sábado, 11 de fevereiro de 2023

Filmes parte 28

Jeanne Dielman, Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles, 1975, Chantal Akerman

Garotas Selvagens, Wild Things, 1998

Os Panteras Negras, Black Panthers, 1968, Agnès Varda

A Ilha de Bergman, Bergman Island , 2021, Mia Hansen-Løve

Aftersun, 2022, Charlotte Wells

O Pálido Olho Azul, The Pale Blue Eye, 2022, Scott Cooper

A Mulher dos Mortos Totenfrau, Série de TV, 2022, Nicolai Rohde 

Os Sapatinhos Vermelhos, The Red Shoes, 1948, Michael Powell e Emeric Pressburger

Vortex, 2021, Gaspar Noé

O Menu, The Menu, 2022, Mark Mylod

O Velho: A História de Luiz Carlos Prestes, 1997, Toni Venturi

A Queda, Fall, 2022, Scott Mann

Em Busca da Honra, In Pursuit of Honor, Filme para televisão, 1995

Vale do Pecado, The Canyons, 2013,  Paul Schrader

El Diablo, Filme para televisão, 1990, Peter Markle

The English, Minissérie de televisão, 2022, Hugo Blick

Tár, 2022, Todd Field

Coração de Trovão, Thunderheart, 1992, Michael Apted

O Corcunda de Notre Dame, Notre-Dame de Paris, 1956, Jean Delannoy

Triângulo da Tristeza, Triangle of Sadness, 2022, Ruben Östlund

Os últimos Foras-da-Lei, The Last Outlaw, 1993, Geoff Murphy

Onde os Homens São Homens, McCabe & Mrs. Miller, 1971, Robert Altman

Paixão dos Fortes, My Darling Clementine, 1946, John Ford

Babilônia, Babylon, 2022, Damien Chazelle

Marte Um, 2022, Gabriel Martins

Holy Spider, 2022, Ali Abbasi

Rastros de Ódio, The Searchers, 1956, John Ford

Shiva Baby, 2020, Emma Seligman

  

14/12/22
Jeanne Dielman, Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles, 1975, Chantal Akerman

“Jeanne Dielman”: O rigor do trabalho doméstico na forma do filme
Lucas Oliveira·27 de dezembro de 2022

Nunca havia assistido a “Jeanne Dielman” (1975), coprodução franco-belga dirigida pela cineasta Chantal Akerman. Imagino que muitos dos leitores e leitoras que acompanham esta crítica também nunca tenham, ou, pelo menos, nunca tinham visto o longa-metragem até um passado recente. Fato é que sendo escolhido como o maior filme de todos os tempos pela prestigiada Revista Sight & Sound, do British Film Institute  (ocupando o topo de uma lista com outros 99 títulos), a obra com certeza se tornará mais conhecida e, espero eu, mais vista.

Em que pese o absurdo de hierarquizar filmes tão diferentes quanto maravilhosos, a colocação de “Jeanne Dielman” no primeiro lugar da lista britânica desbanca obras canônicas da sétima arte. Ao longo dos 70 anos de existência desta seleção, realizada a cada 10 anos desde 1952, ocuparam a posição: o neorrealista “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica, o marco clássico e moderno “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles, e o perturbador estudo sobre voyeurismo “Um Corpo que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock. Pela primeira vez um filme dirigido por uma mulher é alçado ao posto de maior obra cinematográfica da história.

Mas é possível dizer que “Jeanne Dielman” condensa, de forma imensamente mais radical e realista, alguns dos aspectos que a lista prestigiou ao longo de suas sete décadas. O filme de Akerman carrega consigo a urgência do filme de De Sica, a natureza disruptiva e divisora de águas da obra de Welles, e a confluência entre discurso fílmico e linguagem cinematográfica do longa de Hitchcock. Tudo isso em extensão muito maior, literalmente.

