diálogo do filme, entre os dois irmãos, já apresenta para o espectador os fatos básicos sobre a família, e sobre o caráter de cada um deles. Clay prefere jamais enfrentar o pai, jamais discordar dele, para evitar problemas. Já Vance, ao contrário, não foge de uma discussão com o pai todo-poderoso – e o velho T.C. adora a filha, entre outros motivos, exatamente pelo fato de ela ser corajosa a ponto de desafiá-lo.
Naquela mesma noite, T.C. estará chegando de volta à mansão após uma longa temporada em San Francisco. Chegará trazendo para se hospedar ali um alto funcionário de um banco da grande cidade californiana, o banco pertencente a um sujeito chamado Anaheim (Charles Evans). O homem vem conhecer de perto The Furies, para avaliar se o banco deve fazer o grande empréstimo solicitado por T.C., se a propriedade é garantia suficiente.

Dono de uma imensidão de terras e de um rebanho fabuloso, T.C. se encontra naquele momento sem capital de giro, sem meio circulante, sem dinheiro na mão. Veremos que na verdade esse sempre foi o estilo de vida do magnata: muita terra, muito gado, mas quase nada de dindim no bolso. Tanto que fazia tempo que ele havia criado seu próprio meio circulante, sua própria moeda – ele imprimia notas, como se fossem notas promissórias, e pagava os empregados e fornecedores com elas. Suas notas eram chamadas de T.Cs. Essa questão, o fato de ele imprimir seu próprio dinheiro, terá importância fundamental na trama.

A rebelde Vance vai se apaixonar pelo grande inimigo do pai poderoso
T.C. sabe que Vance será a herdeira de suas terras todas, sabe que ela (e não seu irmão Clay) é que tem talento e força para tocar The Furies no futuro. Sabe que será o filho que Vance vier a ter que será o herdeiro de seu império – e por isso mesmo faz questão de ser ouvido pela filha na questão da escolha do homem com quem ela se casará. Na verdade, T.C. gostaria de escolher ele mesmo o marido da filha – coisa que Vance, tão geniosa, forte, decidida quanto o pai não permitirá, é óbvio.

Vance tem uma amizade fortíssima, íntima, com Juan Herrera (Gilbert Roland, na foto abaixo), um mexicano, hoje chefe de uma das famílias que eram proprietárias de partes das terras que foram sendo comprada e/ou griladas por T.C. Vance e Juan brincavam juntos quando crianças, cresceram juntos, são unha e carne. Juan é absolutamente apaixonado por ela, mas ela tem por ele apenas um amor fraternal.
A existência de Juan Herrera, e a amizade fortíssima entre ele e Vance, também serão muito importantes no desenrolar da trama criada pelo escritor Niven Busch e adaptada pelo roteirista Charles Schnee.

Imensa importância terá também um sujeito chamado Rip Darrow (Wendell Corey). O pai dele era dono de um trecho das terras que hoje pertencem a T.C. – um trecho especialmente importante, com água e bela vegetação. E tinha sido morto por T.C., aparentemente num duelo legal, daqueles admitidos na época. Darrow é um grande jogador, e tem um saloon na cidadezinha mais próxima. Ele e T.C. se odeiam, são inimigos figadais.
E então Vance se apaixona pelo grande inimigo do pai.
Isso que relatei é apenas o início da história. A trama que virá a seguir é complexa, cheia de lances inesperados. É uma tragédia grega.

Num gênero machista, é fascinante ver essa mulher fortíssima, ousada
É sabido que o western é um gênero machista. Em geral, a grosso modo, há espaço nos westerns para dois tipos de mulheres: as esposas e as mulheres dos cabarés. Ou santas, ou putas.
São bem raras as exceções, os faroestes em que a mulher tem grande importância na trama. Há, claro, Johnny Guitar (1954), em que as figuras mais fortes são as personagens interpretadas por Joan Crawford e Mercedes McCambridge, e alguns outros poucos.

The Furies é outra exceção à regra machista.

Vance Jeffords é uma mulher fortíssima, corajosa, ousada. Na relação dela com Rip Darrow, exige ser tratada de igual para igual. E a forma com que entra o fade out nas cenas em que os dois se beijam – a imagem vai sumindo e a tela fica toda negra por alguns segundos – é um indício claríssimo de que o casal não parou por aí, apenas no beijo. Não, senhor – eles foram em frente. Algo que era extremamente ousado para a época, em que ainda estava em vigor o Código Hays, o código de autocensura dos grandes estúdios que vedava terminantemente relações sexuais fora ou antes do casamento.

Há um diálogo sensacional entre Vance e uma bela moça de cabaré que, fica claro para o espectador, é, naquele momento, amante de Rip Darrow. Vance chega ao saloon de Rip, depois de um longo tempo em que não se viam, e lá está a bela (interpretada por Myrna Dell, 1904-2011, 77 títulos na filmografia, aparentemente nunca como protagonista).
A moça diz: – “Não nos vimos antes. Meu nome é Dallas Hart. Sou nova na cidade, querida.”
E Vance, superior, fria, cortante: – “Querida, você não seria nova em nenhum lugar”.
Cai a ficha na cabeça da bela: – “Você deve ser Vance Jeffords”.
Vance pergunta se Rip falou sobre ela. É a vez de a bela se vingar: – “Ele, não, nunca. Mas todos os outros me falaram sobre você.”

Em outro belo diálogo, Vancc abre o coração para seu amigo de infância Juan Herrera: “Não sei se gosto de estar apaixonada. Sinto-me como se tivesse um freio na boca”.
É interessante notar que o escritor Niven Busch é também o autor do romance que deu origem a Duelo ao Sol/Duel in the Sun, a suntuosa produção de David O. Selznick de 1945 que parece ter sido feita como uma homenagem a Jennifer Jones, a paixão do todo-poderoso produtor. Exatamente com em The Furies, em Duelo ao Sol a personagem central é uma mulher.

Mann dizia que Shakespeare ou tragédia grega podem ser adaptadas para o Oeste
The Furies não costuma ser considerado um dos melhores westerns de Anthony Mann. Em geral são citados como obras-primas os filmes que o grande diretor fez com James Stewart: Winchester 73, do mesmo ano deste filme aqui, 1950, E o Sangue Semeou a Terra/Bend of the River, de 1952, O Preço de um Homem/The Naked Spur, de 1953, e Região do Ódio/The Far Country, de 1954.
Esses são os westerns citados pelo crítico Paul Mayersberg num programa da BBC de Londres chamado “The Films of Anthony Mann”, feito em 1968, quando o diretor estava em Londres filmando O Espião de Dois Mundos/A Dandy in Aspic, que viria a ser seu último filme. O programa, como tudo que a BBC faz, é uma maravilha; ele está como um dos extras na caixa de DVDs Cinema Faroeste, lançado pela ótima Versátil.

O crítico mostra diversas cenas desses westerns citados logo acima com tomadas de sua longa e gostosa entrevista com Anthony Mann. Não aparece no programa uma tomada sequer de The Furies, e não há qualquer citação a ele.

Mas uma frase de Mann define bem sua visão do western:
– “Você pode pegar qualquer dos grandes dramas, não importa se é Shakespeare, ou uma das peças gregas. Tudo. Sempre se pode situá-los no Velho Oeste. De algum modo ganham vida, e esse tipo de paixão, esse drama, você pode ter parricídio, qualquer tipo de homicídio no Velho Oeste. E vai dar certo, porque é onde toda a ação se desenrola.”

Sobre Anthony Mann, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores:
“Ao se rever O Preço de um Homem ou Winchester 73, é forçoso concordar com Coursodon e Tavernier: ‘É o que o gênero produziu de mais perfeito e mais puro.” E ele conclui o verbete cheio de adjetivos que demonstram admiração assim: “Mann é o cineasta clássico por excelência”.

Diz o livro The Paramount Story: “Um western grandioso, The Furies atingiu picos quase operísticos de emoções quando a força irresistível de uma filha rebelde se batia contra as objeções irremovíveis de seu pai, um barão do gado. Com atores tão talentosos quanto Barbara Stanwyck e Walter Huston nesses papéis, não havia perigo algum de risos não desejados atrapalhando o clima, mas a história de Niven Busch, adaptada por Charles Schnee, às vezes chegava a ficar além dos limites.”

