sexta-feira, 16 de junho de 2023

Filmes parte 32

A Esposa Solitária, Charulata, 1964, Satyajit Ray

A Canção da Estrada, Pather Panchali, 1955, Satyajit Ray

O Invencível, Aparajito, 1956, Satyajit Ray

O Mundo de Apu, Apur Sansar, 1959, Satyajit Ray

A Sala de Música, Jalsaghar, 1958, Satyajit Ray

A Deusa, Devi, 1960, Satyajit Ray

O Rio Sagrado, The River, 1951, Jean Renoir

A Ronda, La ronde, 1950, Max Ophüls

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 


03/06/23

A Esposa Solitária, Charulata, 1964, Satyajit Ray

Crítica | A Esposa Solitária por Guilherme Almeida, 29 de novembro de 2018 

O cinema popular da Índia, distribuído em escala industrial pela chamada Bollywood, é a faceta mais famosa da produção audiovisual do país. Não sendo a única, porém, cabe atentarmos às vertentes que se opõem ao entretenimento de massas, pois é certo que encontraremos nessa luta contra a hegemonia de linguagem momentos de excelência que valem a pena ser fruídos. Ora, como fugir, seguindo essa trilha, da merecida fama de Satyajit Ray, o autor, dentre outros, da Trilogia de Apu (1955, 56 e 59) e de A esposa solitária (1964)?

Ray, como Luchino Visconti, nasceu em ambiente de cultivo das artes. Seu avó era poeta e pintor; já seu pai, um eminente nome da história da literatura Bengali. O gosto do jovem estudante pelo cinema e o desenvolvimento de uma apaixonada cinefilia não demoraram a vir, fã que era do cinema americano e do neorrealismo italiano. A criação de um cineclube, o contato com Jean Renoir (que filmava em Bengala, nos princípios da década de 50, seu Rio Sagrado) e a influência decisiva da magnum opus de De Sica, Ladrões de Bicicleta, foram fundamentais para engajá-lo na realização de filmes. Eis que sua estreia, entretanto, foi tudo menos ingênua: A Canção da Estrada (1955), um dos melhores primeiros filmes da história, ganhou prêmio em Cannes e, assim, ganhou o mundo.

Já podemos notar nessa obra de debutante algo que persistirá na sólida filmografia de Ray e que encontrará em A Esposa Solitária um ápice de qualidade. Um primeiro ponto é a condição da mulher numa sociedade machista, onde divide-se sexualmente o trabalho. Outro aspecto, talvez tributário do gosto pictórico da família do diretor, é a lucidez na construção dos quadros, sempre significativos, harmônicos sempre. Mas o que mais chama a atenção, agora num nível abstrato e moral, é a postulação de um humanismo à la Rossellini ou Kiarostami. Imprime-se na película a existência profunda de cada personagem, no que ela tem de belo e ambíguo; esgaravata-se também a penúria e o sofrimento, na contramão da vontade das autoridades oficiais, que buscavam impedir que as contradições sociais fossem denunciadas nas telonas.

Mas entremos em A Esposa Solitária já esclarecendo que as desigualdades de renda não terão tanta importância. Charulata (Madhabi Mukherjee) e Bhupati Dutta (Shailen Mukherjee) são um casal da elite. Os primeiros planos escancaram a solidão indicada pelo título: Charu, entendiada como uma personagem flaubertiana ou como a Luisa de Primo Basílio, não decide que fazer, ora bordando, ora lendo, algumas vezes bisbilhotando os passantes na rua. Por outro lado, Bhupati ocupa-se da publicação de seu jornal político, “A Sentinela”, que ataca o domínio do Império Britânico sobre a Índia (o enredo se passa em 1870). Quem conhece literatura realista do século XIX já espera o que vem por aí: a chegada de um outro, mais exatamente um familiar do marido, vai abalar o cotidiano enfadonho do casal, lançando a esposa num turbilhão de emoções.

Amal (Soumitra Chaterjee, que interpreta Apu no último filme da Trilogia) é essa nova figura que chega com a força de um tornado. Quase literalmente, uma vez que no momento de seu aparecimento a natureza, prefigurando os eventos, encontra-se em tormenta. Esse jovem estudante é um antípoda perfeito do marido absorvido por querelas políticas; amante da poesia, boa-vida e sensível, ele acaba por se aproximar de Charu, viciada nas narrativas amorosas de autores à época populares em Bengali, como Bankim e Manmatha Dutta. Se Bhupati está sempre indisponível, Amal pode, por sua vez, conversar sobre temas líricos e instigar a mulher a começar a escrever.