Porém, ao invés de “Um Corpo que Cai”, talvez seja mais interessante olhar “Jeanne Dielman” à luz de outra obra-prima do Mestre do Suspense: “Festim Diabólico” (1948). Ambos os filmes não poderiam ser mais elucidativos acerca dos diversos caminhos radicais que um realizador ou realizadora pode escolher para narrar sua história. Se em seu primeiro filme colorido o diretor inglês resolveu construir uma obra praticamente sem cortes, e, por isso, teve de recorrer a uma montagem interna baseada nos movimentos de câmera, Akerman vai pelo caminho oposto: em seu filme, não há um movimento de câmera sequer, e toda a trajetória da personagem-título é contada a partir de uma profusão de cortes que narram, paulatinamente, seu cotidiano estafante.

Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é uma viúva na casa dos quarenta anos e passa os dias executando as repetitivas e maçantes tarefas domésticas. Com a mesma frequência diária que limpa a casa e prepara a comida para o filho adolescente, Sylvain (Jan Decorte), a dona-de-casa recebe clientes para encontros sexuais que sustentam a vida burguesa dela e do jovem. Entretanto, um acontecimento aparentemente pequeno começa a desencadear uma série de instabilidades na vida de Jeanne, até o final implacável que acompanhamos nos últimos dois planos do filme.

Caso os leitores e leitoras ainda não saibam, é preciso tirar o elefante da sala e dizer que “Jeanne Dielman” tem quase três horas e meia de duração. Algumas pessoas poderiam argumentar, e essa era minha perspectiva há pouco tempo, que o filme não precisaria ser tão longo, pois passada 1 hora de “Jeanne Dielman” eu já havia, supostamente, entendido e sentido a proposta da cineasta ao distender tanto a obra. Não a duração no geral ou a lentidão, meu pequeno “incômodo” com o filme a princípio era que alguns planos pareciam demorar para além de uma dilatação já muito grande. Havia ficado com a impressão de que estava esquentando uma água e já tinha chegado aos 100 °C, mas o fogo continuava aceso, e a água não tinha mais como esquentar; apenas evaporava e se dispersava.

No entanto – e essa é a parte incrível da crítica de cinema e do debate sobre filmes – uma provocação da Kel Gomes, aqui do Cinematório, me ajudou a pensar que isso não é um “defeito”, mas sim uma grande qualidade do filme, qual seja, fazer com que o público sinta essa inclemência de achar que já é suficiente mas ter que continuar. Por exemplo, o plano no qual Jeanne faz um bolo de carne: certamente não há tanto a ser tirado desta ação, em termos dramáticos, mas o plano continua, e continua, e continua, e chega um ponto em que comecei a sentir uma profunda inércia. Este plano certamente poderia ser menor, com efeito similar. Porém, se fizesse isso, a montadora Patricia Canino e a diretora estariam nos poupando de ver e sentir a vida da protagonista em sua completude. Jeanne seguramente está cansada daquela vida, mas ela se vê forçada a seguir, assim como nós também o somos, quase que em solidariedade a ela.

“Jeanne Dielman” é, portanto, uma obra-prima em todos os sentidos que o termo pode compreender. Poucas vezes assisti a um filme no qual o (irretocável) rigor formal estivesse tão em sintonia com a proposição temática do trabalho. Jeanne é uma mulher completamente acossada, despersonalizada e envolvida pela rotina esmagadora que o capitalismo e o patriarcalismo impõem às mulheres. E a perfeita plasticidade com a qual Chantal Akerman e sua equipe majoritariamente feminina expressam essa ideia tornaria a célebre simetria de Stanley Kubrick em “O Iluminado” (1980) uma desordem sem fim.

Todo o filme é apresentado a partir de planos absolutamente estáticos, que acompanham a duração integral das ações mais comezinhas: a limpeza da banheira, a arrumação da cama, o cozimento das batatas, a preparação de um café, a limpeza dos sapatos do filho, e por aí vai. Momentos que jamais entrariam no corte final de filmes como o também crítico “Tudo que o Céu Permite” (1955), de Douglas Sirk, e outros melodramas “de mulheres” das décadas anteriores, mas cuja representação asperamente fidedigna é capaz de ecoar em qualquer um que conhece a dureza do trabalho doméstico. Em “Jeanne Dielman”, a câmera se limita a enquadrar os poucos personagens em planos médios e, em momentos ocasionais, temos planos gerais nas igualmente protocolares saídas de Jeanne para ir ao mercado, ao banco ou ao açougue. Se “Era Uma Vez em Tóquio” (1953), de Yasujiro Ozu, é recorrentemente lembrado por ter um único e sutil movimento de câmera, Chantal Akerman eleva o minimalismo à enésima potência.