Depois de mencionar o tom freudiano da relação entre os personagens, o livro diz que Anthony Mann era adepto de dar ao drama passado ao ar livre um sentido de realidade, e seu ritmo o salvava cada vez que ele saía de dentro do estúdio e ia para as cenas filmadas em exteriores. E conclui relatando que foi o último filme de Walter Huston – o pai do grande diretor John, avô de Anjelica. O excelente ator morreu no mesmo ano do lançamento do filme, aos 67 anos de idade.

Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Western bem dirigido mas muito falado e psicológico, detalhando a complexa relação de amor e ódio de Stanwyck com seu pai, Huston (em seu último papel), um tirânico fazendeiro de gado. Muito pesado em alguns momentos.”
Sem dúvida, pesado demais, aqui e ali. Mas um belo, fascinante filme, com dois atores de primeiríssima em atuações fortes, marcantes.

Por Sérgio Vaz

30/03/23

Anjo de Vingança, Frenchie, 1950, Louis King

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Frenchie Fontaine vende seu negócio de sucesso em Nova Orleans para vir para o oeste. O motivo dela? Encontre os homens que mataram seu pai, Frank Dawson. Mas ela só conhece um dos dois que fez e ela está determinada a descobrir o outro.


31/03/23

Bela Donna, 1998, Fábio Barreto

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Depois do grande sucesso de O Quatrilho, a família Barreto ( Fábio na direção, Lucy e Luiz Carlos na produção ) transpõe para o cinema o romance " Riacho Doce " de José Lins do Rego. A história se passa em 1939, quando um casal norte-americano viaja ao Brasil para trabalhar na prospecção de petróleo. Nas belas praias cearenses, Donna, a " bela " do título do filme, se apaixona por um pescador. A belíssima fotografia, uma técnica primorosa, reconstituição de época perfeita e a deliciosa música de Dori Caymmi fazem de Bela Donna um filme imperdível. CineDica

02/04/23

Corações Divididos, Siege at Red River, 1954, Rudolph Maté

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Capitão de cavalaria faz tentativas de impedir a entrega de armas Gatling nas mãos de índios hostis.

05/04/23

Devastando Caminho, Canadian Pacific, 1949, Edwin L. Marin

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Um explorador da Estrada de Ferro Canadian Pacific precisa combater contrabandistas de peles que se opõem à construção da Estrada ao provocar uma rebelião indígena.

08/04/23

Dois Dias, Uma Noite, Deux jours, une nuit, 2014, Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne

CRÍTICA | DOIS DIAS, UMA NOITE

por LUIZ SANTIAGO 12 de fevereiro de 2015

Os irmãos Dardenne, queridinhos dos grandes festivais de cinema europeus e diretores antenados nos mais diversos temas em pauta na atualidade — seja em termos factuais ou simbólicos — trazem-nos em Dois Dias, Uma Noite (2014) uma tocante análise individual e social para a crise europeia e mundial de desemprego, explorando os cenários pessoais dos indivíduos, a colocação deles na sociedade, a relação com a empresa e os colegas de trabalho.

Como o tema é bastante amplo e pode gerar as inúmeras discussões, os diretores, que também assinam o roteiro, mantiveram a abordagem em um plano de dois caminhos, um psicológico e outro social. No primeiro temos Sandra (Marion Cotillard) em destaque, uma mulher que está se curando de depressão e que, certa tarde, recebe a notícia de que provavelmente irá perder o emprego. No segundo temos a visita de Sandra aos colegas de trabalho numa tentativa de convencê-los a votar a favor dela em uma escolha que a empresa recolocará em pauta: ou a permanência de Sandra no quadro de funcionários ou um bônus de mil euros para cada trabalhador.

Como o temo diegético já é claramente definido no título do longa, o espectador se pergunta se os diretores conseguirão manter viva durante uma hora e meia uma história que facilmente poderia ser abordada em menor tempo. Não demora muito e imaginamos que a obra será uma grande enrolação e que as repetições das visitas tornarão a projeção cansativa. Todavia, nos enganamos. Os cineastas conseguem sustentar com competência o que propõem, explorando não só a vida da protagonista e de seus colegas de trabalho mas também mostrando pequenos momentos, durante o final de semana, que marcam o desenvolvimento do roteiro colocando o dedo em outras feridas de convivência além do campo profissional.

Mas a premissa central dos Dardenne em Dois Dias, Uma Noite é a problematização das relações humanas fora do núcleo familiar. E isso pode parecer estranho à primeira vista porque as famílias de todos os personagens do filme são colocadas em destaque na quase totalidade dos diálogos. No entanto, os familiares só vêm à tona com muleta ou justificativa de alguém para ficar com o bônus oferecido pela empresa, mesmo que não tenha, como indivíduo, nada contra a pessoa de Sandra. Percebam que os diretores usam de um conflito externo (o trabalho) para trazer à tona problemas internos (a depressão de Sandra, um casamento infeliz, a péssima relação entre pai e filho, a ilegalidade…).

É nas relações sociais, no coleguismo de trabalho,as aparências X realidade que o roteiro planta a discórdia e joga para o público o dilema moral que os personagens só podem viver de um lado, mesmo que digam se colocar no lugar do outro. Afinal, o bônus é uma oferta da empresa, ninguém está “tirando” nada de ninguém e, pelo menos a maioria de todos os trabalhadores do mundo ficariam felizes com um bônus grande ao término do mês, afinal, é um dinheiro a mais para ser investido em projetos familiares ou pessoais diversos. Todavia, a escolha desse dinheiro que antes não existia na folha de pagamento colocará uma das funcionárias da empresa na rua. O que fazer em uma situação dessas?

A direção do filme é precisa ao optar por trabalhar o amadurecimento/cura/despertar de Sandra ao passo que as visitas acontecem. Com a montagem pontualíssima de Marie-Hélène Dozo (parceira dos Dardenne desde A Promessa, 1996), presenciamos pequenos momentos de felicidade (através da comida e da música) entre Sandra, o marido e os filhos, ao passo que ela definha e posteriormente se fortalece, aceitando o desemprego e resolvendo sair em busca de alguma outra coisa. A interpretação emotiva de Marion Cotillard praticamente dá ao filme esse tom de desesperança e conforto ao mesmo tempo, uma dualidade que vemos desde os primeiros minutos, onde se contrasta a casa e o ambiente familiar da protagonista com o seu desespero pessoal e a já esperada dificuldade financeira vinda com o possível desemprego.

Num momento de egoísmo endêmico e poucas demonstrações de humanidade, Dois Dias, Uma Noite é um verdadeiro sinal dos tempos. Com grande estrutura moral e ética, o longa nos traz uma situação de medo e possibilidade que certamente já tomou conta de todo trabalhador ao menos uma vez na vida, especialmente se ele tem uma família para sustentar. É o bom e velho cinema crítico fazendo da realidade material bruto para se construir.

Dois Dias, Uma Noite (Deux jours, une nuit) – Bélgica, França, Itália, 2014
Direção: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Elenco: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée, Batiste Sornin, Pili Groyne, Simon Caudry, Lara Persain, Alain Eloy, Myriem Akeddiou, Fabienne Sciascia, Anette Niro. Duração: 95 min.

11/04/23

Horizonte Sombrio, Way Down East, 1920

No iutubi aqui

Guilherme Durand

Way Down East 1920 ★★★★★
Watched Jul 16, 2021

Como não amar um filme monogâmico?
O que mais me chama a atenção em Way Down East, é que dentre os que vi do diretor (com este, fecho os mais famosos dele) este é o que mais possui características pertencentes ao cinema clássico, ou até de certo modo, possa se dizer que a obra pertença ao cinema clássico.