A citação, acima, da obra de Eça de Queirós pode dar uma impressão equivocada. Que fique claro que o idílio está bem longe de descambar no adultério e no amoralismo. Tudo é tratado com senso de pudor; no jogo dos sentimentos predomina antes o recato que o ímpeto. Um plano sequência belíssimo, certamente inspirado em Um Dia no Campo (1946), acompanha o vai e vem de Charu sentada num balanço. Seus desejos estão estampados no rosto, mas com tanta delicadeza, com tanta ternura, que fica impossível confundir seus dilemas morais com qualquer espécie de desejo animalesco.

A oposição entre Amal e Bhupati chega às vezes a ser demasiado esquemática. O segundo valoriza o senso prático, as grandes narrativas políticas. Para o primeiro, mais vale a disposição anímica, o estado da subjetividade. História versus Arte, em suma, como se os dois termos fossem inconciliáveis e como se, vejam bem caros leitores, um dos editores deste Plano Crítico, dedicado às artes, não fosse ele mesmo formado em História. Há entre os personagens um diálogo bastante cômico, no qual Bhupati não consegue compreender formulações poéticas como “a escuridão do sol” e “a luz da noite sem luar”. O editor do jornal é aquele tipo de gente que Nelson Rodrigues chamava de “idiota da objetividade”. Frente a frente com construções frasais em oxímoro, ele não consegue desprender-se dos grilhões da lógica, sendo estéril às metáforas. Se sua tibieza é divertida, a inteligência da trama perde um pouco, pois qualquer possibilidade de complexidade subjetiva é esvaziada (o mesmo acontece, por outra parte, com o próprio Amal).

Em compensação, a construção psicológica de Charu é impecável. O mais interessante é a relação simbiótica entre seu drama a constituição do espaço. O filme se passa quase inteiramente dentro da casa que, muito embora grande e opulenta, torna-se claustrofóbica pela inclusão ostensiva de pilastras, grades e gaiolas no quadro. O uso da profundidade de campo, sobretudo no terço final do filme, tem causalidade impressionante: por um lado expande longitudinalmente o lar, isolando ainda mais a protagonista; dispõe, ademais, vários personagens no mesmo plano, sugerindo entre eles relações secretas, apenas sugeridas, nunca explicitadas. Se havia algo de simplório em Amal e Bhupati, o roteiro de Esposa Solitária, escrito pelo próprio Satyajit Ray e baseado na narrativa de Rabindranath Tagore, acerta em cheio com Charu, o que evidentemente deve muito à ótima atuação de Madhabi Mukherjee.

A personagem principal, até então relegada a uma posição ancilar, encontra em Amal uma possibilidade de libertação subjetiva e objetiva. A princípio considerava-se incapaz de escrever, mas supera o recatamento através de uma narrativa autobiográfica, que chegou a ser publicada numa revista de grande circulação. No momento de êxito, não à toa, seu cabelo até então preso está solto, demonstrando força quase selvagem. Essa afirmação permite que em momento posterior ela sugira ao marido a participação no jornal, que poderia incluir, por que não?, uma seção literária.

Ocorre que a desestruturação do ninho familiar é acelerada por uma traição. Não uma traição, como se poderia imaginar, da esposa, mas do cunhado de Bhupatti, que rouba o dinheiro reservado à sobrevivência do jornal “A Sentinela”. Após o ocorrido Amal, que não quer ser mais um a quebrar a confiança de Bhupatti, afasta-se da família e principalmente de Charu. Sem querer, o marido entrevê pela porta a tristeza da mulher e consegue perceber tudo o que se passara. O final do filme deixa em suspenso se haverá ou não uma reconciliação entre ambos. As imagens param de correr e viram fotos a captar e potencializar a indefinição. Mais do que isso, resta saber se esse homem politizado, com olhos para a libertação nacional e os grandes temas internacionais, se sensibilizará com o drama de quem está sob seu nariz.

Vencedor de prêmios no Festival de Berlim, o filme pode ser uma ótima porta de entrada para quem não conhece os diretores indianos. Vale a pena visitar Satyajit Ray, cuja filmografia, longa e cheia de talento, contribui para enriquecer o repositório de obras-primas da sétima arte.

