O Anjo Exterminador, El ángel exterminador,
1962, Luis Buñuel
Os
Imperdoáveis, Unforgiven, 1992, Clint Eastwood
O
Último Selvagem, The Last of His Tribe, 1992, Harry Hook
Juventude
Selvagem, The Young Savages, 1961, John Frankenheimer
Aguirre, a Cólera dos Deuses, Aguirre, der
Zorn Gottes, 1972, Werner Herzog
El Dorado, 1988, Carlos Saura
Tiros
na Broadway, Bullets Over Broadway, 1994
A
Vida dos Outros, Das Leben der Anderen, 2006
Makanai: Cozinhando para A Casa Maiko,
Maiko-san Chino makanai-san, Série TV, 2023, Hirokazu Koreeda, Hiroshi Okuyama,
Takuma Satô e Megumi Tsuno
A
Vida de Brian, Life of Brian, 1979, Terry Jones
To Leslie, 2022, Michael Morris
Velho e Novo, Staroye i novoye, 1929,
Grigoriy Aleksandrov e Sergei Eisenstein
A
História de Louisiana, Louisiana Story, 1948, Robert J. Flaherty
A
Grande Testemunha, Au hasard Balthazar, 1966, Robert Bresson
Unicórnio, 2017, Eduardo Nunes
A
Baleia, The Whale, 2022, Darren Aronofsky
Pi, 1998, Darren Aronofsky
Mãe!,
Mother!, 2017, Darren Aronofsky
Tungstênio,
2018, Heitor Dhalia
Árido
Movie, 2005, Lírio Ferreira
Acqua Movie, 2019, Lírio Ferreira
The
Quiet Girl, An Cailín Ciúin, 2022, Colm Bairéad
O
Encouraçado Potemkin, Bronenosets Potemkin, 1925, Sergei Eisenstein
13/1/23
O Anjo Exterminador, El ángel exterminador, 1962, Luis Buñuel
Sinopse
Os convidados de uma festividade burguesa simplesmente não conseguem sair do local de confratermização. Na medida em que o tempo passa, as máscaras da civilidade caem e a tensão entre os presentes se torna insuportável.
Crítica
A imobilidade do sujeito frente à constante antropológica que o leva a mover-se no mundo, possibilitando sua sobrevivência, vem à tona quando Luis Buñuel coloca em um mesmo ambiente, por dias seguidos e sem chance de escape, um grupo de aristocratas cuja nobreza e respeitabilidade se degradam enquanto condutas e vícios primários despertam incontroláveis. A fronteira invisível e intransponível que misteriosamente enclausura os personagens de O Anjo Exterminador dentro de uma residência, separando-os do corpo social, torna seu convívio um desafio considerável, capaz de aniquilar a humanidade que há em cada um. Nessa cápsula impensável, surreal, a única saída é trapacear o tempo para fugir do espaço.
FOTO A
Nesta fábula contemporânea, Buñuel desfila figuras da sociedade cuja autodeterminação é cerceada pelo inexplicável que os imobiliza no espaço, mas não no tempo – como aceita a Relatividade Geral da Física. Trancados em uma área limitada, na qual os dias passam em um cenário que se mantém, a fome, a sede, a claustrofobia e a paranóia crescem entre o grupo, apagando limites entre civilidade e selvageria. Ricaços perdem a compostura, amigos entram em litígio, convenções desabam e convicções são abaladas. A elegância entra em desalinho. Nesse microcosmo social em desconstrução, em processo de extermínio, acompanhamos personas pouco óbvias, bem construídas com nuances de meias verdades, incertezas e medos que os tornam críveis. Com histórias de vida que se complementam, ficamos sabendo muito de cada uma destas figuras tresloucadas a partir de suas relações com as outras.
O texto afinado de Buñuel, simples e direto, compõe o perfil dos agentes da ação fílmica criada pelo artista, estimulando um ritmo narrativo bem alinhado a planos, cenas e sequências belamente compostos. À fotografia do filme é dada extrema atenção, algo nítido em movimentações de câmera como travellings que ressaltam um clima de mistério distante de suspenses tradicionais. Aqui as potencialidades, dúvidas, dubiedades e debilidades de mentes traumatizadas pelo convívio forçado e misterioso apontam raízes nos conteúdos tanto do inconsciente pessoal quanto coletivo – tão importantes para surrealistas como Buñuel e Salvador Dalí quanto para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
É justamente de um destes segredos pouco racionais e altamente pregnantes, oferecido pela mente de uma personagem, que surge uma possibilidade de escape deste paralelo opressivo, revelador do grotesco íntimo de cada indivíduo. Redefinindo ao fim do filme certas configurações espaciais exibidas em seu início, os personagens descobrem como deixar a casa. Com isso, Buñuel sugere um loop completo no tempo de sua narrativa, um tempo que se mostra cíclico, mítico, não mais explicado pelo formalismo da Física. Este tempo arcaico não apenas aponta a redução do homem contemporâneo a sua essência animalesca quanto também permite à narrativa audiovisual e aos personagens do filme o cumprimento de seu eterno retorno.
FOTO B
Ao retomar uma configuração inicial, fechando um ciclo temporal, as pessoas da sala de jantar d’O Anjo Exterminador encontram o ponto no tempo que os liberta do espaço aprisionador. Retomam sua mobilidade para seguir adiante no continuum espaço-tempo físico em que vivemos. Porém, fica a impressão que para o surrealista Buñuel o tempo é líquido, fluído e circular, capaz de derreter como um relógio de bolso daliniano, sendo então muito mais poético do que o espaço sólido, magnético, imobilizador e degradante.
é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
14/2/13
Os Imperdoáveis, Unforgiven, 1992, Clint Eastwood
(...) Nos anos 1963-1964, Laurindo Almeida participou do Modern Jazz Quartet. Ele ganhou seis Prêmios Grammy, além de uma série de outros prêmios da indústria fonográfica e cinematográfica, e compôs e fez arranjos para 800 produções, incluindo filmes dos grandes estúdios de Hollywood. Ele toca bandolim em O Poderoso Chefão, de 1972, e alaúde em Os Dez Mandamentos, de 1956, tendo sua última participação em filmes em Os Imperdoáveis, dirigido por Clint Eastwood, de 1992. Também fez arranjos para a série Bonanza e Além da Imaginação.
Faleceu em 26 de julho de 1995 aos 77 anos. Foi sepultado em San Fernando Mission Cemetery, Condado de Los Angeles, Califórnia no Estados Unidos.
Claudia's Theme Full Length Unforgiven OST
Os Imperdoáveis (1992)
As zonas cinzentas do western
Wallace Andrioli - 4 de fevereiro de 2019
“Os Imperdoáveis” (1992) é um filme sobre desconstrução de mitos. Esse tema aparece, de forma até reiterada, em sua diegese. Logo no início, ao procurar William Munny (Clint Eastwood), lendário assassino, para ser seu parceiro na execução de dois sujeitos que cortaram o rosto de uma prostituta, Schofield Kid (Jaimz Woolvett) se decepciona com o que encontra: em idade já avançada, Munny se tornou um pequeno fazendeiro, criador de porcos. Pouco depois, entram em cena os personagens English Bob (Richard Harris), outro pistoleiro conhecido, e seu biógrafo oficial W.W. Beauchamp (Saul Rubinek). No entanto, humilhado e preso pelo xerife Little Bill (Gene Hackman), Bob tem revelada a dimensão farsesca das histórias que, até ali, compunham sua biografia. De exímio atirador capaz de enfrentar rivais perigosos, ele passa a ser apresentado a Beauchamp como um bêbado covarde que executa inimigos já desarmados.
Essa desconstrução ocorre ainda em diálogo com o campo extra-fílmico. Diretor e protagonista, Eastwood tem uma imagem fortemente associada ao western. Em duas de suas emblemáticas visitas ao gênero, “O Estranho Sem Nome” (1973) e “O Cavaleiro Solitário” (1985), os personagens que interpreta retornam triunfantes ao mesmo nada de onde vieram, após cumprirem sua missão. “Os Imperdoáveis” também termina com Munny cavalgando rumo ao desconhecido, mas não há triunfo possível. Novamente dominado pelo vício alcoólico e por um implacável desejo de matar, ele sai de cena ameaçando os moradores de Big Whisky: “Quem aparecer na minha frente vai morrer! Qualquer desgraçado que atirar em mim, não mato só ele, mato a mulher dele, todos seus amigos e queimo sua casa! É melhor ninguém atirar! É melhor enterrarem o Ned direito. É melhor não fazerem nada com as prostitutas! Senão eu volto e mato todos vocês, desgraçados.” Cai por terra a típica encarnação do cowboy valoroso mesmo quando brutal.
Vale dedicar maior atenção à comparação entre “Os Imperdoáveis” e “O Estranho Sem Nome”. Nesse último, a figura misteriosa interpretada por Eastwood age com particular crueldade sobre os habitantes da pequena cidade de Lago, impondo-lhes tarefas, estuprando mulheres, reconfigurando as posições sociais da cidade, invadindo propriedades. No entanto, tais ações encontram justificativa dentro do universo do filme, já que, à exceção de Sarah (Verna Bloom) e Mordecai (Billy Curtis), todos os demais personagens são desprezíveis, responsáveis, em alguma medida, pelo assassinato do xerife Jim Duncan (Buddy van Horn).
As coisas não são tão simples em Big Whisky. As razões de Little Bill são, no limite, justas: ele quer “civilizar” a cidade, substituir a violência das armas pelo rigor da lei. Mas as das prostitutas, marginalizadas nessa civilização e sedentas por vingança contra os homens que mutilaram uma delas, também são. O que move Munny, Ned (Morgan Freeman) e Schofield Kid, por outro lado, mais do que os mil dólares da recompensa oferecida, é uma relação direta com a dimensão mítica do western. Os dois primeiros, outrora criminosos famosos e temidos, tentam, no crepúsculo de suas vidas, retornar de alguma forma a esse passado; o terceiro sonha em se tornar parte do mito e constrói para si uma imagem de pistoleiro temível, que, todavia, logo também é desconstruída (além de enxergar muito pouco, Kid é na verdade um neófito no negócio de matar). Os “heróis” de “Os Imperdoáveis”, portanto, têm motivos mais egoístas e anacrônicos para suas ações que o “vilão”.
Mas talvez esse anacronismo seja apenas aparente. Munny e Ned se sentem ultrapassados no presente, já que velhos e agora adeptos de um estilo de vida distante da matança do passado. Mas o mundo ao seu redor segue violento, ainda há espaço nele para a crueldade que praticavam nos tempos de juventude. Ao refletir sobre isso, Eastwood expõe as entranhas da sociedade estadunidense, fortemente dependente de uma lógica violenta de resolução de conflitos. Não à toa, nos dois momentos mais brutais de “Os Imperdoáveis”, a surra em English Bob e o massacre no saloon, os agentes dessa brutalidade, respectivamente Little Bill e Munny, são enquadrados por Eastwood em contra-plongée, com uma bandeira dos Estados Unidos tremulando sobre suas cabeças.
“Os Imperdoáveis” se aproxima assim do clássico “O Homem que Matou o Facínora” (1962), em que John Ford investiga as origens das instituições políticas dos Estados Unidos, revelando a ocultação, pela superfície barulhenta da democracia, de suas raízes violentas. Mas Eastwood vai além de Ford. Enquanto emerge de “O Homem que Matou o Facínora” o entendimento, misto de cinismo e conformismo, da necessidade da mentira na sustentação de um regime que, mesmo espalhafatoso, produz integração comunitária e liberdade, nada de benéfico resulta das relações estabelecidas entre os personagens de “Os Imperdoáveis”. O recurso à violência no filme de Eastwood deixa marcas indeléveis neles – “Matar um homem é uma coisa infernal. Você tira tudo que ele tem e tudo que poderia ter um dia”, diz Munny a um Schofield Kid para sempre traumatizado, após cometer seu primeiro assassinato –, disparando um ciclo que parece impossível encerrar.
Tem-se aqui um típico quadro eastwoodiano. Esse mesmo ciclo assombra o trio de protagonistas (Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon) de “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e o marine Chris Kyle (Bradley Cooper), de “Sniper Americano” (2014). Mas o filme de Eastwood que mais guarda semelhanças com “Os Imperdoáveis” (além, claro, de seus westerns anteriores) é “Gran Torino” (2008). Ambos reencontram personagens muito fortemente ligados à imagem do ator/diretor (o pistoleiro implacável e o homem solitário racista e ranzinza, que resolve por conta própria seus problemas), mas agora na velhice, sofrendo com a viuvez recente e a sensação de inadequação num mundo em transformação.