Ocorre que, se nos trabalhos anteriores de Griffith existia um interesse maior em se explorar as possibilidades da linguagem cinematográfica ainda primitiva, como: a montagem paralela em Nascimento de uma Nação (1915), a montagem acelerada e o espetáculo épico visual em Intolerância (1916) e a captação da expressividade de seus atores pelo uso de seu famosos close-ups em True Heart Susie e Lírio Partido (ambos de 1919), agora em Way Down East, na virada de década, Griffith se apropria desses elementos explorados anteriormente de uma maneira natural, digerida e elegante.
A montagem paralela agora permeia o filme todo, assim como a montagem acelerada (promovendo aquela tensão final histórica na cena da geleira) e claro, os brilhantes close-ups, em especial quando se trata de sua musa Lillian Gish (houve alguma dupla maior que Griffith e Gish na história do cinema?). O que antes eram experimentos e aprofundamentos (igualmente ousados e geniais), agora se tornam um todo, uma única unidade dentro desse universo de Griffith.

Até mesmo em quando se pensa em Way Down East pelo que se é abordado, o filme assume essa postura do cinema clássico, veja bem, ao mesmo tempo em que a experimentação do Griffith quanto a forma era bem exposta nos filmes anteriores, sua moral também era, seja com o discurso racista em Nascimento de uma nação, o preconceito e ódio ao redor de toda história da humanidade em Intolerância, a xenofobia ocidental em Lírio Partido e até mesmo aquela tentativa de se criar uma carta de amor as mulheres (que no fim só foi machista mesmo) em True Heart Susie.

Agora Griffith camufla muito bem sua proposta aqui, junto com suas escolhas quanto a unidade estilística que agora tomam um caráter mais orgânico (como já citei anteriormente). Agora, não estamos mais de frente com um cinema de uma estilização mais exposta e de uma proposta escancarada, a jornada de nossa heroína se torna um pano de fundo para uma crítica a essa burguesia masculina que se afunda em luxúria e parte o coração de meninas puras e inocentes (um dos símbolos clássicos do cinema de Griffith), de como o desrespeito a instituição sagrada do matrimônio pode levar a humanidade a ruína e esse retrato de pessoas supostamente de bem e cristãs, que preferem apontar o dedo e julgar como certo e errado alguém pelo passado do que estender a mão e ajudar (a figura da velha fofoqueira).

Chega ser curioso como este filme me lembra bastante o que Clint Eastwood vem produzindo atualmente, essa abordagem clássica em que se prega valores conservadores ao mesmo tempo em que os questiona. Way Down East trata-se de um filme que prega a monogamia e o casamento, a palavra da Bíblia como palavra máxima e a virgindade de uma mulher como sua pureza, mas ao mesmo tempo questiona esses pensamentos e critica como a sociedade cristã da época julga a mulher como boa ou má por esse senso de “pureza” e como a sociedade esconde no discurso católico um falso altruísmo em relação ao mundo.

Finalizando, o que mais me encantou nesse filme, é ver como o cinema de Griffith sempre esteve um passo à frente dos demais nesse período da década de 1910’ e 1920’, mesmo quando seu cinema já havia atingido um ápice quanto a experimentação de diversas técnicas e se tornado uma referência para todo o cinema mudo, Griffith lança um filme digno da década de 30 e 40 logo no início da década de 20. Tudo tão camuflado, mastigado, mas quando se percebe, está de frente com uma obra extremamente profunda, onde cada escolha minuciosa tem alguma intenção, não que haja algum problema com filmes que lidam com tudo de uma maneira mais frontal (os quais eu talvez eu até prefira) ou com os anteriores do Griffith (que não deixam de ser excelentes filmes e até obras-primas), mas ver o amadurecimento de um gênio que revolucionou o cinema aprendendo, descobrindo e colocando tudo em prática, é foda demais.

*Agora não sei definir se meu favorito de Griffith é Lírio Partido ou este aqui, se no primeiro fiquei fascinado em como o diretor utilizou de seus close-ups e de seu final trágico para intensificar sua visão pessimista quando ao ocidente presunçoso e xenofóbico, aqui fico fascinado em como forma e conteúdo se torna algo tão recôndito, mas vai se desdobrando em um comentário/visão sociológica bem maior do que aparentava ser, um tipo de cinema que acho só o Ford viria a produzir tão cedo depois.

*Não sei o motivo pelo qual não consideram Lírio Partido, True Heart Susie e Way Down East como uma trilogia.

13/04/23

Índio Heroico, Sitting Bull, 1954, Sidney Salkow

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Touro Sentado, o Último Guerreiro

Sitting Bull, chefe da tribo dos Sioux, é forçado a recorrer as armas por causa da provocações, constantes de seu inimigo irreconciliável, General Custer. O resultado final é a famosa batalha Little Bighorn. Major Parrish um amigo do Sioux. Que tentou evitar derramamento de sangue desnecessário, é julgado e acusado de colaborar com o inimigo. Esta versão é fiel aos fatos históricos, telecinados diretos do negativo original, pela primeira vez no mercado latino. Esta obra prima do gênero, agora para o seu deleite em versão mundial com varias dublagens. InterFilmes

15/04/23

O Homem da Capa Preta, 1986, Sergio Rezende

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Rubens Ewald Filho, UOL, 01/01/2005

Um dos melhores filmes do diretor Sérgio Rezende, como sempre com produção de sua esposa Mariza Leão. É uma muito bem-sucedida biografia, com cuidada reprodução de época e muita autenticidade (a família de Tenório ajudou e até filmaram na fortaleza dele em Caxias, restaurada pela produção), com excelente fotografia de César Charlone (que depois seria consagrado com "Cidade de Deus") e o acerto da interpretação de Wilker num de seus grandes momentos.

Também a galeria de coadjuvantes é muito boa, em especial os policiais interpretados por Tonico Pereira e Paulo Villaça. E Marieta Severo brilha no pequeno papel, quase sem diálogo, da esposa do deputado (que lhe valeu prêmio em Gramado).

Não faz o louvor do protagonista, nem o humaniza em excesso. Pelo contrário, ressalta suas contradições, funcionando como retrato da política brasileira. Mas também como filme policial de gângster. Foi um grande sucesso na época e também recebeu os prêmios em Gramado para Filme, Ator, Trilha Musical e o do Público.

17/04/23

Rainha Cleópatra, Queen Cleopatra, Minissérie TV, 2023, Tina Gharavi


A polêmica em torno da Cleópatra negra da Netflix

Torsten Landsberg, DW,  10/05/2023

Atribuição do papel da rainha a uma atriz negra gerou protestos de historiadores e até do Ministério de Antiguidades do Egito, que afirmam que Cleópatra seria grega e, portanto, branca.
Representações contemporâneas configuram a imagem que o público faz das personagens históricas. Desde que o ganhador do Oscar Cleópatra estreou em 1963, Elizabeth Taylor tornou-se, para a cultura popular, a "cara" da rainha egípcia, raramente questionada.
Cleópatra 7ª (69 a.C-30 a.C.) descendia de Ptolomeu 1º Sóter, general greco-macedônio companheiro de Alexandre Magno e fundador da dinastia ptolemaica. Mas ninguém realmente sabe como ela era fisicamente, pois a origem étnica de sua mãe não está esclarecida.

Uma série documental em quatro partes da Netflix propõe uma nova imagem da regente do Reino Ptolemaico do Egito de 51 a.C. a 30 a.C.. E, antes mesmo de sua estreia, nesta quarta-feira (10/05), causou polêmica, pois seu trailer mostra que o papel-título de Rainha Cleópatra cabe a Adele James, a qual, segundo entrevista ao jornal britânico Express, se autodefine como "uma mulher birracial".
No Egito, a decisão provocou indignação oficial e até reações jurídicas. Para Mostafa Waziri, presidente do Conselho Supremo de Antiguidades, uma monarca negra não passa de uma "falsificação da história egípcia". Não se trata de racismo, frisa, mas simplesmente de "defender a história da rainha Cleópatra, que é parte importante da história do Egito na Antiguidade".

Assim como outros historiadores, o egiptólogo e ex-ministro de Antiguidades Zahi Hawass afirmou que "Cleópatra era grega, o que significa que era de pele clara, não negra". O próprio ministério se envolveu na controvérsia, publicando uma extensa declaração em que cita peritos segundo os quais ela "tinha pele branca e traços helênicos". Por sua vez, o advogado Mahmoud al-Semary apresentou queixa ao Ministério Público, exigindo que a plataforma de streaming seja bloqueada, argumentando que apresentar a rainha como mulher negra "distorce e apaga a identidade do Egito".