A Esposa Solitária (Charulata) – Índia, 1964

Direção: Satyajit Ray, Roteiro: Rabindranath Tagore (obra literária), Satyajit Ray

Elenco: Soumitra Chaterjee, Madhabi Mukherjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Goshal, Gitali Roy, Tarapada Basu, Dilip Bose

05/06/23

A Canção da Estrada, Pather Panchali, 1955, Satyajit Ray

Ravi Shankar 

"Este primeiro filme magistral Satyajit Ray - possivelmente o mais solto e natural do diretores - é um devaneio tranquilo sobre a vida de uma família brâmane empobrecida, numa aldeia bengalesa. Belo, às vezes divertido, e cheio de amor, levou à tela uma nova visão da Índia. Embora as personagens centrais sejam o menino Apu (nascido logo no início) e sua mãe, pai e irmã, a personagem que nos deixa forte impressão talvez seja a parente anciã parasita e contadora de histórias, interpretada por Chunibala, uma atriz de oitenta anos que aparentemente gostou de retornar à luz da ribalta, após trinta anos de esquecimento - pagava com o salário os narcóticos que consumia diariamente. Como a "tia" é de uma simpatia tão fantástica que descobrimos a relação, muito dolorosa, entre ela e a mãe, que tenta alimentar os filhos e se preocupa com o quanto a velha come. Ray continuou a história de Apu em Aparajito e O mundo de Apu, e os três filmes, todos baseados num romance de B. B. Bandapaddhay, ficaram conhecidos como a A trilogia de Apu. (O estudo de de Robin Wood, The Apu trilogy, faz justiça aos filmes). Fotografado por Subrata Mitra; música de Ravi Shankar. Em bengalês e p&b." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 86, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

Chunibala Devi(1872-1955) 

Bigraha (1930) was the the first film in which Chunibala Devi acted. Earlier she had performed on the stage. However, after one or two more films she retired as an actress, only to be brought back after about thirty years by Satyajit Ray, who had started making his first film, A Canção da Estrada (1955). When he was on the look out for an elderly actress to play Indir Thakrun, he was informed about Chunibala by Reba Devi (playing Sejo Thakrun). He went to interview the grand old lady and was really impressed, especially her memory at an advanced age and also her willingness to cooperate - the film being shot away from Calcutta and the artistes were required to be at location daily from Calcutta. Unfortunately, Chunibala died before the release of the film although Ray had been to her house to show her a projection.

06/06/23

O Invencível, Aparajito, 1956, Satyajit Ray

"O filme central da grande Trilogia de Apu, de  Satyajit Ray, é de estrutura mais transicional que dramática, mas cheio de intuições e revelações. Ray traz a família desfeita de Pather Panchali de sua aldeia medieval para as ruas modernas de Benares, e acompanha o menino Apu em seu confronto com o sistema escolar, e, depois, quando ela abandona a mãe, com a vida intelectual da Universidade de Calcutá. (Há um momento luminoso, quando Apu recita um poema numa sala de aula - entende-se como a arte sobrevivendo no meio da pobreza). O filme faz a crônica do surgimento da moderna Índia industrial, mostrando que não é uma sociedade primitiva, mas corrompida. Contudo, o próprio Apu encarna a crença de Ray de que os indivíduos não precisam corromper-se." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 41, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

Karuna Bannerjee 

Crítica | O Invencível (1956) por Luiz Santiago 9 de maio de 2021

07/06/23

O Mundo de Apu, Apur Sansar, 1959, Satyajit Ray

Soumitra Chatterjee (1935-2020) 

Crítica | O Mundo de Apu por Luiz Santiago, 31 de maio de 2021

Apur Sansar é o filme de encerramento da Trilogia de Apu, iniciada por Satyajit Ray em 1955, com A Canção da Estrada. Aqui nós encontramos o momento da vida adulta do protagonista, vivido por um outro ator, estabelecido em um outro espaço e sempre acompanhado pela aura de tragédia ou de uma amarga alegria que estiveram, o tempo inteiro, nas fases de sua vida que presenciamos nos dois longas anteriores.