E “Os Imperdoáveis” e “Gran Torino” se complementam na abordagem das consequências da violência sobre quem faz uso dela. Enquanto o primeiro olha para o passado com desencanto, tomando por inevitável, na narrativa, o recurso às armas como forma de resolução de conflitos (é essa, afinal, a história dos Estados Unidos e a natureza da experiência do western, aqui revisitada e desmitificada), o segundo opta por uma conclusão diferente, sacrificando essa velha lógica (e, junto a ela, seu representante direto) perante a lei e apostando, com otimismo, num futuro de miscigenação e tolerância. Isso em 2008, em meio à ascensão de Barack Obama ao poder, algo talvez surpreendente vindo de alguém repetidamente reduzido ao estereótipo de “cineasta republicano”. Mas o cinema de Eastwood sempre foi bem mais complexo que esse tipo de simplificação.
15/02/23
O Último Selvagem, The Last of His Tribe, 1992, Harry Hook
"Em 1800, havia 300 mil índios na Califórnia. Em 1900, após a invasão do homem branco só restaram 20 mil. Forçados a trocar suas terras pelas cidades e reservas os sobreviventes perderam a liberdade de seus ancestrais. Pelo menos, era o que se acreditava."
RELATÓRIO SOBRE O FILME “O ULTIMO SELVAGEM” E O CONCEITO DE EVOLUÇÃO ANTROPOLÓGICO
16/02/23
Juventude Selvagem, The Young Savages, 1961, John Frankenheimer
Telly Savalas, o inesquecível Kojak
Em 1961 estreou no cinema interpretando um policial em O Terror de Uma Cidade (Mad Dog Coll, 1961). Burt Lancaster ficou impressionado com seu desempenho no filme, e o convidou para viver um detetive em Juventude Selvagem (The Young Savages, 1961).
Um menino cego porto-riquenho é assassinado por uma gang de adolescentes na Itália. Do grupo, três jovens são pegos e vão à júri, onde são acusados intensamente pelo promotor. O advogado resolve então investigar mais profundamente o caso e acaba descobrindo que a história não era como ele pensava. (e 14 – Estimado 14 Anos)
By Bosley Crowther, May 25, 1961, The New York Times
ANYONE who has not been reading the New York newspapers for the last several years and keeping up with the outbreaks of violence among the city's juvenile gangs might find some illumination of the ugly nature of these hoodlum elements in Harold Hecht's and Burt Lancaster's "The Young Savages," which opened yesterday at the Astor and Murray Hill.Obviously pegged on evidence presented in the well-reported case of the gang murder of the crippled boy, Michael Farmer, slain in High Bridge Park a few years ago, and a couple of other juvenile slayings, particularly that one involving the Puerto Rican youths known as the Cape Man and the Umbrella Man, this graphic survey of young delinquents parades a company of bad and vicious types. And it gives a rather horrifying notion of the cool audacity of these pimply-faced hoods.Poverty, ignorance, racial hatred, instability and insecurity are dutifully named and demonstrated as motivations behind the aggresions of the members of the Puerto Rican and Italian gangs (the Horsemen and the Thunderbirds) that constitute the rivals in this film. Director John Frankenheimer's camera has described them realistically.Unfortunately, the drama of the youngsters is overshadowed and reduced in magnitude by frank concern for the peculiar personal conflicts of an assistant district attorney assigned to prosecute these Thunderbirds in a case of murder of a blind Horseman. Edward Anhalt and J. P. Miller, the scriptwriters, basing their drama upon the novel, "A Matter of Conviction," by Evan Hunter, have kept this fellow so much to the fore that it becomes his mental anxiety more than the plight of the hoodlums that seems to be paramount here. The mental anxiety of this fellow, played by Burt Lancaster, isn't so strong and realistic as the surrounding stuff.Indeed, his domestic complications with an unsympathetic wife, played sullenly by Dina Merrill, and with the mother of one of the accused boys—Shelley Winters barrels through this role—are soap operatic at best. The devious plotting that puts everything in order for a balanced ending that takes care of the boys and justifies the district attorney almost nullifies the strong stuff in the film.Mr. Lancaster's performance is vigorous but colored with a soft romantic tinge, and the two leading actresses are hardly so pungent as their roles would permit. Stanley Kristien is clearly most convincing as the worthiest of the three accused boys, and Chris Robinson and Luis Arroyo are vivid as other hoods.The problems of juvenile delinquency are tough enough to cope with these days. A film that sees the problems and then soft soaps them doesn't provide much valid drama or do much good.
18/02/23
Aguirre e El Dourado
No dia 18 de fevereiro 2023 assisti ao filme (pouco conhecido) "El Dorado" de 1988. Grandioso e ao mesmo tempo intimista El Dorado, é uma resposta a "Aguirre, a Cólera dos Deuses", longa que desagradou Saura, realizado por Werner Herzog em 1972. O tema, nos dois filmes, diz sobre a figura insana de Lope Aguirre (1510 - 1561). A perene peleja por ouro na Amazônia. Depois revi Aguirre, a Cólera dos Deuses. O filme de Saura dá de 7 a 1 no de Herzog
Aguirre, a Cólera dos Deuses, Aguirre, der Zorn Gottes, 1972, Werner Herzog
No iutubi aqui
El Dorado, 1988, Carlos Saura
DOS VISIONES DE LOPE DE AGUIRRE A TRAVÉS DEL CINE EUROPEO: WERNER HERZOG Y CARLOS SAURA
19/02/23
Tiros na Broadway, Bullets Over Broadway, 1994
Você está desviando, interessa é que sou capaz de dar prazer várias vezes ao dia.
Francamente, Flender, que tem quantidade a ver?
- Quantidade afeta a qualidade.
- Quem disse?
- Karl Marx.
- Ah, agora falamos de Econômia?
- O sexo é Econômia!
CRÍTICA: Matheus Bonez
O autor que não quer se render ao entretenimento. A atriz que já teve seus dias de glória. Um capanga cheio de boas idéias para colocar no papel. A emergente que quer se tornar uma estrela, mesmo sem talento algum. As descrições de cada uma destas personas são a síntese de idéias que Woody Allen joga na tela em Tiros na Broadway (1994), um de seus mais inspirados trabalhos. Subvertendo a atmosfera noir da Nova York dos anos 1920, o cineasta apresenta este amálgama de personagens sob a ótica do showbizz da época: a relação entre mafiosos e as produções artísticas daquela década.
É nesta Grande Maçã repleta de homens e mulheres com segundas intenções que somos apresentados a David Shayne (John Cusack), um dramaturgo intelectual que nunca consegue que seus textos decolem pela dificuldade do público em compreende-los. A chance vem através de um mafioso que quer colocar sua namorada de voz esganiçada, Olive (Jennifer Tilly), como uma das estrelas do show. Apesar de relutar, David abre mão de seus preceitos, com a condição de contratar sua atriz preferida, Helen Sinclair (Dianne Wiest) como protagonista da peça da Broadway. De quebra ele ainda ganha uma suposta ajuda: o guarda-costas de Olive, Cheech (Chazz Palminteri), um truculento capanga com alma de roteirista, que vai dar muitas ideias ao personagem de Cusack, mesmo que este não goste muito do que possa ouvir. O roteiro do neurótico mais famoso da sétima arte é repleto de situações que metem todos os personagens em uma eterna bagunça bem amarrada, o que gera risos instantâneos do outro lado da tela. Porém, não são piadas idiotas ou simples ironias: Allen contextualiza todo o seu texto em um momento em que a fama (não interessa se boa ou ruim) valia mais perante a sociedade do que qualquer outra coisa. Um tema universal e atemporal, diga-se de passagem.
É no palco e na plateia onde ocorrem os ensaios que a história evolui de uma simples comédia de costumes para esta grande sacada, onde o dramaturgo quase casado tem um caso com sua estrela, que poderia ser sua mãe. Além disso, ele tem que lidar com as intromissões cada vez mais constantes – e violentas – de Cheech, que tem um gênio, digamos, acima do nível “estourado”. Por sinal, ele tem que engolir os diversos erros de fala e atuação de Olive, além dos ataques de estrelismo desta, o que lembra muito o que sabemos das histórias de Marilyn Monroe por trás dos bastidores. Como de praxe, a personificação de Allen está no papel principal de Tiros na Broadway. John Cusack realiza aquilo que o cineasta provavelmente gostaria de ter feito caso tivesse vivido nos anos 1920 (idéia que ele retomaria tempos depois na pele de Owen Wilson em Meia-Noite em Paris, 2011). Inclusive, até sua costumeira neurose estaria presente, dificultando a construção de seu projeto.
Mais do que nunca, o elenco deste filme foi escolhido perfeitamente por Allen. Não há um ator sequer que esteja fora de sintonia com o resto. O trabalho de direção rendeu uma indicação ao cineasta nesta categoria no Oscar, além de outras seis no mesmo prêmio. Dianne Wiest saiu consagrada na época com a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante com um trabalho fenomenal. Uma espécie light de Norma Desmond (personagem de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, 1950) que mereceu todos os louros por seu trabalho. Como é difícil apontar um defeito nesta obra (realmente nenhum me vem à mente), cabe ressaltar também a cuidadosa reconstituição da época realçada pela fotografia e a direção de arte do longa. Um dos melhores trabalhos de Woody Allen e que merece uma atenção especial, mesmo que tenha sido deixado de lado com o passar dos anos.
19/02/23
A Vida dos Outros, Das Leben der Anderen, 2006
Análise de filme do A Vida dos Outros (2006)
A Vida dos Outros (2006)
O filme alemão A vida dos outros (“Leben Der Anderen, Das”, 2006, Alemanha), conta a história de Gen Wiesler, agente da Stasi (abreviação de Ministerium für Staatssicherheit ou Ministério para a Segurança do Estado), serviço de informação da Berlim Oriental comunista em 1984.
Neste período da Guerra Fria, o Ministro da Cultura da Alemanha Oriental(Bruno Hempf/Thomas Thieme) se interessa por Christa- Maria Sieland (Martina Gedeck), uma importante atriz que brilhava nos palcos alemães. No entanto, ela precisa ter acesso a remédios controlados que lhe ajudavam a atuar e, por isso, acaba cedendo(sexualmente) ao Ministro que lhe dava acesso livre à droga. Ela, porém, namora o dramaturgo Georg Dreyman ((Sebastian Koch). Ele é um dos poucos que ainda continua enviando textos para o outro lado, relatando e criticando o modo de governar daqueles que acreditavam fielmente no Socialismo. Com a suspeita de que o casal era infiel às idéias comunistas, eles passam a ser vigiados pelo Capitão Gerd Wiesler (Mühe) e, assim, se dá a início a toda uma trama cheia de surpresas e fascinante.
O trabalho de Wiesler é espionar e interrogar suspeitos de conspiração. A trama tem início ao receber a tarefa de investigar a vida do dramaturgo Dreyman e de sua namorada. Sua casa é, então, abarrotada de escutas e sua vida passa a ser observada pelo implacável agente. Com a espionagem, as escutas instaladas 24 horas por dia na residência do casal, Wiesler se envolve com a vida deles pouco a pouco.
É estabelecido a partir daí o conflito – não aberto, diga-se de passagem – entre o observador (o agente Wiesler) e o escritor Dreyman, o qual sequer sabe que está sendo vigiado constantemente. Um frio Wiesler vai cada vez mais se identificando com o objeto de sua investigação, a ponto de se questionar se deve (ou não) relatar tudo que Dreyman faz ou deixa de fazer na sua vida.
Movido por um voyeurismo a princípio tímido, com o tempo o agente passa a querer interferir na história dos dois. Mais que isso, ele começa a “mudar de lado”, encobrindo possíveis vestígios de traição política ao se identificar cada vez mais com aqueles vigiados. O fascínio exercido pelo escritor no agente vai modificando este aos poucos, alterando seus conceitos e sua maneira de enxergar o modus operandi do Estado policial da Alemanha Oriental.
O filme estimula no espectador a posição de voyeur, na medida em que quem assiste enxerga tudo pelo ponto de vista do espião, acompanhando escutas, anotações, perseguindo, observando janelas e movimentos dos vigiados. A vida de Wiesler e de quem assiste passa a ser “a vida alheia.”