"Mais para Adele James do que para Elizabeth Taylor"

Dispõe-se de alguns dados pictóricos sobre Cleópatra 7ª: ela é retratada em moedas de Alexandria, de 51 a.C., e da cidade palestina de Ascalona, de dois anos mais tarde. A Coleção de Antiguidades Clássicas de Berlim possui um busto, esculpido entre 50 a.C. e 26 a.C., muito semelhante às imagens das moedas. Os registros históricos não trazem informações sobre a cor de sua pele.
Num artigo para a revista Variety, a diretora de Rainha Cleópatra, Tina Gharavi, afirma ser provável que a regente se parecesse antes com Adele James. Afinal, sua família já vivia no Egito há três séculos quando ela nasceu. "Então, Cleópatra era negra? Não sabemos exatamente. Mas podemos ter certeza de que não era branca como Elizabeth Taylor."

Aparentemente, pele branca dá um valor especial a uma personagem, contra-ataca Gharavi, e "para alguns egípcios isso parece ser realmente importante". Ela vê a necessidade de uma discussão sobre "a supremacia branca internalizada com que Hollywood nos doutrinou". Segundo a Netflix, designar James para o papel foi uma "decisão criativa", a ser vista como uma alusão tanto ao "secular debate sobre a etnicidade da regente", quanto à população multicultural do reino na época.
Whitewashing invertida?

Mais de 2 mil anos após a morte de Cleópatra, as polêmicas em torno de sua figura persistem. Cientistas tentaram descobrir qual teria sido sua aparência em elaboradas reconstruções e procedimentos de medicina legal. Porém os projetos no setor cultural provocam muito mais barulho.
A perspectiva de ter Angelina Jolie no papel – numa produção cinematográfica que acabou sendo abandonada – enfrentou críticas ferozes, assim como a seleção de Gal Gadot para um filme com lançamento marcado para 2024. A atriz israelense justificou à BBC árabe: "Se você quer ser fiel aos fatos, Cleópatra era macedônia. Estávamos procurando uma atriz macedônia. Não havia." Em ambos os casos, a acusação era da assim chamada whitewashing (literalmente "lavagem branca"), a distribuição de papéis não brancos a atores e atrizes brancos. 

No caso de Rainha Cleópatra, os críticos estão acusando a empresa de streaming dessa prática, mas com a etnicidade invertida. "Não é comum se ver ou escutar histórias sobre rainhas negras", argumentou a produtora da minissérie Jada Pinkett Smith, esposa do ator Will Smith, citada pela Netflix. O acesso a mulheres historicamente significativas é difícil, mas importante, pois elas "formaram a coluna vertebral das nações africanas".

Inserção negra na história ocidental

A guerra cultural em torno da monarca ptolemaica tem uma causa profunda. Ela foi "representante e símbolo da alta cultura egípcia com sua influência sobre a Grécia e, assim, sobre a emergência da civilização ocidental", escrevia em 2013 Gesine Krüger, em seu ensaio Out of Africa? Die schwarze Kleopatra in zeitgenössischen Debatten (Saída da África? A Cleópatra negra nos debates contemporâneos). É controverso a quem cabe esse mérito, se "a uma alta cultura ou a um 'posto avançado' da Europa no continente africano" prossegue a professora de História Moderna e Não Europeia da Universidade de Zurique.

Nos Estados Unidos, os negros têm sido representados sobretudo como objetos, primeiro da escravidão e, por fim, da libertação, mas definitivamente "como parte da história branca de emancipação e progresso". Com a referência a Cleópatra e ao Egito africano, a comunidade negra passaria "não só a ter algo a contribuir para a história americana, mas de certo modo se posiciona em seus primórdios civilizatórios".

A atual discussão causa perplexidade também pelo fato de que questões de cor da pele e "raça" não tinham qualquer significado na Antiguidade. Enquanto isso, a britânica Adele James não se deixou perturbar, comentando no Twitter: "Se você não gosta do elenco, não assista à série."

20/04/23

Um Lugar Silencioso, A Quiet Place, 2018, John Krasinski

CRÍTICA | UM LUGAR SILENCIOSO
por LUIZ SANTIAGO 8 de abril de 2018

Até onde você iria para proteger seus filhos ou qualquer outra pessoa que você ama? Esta é a pergunta principal, levada às maiores e até exageradas consequências, que encontramos em Um Lugar Silencioso, filme dirigido, co-escrito e atuado por John Krasinski (The Office) em seu terceiro trabalho atrás das câmeras (considerando longas-metragens, porque ele também dirigiu três episódios de The Office). Na trama, que se passa em um futuro próximo, três criaturas alienígenas (?) estão na Terra e elas possuem uma particularidade: são atraídas pelo som. Qualquer barulho deve ser evitado, especialmente quando se está distante de lugares com ruídos constantes, como rios e cachoeiras. Com boa parte da população e animais do planeta dizimados, a obra rapidamente expõe o perigo que os humanos restantes correm. Em pouco tempo, o público está imerso em silêncio, temendo que cada barulho tenha sido alto demais para ser ouvido pelas criaturas e se assustando imensamente quando o som é ampliado ao máximo, sempre que necessário.

Inicialmente escrito por Bryan Woods e Scott Beck, a obra recebeu um novo tratamento de Krasinski, que se baseou em obras como Alien, o Oitavo Passageiro (1979), Onde os Fracos Não Tem Vez (2007) e Entre Quatro Paredes (2001) parar destacar o elemento que o atraiu desde o início: a solidão, a ameaça constante e a urgência proteção dos pais aos filhos. Na época da pré-produção, ele e a esposa Emily Blunt tinham acabado de ter mais um bebê, e a paternidade e maternidade rugia forte nos dois, que discutiram muito sobre a obra. Eles devem um ao outro a existência do resultado final, começando da produção: Krasinski só aceitou a direção porque a esposa insistiu e Blunt só considerou atuar no filme a pedido do esposo. Essa relação parental é repetida e maximizada na película, já que os dois fazem um casal que tentam viver e ensinar aos filhos viverem neste mundo onde o silêncio é vida.
Considerando os aspectos mais básicos da linguagem cinematográfica, é possível entender o por que Um Lugar Silencioso é um filme (de terror!) muito diferente. 

No primeiro ato, conhecemos os personagens, demoramos alguns poucos minutos para entender a real importância do título e compramos a ideia. O monstro não está à vista logo de cara. E como nos bons terrores que abordam ocasiões misteriosas e de implicações improváveis, há apenas o mínimo suficiente sobre o que aconteceu com o mundo. Ao contrário do que possa parecer, essa tomada de decisão é instigante, pois nos deixa esperando por mais detalhes e sempre na expectativa de descobrir coisas novas, algo que de fato acabamos descobrindo. Pouco a pouco, a linguagem de sinais vai se entrelaçando com sussurros e uma trilha sonora pontualíssima. Entendo perfeitamente a preocupação do diretor em adicionar trilha aqui, mas ainda acho que o filme ganharia bem mais se apenas o excelente trabalho de edição e mixagem de som estivessem em cena, marcando os pormenores do silêncio e criando em si mesmo um caminho perfeito para o medo.

Diante dessa escrupulosa engenharia de som, não é surpresa que o roteiro tenha muitas cartas escondidas na manga, algumas delas gerando um elemento constante de angústia no espectador (o maldito prego, por exemplo), mas ele não fica só aí. Krasinski prende o público pela maneira incomum de apresentar os jumps e pela forma como a linha dramática e parental, do roteiro é guiada em sequências onde temos de tudo: encontros, brigas, tragédias, momentos de diversão, um sutil humor, romance e amor. A sobrevivência da família e a forma como cada um vê o mundo coloca na tela pequenos Universos, vistos na interpretação e na forma como usam a linguagem de sinais, começando dos gestos rápidos do pai (Krasinski), indo para os gestos mais longos e amplos da mãe (Blunt) e passando pelo meio termo entre Marcus (Noah Jupe) e Regan (Millicent Simmonds, atriz surda que estreou na safra anterior a este filme, em Sem Fôlego, de Todd Haynes).