O corte, convencionalmente usado para fins de elipse (para cortar “o que não é interessante” ao drama), aqui assume um lugar curioso. Um sem-número de vezes, vemos cortes que apenas dão prosseguimento à ação, quando Jeanne sai de um cômodo e vai para o outro ‒ sempre findando a presença no recinto com o apagar das luzes ‒, executando alguma de suas ações já automatizadas. No entanto, o filme ainda consegue o feito de se construir em torno de uma síntese dramática admirável, já que seguimos, em três horas, três dias. Este talvez seja um dos maiores triunfos da obra, já que Akerman consegue simultaneamente dilatar e compactar o tempo, fazendo-nos sentir, pesadamente, a dureza da vida de uma dona-de-casa. O filme é só isso, assim como a vida de Jeanne.

Mas, certamente, o que mais me impressiona em “Jeanne Dielman” é a construção plástica quase obsessiva da mise en scène que a realizadora mantém, com a ajuda valiosa de sua diretora de fotografia, Babette Mangolte, e de forma bem-sucedida, até o final do tour de force que caracteriza o longa-metragem. Cada frame do filme é cuidadosamente ocupado por diversas linhas retas ou formas geométricas que lembram quadrados ou retângulos e que estão perfeitamente alinhadas ao limite do enquadramento, seja em paralelo ou perpendicularmente. Chantal Akerman incorpora à gramática fílmica, de forma habilidosa, o discurso temático que procura trazer. A vida de Jeanne Dielman e a própria protagonista são tão retos, fechados e imutáveis quanto a composição que a cineasta faz tomar a tela. Jeanne procura tanto alinhar tudo em sua vida que sua obsessão escorre por entre os frames, tornando o filme tão rigorosamente controlado quanto ela própria.

Para além da maestria da diretora, “Jeanne Dielman” funciona muito em função da atuação magistral de Delphine Seyrig. O filme e a personagem estão em perfeita consonância com seu tempo histórico e com o estágio sócio cultural da humanidade nos idos dos anos 1970. O filme tanto pode ser lido à luz da segunda onda feminista, que problematizou o trabalho doméstico, como também se encaixa perfeitamente ao ano de  1975, quando foi declarado pela ONU o Ano Internacional da Mulher, em virtude das diversas mobilizações de mulheres que sacudiam o mundo. Já a personagem, associando-se a outras de sua época, tem algo da impassividade controladora da vilanesca enfermeira Ratched, eternizada por Louise Fletcher em “Um Estranho no Ninho” (1975), de Milos Forman. E, ainda, o desfile de ações domésticas protagonizado por Delphine Seyrig é uma versão (muito) estendida e (bem) mais fria do importante trabalho “Semiotics of the Kitchen” (EUA), dirigido, escrito e estrelado por Martha Rosler, também no ano de 1975.

Seyrig, que os mais atentos reconhecerão de trabalhos como “O Ano Passado em Marienbad” (1961), de Alain Resnais, e de “O Discreto Charme da Burguesia” (1972), de Luis Buñuel, entrega uma performance que corporifica o “problema sem nome” descrito pela ativista e escritora feminista Betty Friedan, no primeiro capítulo de seu livro seminal, “A Mística Feminina”, publicado em 1963. A interpretação inquietantemente física e pautada em micro expressões e singelos movimentos da atriz transparece, ao longo de todo o filme, uma questão mais desconcertante ainda, que Friedan também referencia em sua obra: “É só isto?”. Assim como nós, espectadores e espectadoras, nos perguntamos, o filme o faz através de sua estrutura repetitiva, lânguida e austera. A própria personagem parece guardar esta inquirição silenciosa no fundo de sua mente. Dezoito anos depois, Jane Campion também viria a abordar o silenciamento, por meio da mudez de sua protagonista em “O Piano”(1993). Chantal Akerman e Delphine Seyrig fazem, contudo, um filme em que pequenos gestos (da câmera e da atriz principal) indicam uma potência tal qual ou ainda maior do que a história grandiloquente da diretora neozelandesa.