E é aí que entra o destaque de atuação do filme que fica por conta do ator Ulrich Mühe (Wiesler). Seu personagem é robótico, pragmático. A maneira como ele se veste passa exatamente a impressão de seriedade estampada em um rosto triste, em um olhar perdido. Ele se sente sozinho, sem ninguém para conversar. Deu a sua vida por este regime, passou a ter a confiança do alto escalão do governo. E para que tudo isso serviu? Quanto mais ele ouvia o que se passava no interior do apartamento de Georg, o seu fascínio por mudanças crescia. As personalidades que cada um tinha também mexiam com ele, deixando-o completamente transtornado sobre o que era certo ou errado naquele momento.
As relações afetivas nascem justamente do convívio entre as pessoas em seus momentos de lazer ou de trabalho, mas é preciso conviver para sobreviver. Pode ser que se Wiesler tivesse acesso a internet, salas de bate papo, orkuts e afins ele tivesse entregue Georg, mas como essa tecnologia não fazia parte de sua realidade, Georg com seu drama pessoal, cativa Wiesler e faz dele mais do que um mero repetidor de fatos, faz dele um indivíduo atuante. Por um momento Wiesler encontra um “Outro” que imprime algum sentido a sua existência mecânica.
Por um bom tempo, Georg achou que o seu apartamento não tinha escutas e que, dentro da classe artística a qual pertencia, ele era o único que não estava sendo vigiado. Mero engano. Naquela época em que ele viveu, todos estavam sob constante vigilância. O governo sabia de tudo e, logicamente, andava com medo e assustado por qualquer coisa. Por isso eles mantinham essa ditadura em que nada contra poderia ser publicado.
Alguns anos após a queda do regime comunista, Georg descobre ter sido alvo de sérias investigações policiais e vai a procura de uma parte desconhecida de sua vida. Desta descoberta Georg escreve um livro dedicado a Wiesler. No momento no qual Wiesler compra o livro e se vê projetado naquelas páginas ele tem a confirmação de sua existência real. No final, sua maior necessidade fora suprida. Wiesler tinha em Georg um amigo, um companheiro de vida real e atuante que fazia dele um eu permanente e social.
Elenco: Martina Gedeck (Christa-Maria Sieland), Ulrich Mühe (Gerd Wiesler), Sebastian Koch (Georg Dreyman), Ulrich Tukur (Anton Grubitz), Thomas Thieme (Ministro Bruno Hempf), Hans-Uwe Bauer (Paul Hauser), Volkmar Kleinert (Albert Jerska), Matthias Brenner (Karl Wallner), Charly Hübner (Udo), Herbert Knaup (Gregor Hessenstein), Marie Gruber (Meineke)
Premiações: Recebeu mais de 50 prêmios por todo mundo, entre eles, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007.
Curiosidade: O protagonista do filme, Ulrich Mühe, morreu cerca de 3 meses após receber o prêmio da Academia Americana (Oscar)
A Vida Dos Outros: o estado espionando seus cidadãos
Autor: Fabio Belik - janeiro 05, 2021
QUANDO UMA SONATA PARA PIANO TOCA O CORAÇÃO DE UM HOMEM BOM
Logo de início somos apresentados a Gerd Wiesler, agente da polícia política da Alemanha Oriental. Bastam poucas cenas para concluir: trata-se de um reles burocrata, que exerce com meticulosa dedicação o infame ofício de bisbilhotar a privacidade alheia para proteger o estado. Um homem menor, esmagado pelo peso da própria mediocridade. Um infeliz, que se submete a vigiar a vida dos outros como quem inspeciona frangos na esteira de um frigorífico.
Ocorre que Wiesler é destacado para vigiar o escritor Georg Dreyman, uma celebridade da cena cultural berlinense, que goza das benesses do partido. Sua missão é descobrir algo que possa comprometer o dramaturgo e sua namorada, a atriz Christa-Maria Sieland. As verdades que ele escuta vão de intrigas amorosas a interesses particulares sendo atendidos pela dispendiosa máquina estatal. Mas o espectador que espera assistir a uma detalhada investigação policial se decepcionará.
A Vida Dos Outros, filme de 2006 escrito e dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck é sobre o inferno que era ser artista num país sufocado pela ditadura comunista. O talentoso escritor, enquanto vive uma vida intensa e criativa, não suspeita que os microfones do estado captam suas intimidades. O espião, enquanto registra o que ouve em relatórios minuciosos, vai descobrindo que a mediocridade bovina não é a única possibilidade de vida no rebanho.
Mas quando, na solidão da sua sala de escuta, Wiesler ouve chegar aos fones de ouvido os acordes da Sonata Para Um Homem Bom – música escrita para o filme por Gabriel Yared – a história chega ao seu ponto de virada. O espião cai em epifania! Percebe que, na realidade, não há dilemas morais no seu ofício. É ele quem está jogando pelo time dos criminosos!
O cinema de Florian Henckel von Donnersmarck é essencialmente clássico em seu formato. Com um roteiro preciso, o diretor primeiro nos coloca diante do bisbilhoteiro estatal, para depois enfatizar a vida daqueles que insistem em fazer arte apesar da patrulha dos vigilantes. Não está preocupado em fazer suspense ou compor um thriller contagiante. A banalidade com que as liberdades individuais são violadas e o cinismo dos detentores do poder absoluto já são suficientes para chocar o espectador.
Ulrich Mühe, numa atuação brilhante como araponga da Stasi, traz credibilidade ao personagem. Sebastian Koch no papel do escritor vigiado e Martina Gedeck como sua namorada talentosa são presenças marcantes em cena. E o diretor, que faz questão de deixar suas câmeras estáticas em grande parte das cenas – talvez para enfatizar o medo paralisante diante dos absurdos que registram – fez por merecer: levou o Óscar de melhor
19/02/23
Makanai: Cozinhando para A Casa Maiko, Maiko-san Chino makanai-san, Série TV, 2023, Hirokazu Koreeda, Hiroshi Okuyama, Takuma Satô e Megumi Tsuno
Pérola rara do streaming, "Makanai" merece ser vista; saiba por quê
Dirigida por Kore-eda, cineasta premiado com a Palma de Ouro em Cannes, série da Netflix debate a tradição da gueixas e o universo feminino no Japão atual
LÚCIA MONTEIRO - Folhapress, 25/02/2023
"Makanai: Cozinhando para a Casa Maiko" entrou para a grade da Netflix no início do ano como uma pérola rara. Com nove episódios, a série escrita e dirigida por Hirokazu Kore-eda destoa, ao menos à primeira vista, do estilo de construção dos mais populares seriados disponíveis no streaming.
Não há exatamente suspense nem aquele gancho ao final de cada episódio que faz os espectadores não conseguirem desligar. O arco narrativo acompanha a passagem das estações, ao longo de um ano, de primavera a primavera. Pouco a pouco, porém, as aprendizes de gueixa que protagonizam o seriado se revelam extremamente cativantes – e a vontade de conhecer seus destinos nos deixa com gostinho de quero mais.
Sumirê e Kiyo são amigas de infância. Aos 16 anos, elas deixam a família e a cidade natal, a fria Aomori, para estudarem na Casa Maiko, em Kyoto. Ali, aprendem os fundamentos do "mai", dança tradicional japonesa, próxima ao teatro nô.
Numa casa comandada por duas "mamães", professoras austeras e ao mesmo tempo divertidas, as duas e outras adolescentes se tornam "irmãs" e descobrem os fundamentos não só da arte das gueixas, mas também de viver longe dos pais e do universo feminino.
Gestos que falam
"Makanai" é uma de formação e aprendizagem. Talentosa e dedicada, Sumirê rapidamente é aceita como "maiko", ou narrativa aprendiz de gueixa. Kiyo, por sua vez, encontra na cozinha sua verdadeira vocação. Será que essa diferença vai abalar a amizade delas? Como o ambiente competitivo interfere na relação entre as personagens?
Na escrita de Kore-eda, cineasta laureado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes (“Shoplifters”, em 2018), intrigas e disputa têm menos importância do que a atenção para os gestos – a maneira de posicionar os braços durante a performance; as estratégias para dormir com um penteado complicado, que deve durar por uma semana; o jeito de cortar os legumes em fatias delicadas; a procura pelos ingredientes ideais para um udon.
Esse olhar para as tradições tem algo de exótico, como se se tratasse de apresentar características típicas de uma cultura para um público estrangeiro. Por outro lado, há, na Casa Maiko, não só respeito à tradição, mas também a possibilidade de inventar novas tradições, misturando elementos com liberdade.
Nesse sentido, o oitavo episódio é primoroso. Nele, as garotas da Casa Maiko assistem ao filme "A noite dos mortos-vivos", lançado em 1968, dirigido por George Romero, e depois criam sua versão da narrativa de horror. Na sequência, se dão conta de que tanto zumbis quanto os atores do teatro nô se locomovem deslizando os pés no chão. Num e noutro casos, o que se encena é o limiar tênue entre vida e morte.
Filosofia do "ichigo ichie"
Um importante aprendizado que a série retrata é, na realidade, o da filosofia do "ichigo ichie", que pode ser traduzida por "uma vez, um encontro" e sintetiza o estado de presença e atenção que as garotas da Casa Maiko vão adquirindo. Para dar a ver tal aprendizado, Kore-eda incorpora momentos de relativo silêncio a sua narrativa. As personagens não são verborrágicas, nem tudo é explicado pelos diálogos – algo muito bem-vindo quando sobra didatismo à maior parte dos seriados. Além disso, os silêncios ajudam o cineasta japonês a enfrentar com sutileza as ambivalências do universo das gueixas – e a iniciação de adolescentes nele.
Em dado momento, o pai de Sumirê aparece na Casa Maiko, decidido a tirar a filha de lá. Não quer ver a garota em contato com homens mais velhos, bebida, assédio. Surge então a deixa para uma discussão sobre o lugar da tradição das gueixas no Japão contemporâneo – e para o papel da mulher nessa sociedade.
É possível ser uma "maiko" e ter uma vida de família? As gueixas se casam? Como conciliar posicionamentos feministas com o respeito a tradições? São discussões que a série só insinua, com muita delicadeza e poucas palavras, sem de fato resolver esses pontos.
Vale a pena vencer a estranheza diante de um ritmo pouco comum no streaming – para se deliciar com a beleza das imagens de "Makanai"
20/02/23
A Vida de Brian, Life of Brian, 1979, Terry Jones
A VIDA DE BRIAN ( 1979): por David Carrão
Comecei a ver os sketches dos Monty Python por mero acaso, em 2008. Sempre tive alguma curiosidade e quando vi, gostei. Tanto que fiquei com uma enorme vontade de ver os filmes. E no meu aniversário ofertaram me dois sendo que um foi "A Vida de Brian".
Ora bem, para quem não sabe ( shame on you!), o Monty python foram um grupo de comediantes britânico, que esteve no activo desde finais dos anos 60 até inícios dos anos 80. Começaram ,em 1969, com um programa de televisão na BBC chamado " Monty Python´s Flying Circus", que foi um êxito e trouxe ao mundo novas formas de fazer humor. Quando acabou, os seis decidiram que tinham capacidades para transpor o seu trabalho para o grande ecrã. Fizeram-no 3 vezes e das três safaram se bem como o raio!
Em 1979, depois de terem feito "Monty Python e o Cálice Sagrado" ( que irei abordar aqui também), fizeram " A Vida de Brian", a história de um homem da judeia que é sem querer confundido com um messias.
Qual é o meu parecer sobre este filme? Adoro-o. Com todas as letras da palavra. Eu adoro " A Vida de Brian" e não tenho medo de o dizer! Se a relação entre humanos e obras primas cinematográficas fosse permitida eu casava com este filme. Escusado será dizer que quando me perguntam qual é o meu filme favorito eu respondo que é este pois tenho imensas razões para tal.
A história começa com os Reis Magos a viajar até à manjedoura onde nasceu Jesus Cristo e , exactamente no mesmo dia, nasceu Brian, a personagem principal do filme.E garanto-vos que quase de certeza vão rir nos primeiros 5 minutos de filme por causa dessa cena. Depois disso avançamos décadas no tempo, onde vemos que Brian de Nazaré ( interpretado por Graham Chapman) e a sua mãe ( interpretada por Terry Jones, que também é o realizador do filme) vivem numa Judeia ocupada por Romanos e onde todos são oprimidos mas não podem fazer muito contra isso pois os Romanos são mais fortes. Brian, que está farto de toda essa opressão, conhece então um grupo de revolucionários que tem como intenção expulsar os romanos da sua terra. Brian acaba por se juntar ao grupo e a partir daí desencadeia-se uma série de eventos hilariantes e que vão dar a volta ao filme.