SPOILERS!

Depois de um primeiro ato bastante sólido, o segundo ato chega com algumas coisas incômodas, como a cena do “afogamento no milho” (a única coisa que se possa chamar de “ruim” do filme) e a perseguição insistente demais da criatura na casa da família Abbott, agora com um novo membro, que faz barulho por excelência, porque precisa chorar. As cenas continuam tensas, o momento com o monstro no lugar parcialmente inundado é incrível (aliás, a aparência do monstro é incrível), mas esse cerco cobra do filme algo que ele não dá, ou seja, mais detalhes sobre os aliens, o que vira um problema — pequeno, mas não ignorável — para a fluidez do enredo, porque o segundo ato tem o maior número de cenas de medo, os personagens são colocados em situações de grande estresse e então passamos para o amarrar dos nós. As coisas são aceleradas.

A montagem e edição são tão bem feitas que os 90 minutos parecem bem menos do que são, e devemos considerar aí que falamos de uma obra com cada metade dotada de uma atmosfera distinta, ou seja, são emoções e níveis de entrega diferentes em cada parte da obra, tendo um clímax continuado e perfeitamente administrado, começando com o sacrifício de Lee por amor aos filhos e terminando na descoberta de Regan para qual era, de fato, a fraqueza dos monstros. Também essa parte parece rápida demais ou carente de algumas pequenas cenas que ajudassem a contextualizar a descoberta, mas dada a tensão e intenção daquele momento, foi melhor que o texto realmente focasse em se livrar do bicho. Se o contexto não conseguiu ser feito antes, àquela altura, dificilmente conseguiria ser bem encaixado.
Notadamente diferente dos filmes do gênero, bem dirigido, maravilhosamente bem atuado (Emily Blunt cria uma postura de grandes emoções guardadas pela impossibilidade de emitir sons altos que é algo impressionante) e com um final capaz de arrancar aplausos pela disposição da família e superação medonha das adversidades, Um Lugar Silencioso está entre os longas de grande surpresa e que sabe usar os clichês de maneira muito inteligente a seu favor. Uma obra capaz de nos deixar sem palavras, ao mesmo tempo que nos faz querer gritar.

Um Lugar Silencioso (A Quiet Place) — EUA, 2018
Direção: John Krasinski, Roteiro: Bryan Woods, Scott Beck, John Krasinski
Elenco: Emily Blunt, John Krasinski, Millicent Simmonds, Noah Jupe, Cade Woodward, Leon Russom, Doris McCarthy, Duração: 90 min.

22/04/23

Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola, A Million Ways to Die in the West, 2014, Seth MacFarlane

Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola. Perdido no oeste

Por Bruno Carmelo

Após o grande sucesso de Ted (2012), o diretor e roteirista Seth MacFarlane tinha liberdade para fazer praticamente o que quisesse. Escolheu algo inusitado: esta paródia de faroeste, gênero que não rende sucessos de bilheteria há muitos anos. Estão presentes nesta comédia todos os elementos famosos do western: os saloons onde os atiradores tomam suas cervejas, as donzelas, os duelos ao meio-dia na rua principal da cidade, as fugas a cavalo em planícies desérticas etc.

Este aspecto desperta a primeira surpresa para o espectador. Recentemente, as comédias destinadas a adultos têm brincado com a convivência entre opostos: o policial inteligente contra o policial burro em Anjos da Lei, a casa silenciosa contra a casa barulhenta em Vizinhos, a policial dedicada contra a policial irresponsável em As Bem-Armadas, a irmã abusada contra o irmão ingênuo em Família do Bagulho. O próprio Ted brincava com essa contradição, ao embutir na figura dócil do urso de pelúcia uma personalidade grosseira e irresponsável. Pois este novo faroeste foge à estrutura dos opostos: alguns elementos são subvertidos, mas os personagens permanecem dentro das regras do gênero, com a presença do vilão temido, a donzela doce e assim por diante. Esta é menos uma crônica do que uma caricatura, um exagero dos clichês consolidados.

A ideia pode ser interessante, mas Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola nunca sabe muito bem de que maneira pretende subverter o western. Alguns personagens capricham no sotaque sulista, enquanto outros falam como nova-iorquinos (e Liam Neeson assume seu sotaque irlandês, sabe-se lá porquê). Alguns estão vestidos como se de fato estivessem no século XIX, já MacFarlane apresenta um penteado contemporâneo. Parte do elenco adquire gestos de caipiras, mas outros assumem composições de personagem do século XXI. Embora certas piadas façam referência ao estilo de séculos atrás, os diálogos são recheados de gírias atuais. Bem-vindo a uma espécie de pastiche atemporal da América profunda.

Este conjunto, apesar de confuso, poderia funcionar melhor se não fosse pela própria presença de MacFarlane no papel principal. É muito evidente que o roteirista não tem muita desenvoltura como ator, o que prejudica bastante o ritmo da trama. A deficiência do ator fica ainda mais clara porque ele está cercado por um elenco cômico excelente: Giovanni Ribisi e Sarah Silverman são hilários, roubando a cena nos poucos momentos em que aparecem, e Charlize Theron é de fato uma atriz muito completa, se saindo bem tanto nas piadas mais grosseiras (como a “bunda de negona”) quanto nos instantes dramáticos, em que consegue dar uma profundidade interessante a sua personagem.

Na direção, MacFarlane também tem muito a aprender com Mel Brooks e outros cineastas que já se arriscaram nas sátiras de faroeste. O humor verbal é obtido através do roteiro e dos diálogos, sobrando pouca comicidade à construção das imagens. As cenas de duelo, ou os momentos dentro do bar, mostram a dificuldade em imprimir o ritmo ágil necessário à comédia. Mesmo uma simples conversa (o diálogo entre o protagonista e Amanda Seyfried, no início da trama) fica empobrecida pelo insistente plano e contra-plano no rosto dos atores. Talvez por falta de experiência, ou por respeito às regras do gênero, o diretor não se permitiu criar gags puramente visuais, dependendo das piadas proferidas por cada personagem.

Assim, o humor do filme foge às expectativas. MacFarlane ficou famoso com textos ácidos e sarcásticos, às vezes qualificados de misóginos (vide a sua apresentação do Oscar), mas sempre cutucando as representações familiares e de gênero. Neste faroeste, no entanto, ora o roteiro traz algumas piadas realmente inteligentes e irônicas sobre o racismo e sobre a posição social das mulheres, ora insiste em piadas infantis envolvendo todo o tipo de escatologia e personagens que tropeçam e caem. A narrativa tenta combinar dois tipos de humor praticamente incompatíveis: a comicidade de cunho social para adultos, estilo Sacha Baron Cohen, e a comicidade mais apelativa para plateias familiares, estilo Adam Sandler.

Como resultado, quase todos os espectadores vão encontrar alguns momentos hilários durante Um Milhão de Maneiras de Pegar a Pistola, mas dificilmente vão se divertir durante o filme inteiro. Esta é uma obra muito heterogênea, que tenta usar recursos demais, e agradar plateias demais. Se escolhesse um único mote cômico, o diretor poderia explorá-lo em todos os contextos possíveis. Mas o filme é disperso, menos amadurecido do que o anterior – embora seja um pouco mais ambicioso. Enfim, uma experiência mediana, que deve depender do boca a boca para conseguir um resultado sólido nas bilheterias brasileiras.

28/04/23

Viva o México!, ¡Que viva México!, 2023, Luis Estrada

¡Que viva México!’, de Luis Estrada, ataca más a los pobres que a la presidencia — 23.3.23

Alonso Díaz de la Vega

Ya está en pantallas de cine mexicanas la nueva película del director de La ley de Herodes, que narra el reencuentro de un personaje aspiracionista con su familia salvaje. Aunque Luis Estrada tiene como blanco el actual sexenio, mediante un sentido del humor anticuado, televisivo, termina golpeando sobre todo a la clase trabajadora.
Antes de los sillazos, el mérito: Luis Estrada es el raro cineasta mexicano que no le teme al pasado. Tras un largo desprestigio que aún no acaba, provocado por la colonización europea y estadounidense de nuestros gustos, el cine clásico mexicano ha encontrado en él un raro director que alude sin pena a los héroes de la cartelera nacional.