Alguns dos filmes citados aqui acompanham “Jeanne Dielman” na lista dos 100 maiores filmes da história organizada pela Sight & Sound. Outros não têm esta distinção, mas poderiam facilmente ser considerados para a seleção. É chegada, todavia, a vez de Chantal Akerman, de “Jeanne Dielman” e do cinema feminista. Já não era sem tempo. Finalmente assisti ao filme e espero, sinceramente, que cinéfilos, cinéfilas ou quaisquer pessoas, de todo o mundo, se juntem a mim e descubram esta que é uma obra exemplar, e, seguramente, o cinema em seu mais alto nível.

P.S: Para acompanhar esta (re)descoberta, segue abaixo uma relação de textos escritos por teóricas, pesquisadoras e professoras sobre “Jeanne Dielman” e Chantal Akerman. São sugestões para o aprofundamento nas temáticas e construções audiovisuais presentes no filme e na obra da cineasta como um todo:

“O maior filme de todos os tempos: Jeanne Dielman”, por Laura Mulvey | Revista Sight and Sound 
“Jeanne Dielman” e a travessia visual da espectadora, por Roberta Veiga | Catálogo do Forumdoc 2012

“A estética do confinamento em Chantal Akerman”, por Roberta Veiga | Revista Cinética 

“O diário como dispositivo e o efeito de eu no cinema: Akernam e Perlov”, por Roberta Veiga e Carla Italiano | Revista Contemporânea 

“Notas sobre o tempo (na e a partir da imagem)”, por Joana Pereira | Revista Pós-Limiar

Jeanne Dielman, por Janet Bergstrom | Revista Devires – Dossiê Chantal Akerman 

Essa sou eu : Corpo, autoinscrição e autoria no cinema de Chantal Akerman”, dissertação de Luana Cabral  


O cinema de Chantal Akerman: estilo e claustrofobia em Saute maville (1968) e Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)” | Dissertação de Natália Marchiori 

Nota:
JEANNE DIELMAN (Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles , 1975, Bélgica, França). Direção: Chantal Akerman; Roteiro: Chantal Akerman; Produção: Corinne Jénart, Evelyne Paul; Fotografia: Babette Mangolte; Montagem: Patricia Canino; Com: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck, Jacques Doniol-Valcroze, Yves Bical; Estúdio: Paradise Films, Unité Trois; Distribuição: Filmicca; Duração: 3 h 21 min.

Lucas Oliveira - Equipe Cinematório
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e atualmente integra a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.

06/01/22
Garotas Selvagens, Wild Things, 1998

Em Blue Bay, uma cidade costeira na Flórida, um professor (Matt Dillon) acusado de estuprar uma jovem (Denise Richards), que pertence família mais rica da região. Muitas pessoas estranham esta acusação, mas uma outra jovem (Neve Campbell), de origem humilde, diz que o mesmo aconteceu com ela. Um detetive começa a investigar o caso e logo fica claro que as mentiras, traições e tramas não se limitaram ao julgamento do caso no tribunal e quase ninguém confiável. Adorocinema https://www.adorocinema.com/filmes/filme-18033/


07/01/23
Os Panteras Negras, Black Panthers, 1968, Agnès Varda

Os Panteras Negras (1968), de Agnès Varda

Janderson Felipe, May 5, 2019

Antes tudo apresentar qual a proposta deste canal, o Mirante Cineclube iniciou através da reunião de pessoas que estavam dispostas a estudar a crítica cinematográfica e há dois anos ajuda a fomentar o pensar cinema em Maceió, sendo desde o começo o desejo de ter um próprio veículo que pudesse expandir essas reflexões. Então estamos aqui iniciando com um filme que compôs a curadoria da nossa última sessão “Cléo das 2 às 5”, no dia 04 de maio de 2019.
Filmado em 1968 com apenas 2 anos de existência do Partido Panteras Negras para Autodefesa com uma clara preocupação de Varda em apresentar o partido através de um ponto de partida: o julgamento de Huey P. Newton, fundador e líder do partido. Esta proposta de Varda em colocar luz sobre o movimento num momento tão crítico foi fundamental para o processo de popularização das ideias dos Panteras Negras.