Todos os membros dos Monty Python têm papeis excelentes e todos têm mais do que uma personagem ( Michael Palin tem 10 personagens diferentes ao longo do filme), tal como foram eles os seis que escreveram a história.
Acho que a beleza d´" A Vida de Brian" está no facto de que, para além de ser comédia, faz uma sátira boa, inteligente e hilariante, principalmente à religião ( pois creio que a maior parte deles, senão todos, eram ateus). Eu pessoalmente considero me crente num ser superior ( deísta) e mesmo assim não só adoro toda a sátira feita como concordo em praticamente todos os aspectos satirizados. Não só a religião é parodiada neste filme. Muitos dos hábitos que se acreditavam ter nessas épocas são gozados de formas que muito pouca gente conseguiria fazer.
Sinceramente, o fim do filme é um dos meus momentos favoritos de sempre da história do cinema. É possível que já o tenham visto pois é extremamente conhecido. Não vou dizer qual é mas apenas digo que envolve esta música.
Claro que um filme destes a satirizar a religião no tempo de Jesus Cristo ia dar chatice pois os fanáticos religiosos não podem ver ninguém a gozar com as crenças religiosas, coitadinhos!
Entre essas, diz se que o filme goza com o sofrimento de Jesus Cristo, o que já foi desmentido pelos próprios Monty Python pois Jesus aparece como personagem no filme, separado da principal. Depois existem certas acusações contra os ensinamentos do cristianismo que, a meu ver , são absolutamente patéticos. Como uma cena do filme em que é dito que as pessoas não precisam de seguir ninguém e que têm o poder de pensar sozinhas.
Muita gente o criticou pois é, de facto, dependente de acreditar num ser nunca viu nem sabe se existe e que sem antes o consultar não pode viver a sua vida...
Por causa disto, o filme foi banido em certas partes do Reino Unido e até de países inteiros por todo o mundo. De facto houve sítios em que o filme só foi exibido nos cinemas o ano passado! E isto mostra como o ser humano tem uma dificuldade tremenda e idiota em gozar com o que aparentemente pode ou não reger a maneira como vivemos.
Há que realçar que foi um filme que esteve perto de não ser feito porque o produtor decidiu não apostar nele por causa do conteúdo religioso, meros dias antes do inicio das filmagens( lá está a mente-capta de certos indivíduos...) . Ao auxilio veio George Harrison! Sim, o ex-Beatle, que era fã dos Monty Python, doou parte do seu dinheiro e produziu o filme. E ainda bem que o fez!
Opinião final:
" A Vida de Brian" é mais do que uma obra prima do cinema. É uma comédia que nos ensina que somos seres humanos responsáveis e que devemos sempre lutar pelos nossos ideais, e não deixar que sejamos obrigados a fazer as coisas por outras entidades. É hilariante, divertido, parvo, inteligente, tem uma grande história com interpretações brilhantes a acompanhar e eu adoro
To Leslie, 2022, Michael Morris
Crítica: To Leslie (2022), sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
A indicação de Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz pegou a todos de surpresa e gerou uma grande polêmica por conta da forma como foi feita a sua campanha de divulgação: através do famoso boca a boca entre os membros da Academia e também pelas redes sociais, o que foge totalmente da regra. Discussões à parte, o fato é que se analisarmos apenas a sua atuação, a indicação acaba sendo realmente merecida, já que ela realmente brilha em uma história simples mas bastante tocante.
Em "To Leslie", filme do diretor Michael Morris, Riseborough interpreta uma mãe solteira que ganhou 190 mil dólares em uma loteria local. O filme logo dá um salto de seis anos, onde vemos Leslie totalmente desequilibrada, sendo despejada de um quarto de motel por não pagar o aluguel, e sofrendo duramente as consequências de suas escolhas erradas do passado. Ela nitidamente não soube administrar a bolada que recebeu e torrou tudo em muito pouco tempo, sobretudo com álcool. Sem emprego, sem casa, e portando apenas uma maleta com seus objetos pessoais, ela vive uma realidade decadente e sem futuro, e quando recebe oportunidades parece fazer questão de jogar tudo fora.
Após passar por situações muito delicadas e chegar a ter que dormir na rua, Leslie acaba recebendo a grande chance de finalmente reencontrar um rumo na vida ao ser admitida para trabalhar como arrumadeira em um motel de estrada, em troca de um pequeno salário e de poder dormir no local. A partir de então se cria uma relação amigável e curiosa entre ela e Sweeney (Marc Maron), o homem que lhe dá o emprego e que administra o local junto com o dono, Royal (Andre Royo).
A protagonista é muito humana e divide os sentimentos do espectador a todo momento. É interessante como você acaba torcendo para que ela se encontre e consiga ter uma vida melhor, mas ao mesmo sente repulsa por algumas das suas atitudes, sobretudo com o filho James (Owen Teague). Ao voltar para a sua terra natal, todos a olham com um certo desprezo, quase como se a considerassem uma louca, o que acaba sendo até justificável pela sua própria conduta.
Durante as duas horas do filme, Leslie é usada por outras pessoas, mas de certa forma também se aproveita de outras, e sempre carrega uma amargura muito grande do mundo que a cerca, que é bem perceptível em seu olhar. E é aí que entra a grande atuação de Riseborough, que conduz com maestria essa personagem tão complexa e de personalidades tão contrastantes, e que por si só já faz valer o filme inteiro. Diferentemente da indicação, se ela ganhar o prêmio no Oscar não será surpresa alguma.
21/02/23
Velho e Novo, Staroye i novoye, 1929, Grigoriy Aleksandrov e Sergei Eisenstein
No iutubi aqui
22/02/23
A História de Louisiana, Louisiana Story, 1948, Robert J. Flaherty
No iutubi aqui
Depois de The Land – o filme que marcou o seu regresso à América a seguir ao périplo pelo Pacífico, Europa e Índia – Robert Flaherty esteve vários anos impossibilitado de levar por diante qualquer projecto pessoal. Ainda tentou uma ligação ao serviço de programas de guerra na altura dirigido por Frank Capra, mas, naturalmente, as exigências do seu método revelaram total incompatibilidade com os requisitos de produtividade acelerada que eram apanágio daquele.
Resultado: entre 42 e 45, nenhuma obra realizada e a sensação de que viria a ser muito improvável voltar a obter apoios para filmes de carácter verdadeiramente pessoal e independente. Perante isso, foi com não pouca surpresa que, nesse ano do fim da guerra, uma fonte absolutamente inesperada veio ao seu encontro com um projecto único, promissora de uma liberdade que quase nunca experimentara – a não ser nas filmagens patrocinadas pelos seus apoiantes iniciais, MacKenzie e Revillon, donde saira o seu primeiro filme (Nanook of the North) – e que de certo modo representava o sonho acabado de qualquer cineasta independente.
Tratava-se da companhia americana de petróleos Standard Oil, que lhe sugeria que realizasse um filme inteiramente ao seu critério em que de algum modo figurasse o tema da prospecção petrolífera e segundo cláusulas contratuais que podiam ser consideradas milagrosas: a produção ficaria nas mãos exclusivas do realizador, a companhia financiadora não apareceria sequer no genérico, Flaherty não precisava de submeter à aprovação dela qualquer argumento detalhado, e, finalmente, conservaria os direitos totais de distribuição, recolhendo o produto das vendas e não tendo de devolver qualquer percentagem da verba investida.
Feito o acordo, Flaherty e a equipe instalaram-se na Louisiana – região onde, entretanto, tinha sido concebida a história, a partir da simples visão de um derrick em movimento por entre os pântanos – em Maio de 1946. A narrativa seria de novo centrada na figura de um miúdo, um rapaz que vivia em comunhão plena com o espaço natural e que, findo o confronto com a máquina de prospecção de petróleo, viria a integrá-la nesse mesmo mundo e no universo mágico da sua própria imaginação. Era o prolongamento directo e o ponto culminante de todas as histórias de crianças, com as quais, ao longo de todas as obras anteriores, fizera seu o tema de iniciação (as crianças de Nanook, o adolescente Moana, o Mikelleen de Man of Aran, o Toomai de Elephant Boy). Era também, neste caso específico, e por via de relação privilegiada com a figura do pai do rapaz (com quem, aliás, Flaherty também estabeleceu um processo de identificação, dir-se-ia até ao nível da postura física), uma natural referência autobiográfica, evocando a infância do jovem Robert nas minas e nos acampamentos em que acompanhara o pai, ao longo da fronteira do Norte.
O resultado – sob o nome de Louisiana Story – foi então o último filme de Robert Flaherty, a sua quarta obra autenticamente pessoal e a verdadeira quintessência do seu universo, aí incluindo a transcendência pela profundidade de observação, o olhar panteísta, a visão mágica da infância, a intimidade do discurso (que, como dizia Renoir, nos faz sentir a presença do autor por detrás da cada objecto da natureza), e o próprio sacrifício (toda a história pode ser lida com uma prova sacrificial de transformação do rapaz e da natureza, dando origem a um estádio superior em que a máquina é igualitária e utopicamente integrada).
De tudo isto, salientamos seis aspectos:
- A integração da máquina: Flaherty responde aqui à interrogação e ao voto formulado no final do comentário de The Land sobre o uso positivo da técnica; o derrick atravessa um espaço natural que, por esse motivo, não é violentado; a máquina vem partilhar um momento de alteração mágica da natureza, deixando-a mais rica, e ao mesmo tempo recebe da natureza a poção pacificadora (o sal de Alexander Latour);
- a geração dos seres e das coisas a partir do espaço natural: o miúdo nasce das águas e ciprestes do pântano exactamente do mesmo modo como acontece com o derrick;
- a identificação mútua entre Alexander Latour (Joseph Boudreaux) e os restante habitantes (animais) do pântano: a expressão anímica do miúdo e o jogo repetido dos seus movimentos com o racoon, em prolongamento do que sucedera já com os muito trabalhados planos de Sabu e o elefante na Índia;
- a figura do pai: a postura de Lionel Leblanc – a sua presença e a sua voz, não trabalhadas pelo cinema ou por qualquer estúdio – como o outro lado da força natural destes seres e como extensão óbvia do patriarcalismo de Flaherty;
- a prova sacrificial: o tempo de perturbação telúrica causado pelo acidente com o derrick coincide com a prova que é exigida a Alexander Latour através da luta (de ressonâncias épicas ou mitológicas) com o jacaré e a ausência temporária do racoon; o sacrifício iniciático do rapaz ocupa aqui o papel do sacrifício da tatuagem vivido por Moana e coincide com o (ou é também representado pelo) sacrifício do mundo natural;
- o efeito sinérgico dos vários parâmetros cinematográficos na criação do sopro mágico e panteísta que triunfa logo na sequência da abertura: em certo sentido, esta sequência é, ela própria, a quintessência flahertiana, concentrando todo o universo criador atrás evocado; a voz de Flaherty tem aí um papel absolutamente determinante, não só pelo modo encantatório como faz a sua entrada (“His name is Alexander Napoleon Ulysses Latour...”) mas pelo modo como rompe de forma minimal o silêncio da natureza, parecendo mais vir, afinal, escutá-la, do que, propriamente, perturbá-la.
A beleza e a magia de Louisiana Story terminam e resumem da melhor forma a obra de Robert Flaherty.
24/02/23
A Grande Testemunha, Au hasard Balthazar, 1966, Robert Bresson
Clássico do Dia: 'A Grande Testemunha' constrói grande personagem em um jumento
Por Luiz Carlos Merten, 27/10/2020, O Estado
Robert Bresson foi sempre alvo das mais bizarras comparações. Pauline Kael dizia que, embora algumas pessoas possam achar os filmes de Bresson espantosamente belos, outros acreditam que aguentá-los até o fim seria algo assim como ser açoitado, vendo cada lambada se aproximando. E Jean Tulard, no Dicionário de Cinema, refletia que o ideal de cinema desse grande autor poderia ser uma tela branca e uma voz monocórdica lendo em off O Discurso do Método, de Descartes, dessa maneira destacando duas características essenciais, o minimalismo, verdadeiro ascetismo, e a racionalidade.
Em 40 anos de carreira – morreu em 1999, mas o último filme, O Dinheiro, é de 1983 –, Bresson fez apenas 13 filmes. Entre o segundo e o terceiro, passaram-se seis anos, até o quarto mais seis, e entre Le Diable Probablement e L'Argent, ainda seis anos. Esses longos hiatos dão conta do ritmo de trabalho do autor, não propriamente da dificuldade de produção, mas da necessidade de reflexão que ele tinha. Bresson fez filmes que pertencem à história – Je Journal d'Un Curé de Campagne, Um Condenado à Morte Escapou, Pickpocket, Mouchette (que ganhou no Brasil o subtítulo sensacionalista de A Virgem Possuída). Esse último é de 1967, e no ano anterior – foi a única vez em que ele emendou dois filmes em anos consecutivos –, Bresson fez simplesmente o que talvez seja o maior de todos. Seu clássico dos clássicos – Au Hazard, Balthazar. No Brasil, A Grande Testemunha.