La ley de Herodes, por ejemplo, contiene un homenaje significativo: el protagonista, Juan Vargas (Damián Alcázar), engaña a un personaje estadounidense presentándose como Emilio Gabriel Fernández Figueroa. Por un lado Estrada mezcla los nombres del director y el cinefotógrafo de Pueblerina (1949), pero además está recordando una alusión idéntica que hizo John Ford en The Searchers (1956): John Wayne se topa con un personaje llamado igual. Quizá por ello Juan concluye, al finalizar la escena, que “¡los mexicanos somos más chingones!”. Importa notar también que el gringo aventajado por Juan es un estereotipo recurrente en el cine mexicano de los años treinta y cuarenta que aparece en la emblemática Allá en el rancho grande (1936) o en la forma de una irresistible prima lejana en Los tres García (1947). El mexicano se chinga a los gringos — pensando en la terminología de Octavio Paz, citado por Estrada en la prensa — ridiculizándolos, engañándolos o con mayor literalidad.

Pero por otra parte, más que estar consciente del pasado, Estrada pareciera venir de él. Sus imágenes del México actual deforman nuestros pueblos y calles hasta parecer una locación de Ismael Rodríguez. Ahí viven alcaldes corruptos, teporochos, madamas y padrotes, trabajadoras sexuales, esposas infieles: una colección de duendes arteros que pareciera fabulada por los gringos que ataca el director, o por la burguesía local, que lleva siglos imaginando a la mexicanidad como huaraches y balaceras, familias golpeadas por un padre borracho. A Paz se le acusa de lo mismo por su Laberinto de la soledad y, sin embargo, cineastas como Alejandro González Iñárritu y Estrada siguen recurriendo a su texto anticuado en busca de una generalización que exprese con elocuencia los prejuicios de su clase. Es ese el pasado en el que vive Luis Estrada: uno donde los viejos lugares comunes e insultos de una élite nacionalista —“por eso estamos como estamos”, “los mexicanos son cangrejos en una cubeta”, “indios patarrajada”— minimizan su propio abuso y encuentran en los de abajo la raíz hedionda que pudre a la patria.

 
¡Qué viva México! (2023), de Luis Estrada.

En La ley de Herodes (1999), crónica amarga del priisimo; Un mundo maravilloso (2006) y El infierno (2010), que acusan la desigualdad y la violencia en los años del PAN, y ahora ¡Que viva México! (2023), un asalto contra el obradorismo, el imaginario de Estrada se ha expresado mediante estereotipos, pero lo que antes fue una obediencia ambigua a frases que uno espera del tío reaccionario en una fiesta, se ha convertido en una película de tres horas cuya argumentación es casi tan ofensiva por su pobreza estética como por su racismo, clasismo y transfobia. En otras palabras, Estrada siempre ha golpeado al poder político, aunque no por eso ha evitado caricaturizar a los pobres; sin embargo en ¡Que viva México! parece ponerse del lado del poder económico para encontrar en los miembros más vulnerables de la sociedad una metáfora en contra del gobierno que dice representarlos.

La trama tiene como protagonista a Francisco Reyes (Alfonso Herrera), apodado, según la clase social, Fran o Pancho. Su mayor pesadilla, como lo evidencia la primera escena, es que se descubran sus raíces en la pobreza ahora que se ha infiltrado en la burguesía gracias a su trabajo en una fábrica, donde despide a trabajadores sin remordimiento. Sus temores brincan a la realidad cuando su abuelo muere y Mari (Ana de la Reguera), su esposa hueca pero rellena de codicia e insultos clasistas, le insiste a Pancho en ir a su pueblo a ver qué herencia le dejó. El reencuentro con su familia salvaje y pedorra — ya ahondaré en eso — incita entusiasmo pero también envidia.

La pobreza no es sinónimo de santidad, ni la riqueza de sadismo, pero Estrada emplea la caricatura en contra de los personajes con desigualdad: los ricos, aunque misóginos, abusivos, intolerantes e ignorantes — acusan a Andrés Manuel López Obrador de comunista —, aparecen apenas a cuadro y exigen mayor simpatía del público al ser acosados por la familia Reyes. Estrada recurre a un esquema similar al de Nuevo orden (2020), en la que vemos algunas acusaciones lanzadas contra la clase dominante pero la mayoría del metraje muestra a sus miembros más inocentes torturados por militares morenos a causa de manifestantes también morenos que se comportan como bestias. En el momento más despiadado, la familia le dice a Pancho, representante de la clase que asciende desde la pobreza: “Tu fracaso es nuestra felicidad”.

 
¡Qué viva México! (2023), de Luis Estrada.

Esta frase representa todo el humor de la película porque no es alegórica sino obvia. Es claro que Estrada parte de la ya cantada idea de la polarización en México para hablar del rencor entre clases, pero más allá de un pleito entre dos extremos azuzados por una figura patriarcal, ¡Que viva México! no tiene mucho que decir de este sexenio en cuanto a sus fracasos más preocupantes. Nada hay de los asesinatos de activistas, de las concesiones neoliberales a empresas explotadoras, o siquiera de la militarización y los destapes al estilo priista. En ocasiones hay golpes directos, aunque simples, en la forma de un tío de Pancho, el alcalde del pueblo, que admite haber brincado de partido en partido hasta llegar a Morena, cuyo sexenio ha acabado con la corrupción. Más adelante aceptará un soborno. Hacia el final de la película, como si hubiera contribuido al guion Gilberto Lozano, el líder de la organización ultraderechista FRENA, veremos un anuncio espectacular que ofrece con temor la leyenda: AMLO 2024-2030.

Lo que Estrada observa con más atención es la familia de Pancho, estereotipada y repugnante, como queda claro viendo al padre hipócrita, Rosendo (Damián Alcázar); la madre abnegada, Dolores (Ana Martín); el hermano con aparentes deficiencias intelectuales, Rosendito (Joaquín Cossio), o los muchos otros cartones entre los que destacan un narcotraficante, una mujer seductora y una mujer trans. Todos se refieren a esta última por su nombre anterior a la transición y el director le da una honorable escena en la que produce el más notorio de muchos chistes de pedos que describen el pensamiento de Estrada con mayor precisión de la que soy capaz. En un aparente intento de validar estos mecanismos, un personaje disfrazado del protagonista en Paris, Texas (1984) se baja el pantalón como Rüdiger Vogler en otra película de Wim Wenders, Kings of the road (1976), y permite descender a una tremenda boa sin ojos ni colmillos. ¡Que viva México!, parecen decir estas imágenes, no es burda ni simplona, sino heredera del Nuevo Cine Alemán, que revolucionó las imágenes en los setenta y ochenta. Me cuesta trabajo equiparar la argumentación antifascista de Germany in autumn (1978) con las caricaturas de Estrada pero soñar no cuesta.

La distancia se manifiesta espontáneamente en la alegoría escuálida y el sentido del humor que parece atorado en los años 2000, cuando La ley de Herodes triunfó gracias a la consonancia tan subrayada con que los actores pronunciaban “¡pendejo!”. En ¡Que viva México! se suma al sabroso vocabulario nacional el glosario de la cuarta transformación: resuenan el frijol con gorgojo, la polarización, los fifís o la cartilla moral, pero el solo hecho de mencionar estas cosas imita el humor de la televisión, en vez de buscar un lenguaje distinto, más sofisticado, que el de los estilos comerciales. No basta hacer lo mismo de siempre en contra de nuevos blancos para hacer un cine revolucionario.

El gran crítico francés Serge Daney pensaba que el cine ni siquiera necesitaba abordar la política para ser subversivo, si perseguía la originalidad formal y marcaba así su distancia de los medios empleados por los poderosos para apaciguar a las sociedades. Estrada, comprometido con el pasado en algunas de las peores formas posibles, ha hecho con ¡Que viva México! la más reaccionaria de sus películas, pero no por atacar a un gobierno autoproclamado de izquierda, sino por sobajar a la mayoría pobre del país con estereotipos y por conservar el humor de televisora mexicana que simboliza la tradición de oprimir.