Nesse encerramento, o roteiro de Satyajit Ray explora ao máximo a passagem do tempo. Nós já vimos alguns saltos na linha do tempo do personagem nos longas anteriores, mas este aqui é o mais episódico de todos os três, uma escolha de saltos no andamento narrativo que acaba se encontrando com o novo momento da vida de Apu, desempregado e tentando emplacar a carreira de escritor. Mesmo com vários cortes temporais podemos dividir o filme em duas grandes partes muito importantes, a primeira delas antes e a segunda depois da morte de sua esposa Aparna (Sharmila Tagore).

A morte não é uma novidade para Apu, mas sim uma verdadeira marca de sua vida — uma das milhares de vidas pelo mundo que passaram pela mesma caminhada de perda de pessoas queridas desde muito cedo. Sua orfandade é tão presente e tão marcante e influente, que uma das coisas que seu amigo Pulu (Swapan Mukherjee) diz a Aparna como características de Apu é justamente o fato de ele ser órfão. Para uma sociedade onde a família possui um papel tão imensamente presente na vida dos filhos, alguém que perde a mãe e o pai antes da vida adulta madura acaba tendo um diferencial notável em relação aos outros — o que contribui, no presente caso, para o pensamento mais “desenraizado” ou “não tão tradicional” de Apu em relação a esse tipo de laço.

Com isso em mente, é muito interessante notar como tal ausência prepara surpresas até em forma de dilema para o protagonista despreocupado. Seu casamento às pressas, substituindo um noivo que entrou em crise nervosa e “enlouqueceu” justamente no dia da cerimônia, é uma prova disso, uma espécie de situação forçada que rapidamente ganha tons de bênção inesperada. A sequência em que Apu conversa com Aparna, no quarto nupcial, é de uma delicadeza tremenda, fazendo-nos conhecer mais sobre o personagem, seu modo de encarar as coisas e sua aproximação a um território que lhe é estranho: o campo do amor. No final da sequência ele está rindo, pensando sobre o que os vizinhos iriam falar para ele, que saiu dizendo que ia viajar para assistir a um casamento, e voltaria para casa com uma esposa.

Em O Mundo de Apu, vemos um homem conectar-se com algo que lhe foi progressivamente negado pela vida no decorrer dos anos: a companhia no lar. Irmã mais velha, mãe e pai lhe deixaram muito cedo, forçando-o a um entendimento do mundo e das relações interpessoais um tanto diferente da maioria das pessoas ao seu redor, contraste fortalecido quando Pulu entra em cena. O casamento, portanto, lhe abre toda uma nova forma de se comportar, de escolher um trabalho, de olhar para as responsabilidades. Mas a jornada de Apu não é apenas sobre sofrer e ser parcialmente reparado pelo sofrimento. É também uma jornada de encontro consigo mesmo, em meio à dor e ao desespero.

Quando Aparna morre, Apu diz que via “sair por aí”, vai viajar, perambular, procurar a paz. Ter algo que ele não mais esperava ter e, pouco tempo depois, perder essa conexão destrói tudo o que tinha construído para si até aquele momento. A novela que escrevia perde sentido (enquanto a vemos espalhar-se por uma mata, jogada do algo de uma rocha, onde Apu olha o Sol no horizonte, numa panorâmica de tirar o fôlego — aliás, os focos de luz capturados pela câmera aqui são belíssimos, com destaque para a cena em que Aparna segura um palito de fósforo queimando perto do rosto) e o filho parece não existir.

Esse seu sepultamento simbólico, representado pela rejeição de si e de seu rebento, começa a ser verdadeiramente curado com uma reconexão diferente, não livre de obstáculos. Mas esta é uma cura bastante amarga. O filho não reconhece em Apu o seu próprio pai. E um jogo de representação, para ser aceito, é engendrado por esse homem que tanto sofreu, para ao menos ter o último fio de esperança da vida ligado a ele. A parte de seu mundo que não poderia deixar de lado, abandonada. Finalmente, e de forma bastante dolorosa, o mundo de Apu estava completo.