Dez anos antes, o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Sua extensa obra poética inclui uma obra-prima de poesia em prosa, Platero e Eu, cuja primeira edição, reduzida, é de 1914 e a completa, de 1917. Platero é um burrinho de campanha que o narrador – Juan Ramón – adota não apenas como companheiro de aventuras, mas de uma maneira muito simples – muy sencilla, como dizem os espanhóis – também escolhe para ser o filtro, vendo o mundo, a rotina da aldeia, pelos olhos dele. O Balthazar de Bresson é um jumento, e o autor também escolhe ver o mundo pelos seus grandes olhos tristes. Em paralelo com a odisseia de Balthazar – melhor seria dizer, sua via-crúcis –, Bresson cria a garota, Marie.
Logo no começo, numa cidadezinha francesa próxima à fronteira da Suíça, um casal de crianças, Jacques e Marie, batiza o jumento que acaba de nascer como Balthazar. A família de Jacques muda-se e o pai de Marie assume o encargo da fazenda, e do animal. Balthazar cresce e passa a carregar peso. Jacques, de volta, declara-se a Marie, mas ela ama Gérard, que não vale nada – e maltrata Balthazar. O burro passa de mão em mão – vira propriedade de um sujeito que vive na rua, que o vende a um circo, que o devolve ao vagabundo. Já velho e doente, Balthazar volta à fazenda, Gérard violenta Marie e usa o jumento para transportar contrabando. Num confronto com a polícia de fronteira, Balthazar é atingido e agoniza no campo em que pasta um rebanho de ovelhas.
Cordeiro de Deus
Impossível não pensar em Balthazar (e Marie) como representações do sofrimento humano. O próprio Cristo? Jansenista da mise-en-scène – o teórico André Bazin aplicou a definição a William Wyler, mas ela é perfeita para definir o estilo de Bresson. Os jansenistas acreditavam na graça e na predestinação e o acaso (hazard) se faz presente na trajetória de Balthazar desde o título original do filme. O jumento é o fio condutor dessa verdadeira viagem pela diversidade da condição humana, e para Bresson carregamos todos a chaga do pecado original. Ecos de Georges Bernanos e Fiodor Dostoievski, que ele adaptou (nunca com fidelidade à letra dos romances). Cobiça, avareza, luxúria – Balthazar, e Marie, vivenciam toda a patologia da experiência humana. Como diretor, Bresson perseguia o que chamava de 'imagens puras', que pudessem se transformar em contato com outras imagens, e com sons. “Para mim”, dizia, “o cinema é uma arte autônoma que se faz de ligações – de imagens com imagens, de imagens com sons, de sons com outros sons.”
A violência sexual contra Marie é exemplo disso. Ruídos, câmera parada, Bresson foge de uma regra fundamental da indústria, o movimento. Não por acaso, uma das palavras para filme, em inglês, é movie, da mesma forma que filmar é shoot, que também quer dizer tiro. Em busca da desdramatização, Bresson preferia os atores naturais, embora, pontualmente, tenha recorrido a profissionais. O acaso – a predestinação? – fez com que Jean-Luc Godard visitasse o set de A Grande Testemunha, onde conheceu a atriz que fazia Marie. Anne Wyazemsky virou sua mulher na fase de radicalização política de A Chinesa, de 1967. Mais tarde, Anne tornou-se escritora e está na origem do livro que inspirou Formidável, de Michel Hazanavicius, sobre sua ligação com Godard durante o célebre Maio de 68.
No livro Watching Them Be, da Faber and Faber, James Harvey analisa a busca da graça por grandes diretores, a partir da maneira como buscam a transcendência por meio da carnalidade de seus atores e atrizes. O livro tem um subtítulo – Star Presence on the Screen, from Garbo to Balthazar – que entrega tudo. Balthazar é um dos grandes personagens do cinema. Dentro desse sortilégio que Bresson lograva criar, ligando imagens e imagens, imagens e sons, sons e sons, o desfecho, naquele campo, a solidão pungente do jumento, ao som de Schubert, é um momento de antologia. Harvey não deixa por menos. No livro de 2014, considera A Grande Testemunha o maior de todos os filmes a que assistiu. Cada um terá seu favorito, que poderá até ser outro, mas Balthazar, com certeza, é um desses grandes.
25/02/23
Unicórnio, 2017, Eduardo Nunes
Roteiristas
Hilda Hilst (short stories "O Unicórnio" and "Matamoros") Eduardo Nunes(adaptation)
Filme brasileiro na Netflix vai moer seu cérebro e desafiar sua imaginação
POR FER KALAOUN EM FILMES, 22/02/2023
O fio condutor de “Unicórnio” é um diálogo entre pai e filha em um lugar misterioso para os espectadores. Eles estão sentados em um banco de concreto em um lugar cercado por muros. Possivelmente uma prisão ou um hospício. Baseado em dois contos de Hilda Hilst, “Unicórnio” e “Matamoros”, e adaptados para as telas pelo roteirista e diretor Eduardo Nunes, o filme viaja por belas imagens através da memória de Maria (Bárbara Luz). Lento e com vários espaços vagos entre os diálogos, tornando o filme silencioso e contemplativo, as paisagens bucólicas parecem abstrações pela fotografia onírica de Mauro Pinheiro Jr.
A trilha sonora abusa de sons naturais e rudimentares, transformando os tilintares de sinos e agudos de instrumentos de sopro em notas de suspense, já que algo está acontecendo e não sabemos ao certo o que é. No enredo, Maria conhece um criador de cabras (Lee Taylor) que se aproxima de sua casa, em um lugar remoto, por causa do poço de água. Ele não aparenta ser agressivo, mas a mãe da adolescente (Patricia Pillar) o trata com desconfiança, à princípio. Depois, a presença do desconhecido se torna motivo para sorrisos, suspiros, insônia e sumiços.
Ainda sobre a fotografia de Pinheiro Jr., há um desequilíbrio proposital na exposição das imagens, já que alguns momentos as cenas estão muito claras e, em outros, muito escuras, indicando o pouco uso de iluminação artificial. Ele brinca também com o chiaroscuro, a luz e as sombras na tela, para indicar a ambivalência do ser humano.
Apesar de filmado em Petrópolis, há um mistério sobre quando e onde a história se passa. É como se em outra época, em outro país. Como os diálogos são escassos e aparentemente desconexos, a história se desenrola mais pelos olhares. É como se eles falassem pelos personagens, quando vagueiam pelo ambiente, quando olham com desconfiança um para o outro, quando parecem culpados. Os olhos são tão importantes para Eduardo Nunes, que há muitos closes neles. Na verdade, embora o espaço ao redor da casa de Maria seja bem amplo, um campo aberto, a maioria dos quadros são mais fechados, selecionando o que espectador vê.
“Unicórnio” é muito subjetivo e deixa para o público interpretar as intenções de suas personagens. Também se aproveita de metáforas para desenhar o amadurecimento de Maria, ora rasgando o ‘fruto proibido’, porque segundo ela é venenoso, de sua árvore de estimação, para remeter ao despertar da sexualidade; ora dando adeus a um unicórnio, como despedida do lúdico, da infância.
O filme de Eduardo Nunes é exotérico, misterioso, místico, contemplativo e subjetivo. Todos esses adjetivos podem ser usados para definir a obra do cineasta, que não se preocupa em enquadrar seu produto em gostos, gêneros e mercados. Nunes faz com a alma. Poderia ser mais curto que suas mais de duas horas de duração, mas, novamente, o cineasta não se preocupa em facilitar nada para o espectador. É um desafio de paciência, de imaginação e de intelecto. É preciso dar para as cenas seu tempo, dar para a história seu compasso.
Por Luiz Carlos Merten e Luiz Zanin Oricchio, 16/08/2018
A escritora Hilda Hilst (1930-2004) esteve no foco da mídia ao ser a homenageada da Flip (Festa Literária de Paraty) deste ano. Um dos eventos foi a apresentação de Unicórnio, adaptação para o cinema de um dos primeiros relatos de Hilda em prosa, presente no livro Fluxo-Floema. Não haveria diretor mais adequado para fazê-lo. Eduardo Nunes (de Sudoeste) é um cineasta que aposta mais na construção de climas e sensações do que em linhas narrativas retas e sem ambiguidades. Fez um filme belíssimo, cheio de alusões e elipses. Para cinéfilos de fino trato. / L.Z.O.
NB: Eduardo Nunes deve ser fan de Bela Tar : Cavalo de Turim e O tango de Satâ, Filmes parte 15
27. O Cavalo de Turin (A torinói ló), 2011, Bela Tar
28. O Tango de Satã (Sátántangó), 1994, Bela Tarr
26/02/23
A Baleia, The Whale, 2022, Darren Aronofsky
A Baleia: As pessoas são incríveis
Com a webcam desligada, um professor ensina alunos como escrever um bom ensaio. A imagem que os estudantes possuem de Charlie (Brendan Fraser) é apenas um quadrado preto na tela, uma voz sem rosto. Para a filha Ellie (Sadie Sink), o pai é uma memória, afinal ela nunca se esquece de nada. A direção de Darren Aronofsky, diretor de “O Lutador” (2009), propõe com uma frontalidade pungente a rotina monótona e quase torturante do protagonista. Dessa forma, para muitos pode parecer que o que o cineasta faz em “A Baleia” seja um simples exercício sádico, um desrespeito às pessoas obesas ou um melodrama barato. Para mim, não é nada disso. Apesar de conseguir entender vários argumentos que contribuem para essas diferentes visões, Aronofsky busca (ou tenta) refletir sobre humanidade.
O cineasta possui em sua filmografia um histórico de obras que causam o desconforto. Em “Réquiem para um Sonho” (2000), longa que projetou sua carreira, o diretor dosou o choque no conteúdo e na forma. No primeiro caso, pela temática de dependência química e degradação moral. Já no segundo, por meio da fragmentação da montagem, em uma técnica que ficou conhecida como hip hop montage. O último filme, “Mãe!” (2017), por meio do fluxo e descontrole, convida o espectador ao sentimento de ansiedade a todo momento. Em “A Baleia“, por sua vez, a grande sensação enervante causada por Aronofsky é a claustrofobia. O formato de tela (ou razão de aspecto) é um 4:3 que comprime ainda mais o personagem em sua reclusão. Junto disso, o sentimento é reforçado constantemente pela unicidade cênica. O filme se passa em um só cenário, a casa de Charlie, em certos momentos isso remete até mesmo à teatralidade.
A obra-base do longa é a peça homônima escrita por Samuel D. Hunter, o qual assina o roteiro. Assim, é perceptível a dificuldade de Aronofsky em se desprender de aspectos teatrais para um uso potente e significativo da linguagem cinematográfica. A obra, portanto, sofre com a transposição de mídias. A câmera quase sempre se repousa atrás do sofá onde a vida de Charlie acontece, quando se move são discretas panorâmicas que acompanham o movimento ora da enfermeira Liz (Hong Chau), ora da filha Ellie. Se por um lado o caráter quase teatral e pouco cinematográfico gera, por vezes, a sensação de monotonia e clausura, pelo outro, preserva um aspecto clássico propício para o desenvolvimento melodramático da trama.
Entretanto, o desconforto provocado pelo diretor não se restringe à claustrofobia e ao espaço cênico único. A própria imagem de Charlie busca deixar o público desconfortável. A obesidade mórbida do personagem representa para ele uma vulnerabilidade extrema. Rir pode fazer com que ele sufoque, o ato de comer também. O esforço físico de um orgasmo ou de simplesmente se levantar ocasiona pontadas no coração, aceleram a pressão e o deixam bem próximo de um desfecho fatal. Talvez estes sejam os momentos em que Aronofsky mais pesa a mão e espetaculariza a doença do personagem. Existe uma carga sensacionalista e quase apelativa (a depender do espectador, será totalmente apelativa) na rotina de Charlie. De certa forma, o diretor faz da doença um aspecto monstruoso. O exagero prostético no personagem reforça essa ideia. Além disso, ao filmar em contra-plongée (de baixo para cima) o professor, é um contraste entre o peso de Charlie e a fragilidade da enfermeira. Quando um close do rosto mostra o suor na tentativa de levantar, a direção beira o desrespeitoso, a busca pelo choque através dificuldade motora e física do personagem.