02/05/23

Pai e Filha, Banshun, 1949, Yasujirô Ozu

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 Crítica

“Pai e Filha” exemplifica o cinema padronizado e consistente do diretor Yasujiro Ozu, tanto na forma de filmar como em sua temática.

O roteiro, co-escrito por Ozu e seu constante parceiro Kogo Noda, aborda o dilema de Noriko (Setsuko Hara), que sofre pressões da amiga, da tia, de todos enfim, para que se case. Com 27 anos, ela vive com o pai viúvo (Chishu Ryu) e se sente feliz assim, e não vê motivos para o casamento. Ao mesmo tempo em que acompanhamos o cotidiano de Noriko, se aproxima o momento em que ela a convencem a conhecer um rapaz “parecido com Gary Cooper”, indicado pela tia para se casar. A resistência da moça ao miai (casamento arranjado) somente é quebrada através de um plano do pai, que se aproveita do ciúme que ela sente por ele.

O assunto é praticamente idêntico a de outros shomin-geki (filmes sobre pessoas comuns) de Ozu. Inclusive na repetição dos atores principais de outros títulos de sua filmografia. Setsuko Hara normalmente interpreta a filha – muitas vezes com o nome Noriko – e Chishu Ryu costuma assumir o papel de seu pai. A constante visita aos dramas familiares em momento de dissolução foca o recorte também recorrente da preocupação em casar a filha que se aproxima dos 30 anos.

A música tranquila e o ritmo cadenciado, criado por cortes segundos antes e após a ação da cena, enfatizam o tema cotidiano da história. Os pillow-shots, que são as breves tomadas, geralmente sem pessoas, que intercalam as sequências, dão ainda tempo para o espectador limpar sua mente do que assistiu antes para absorver melhor o que verá em seguida. A encenação do teatro Nô, que aparece nas telas por vários minutos, retrata o andamento do filme, porque o ator quase não se move.

A ousadia da câmera estática

E a câmera imóvel, posicionada à altura de uma pessoa sentada no chão – hábito dos japoneses dentro de casa -, representa a característica mais facilmente identificável do estilo Ozu, que com isso consegue um enquadramento aperfeiçoado até os mínimos detalhes. Em “Pai e Filha”, a câmera ainda se movimenta um pouco. Por exemplo, há travellings na sequência do passeio de bicicleta de Noriko e seu amigo, e quando a moça e o pai caminham pela rua em calçadas opostas, após uma discussão. Além disso, uma arriscada tomada com a câmera no estreito espaço entre um trem em movimento e a mureta.
Esse ritmo lento não significa falta de ousadia do cineasta. Ozu quebra convenções do cinema clássico. A câmera estática não deixa de ser uma audácia, criticada por muitos à época, que procuravam reduzir o seu cinema a teatro filmado. Juntamente com essa não movimentação, o diretor filma os atores falando diretamente para a câmera, nas cenas de diálogo. Assim, evitando o comum esquema campo/contracampo, Ozu traz ao espectador maior envolvimento na conversa.

Porém, o maior atrevimento está na quebra da convenção do eixo, o que para muitos críticos era considerado um erro. Numa das cenas iniciais, o trem que leva Noriko e seu pai à cidade parte em direção à direita e no final corre para a esquerda. Quando ela conversa com sua amiga à mesa, primeiro vemos Noriko sentada à esquerda, e, em outro enquadramento posterior, à direita.

Simbolismos

O uso de simbolismos nas imagens também se destaca no filme. Após se irritar com o conselho de sua amiga Aya para que se case, Noriko sai enfurecida da casa dela. O pillow-shot subsequente mostra revistas despencando de uma pilha de livros, designando a quebra da harmonia da amizade entre as moças. Neste e em outros títulos de Ozu, vemos insistentemente a presença de roupas penduradas ou em manequins, o que pode representar tanto a imobilidade da câmera como dos papéis sociais das pessoas, este originando filmes com temas semelhantes.

No começo do filme, o pai tira seu paletó e o joga no chão, e Noriko rapidamente o recolhe para guarda-lo. O assunto do casamento da moça amadurece e, perto da metade da estória, o pai pega um objeto no chão do quarto de Noriko e o coloca sobre a mesa, significando que ele aceita a ideia de executar as tarefas domésticas. Já nas cenas finais, ele mesmo está pendurando seu paletó.
A transformação dos personagens principais não segue uma fórmula clássica, porque nenhum evento ou aventura grandiosos ocorrem para justificar a mudança. Esta surge como parte do processo da vida, como explica o próprio pai à filha. O ciclo dela com o pai já se encerra, e agora ela deve seguir seu caminho e construir a felicidade no casamento.

Humor

Além disso, há pitadas de humor, que colaboram com a sensação agradável de assistir “Pai e Filha”, apesar de ele ser essencialmente um drama. Um menino se revolta com o castigo imposto pela mãe e, assim que ela vira as costas, gesticula como se arremessasse uma bola contra ela. É uma gag que agrada a Ozu, e que aparece em outros de seus filmes, como em “Dia de Outono” (Akibiyori, 1960). Outro exemplo de seu humor aparece quando a tia encontra uma carteira no chão e, apesar de dizer ao irmão que pretende devolvê-la, sai correndo com ela quando vê a aproximação de um policial.

Por outro lado, o drama comove sem ser melodramático. Nesse sentido, Noriko sofre ao interpretar que seu pai se casará novamente, sentindo ciúmes por outra pessoa assumir o seu papel. Já o pai consegue enfim seu objetivo de casar a filha, cumprindo a obrigação que assume consigo mesmo para que não se torne um obstáculo à vida dela. Porém, ele também se entristece. Assim, as lágrimas correm dos olhos desses protagonistas em cenas tocantes. Sem gritarias nem músicas melosas. É Ozu retratando fielmente seu povo.

Ficha técnica:
Pai e Filha (Banshun, 1949) 108 min. Dir: Yasujiro Ozu. Rot: Kogo Noda e Yasujiro Ozu. Com Chishu Ryu, Setsuko Hara, Yumeji Tsukioka, Haruko Sugimura, Hohi Aoki, Jun Usami, Kuniko Miyake, Masao Mishima, Yoshiko Tsubouchi, Yoko Katsuragi, Toyo Takahashi, Jun Tanizaki, Ichiro Shimizu, Yoko Benizawa, Manzaburo Umewaka.

19/05/23

La extorsión, 2023, Martino Zaidelis

Guillermo Courau, PARA LA NACION, 6 de abril de 2023

Crítica: La extorsión es un atractivo thriller al estilo de Hitchcock
El impecable guion de Emanuel Diez, que pone a un simple piloto de avión en medio de una situación extraordinaria como las que solía diseñar el director británico, y un reparto de lujo encabezado por Guillermo Francella son dos de los atractivos de esta lograda incursión en el suspenso del director Martino Zaidelis

La carrera de Alejandro Petrossian (Guillermo Francella) como piloto comercial amenaza con terminar antes de tiempo. La pérdida de audición en uno de sus oídos lo lleva a falsificar sus chequeos merced a la doctora de la aerolínea, que es también su amante. Que se revelen estos secretos pondría fin a su matrimonio con Carolina (Andrea Frigerio) así como también al prestigio y reconocimiento de sus pares, especialmente de su colega y amigo Fernando (Guillermo Arengo). Por ello, cuando aparece un extraño personaje de nombre Saavedra (Pablo Rago) y le pide que saque valijas con un misterioso contenido fuera del país a cambio de no echar luz sobre su oscuro presente, el piloto se ve obligado a convertirse en cómplice de una red criminal con ojos y oídos en todo Ezeiza. En otras palabras, la premisa del hombre común inmerso en una situación extraordinaria que tanto le gustaba a Alfred Hitchcock.

Aunque periódicamente la producción nacional intenta hacer cine de género, muy pocas veces da en el clavo. El ojo del espectador promedio está acostumbrado a una historia, un ritmo y una construcción, producto de años de monopólica educación hollywoodense. Entonces las propuestas están, pero nunca terminan de conformar a las grandes audiencias.