O Mundo de Apu (Apur Sansar) — Índia, 1959

Direção: Satyajit Ray, Roteiro: Satyajit Ray (baseado na obra de Bibhutibhushan Bandyopadhyay)

Elenco: Soumitra Chatterjee, Sharmila Tagore, Alok Chakravarty, Swapan Mukherjee, Tushar Bandyopadhyay, Gupi Banerjee, Panchanan Bhattacharya, Shanti Bhattacherjee, Jiten Bhons, Abhijit Chatterjee, Jogesh Chatterjee, Asha Devi, Belarani Devi, Sefalika Devi, Biren Ghosh

08/06/23

A Sala de Música, Jalsaghar, 1958, Satyajit Ray

"Extraordinário estudo, por Satyajit Ray, do orgulho levado ao extremo. Um grnde filme, cheio de falhas, irritante - difícil de aceitar, mas provavelmente impossível de esquecer. Muitas vezes brutal e pobremente irritante, mas uma grande experiência. Preocupar-se com suas falhas é como se preocupar em saber se Rei Lear é bem construído; na verdade não importa. Ray fez este filme entre a segunda e terceira partes da Trilogia de Apu, para respirar. Com Chhabi Biswas como o aristocrata que não tem mais nada senão seu amor à música - oferece um concerto em sua mansão decadente. O roteiro de Ray baseia-se numa história de T. S. Bannerjee. Em bengalês." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 252, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994


09/06/23

A Deusa, Devi, 1960, Satyajit Ray

"Este filme de Satyajit Ray, de onírica sensualidade e muita ironia, sobre a supersticiosidade indiana foi originalmente proibido para exportação, até a intercessão de Nehru. A história, de um homem rico que convence a noiva do filho (Sharmila Tagore) de que ela é a encarnação da deusa Kalli, tem surpreendentes matizes freudiano. A sensibilidade de Ray para a inebriante beleza dentro do estilo de vida em desintegração da classe latifundiária do século XIX faz deste um dos raros filmes honestos sobre a decadênca. Com Soumitra Chatterji e Chhabi Biswas. Em bengalês. Em p&b," (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 139, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)


13/06/23

O Rio Sagrado, The River, 1951, Jean Renoir

“O primeiro filme em cores de Jean Renoir, feito na Índia, em inglês, foi adaptado do romance de Rumer Godden sobre uma família britânica e rodado ao longo das margens do Ganges pelo excelente fotógrafo, sobrinho de Renoir, Claude Renoir. É um estudo poético do contato de duas civilizações. Renoir não não usurpa a posição de uma pessoa do local; vê a Índia com olhar ocidental - olhar tão sensível e altamente treinado que sua visão da Índia é um poema mítico, passado no meio do rio indiano da vida. O rio abrange a morte ( o episódio da deusa Kalli, a cobra sagrada que mata a criança) de um maneira que o público americano tende a achar incômoda. Os temas e a linha narrativa de Rumer Godden fazem parte da textura, entrelaçados com rituais, as festas, os rítmos da música nativa; algumas pessoas, acostumadas a filmes montados com vistas a um crescendo dramático, não gostam do fluxo sereno - acontecem tantas coisas que elas acham que nada acontece. Há trechos estaticos de diálogos, e parte do elenco é discutível, mas o tema (estranhos numa cultura) funde-se de modo perfeito com a própria posição do diretor como um cineasta na Índia. Em termos visuais, o filme sereno mas apaixanadamente belo. Com a bailarina Radha, Nora Swinburne, Esmond Knight, Adrienne Corri, Patrcia Walter, Arthur Shieids e Thomas Breen. Adaptado por Renoir e Rumer Godden.” (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 422, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

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Satyajit Ray

Da Índia para o universo

O milagre, em Ray, é este: que os espectadores tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque

Luís Miguel Oliveira, 25 de Setembro de 2014

Como escreveu o próprio Satyajit Ray, “o que todo o mundo sabia era que a Índia produzia um enorme número de filmes com imensas danças e canções; não admirava que os calhamaços de história do cinema não dedicassem mais de meia página a este consumidor gigante de celulóide”. A percepção começou a mudar a partir do primeiro filme de Ray, Pather Panchali, igualmente o momento inicial da Trilogia de Apu, sucesso instantâneo no ocidente e, em particular, em Nova Iorque, onde se estreou em Setembro de 1958 e se aguentou oito meses em cartaz (como os tempos mudaram… alguém imagina isto hoje?).