A dicotomia entre imagem-conteúdo surge na personalidade do protagonista. A câmera que o filma como um ser anormal realiza um embate com o texto que comprova o quanto Charlie é incrível. Naturalmente, a obra suscitou debates acerca de desumanização, exploração da dor de milhões de pessoas que compartilham da mesma condição que o personagem, ou do teor apelativo do longa. No entanto, “A Baleia” é um filme sobre a humanidade, no caso, o sentido de benevolência e compaixão perante os demais. Charlie possui todas as razões do mundo para ser um misantropo, porém não o é. Ele é amável, dedicado, culto e esperançoso, apesar das adversidades. Assim, o otimismo divide espaço com a constante busca pela salvação. Um missionário (Ty Simpkins) visita e promete a vida eterna ao professor. Para ele, por outro lado, a salvação não advém do cristianismo, pelo qual ele nutre traumas em relação à perda do companheiro. A salvação de Charlie é humana, é a reconciliação com a filha, um futuro melhor para quem ele ama, mas não esteve presente.
O longa é pautado nas relações pessoais de Charlie, em razão disso, as atuações são parte determinante da obra. Brendan Fraser possui uma performance potente que transita do dócil ao desesperador. A positividade que Fraser emana na performance é cativante e facilmente emociona o espectador (ele pede desculpas sem precisar, fica quase sempre em um estado de passividade diante dos outros), sobretudo em razão da divergência entre sua índole e a crueldade apática adolescente de sua filha, ou da personalidade realista-incisiva da sua enfermeira. O elenco de apoio contribui para tal efeito. Sadie Sink consegue ser cruel e interesseira, causando um distanciamento intencional com o público, e Hong Chau mostra que a franqueza e realismo são para a salvação física de Charlie. Quando a trilha sonora sobe, as performances tendem ao exagero, e o caráter melodramático, já evidente, procura tirar lágrimas do espectador.
“A Baleia” é divisivo porque se contradiz. O sensacionalismo de Aronofsky que degrada a imagem de Charlie (o banquete autodestrutivo e as indigestas cenas da compulsão alimentar) contrasta com os dramas e a humanização do personagem. É perceptível o quanto ele é diferente dos demais, bondoso e preocupado (até mesmo com as menores formas de vida). Logo, a performance de Brendan Fraser também se destaca, até quem desgostou do filme aprecia o excelente trabalho do ator, o qual garantiu a ele sua primeira indicação ao Oscar. Mesmo com problemas no tratamento do personagem, como o exagero que pende ao desrespeitoso, quando se analisa o macro, a obra consegue dar mais destaque ao aspecto humano de superação e redenção de Charlie. A salvação surge com uma luz divina ao fundo, o texto de Moby Dick lido quase como um mantra é colocado em foco e seu peso emocional é revelado, e os passos permitem o verdadeiro encontro entre pai e filha.
27/02/23
Pi, 1998, Darren Aronofsky
Darren Aronofsky em plena genialidade
Levi Merenciano, 26 de Dezembro de 2020
Pi (1998) é “Darren Aronofsky na veia”, ou seja, em sua melhor forma e, sobretudo, com pouco dinheiro. Orçado em 60 mil dólares e com lucros acima de 3 milhões de dólares, “Pi” é uma produção de thriller psicológico. Com pouco recurso e muita técnica de montagem, Aronofsky encanta com o mesmo estilo que influenciaria o seu maior clássico seguinte, “Requiem para um sonho” (2000), em cortes rápidos e linguagem de videoclipe que marcam a rotina dos personagens na trama.
No caso de Requiem, os cortes rápidos e cíclicos marcam o uso de heroína, em PI, marcam os momentos que Max se vale diariamente de barbitúricos. Esses signos marcam o ciclo de loucura dos personagens ao mesmo tempo que transformam a narrativa enquanto o plot evolui para finais marcantes.
Em “Pi”, é Sean Gullette quem interpreta Max Cohen, um gênio que busca um modelo matemático que preveja o futuro (especialmente da Bolsa de Valores) a partir da combinação do Pi, com a sequência Fibonacci e a Cabala judaica. Em suma, é a partir desse caldeirão de Arquimedes, Fibonacci e a Geometria Sagrada do Retângulo Áureo que essa supermente irá mergulhar em uma obsessão do início ao fim.
Na trama, o segredo da sequência completa do PI, dentro do computador de Cohen, o fará ser alvo até mesmo de interesse do serviço secreto americano e de uma seita hassídica judaica que pregava o segredo do Pi como forma de poder para prever o futuro.
Pi é irracional mesmo?
Max Cohen é influenciado pelo seu mentor e ex-professor, interpretado pelo grande Mark Margolis (ele mesmo, o Salamanca de Breaking Bad), a observar as leis da natureza e a dimensão circular e infinita presente nas folhas e nas conchas do mar. Ele busca desvendar um padrão matemático (ou uma constante) para o número Pi, ou seja, uma racionalização plena a partir de um número irracional, o qual produz uma sequência infinita de números após a vírgula.
A partir do momento em que o supercomputador de Max encontra esse padrão finito, a máquina toma consciência de si mesma e, entre aspas, morre. Ao queimar seu processador na incrível tarefa de encontrar esse padrão, Cohen passa a viver entre a paranoia da loucura e um embate com forças locais, como os investigadores de Wall Street, que pretendem financiar um novo processador para que ele encontre padrões na bolsa de valores.
Com ajuda de uma seita hassídica, Max consegue cruzar o valor do Pi com os números Fibonacci, desvendando que o círculo é a forma universal perfeita: uma constante no PI capaz de prever até mesmo as flutuações da bolsa de valores.
Entre uma obsessão matemática e uma solução para os males da humanidade
No decorrer do filme, vemos que signos como o “conhecimento matemático” ou a “crença na Cabala” são figurativizados em outras formas, como poder e controle da bolsa de valores, de forma que esse poder investido dá a força suprema de controlar o capitalismo reinante. Na mesma direção em que o poder do controle da previsão do câmbio financeira surge, a loucura é outro signo que acompanha a mente atormentada de Max, pois a insanidade é inserida na trama, em torno da paranoia e da teoria conspiratória que aparecem na relação entre Cohen (não sabemos se real ou imaginária) e os interesses maiores de Wall Street.
Recheado de referências à mitologia e a história da matemática (mito de Dédalo, Arquimedes, Euclides, Geometria Sagrada, Cabala), com elementos de paranoia e thriller de suspense, “Pi” é a primeira produção de Aronofsky a ter boa repercussão da crítica e a receber prêmio de melhor filme do Festival de Sundance, entre outras premiações em 1998. Após esses mais de vinte anos, vemos que o filme não envelheceu mal, seja pela temática de teoria da conspiração (mais a boa e velha matemática clássica), seja pela direção criativa. Sobre esse aspecto, não é preciso dizer que Darren Aronofsky consegue, de fato, tirar “leite de pedra”.
Aronofsky, um gênio da matemática financeira
Orçado em incríveis US$ 60.000 dólares (sim, 60 mil doletas), o filme “Pi” conseguiu arrecadar mais de $3.000.000. Podem achar pouco, mas, em virtude de ser um filme experimental, faturou bastante. Digo experimental, porque a própria característica de filmagem, em preto e branco, sobretudo em alto contraste, foi uma escolha corajosa do diretor (além dos parentes que atuaram no filme).
Mais do que os efeitos de saturação e contraste, claramente presentes no filme todo, o que me encanta em Aronofsky é que podemos esperar sempre uma montagem criativa, com poucos recursos, no entanto, com ponto de vista também subjetivo que nos faz entrar na cabeça do protagonista Max (acrescido de uma trilhada sonora ora de atmosfera, com efeitos de baixo, ora com um Trap acelerado). Por exemplo, a montagem em looping presente em Requiem para um sonho (quando os personagens se drogam), já estava presente em “Pi” quando Max entra no modo loucura, a tomar remédios frente ao espelho do banheiro, a fim de ativar o modo paranoia, imaginando até uma furadeira enfiando na sua cabeça.
Em suma, o filme organiza muito bem os signos que dizem respeito à padronização do universo e um possível poder matemático que prevê exatamente como as coisas podem ser a partir de um padrão exato, como a espiral de Fibonacci, que pode ser encontrada inclusive na natureza, como nas folhas, frutos e nos caracóis dos oceanos. Ao final, concluímos que o PI é um paradoxo: é um número irracional construindo uma racionalidade suprema.
Pi (1998) Official Trailer #1 - Darren Aronofsky Movie HD
Levi Merenciano
Se eu fosse 10% do Ryan Gosling, tava bom! Levi Henrique Merenciano é linguista e semioticista, aficionado por cinema e games. É dono do canal Cinessemiótica, página especializada em indicação de filmes cults, documentários e lançamentos.
28/02/23
Mãe!, Mother!, 2017, Darren Aronofsky
mãe! mother! Pablo Villaça
Parte 1: O Significante
mãe! (assim mesmo, com minúscula) é um filme desagradável. Frequentemente angustiante e sombrio, este novo trabalho de Darren Aronofsky tem um primeiro ato que inquieta, um segundo que incomoda e um terceiro que chega próximo do insuportável.
A propósito: estou elogiando a obra.
Um equívoco comum é o de achar que, para ser bom, um filme tem que ser “agradável”, “divertido” ou mesmo funcionar como entretenimento. Pois algumas das minhas memórias mais marcantes em uma sala de projeção envolveram obras que me deixaram tão mal que estou certo de que jamais as verei novamente, por mais que as admire: O Quarto do Filho, Amor e Ônibus 174, por exemplo. Como toda experiência, o Cinema pode usar a dor para se comunicar – e mãe! é um filme que arde continuamente até se abrir numa ferida cheia de pus. Se você não gostou desta frase, espere até ver o longa.
Outra lição importante que mãe! reforça é a de que há uma diferença inegável entre o que um filme é e o que significa, o que permite que você o aprecie como narrativa sem necessariamente compreender o que esta expressou. Pois o que mãe! é fica claro logo em seus primeiros minutos: um exemplar do gênero “horror”. Isto se torna patente através da maneira como Aronofsky abre a projeção, que salta rapidamente entre uma mulher em chamas, um diamante que parece ressuscitar um casarão e uma mulher acordando sozinha em sua cama e percorrendo vários aposentos escuros em busca do marido enquanto estalos na madeira sugerem presenças ocultas nas sombras. Vivida por Jennifer Lawrence, a protagonista (que os créditos identificam apenas como “Mãe”) reside em uma casa isolada com o poeta interpretado por Javier Bardem (identificado como “Ele”), que enfrenta um bloqueio criativo desde que seu antigo lar foi destruído em um incêndio. Certa noite, porém, eles recebem a visita inesperada do Homem (Harris), um médico que parece ter ido parar ali por acaso e que logo chama também sua esposa, a Mulher encarnada com intensidade alarmante por Michelle Pfeiffer. A partir daí, as coisas se tornam cada vez mais perturbadoras, trazendo ecos de O Bebê de Rosemary, O Anjo Exterminador e, em seu clímax, de uma mistura surpreendente entre A Noite dos Mortos-Vivos e Filhos da Esperança.
Claustrofóbico desde a primeira aparição da personagem-título, mãe! é rodado por Aronofsky e pelo diretor de fotografia Matthew Libatique com uma preponderância de quadros fechados que, tornando-se ainda mais sufocantes graças ao contraste entre os interiores escuros e a luz externa superexposta que entrevemos pelas janelas, nos deixam sempre próximos à personagem, que seguimos de perto em planos criados com o uso de uma steadicam que, por vezes, não se contenta em permanecer nas costas da atriz, girando ao seu redor como se obcecada em testar nossa capacidade de acompanhar aquela mulher. Além disso, quando vemos a Mãe à distância, ela surge frequentemente emoldurada por batentes de portas que parecem oprimi-la ainda mais, salientando também sua solidão. Enquanto isso, o design de produção de Philip Messina concebe a casa que abriga toda a narrativa em uma construção com ecos vitorianos (olha o “horror” aí novamente) que, situada no meio de uma clareira verde cercada por uma densa floresta, não conta com qualquer estrada ou caminho saindo de sua varanda de madeira, que já se abre diretamente para uma relva alta que parece intocada por pés humanos.