A la tarea de encontrar ese camino entre lo propio y lo ajeno se volcó de lleno el director Martino Zaidelis, en cuyo currículum inmediatamente anterior está el film Re-loca y tres capítulos de la atractiva Los enviados. Con el mismo ímpetu del Adolfo Aristarain de los 80, Zaidelis buscó en La extorsión la mejor manera de hilvanar un thriller de suspenso, lo suficientemente autóctono para resultar creíble, y lo suficientemente foráneo como para triunfar fronteras afuera.
Aunque claro, para que la alquimia funcione no alcanza con las buenas intenciones, y ahí es donde entra a tallar un guion impecable escrito por Emanuel Diez (El encargado, Entre caníbales, Los enviados) y un reparto de lujo para una producción de estas características.

Francella sigue creciendo como actor, sin perder la consabida imagen de tipo bueno. Juega su conflicto en un medio tono que resulta tan empático como creíble. Por su parte, Guillermo Arengo continúa trabajo tras trabajo dando cátedra de actuación, lo mismo que Carlos Portaluppi; Pablo Rago está a la altura, y un paso más atrás pero cumpliendo con el rol se ubica Andrea Frigerio. El resto de secundarios, entre los que se cuentan Mónica Villa, Romina Pinto y Alberto Ajaka, aportan lo necesario y más para que la maquinaria funcione fluidamente.

En la columna del debe se colocan ciertas decisiones estéticas que fallan por repetición, situaciones necesarias para hacer avanzar el relato que no terminan de cerrar, y principalmente la necesidad de anticipar ciertas vueltas de tuerca que arruinan las sorpresas que busca dar la historia.
Sin embargo en el balance -y aunque tengan su peso recesivo- estos desaciertos no empañan un producto bien construido y atractivo de ver. Un trabajo de equipo que encuentra su recompensa en el resultado final.

21/05/23

O Teto, Il tetto, 1956, Vittorio De Sica

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O Tecto (Il Tetto) 1956

A acção tem lugar em Roma no início de 1956. Um trabalhador da construção, Natale (Listuzzi), cuja ambição é ser pedreiro, casado com Luisa (Pallotta), empregada doméstica, apesar de não ter um teto para dormir debaixo. De Sica compõe um retrato realista do pós-guerra em Itália, especialmente Roma, que explica em tom documental, estilo sóbrio, austero e honesto, a livre artificialidade e veracidade intransigente. Fala sobre a família, a pobreza em geral do país, o alto custo das habitações, alugueres e sub-arrendamentos de quartos, falta de serviços sociais, o desemprego, o sub-emprego generalizado. Mostra o desespero associado com os difíceis anos do pós-guerra, a sua extensão no tempo, sonhos desfeitos pela Segunda Guerra Mundial e a dificuldade em superá-los. Aproximando-se o espectador a uma realidade trágica em desespero de dignificação e desesperança, escondida sob camadas de silêncio e falsas aparências de conformismo.

Os planos gerais mostram uma paisagem em ruínas e húmida, suja, negligenciada e abandonada. A paisagem torna-se o espelho da alma dos personagens, condenados a lutar pela sobrevivência em condições deploráveis. "Umberto D" lidava com a situação dos pensionistas, "Sciuscià" prestava a atenção para as crianças carentes, "Milagre em Milão" falava sobre os marginalizados. "O teto" lida com os jovens em idade de casar, confrontados com a necessidade de habitação. O filme fecha a fase neo-realista do realizador com um olho numa realidade trágica, semelhantes aos dos filmes do período de 1946-1955. O público teve uma recepção fria ao filme, apesar do seu interesse.
Décimo terceiro filme de Vittorio De Sica. Escrito por Cesare Zavattini ("Ladrões de Bicicletas", 1950), é inspirado em fatos reais. Filmado fora de Roma e cenários e ambientes naturais. Em Cannes ganhou o OCIC Award (De Sica), o Nardo d'Argento ("Fita de prata") para Melhor Argumento e foi nomeado para a Palma de Ouro.

22/05/23

O Bígamo, The Bigamist, 1953, Ida Lupino

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Harry Graham (Edmond O'Brien), um pacato vendedor ambulante de San Francisco, é casado há vários anos com Eve (Joan Fontaine). O casal decide adotar uma criança, mas o comportamento suspeito de Graham durante a entrevista na agência acaba chamando a atenção do responsável pelo processo de adoção (Edmund Gwenn). Ele investiga a vida de Graham e passa a desconfiar de suas repetidas viagens a Los Angeles, até finalmente descobrir que Harry tem uma vida dupla.

24/05/23

Beijo no Asfalto, 1981, Bruno Barreto

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Crítica

O filme O Beijo no Asfalto é uma primorosa adaptação para o cinema da peça de Nelson Rodrigues, realizada pelo diretor Bruno Barreto.
Habilmente, o filme consegue retratar a homofobia ao mesmo tempo que coloca a dúvida em todos, até no espectador, sobre as intenções de Arandir (Ney Latorraca). Esse personagem beija na boca um homem que estava à beira da morte na rua, após ser atropelado por um ônibus.

Segundo o próprio Arandir, o homem pediu o beijo e ele apenas consentiu por piedade. Porém, Amado Pinheiro (Daniel Filho), um jornalista mal-intencionado, lança suspeita de um crime passional e publica na capa da edição do dia seguinte. O repórter quer, assim, desviar a atenção do público das acusações de tortura que o seu amigo, um delegado de polícia, está enfrentando.
Como resultado, a notícia muda completamente a vida de Arandir. De fato, no trabalho e na vizinhança, todos caçoam dele, chamando-o de “viado”. Até mesmo em casa, pois sua esposa Selminha (Christiane Torloni) também fica balançada sobre as preferências sexuais do marido.
E sua família é disfuncional. Dália (Lídia Brondi), a caçula de Selminha que mora com o casal, é apaixonada por Arandir. Paralelamente, o pai delas nunca aceitou bem o casamento, aparentemente odiando o genro porque se sente atraído pela filha.

Análise do filme

O Beijo no Asfalto segue num ritmo frenético, com várias situações distintas se sucedendo, sempre em direção à condenação pública de Arandir. Aliás, até mesmo a viúva do morto aceita declarar que seu marido tinha um caso com um homem, para evitar que o repórter publique que ela tem um amante.
Antes de mais nada, vale apontar que a história se passa no início dos anos 1980, quando a ditadura estava se dissolvendo, mas seus reflexos ainda eram sentidos. Nesse sentido, o delegado Cunha (Oswaldo Loureiro) personifica a prática de restringir os direitos humanos. Ele, junto com o jornalista, leva Selminha à força para um interrogatório fora da delegacia, abusando dela.

Além disso, a brutalidade moral e física na trama é enfatizada pela belíssima trilha sonora, composta por Guto Graça Mello. Aliás, a música marca presença constante e muito forte, elevando a dramaticidade das cenas. E a sua sonoridade aponta para uma poesia inesperada, tão surpreendente quanto a conclusão de O Beijo no Asfalto. Assim, a última cena remete à origem teatral da estória, quando os personagens permanecem estáticos na posição em que encerram suas participações, tendo ao fundo os Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro.

Por fim, essa conclusão se junta ao quadro congelado que estampa os créditos iniciais do filme. Esse frame traz uma criança testemunhando, pela janela do ônibus, a cena do atropelamento que dá origem à estória. Sua percepção inocente, manchada pelo sangue que espirrou no vidro à sua frente, talvez se assemelhe à que motivou Arandir a beijar o moribundo.  

Ficha técnica:
O Beijo no Asfalto |1981 | Brasil | 80 min | Direção: Bruno Barreto | Roteiro: Doc Comparato | Elenco: Tarcísio Meira, Ney Latorraca, Lídia Brondi, Christiane Torloni, Daniel Filho, Oswaldo Loureiro, Ligia Diniz, Pedro Paulo Rangel, Thelma Reston, Flávio São Tiago, Nelson Caruso, Xuxa Lopes, Jorge Guinle Filho.






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