A entrada de Satyajit Ray na cena internacional fez-se por Nova Iorque, raridade naqueles tempos em que a norma das “descobertas” implicava Paris, a crítica francesa e os grandes festivais – mas Pather Panchali tinha estado em Cannes 1956 e passado despercebido, apesar de ter ganho um daqueles prémios paternalistas (Melhor Documento Humano) com que os festivais gostavam (e às vezes ainda gostam) de agraciar o “cinema do mundo”. E Nova Iorque porque, num momento em que tinha a rodagem parada por problemas de produção, Ray conheceu um curador do MOMA (Monroe Wheeler) que fora a Calcutá preparar uma grande exposição de arte indiana e perguntou ao realizador se achava que conseguiria ter o filme pronto a tempo de ser exibido, nesse contexto, no museu novaiorquino, “daqui a um ano”. 

Satyajit Ray contou que sem este impulso teria abandonado o projecto, que sofria “terríveis revezes”, e continuado a sua vida dedicada à publicidade (profissionalmente) e ao cineclubismo (como hobby de cinéfilo fervoroso que era). Depois até recebeu conselhos de John Huston, que fora à Ìndia já a pensar no Homem que Queria Ser Rei e, avisado pelo MOMA, procurou Ray e pediu-lhe para ver uma montagem provisória. Mais do que apenas “História”, e “História” como Ray, mais tarde, a contou, estes episódios encerram algum simbolismo, central à obra do cineasta – esse balanço entre “especificidade e universalidade”, segundo a fórmula de um crítico francês. Satyajit Ray filmou a Índia (e, sobretudo, Bengala) com os pés bem firmes nesse chão mas a cabeça a pensar no grande cinema universal, na “lição” de Renoir, de quem foi assistente quando o francês foi à Índia filmar O Rio Sagrado, por volta de 1950, ou nos mais de cem filmes, marcos da cinematografia mundial, que sorveu quando, nesses primeiros anos após a independência, se realizou em Calcutá o primeiro grande festival de cinema  organizado na Índia.

Ray, oriundo de uma família bengali da boa sociedade intelectual, filho e neto de escritores, ele próprio ex-discípulo de Tagore, sabia bem contra o que lutava: a “apatia” do público indiano, e particularmente do público de Bengala, que se orgulhava da sua tradição literária e ligava pouco ao cinema. Contas de Ray, a produção de Bengala representava apenas 10% do total da produção indiana, e se não produzia “filmes de canto e dança, produzia versões tépidas de novelas bengalis para um público reduzido a uma apatia total por anos de xarope cinematográfico”. A sua tarefa, enunciou-a mais tarde, como projecto premeditado: “era mais do que tempo de o cinema indiano crescer e sair do isolamento a que se votara, para se medir com os do Ocidente”.

Sem meias medidas, esta era toda a ambição de Satyajit Ray. O seu segredo, para além, evidentemente do indispensável talento? Mergulhar, a fundo e sem concessões, no património cultural, social, histórico, da Índia e especialmente de Bengala, pensar sempre, como “primeiro espectador”, no “espectador bengali”, o único naturalmente apetrechado para compreender plenamente as contradições, os rituais, a idiossincrasia subjacente às situações e às motivações das personagens – ainda Ray, sobre Devi / A Deusa, mas podia ser sobre qualquer um dos seis filmes incluídos nesta retrospectiva: “um crítico ocidental que queira fazer plena justiça ao filme tem que estar preparado para fazer muito trabalho de casa antes de se confrontar com o filme”. O milagre, em Ray, é este: que críticos e espectadores, mesmo sem fazerem todo esse trabalho de casa, tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque.

Ninguém precisa de saber muitos pormenores sobre o que foi a Renascença Bengali de meados do século XIX para se comover com Charulata e com aquele lancinante casamento em estufa – como dizia Douchet de Mizoguchi, é preciso aprender “o Satyajit Ray”, não “o bengali” para entender os seus filmes, até porque “o Satyajit Ray” se fala com um léxico reconhecível a qualquer espectador não adormecido pelo “xarope cinematográfico” (e Charulata até tem um bom exemplo disso, naquele “paralítico” final que confessadamente Ray aprendeu nos 400 Golpes de Truffaut (Os Incompreendidos, Les quatre cents coups, 1959)).