Neste sentido, vale apontar, é fascinante perceber como mesmo quando vemos a Mãe nesta varanda, a impressão é a de que segue aprisionada, já que as composições e lentes empregadas por Libatique parecem transformar a floresta em um paredão intransponível diante dela. Da mesma forma, o belíssimo design de som cria contrastes fabulosos entre o silêncio e o tumulto que pontualmente toma conta do lugar – e, com isso, a quietude que no início nos perturbava aos poucos passa a ser desejada pelo espectador em busca de um alívio do caos que os ruídos passam a representar. Assim, de um modo ou de outro, a sensação constante que experimentamos é a de que algo muito ruim está acontecendo ou prestes a acontecer, mesmo que não possamos identificar exatamente que “algo” seria este – um efeito alcançado também pelo excelente Império dos Sonhos, de David Lynch.
O isolamento da protagonista, claro, é o principal motor dramático do longa, sendo ressaltado não só através da fotografia e do som, mas também da postura de seu marido na maior parte do tempo: frequentemente tomando decisões sem consultá-la e compartilhando momentos que deveriam ser só seus (notem sua frustração ao perceber que ele já havia falado com sua editora), Ele parece estar sempre deixando a esposa sozinha (“Volto já” se torna quase um bordão), exibindo um egoísmo que pode ser percebido até mesmo em sua incapacidade de escrever e que seu narcisismo converte em uma perda para toda a humanidade – e Bardem é hábil ao não transformá-lo em um vilão, levando a mulher (e o espectador) a sentir alívio sempre que retorna, mesmo que já saibamos que provavelmente se afastará novamente. Jennifer Lawrence, por sua vez, evoca a confusão, a tristeza e a devoção da Mãe com energia, sendo particularmente eficiente ao transmitir a frustração crescente da personagem diante da invasão de seu lar e da perda de seu controle sobre este. Para completar, se Pfeiffer acaba se destacando pelo veneno constante de seus modos, Ed Harris traz uma vulnerabilidade tematicamente importante para o papel (discutirei isso na segunda parte do texto), ao passo que os irmãos Brian e Domhnall Gleeson protagonizam uma cena breve, mas fundamental na projeção (aliás, é incrível como Domhnall parece incapaz de fazer um filme ruim).
Mas o que mais encanta nestas performances é o fato de conseguirem se tornar distintas, particulares, sem jamais perderem a capacidade de seguir como o que foram feitas para ser: símbolos. Afinal, cada uma daquelas pessoas (ou “pessoas”) é, essência, um conceito abstrato, não um indivíduo.
Não que reconhecer o que representam seja necessário para apreciar a força narrativa do filme.
Parte 2: O Significado
O processo criativo é doloroso. Como explicou Thomas Mann, por exemplo, “o escritor é um indivíduo para o qual a escrita é mais dolorosa do que para as outras pessoas”. Já Frank Norris, numa frase frequentemente (e incorretamente) atribuída a Dorothy Parker, observou que “odiava escrever, mas amava ter escrito”. Particularmente, considero o ato da criação uma versão mais sádica do mito de Sísifo, já que, em vez de se frustrar ao ver a pedra de mármore rolar morro abaixo quando quase chegava no topo, o escritor experimenta esta frustração antes, durante e depois de alcançar o cume. Afinal, há sempre algo a expressar e a insegurança de não ter a capacidade de fazê-lo – ou de tê-lo feito - apropriadamente.
Pois mãe! é um filme sobre o processo de Criação e da Criação – o artístico e o divino. Identificado apenas como “Ele”, o poeta interpretado por Javier Bardem é ao mesmo tempo signo do Artista e de Deus; sua obra, signo da Arte e do Universo. Não é coincidência que, ao ser questionado pela personagem de Jennifer Lawrence sobre quem é, Ele responde “Eu sou o que sou”, repetindo a resposta de Deus a Moisés em Exodus – e aqui é bom lembrar que Darren Aronofsky dirigiu também Noé, que não só lidava com um Criador frio e impiedoso como o de Bardem, mas também recontava a morte de Abel nas mãos do irmão (o paralelo com os personagens vividos pelos irmãos Gleeson é óbvio, valendo também observar como Ed Harris e Michelle Pfeiffer acabam representando Adão e Eva/Lilith). Aliás, até mesmo o destrutivo fundamentalismo religioso discutido em Noé encontra reflexo aqui na postura dos fãs/seguidores do poeta, estabelecendo um eco temático curioso com o trabalho anterior do cineasta.
Por sinal, mãe! também ecoa Cisne Negro ao retratar o desgaste provocado pela realização artística, diferenciando-se, porém, ao substituir a motivação ameaçadora oferecida pela rivalidade entre as duas bailarinas de Cisne Negro pelo sofrimento altruísta da personagem-título encarnada por Jennifer Lawrence (aliás, é curioso que mãe! tenha estreado no Brasil na mesma semana que o fantástico brasileiro Pendular, que lida com temas similares). Refletindo a dualidade Artista/Deus de Bardem ao tornar-se simultaneamente Musa e (Mãe) Natureza, a esposa representada por Lawrence reconstrói, ampara, cuida, inspira, sofre e se martiriza pela Obra do marido, revelando aos poucos ser mais do que uma personagem, tornando-se um Símbolo – algo lindamente capturado pelos responsáveis pelo cartaz da produção visto ao lado deste texto e que traz a atriz como uma versão daquelas imagens sagradas presentes em todas as igrejas.
Como símbolo da Musa, claro, a Mãe tem seu trabalho iniciado quando Ele, esvaziado pela concepção de seu último poema, tem seu lar incendiado, sendo importante notar que a mulher carbonizada no início da projeção é diferente daquela do final, já que se tratam de musas distintas – a primeira morrendo após inspirar o artista em sua obra anterior. A casa, claro, é signo do processo do poeta, sendo sua destruição um reflexo do fim de seu ciclo criativo e do vazio deixado após colocar sua alma no papel. Agora “bloqueado” por não ter o que expressar, Ele depende de uma nova Musa (e reparem como a Mãe é constantemente apontada como sua “inspiração”) que reconstrua sua casa/alma e, com isso, sopre nova vida em sua Arte. É apenas natural, assim, que em seus impulsos criativos ele seja observado pela “esposa” e que esta encare o caderno em branco com frustração ao vê-lo sair da sala.
A coesão do design de mãe!, é importante reparar, pode ser constatado até mesmo na caligrafia do título, já que é à mão que Ele deposita (ou tenta depositar) suas ideias no papel. Do mesmo modo, é interessante notar como, ao reconstruir a casa (o arcabouço criativo do poeta), a Mãe permite que as ideias voltem a visitá-la – e uma delas, claro, surge representada por Ed Harris. Percebam, aliás, como este bate à porta no exato momento em que o poeta luta para escrever, levando-o a correr para receber o Homem que traz, consigo, uma história repleta de dor e melodrama que tem o potencial de servir como semente de uma nova obra, despertando novos conceitos na mente do artista (conceitos estes que ganham os rostos de Pfeiffer e dos irmãos Gleeson, que vivem um pequeno melodrama com óbvio potencial narrativo). Aos poucos, porém, algumas destas ideias são descartadas, possivelmente por refletirem conceitos já utilizados pelo escritor (as queimaduras do Homem e da Mulher remetem à obra anterior e ao incêndio resultante), o que não as impede de servirem como adubo para outras – e, de fato, um novo personagem surge mais tarde (o do “sacerdote”) que, embora diferente, tem a voz de Harris.
Enquanto isso, a Mãe/Musa/Natureza de Lawrence carrega o bebê do poeta, que, não à toa, se mexe pela primeira vez no exato instante em que o pai completa seu novo poema, já que ambos são frutos da Criação inspirada pela personagem de Lawrence e gerada pelo de Bardem – e não é coincidência que a criança nasça justamente no escritório dEle, já que é ali que suas obras ganham vida.
No entanto, concluído o processo e com seu resultado entregue ao consumo do público que o devora apenas para exigir mais do criador, torna-se hora de buscar uma nova inspiração, o que condena a Musa à destruição juntamente com a casa que abrigou a concepção da Arte por ela motivada. Afinal, esta é a sina do artista: encontrar uma ideia, excitar-se com esta, desenvolvê-la e conclui-la apenas para ver a satisfação momentânea da Criação ser substituída pela inquietação trazida pela necessidade de ir atrás de algo novo para oferecer ao mundo.
Desta forma, o ciclo se reinicia e Ele, como Sísifo, retorna ao pé da montanha para mais uma escalada repleta de dor e incerteza.
21 de Setembro de 2017
Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
28/02/23
Tungstênio, 2018, Heitor Dhalia
Crítica | Tungstênio, Ramon Prates, 9 de julho de 2018
Tungstênio, novo trabalho do diretor Heitor Dhalia, é uma adaptação do quadrinho de mesmo nome do autor Marcello Quintanilha. A transposição das páginas da HQ para a tela do cinema ficou bastante fiel ao material de origem. O diretor e o elenco conseguiram mostrar muito bem a baianidade de seus personagens com diálogos mais próximos ao sotaque soteropolitano, com suas gírias e características típicas. O filme também explora bem a capital baiana com cenas em locais que apresentam a beleza da cidade, sem utilizar os clichês mais conhecidos de cartão postal, como o Farol da Barra. Esses elementos transformam o longa em algo genuíno, que exploram Salvador de forma eficaz e verossímil.
Na trama o destino de 4 personagens se cruza, apesar de inicialmente não terem nada em comum. Tudo começa quando 2 pescadores utilizam explosivos para pescar, prática que é ilegal. O fato chama a atenção de Ney (José Dumont), um militar aposentado que fica indignado com a situação. Ao seu lado está Cajú (Wesley Guimarães), um jovem que promete ajudar ao entrar em contato com o policial Richard (Fabrício Boliveira), que apesar de estar de folga, resolve ajudar. Fechando o ciclo temos Keila (Samira Carvalho), esposa de Richard, que está pensando em deixar o marido.
O filme apresenta os personagens e a trama de maneira inteligente, através de uma montagem eficiente e dinâmica entre eles. Acompanhamos os acontecimentos de forma paralela, enquanto ocorre alternância entre breves flashbacks e flashforwards que ajudam a estabelecer a linha temporal da narrativa e também a personalidade de cada um dos personagens. Um narrador, voz de Milhem Cortaz, contribui muito bem na apresentação da trama e mantém a fidelidade aos quadrinhos sem ficar a sensação de “muleta narrativa”, algo preguiçoso ou de estar apenas falando que o acontece na tela.
O diretor levou a fidelidade aos quadrinhos muito à sério, principalmente na parte técnica, ao usar os mesmos enquadramentos vistos na HQ. A fotografia é muito eficiente nesse sentido, como ao posicionar a câmera de baixo para cima em relação aos personagens com o intuito de mostrar a “grandiosidade” deles, mas também de explorar o céu e a luminosidade da capital baiana. Em outros momentos o uso de lentes anamórficas distorcem a imagem levemente, como nas cenas de luta, deixando-as levemente parecidas com os traços de Quintanilha.
Na parte sonora, a trilha utiliza o berimbau, instrumento musical conhecido por causa da capoeira, para aumentar a imersão dentro da baianidade da narrativa. A música também ajuda a criar tensão e o senso de urgência da narrativa.
O elenco principal também merece elogios por sua qualidade ao apresentar atuações convincentes e viscerais, além de terem muita química entre si. O principal destaque fica por conta de José Dumont, que mostra em Ney o lado conservador da sociedade, aquele que tem crescido bastante com o louvor a época dos militares, que sente falta do respeito que tinha pelo seu antigo cargo no exército. A surpresa fica por conta de Fabrício Boliveira, que apesar de não ser tão parecido fisicamente com a versão em quadrinhos de Richard, apresenta uma energia e um carisma incrível como o personagem.
Em apenas 80 minutos, o diretor Heitor Dhalia é rápido e direto em criar sua narrativa. Ele constrói muito bem seus personagens e é bastante fiel ao espírito da HQ de Marcello Quintanilha. O filme apresenta uma visão nua e crua de Salvador, sem estereótipos e sem clichês.
01/03/23
Árido Movie, 2005, Lírio Ferreira
No iutubi aqui
Crítica Eduardo Kaneco, 19/07/2018
“Árido Movie” é um filme dirigido com muito estilo em locações no sertão de Pernambuco, em que as tramas paralelas contribuem para a proposta que deseja transmitir.
Jonas (Guilherme Weber) é um apresentador de previsão de tempo na televisão que recebe a notícia de que seu pai, que há muitos anos não vê, foi assassinado. Então, ele viaja de São Paulo, onde vive hoje, para Recife, onde encontra sua mãe (Renata Sorrah) e três amigos – Verinha (Mariana Lima), Bob (Selton Mello) e Falcão (Gustavo Falcão). Da capital de Pernambuco, pega sozinho um ônibus para a pequena cidade de seu pai, no sertão, para presenciar seu enterro.