Ninguém precisa de saber muito sobre o modo como se organizou o capitalismo indiano a seguir à independência para ficar fascinado e atemorizado pela espantosa personagem do marido, tão atractiva como repulsiva, nesse espantoso O Cobarde. Aliás, nesse filme, todos aqueles planos em que Ray enquadra marcas ocidentais (whiskys, maços de tabaco, maletas da Lufthansa) como se estivesse a fazer product placement, isso é uma extraordinária maneira de dar a presença ocidental na Índia, a continuação de um colonialismo “económico”, mas também é uma maneira de “ligar”, de inscrever a Índia num fluxo, dir-se-ia hoje, “global”. Ou ainda o Santo, filme que pega no misticismo e na religiosidade populares indianas para as virar do avesso, encenando o confronto entre as classes urbanas (que metem imensas palavras e expressões inglesas em cada frase) e a credulidade popular, vulnerável à banha da cobra: eis, na verdade, um filme que só é imaginável nas mãos de um cineasta indiano, e que é, em si mesmo, uma crítica perfeita ao “neo-exotismo”, para lhe não chamar mais, que tem marcado a recente descoberta da Ìndia pelas grandes produções americanas ou britânicas.

O mistério, ainda assim, perdurará. Voltamos a textos de Ray para terminar: “A verdadeira compreensão levará o seu tempo. Depois de ter sido tanto tempo desprezada, a Índia não desvendará muito facilmente os seus segredos ao Ocidente porque, neste país, as vacas continuam a ser sagradas e Deus ainda é um falo”.Como escreveu o próprio Satyajit Ray, “o que todo o mundo sabia era que a Índia produzia um enorme número de filmes com imensas danças e canções; não admirava que os calhamaços de história do cinema não dedicassem mais de meia página a este consumidor gigante de celulóide”. A percepção começou a mudar a partir do primeiro filme de Ray, Pather Panchali, igualmente o momento inicial da Trilogia de Apu, sucesso instantâneo no ocidente e, em particular, em Nova Iorque, onde se estreou em Setembro de 1958 e se aguentou oito meses em cartaz (como os tempos mudaram… alguém imagina isto hoje?).

A entrada de Satyajit Ray na cena internacional fez-se por Nova Iorque, raridade naqueles tempos em que a norma das “descobertas” implicava Paris, a crítica francesa e os grandes festivais – mas Pather Panchali tinha estado em Cannes 1956 e passado despercebido, apesar de ter ganho um daqueles prémios paternalistas (Melhor Documento Humano) com que os festivais gostavam (e às vezes ainda gostam) de agraciar o “cinema do mundo”. E Nova Iorque porque, num momento em que tinha a rodagem parada por problemas de produção, Ray conheceu um curador do MOMA (Monroe Wheeler) que fora a Calcutá preparar uma grande exposição de arte indiana e perguntou ao realizador se achava que conseguiria ter o filme pronto a tempo de ser exibido, nesse contexto, no museu novaiorquino, “daqui a um ano”. Satyajit Ray contou que sem este impulso teria abandonado o projecto, que sofria “terríveis revezes”, e continuado a sua vida Da Índia para o universo dedicada à publicidade (profissionalmente) e ao cineclubismo (como hobby de cinéfilo fervoroso que era). Depois até recebeu conselhos de John Huston, que fora à Ìndia já a pensar no Homem que Queria Ser Rei e, avisado pelo MOMA, procurou Ray e pediu-lhe para ver uma montagem provisória.

Mais do que apenas “História”, e “História” como Ray, mais tarde, a contou, estes episódios encerram algum simbolismo, central à obra do cineasta – esse balanço entre “especificidade e universalidade”, segundo a fórmula de um crítico francês. Satyajit Ray filmou a Índia (e, sobretudo, Bengala) com os pés bem firmes nesse chão mas a cabeça a pensar no grande cinema universal, na “lição” de Renoir, de quem foi assistente quando o francês foi à Índia filmar O Rio Sagrado, por volta de 1950, ou nos mais de cem filmes, marcos da cinematografia mundial, que sorveu quando, nesses primeiros anos após a independência, se realizou em Calcutá o primeiro grande festival de cinema  organizado na Índia.

Ray, oriundo de uma família bengali da boa sociedade intelectual, filho e neto de escritores, ele próprio ex-discípulo de Tagore, sabia bem contra o que lutava: a “apatia” do público indiano, e particularmente do público de Bengala, que se orgulhava da sua tradição literária e ligava pouco ao cinema. Contas de Ray, a produção de Bengala representava apenas 10% do total da produção indiana, e se não produzia “filmes de canto e dança, produzia versões tépidas de novelas bengalis para um público reduzido a uma apatia total por anos de xarope cinematográfico”. A sua tarefa, enunciou-a mais tarde, como projecto premeditado: “era mais do que tempo de o cinema indiano crescer e sair do isolamento a que se votara, para se medir com os do Ocidente”.