Os amigos partem depois atrás dele, de carro, para lhe dar apoio moral, apesar de Jonas ter refutado essa ajuda. E, no caminho, Jonas conhece Soledad (Giulia Gam), uma cinegrafista que quer gravar uma entrevista com Meu Velho, um místico da região, e ambos continuam a viagem no carro dela. No destino, a vó de Jonas exige que ele fique para cuidar das propriedades do pai e que se vingue do índio que o matou.
Estilo de direção ousada
O diretor Lírio Ferreira mostra um estilo ousado neste seu segunda longa-metragem de ficção. Fugindo do básico, Ferreira utiliza vários recursos técnicos para colocar o inusitado nas imagens. No prólogo do filme, desfoca as imagens das cenas que envolvem Jonas, que são montadas em paralelo com as do assassinato do pai. Dessa forma, provoca certo suspense até que se possa conhecer o rosto deste que é o personagem principal.
O capricho no visual está estampado na cena em que os três amigos de Jonas conversam dentro do carro e vemos suas faces refletidas em cada um dos espelhos retrovisores do veículo. Câmera lenta, subjetiva, e até mesmo jump cuts (quando os amigos se perdem após visitarem a plantação de maconha e quando Jonas é confrontado pelo capanga do pai) fazem parte do repertório empregado por Lírio Ferreira para que “Árido Movie” ostente um visual caprichado.
Outros recursos
Na narrativa, Ferreira introduz uma sequência que remete aos diálogos sobre banalidades que Quentin Tarantino usa como marca registrada, como o papo sobre o McDonald’s em “Pulp Fiction – Tempo de Violência” (Pulp Fiction, 1994). Em “Árido Movie”, Bob relata detalhadamente qual a melhor técnica para se enrolar um baseado. Essa longa cena não é gratuita, pois ela é um dos primeiros elementos a construir a ideia de que esses três amigos são uns babacas, sempre drogados, e que mais atrapalham do que ajudam Jonas.
Aliás, é recorrente a utilização de tramas paralelas durante todo o filme. Por exemplo, enquanto os três amigos começam a viagem atrás de Jonas, este conhece Soledad. Ao mesmo tempo, a vó dele o aguarda no velório, e a índia que motivou a morte de seu pai está no bar onde trabalha para Zé Elétrico (José Dumont). É uma construção instigante, formada por camadas da estória que são conectadas em alguns pontos da trama. Então, no desenrolar da estória, algumas verdades virão à tona, fechando o ciclo narrativo.
Mas, outras permanecerão em aberto. Essas relações estão vinculadas à crença da estória, verbalizada por Zé Elétrico. Ou seja, de que não somos capazes de ver o que está bem embaixo de nosso nariz, até que alguém o mostre para nós, quando então podemos compreender o que vemos. Enfim, essa é a proposta de “Árido Movie” para o espectador, a quem cabe o desafio de tirar suas conclusões sobre o que assistiu.
Acqua Movie, 2019, Lírio Ferreira
Acqua Mouvie: A submersão de um filme
Por Fabricio Duque
É quase lógico constatar que todo e qualquer filme é uma experiência pessoal de um realizador, ainda que adaptado às convenções sociais, as famosas zonas de conforto do não-ir-tão-longe-assim-pela-invenção. “Acqua Movie”, de Lirio Ferreira (que já imprime uma personificação adjetivada e etérea por causa do nome do próprio diretor), exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2019, após passar pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, apresenta-se como uma viagem metafísica de alguém em busca de algo adormecido tempo demais.
Sim, nossa sociedade (nos incluindo, visto que fazemos parte) temos uma imensa parcela de culpa: a obrigatoriedade da “missão” evolutiva que nos causa uma dormência existencial, assim, matamos felicidades e prazeres (mesmo que simplistas) a fim de compactuar com o equilíbrio da maioria. Que cada vez cega mais o olhar às essências e a seu próximo, destruindo solidariedade e dignidade e colocando no lugar um desenfreado individualismo. Essa é uma das características do cinema de Lírio: mesclar lirismo coloquial com orgânico conceito.
Dessa forma, o espectador embarca em um manancial de crônicas-esquetes de vidas observadas, de tipos típicos, resignados em sua imutabilidade e na maneira de ser-agir. “Acqua Movie” é um portal tridimensional às tóxicas entranhas sem leis do interior dominado por modernos “reis”, que mandam e desmandam vulneráveis a deus dará. O longa-metragem busca uma imersão distanciada pela encenação de um teatro mais improvisado, quase primitivo, intensificado pela câmera que capta as profundezas do solo. Há assim uma descontinuidade da percepção, que fragmenta a narrativa ao ampliar um que de digressão-epifania (só que sem atemporalidade e tampouco suspensão da modernidade).
“Acqua Movie”, com roteiro de Lírio Ferreira junto com Marcelo Gomes e Paulo Caldas, nos estimula a mergulhar em uma ancestralidade perdida, de inocência ultrapassada e de incompatibilidade com a contemporaneidade, tudo pelas imagens sensoriais e em transe que “filmam o invisível”. É um cinema com estilo mais direto, menos sentimental e mais sensivelmente crítico a não permissão de se entrar no mar de Recife por causa dos ataques dos tubarões. Aqui, a pré-adolescente “Surfista Prateado” usa óculos 3D para sentir estar nos “tubos cavernosos” da água. Há um que de “Fim de Festa”, de Hilton Lacerda, e também de “Piedade”, de Cláudio Assis. Talvez porque todos bebam e se retroalimentem das mesmas ideias, das mesmas questões inquietantes e dos mesmos “sonhos fragmentados”. Os movimentos da câmera são arquitetados e metafóricos à conclusão de que “São Paulo também não tem mar”.
O longa-metragem é também um documento simbólico, especialmente por suas frases. “Aquele que escreve também é aquele que é escrito”, diz-se uma delas. Quanto mais adentramos na história, mais percebemos uma necessidade quase urgente de libertar o próprio tempo e as missões condicionadas e impostas do dia-a-dia. Como “ninguém deixa o tempo do luto”, a pressa-volta de retomar projetos na Amazônia e a “obrigação” de ter que “recuperar” o filho, traduzido por sofridos cortes rápidos da edição e câmeras espreitadas. Isso faz com que os discursos-diálogos fiquem mais forçados, mais artificiais e mais anti-naturalistas. Vivenciamos quase uma subjetividade amadora e falsa, esta embasada no objetivo de libertar a própria ideia de liberdade.
Durante esta experiência road-movie, Lírio é mais lírico quando cria vidas em suspensão. Há também uma crítica muito mais pululante e insurgente: a de se viver no interior, em que “nesse lugar, a água é sua melhor amiga”. Primeiro pela falta, depois pela qualidade. “Deus é mais” do caminhão resume a condução do caminho. Entre o hotel futurista e a buchada de bode, reverbera-se a dicotomia. Uma contradição de projeção, realidade, veracidade e hipocrisia. E como dizia Legião Urbana, “mentir para si mesmo é a pior mentira”.
“Acqua Movie” é um dispositivo contra o pré-conceito e/ou tudo aquilo que foi massificado por anos à fio. Ensina-se aqui a olhar um índio e não o segmentá-lo “na sus própria aldeia”. Outros portais surreais e estranhos são abertos ao espectador, fazendo com que estes seres exóticos “sobrevivam à lucidez”. É uma análise antropológica de comportamento humano-cognitivo, elencando-se como um estudo pela Metafísica de Aristóteles.
Sim, não é fácil dosar simplicidade sem cair nas graças da ingenuidade, e, por sua vez gatilhos comuns narrativos (ainda que apresentados como transgressores e de vida orgânica): o prefeito de nome Cícero; a maconha, a cocaína na Bíblia, os discursos de efeito, a inclusão social da manifestação dos indígenas, tudo é explicado, didático e com uma pitada de histeria. Pois é, a necessidade de se forçar o ser acaba causando resultado exagerado. A máxima já explica: “menos é sempre mais”.
Há ainda mais um portal que se abre: o do simbolismo do fim do mundo e de sua cidade mítica Atlantis, que aqui ganha viagem cinematográfica à moda do início do filme “Titanic”, de James Cameron. Os papos continuam vindo do nada, quase sem sentido, soando um simplismo que incomoda (principalmente pelas interpretações mais aceleradas e taquicardiacas), apesar da poesia da imagem, que por si só já constrói o cenário perfeito. Aqui, o silêncio ganha mais força. E o tempo expande-se em alumbramento, com seus rituais de purificação do espírito. Uma das frases finais do filme diz que “tem cenas que a gente não sabe explicar, mas tem que fazer”. Talvez esta seja o encerramento preciso desta crítica: um filme que se desenvolve sem se explicar e sem buscar explicação.
01/03/23
The Quiet Girl, An Cailín Ciúin, 2022, Colm Bairéad
Crítica | An Cailín Ciúin (The Quiet Girl) [2022]
Iuri Souza 14/12/2022
“Se há segredos numa casa, há vergonha nessa casa.” Eibhlín Cinnsealach
The Quiet Girl segue Cáit (Catherine Clinch), uma jovem menina pertencente a uma família extremamente disfuncional. Com suas três irmãs, mais uma a nascer, é mandada para passar o verão com parentes distantes, Eibhlín Cinnsealach (Carrie Crowley) e Seán Cinnsealach (Andrew Bennett), tendo que se adaptar à nova vida.
Há muitos fatores “extracampo” que tornam essa uma obra indispensável em um ótimo ano para o Cinema. Baseado no livro “Foster”, de Claire Keegan, tornou-se a maior bilheteria da História de um longa irlandês sendo, inclusive, escolhido para representar o país na disputa de Melhor Filme Internacional de 2023.
Com uma narrativa lenta e comedida, The Quiet Girl pode, em um primeiro momento, parecer não fazer jus ao hype supracitado, todavia, é imprescindível não confundir complexidade desnecessária com qualidade. Trata-se, certamente, de uma história simples e direta, contudo, em sua simplicidade consegue trazer camadas interessantes que, outrora, não seriam possíveis.
Aqui temos uma dentre muitas representações de abuso infantil, mas, ao contrário de gritos e exageros – que, é claro, podem ocorrer em eventos do gênero e não os deslegitimam – há a introspecção. O modo como Cáit se retrai em si mesma carrega um quê de realismo que certamente irá reverberar com certas pessoas, ao mesmo tempo em que tocará – e, possivelmente, assustará – outras. Nesse sentido, toda a narrativa e produção contribuem para um conto intimista sobre uma jovem menina que não tem as ferramentas emocionais necessárias para lidar com a sua situação atual.
Sendo o caso, seria impossível não mencionar o belo trabalho técnico feito pelo diretor/roteirista Colm Bairéad na manutenção do ritmo lento da película, sem medo de manter a duração das cenas que, em outras mãos, poderiam se tornar “mais dinâmicas” meramente por capricho. Há um desconforto com o desenrolar da história que é necessário. Ao mesmo tempo, é bom lembrar, também, a contribuição de Kate McCullough, diretora de fotografia, em especial na escolha da proporção de tela 4:3, o que aumenta a sensação de imersão, quase como se fosse um vídeo caseiro. E, ainda, seria relapso não mencionar a atuação de Catherine Clinch que, em que pese a tenra idade – 12 anos à época de publicação deste texto – transmite, com sinceridade, as complexas emoções necessárias à obra.
Dessa forma, a catarse emocional do filme reside não necessariamente na vivência, por parte da audiência, de situações semelhantes – apesar de que a essas pessoas o efeito certamente será mais profundo –, mas sim em uma empatia humana natural. A conexão com uma jovem menina em uma situação tão complexa e de difícil resolução é quase que consequência natural do roteiro e trabalho de produção.
Nesse sentido, The Quiet Girl é o tipo de longa-metragem que atrai, no mínimo, a curiosidade de todos aqueles interessados na sétima arte, em especial considerando o quão diversa e, francamente, interessante, vem sendo a categoria de Melhor Filme Internacional. Pode-se ter alguns problemas com a execução, mas é quase impossível não se sentir ao menos um pouco emocionado com o resultado final.
03/03/23
O Encouraçado Potemkin, Bronenosets Potemkin, 1925, Sergei Eisenstein
No iutubi aqui
Georges Sadoul, Dicionário de filmes, pp. 133 e 134, L&PM, 1993
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