Sem meias medidas, esta era toda a ambição de Satyajit Ray. O seu segredo, para além, evidentemente do indispensável talento? Mergulhar, a fundo e sem concessões, no património cultural, social, histórico, da Índia e especialmente de Bengala, pensar sempre, como “primeiro espectador”, no “espectador bengali”, o único naturalmente apetrechado para compreender plenamente as contradições, os rituais, a idiossincrasia subjacente às situações e às motivações das personagens – ainda Ray, sobre Devi / A Deusa, mas podia ser sobre qualquer um dos seis filmes incluídos nesta retrospectiva: “um crítico ocidental que queira fazer plena justiça ao filme tem que estar preparado para fazer muito trabalho de casa antes de se confrontar com o filme”. O milagre, em Ray, é este: que críticos e espectadores, mesmo sem fazerem todo esse trabalho de casa, tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque.

Ninguém precisa de saber muitos pormenores sobre o que foi a Renascença Bengali de meados do século XIX para se comover com Charulata e com aquele lancinante casamento em estufa – como dizia Douchet de Mizoguchi, é preciso aprender “o Satyajit Ray”, não “o bengali” para entender os seus filmes, até porque “o Satyajit Ray” se fala com um léxico reconhecível a qualquer espectador não adormecido pelo “xarope cinematográfico” (e Charulata até tem um bom exemplo disso, naquele “paralítico” final que confessadamente Ray aprendeu nos 400 Golpes de Truffaut).

Ninguém precisa de saber muito sobre o modo como se organizou o capitalismo indiano a seguir à independência para ficar fascinado e atemorizado pela espantosa personagem do marido, tão atractiva como repulsiva, nesse espantoso O Covarde. Aliás, nesse filme, todos aqueles planos em que Ray enquadra marcas ocidentais (whiskys, maços de tabaco, maletas da Lufthansa) como se estivesse a fazer product placement, isso é uma extraordinária maneira de dar a presença ocidental na Índia, a continuação de um colonialismo “económico”, mas também é uma maneira de “ligar”, de inscrever a Índia num fluxo, dir-se-ia hoje, “global”. Ou ainda o Santo, filme que pega no misticismo e na religiosidade populares indianas para as virar do avesso, encenando o confronto entre as classes urbanas (que metem imensas palavras e expressões inglesas em cada frase) e a credulidade popular, vulnerável à banha da cobra: eis, na verdade, um filme que só é imaginável nas mãos de um cineasta indiano, e que é, em si mesmo, uma crítica perfeita ao “neo-exotismo”, para lhe não chamar mais, que tem marcado a recente descoberta da Ìndia pelas grandes produções americanas ou britânicas.

O mistério, ainda assim, perdurará. Voltamos a textos de Ray para terminar: “A verdadeira compreensão levará o seu tempo. Depois de ter sido tanto tempo desprezada, a Índia não desvendará muito facilmente os seus segredos ao Ocidente porque, neste país, as vacas continuam a ser sagradas e Deus ainda é um falo”.

E mais

Satyajit Ray, 100 

O Fim - সমাপ্ত (samapt)

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14/06/23

A Ronda, La ronde, 1950, Max Ophüls

História sobre uma série de casos amorosos interligados na Viena de 1900. Soldado relaciona-se com mulher da noite e depois tem caso com uma moça que vira criada de uma família. Lá, ela seduz o homem mais jovem da casa. Este, por sua vez, envolve-se com uma mulher casada.


15/06/23

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 

No iutubi aqui  

Um bando de ladrões de banco está na estrada, fugindo pelo deserto. Perto da morte, por falta d'água, tropeçam no que parece ser uma cidade fantasma e acabam encontrando um velho e sua neta morando lá. Os assaltantes descobrem que o homem velho foi minerador de ouro e planejam roubá-lo. Mas todo o plano muda quando o líder do grupo, Stretch, se apaixona pela neta, o que gera um confronto entre toda a gangue.

Duas cenas e seus respectivos fotógrafos dos filmes

Joseph MacDonald (1906-1968) 

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 

Gregory Peck in Yellow Sky, 1948

Joseph F. Biroc (1903-1996) 

Dragões da Violência, Forty Guns, 1957, Samuel Fuller


Eve Brent in Forty Guns, 1957



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