De primeira já temos uma reunião de famílias, homens, mulheres e muitas crianças com a presença de uma banda Soul num bairro negro em Oakland, a narração em off diz “que isso não é um picnic”, ali está ocorrendo um protesto, este início é um movimento consciente de Varda em quebrar a alcunha de partido violento que os Panteras Negras receberam durante toda a sua história por iniciarem como uma patrulha armada do povo negro para defesa e monitoramento da violência policial.

Num exercício de Cinema Verdade, onde o que não é mostrado, é dito, é perceptível a necessidade pulsante de “mostrar como as coisas são” tão presente nesse filme, e por isso ela vai passar pelos ideais do partido, o programa por qual lutam, tudo isso através das falas dos próprios integrantes, deixando claro quão eram maoistas, marxistas, seguidores de Malcolm X e influenciados pela Revolução Cubana.
Durante todas essas falas que davam compreensão sobre o partido, existia em paralelo uma efervescência devido a situação do julgamento de Huey, fazendo praticamente do filme de Agnès um filme-protesto, devido a diversas falas em púlpito de lideranças como Stokely Carmichael, Bobby Seale, Eldridge Cleaver e Kathleen Neal Cleaver, e é marcante ver como o movimento estava próximo da população, devido à sua grande presença nos protestos e Varda não se poupava em colocar diversas falas de apoio e defesa da libertação de Newton.

Varda faz questão de revelar que o partido é vanguarda por também colocar as mulheres em papeis de igualdade dos homens, ao se ver uma grande presença de mulheres no movimento passando pelos mesmos treinamentos que os homens e se colocando em posições de liderança, como na fala de Kathleen Neal Cleaver sobre suas funções e quando discursa sobre a potência política que existe sobre a estética negra para a recuperação da autoestima do povo negro.
É como se a diretora fizesse o partido ir se desvelando camada a camada, os colocando como os revolucionários que eram, onde em plenos anos 60 lutavam pelo desencarceramento da população negra e que não via na prisão de Huey um caso isolado, num dos momentos Carmichael afirma “é uma força de opressão que ataca o povo oprimido”. É histórico o registro em prisão de Newton pouco antes do julgamento, o potencial revolucionário do grupo é medido pelo seu líder onde mesmo preso não se reprime ao falar sobre a violência sofrida e se coloca como o grande pensador que era.

No filme é dito que os Panteras Negras têm esse nome devido a um animal belo e negro que nunca ataca, mas se defende ferozmente e é importante perceber o deslocamento que Agnès Varda faz mesmo como estrangeira para que o conceito do movimento perpasse por todo filme, ao buscar quebrar a ideia de partido violento desde sua cena inicial, ao fim Varda revelando que ocorreu um ataque da polícia logo após a condenação de Huey em que as imagens de Newton e Cleaver são alvos de tiros.

Pode parecer premonitório por parte da Agnès ao dizer que a história dos Panteras Negras não acabaria ali, pois o que se deu foi uma série de revoltas e protestos que levaram a soltura de Huey P. Newton em 1970 e sendo a década de 70 um grande marco para o partido devido ao grande crescimento que teve e influencia alcançada nas lutas do direitos civis.
Os Panteras Negras se defenderam.

 
9/1/23
A Ilha de Bergman, Bergman Island , 2021, Mia Hansen-Løve


Crítica

Escrito e dirigido por Mia Hansen- Løve, A Ilha de Bergman (Bergman Island, 2021) aposta em uma estrutura narrativa ousada. Sua primeira metade apresenta elementos que agradam cinéfilos, em especial os apreciadores de Ingmar Bergman. E o restante do filme engaja aqueles artistas, roteiristas em especial, que caçam inspiração para finalizar suas obras.

A ilha do título, na verdade, se chama Ilha de Fårö, mas se tornou famosa por causa de seu morador ilustre, o cineasta sueco Ingmar Bergman. Ela é o destino do casal Chris (Vicky Krieps) e Tony (Tim Roth). Este último já atingiu o patamar de diretor de cinema reconhecido, enquanto Chris é uma roteirista em início de carreira enfrentando um bloqueio para escrever.

Ao retratar o retiro dos dois na ilha sueca, o filme se aproxima de um guia turístico, mostrando como a presença de Bergman é ali explorada. Tony conhece várias locações de filmes do diretor ao realizar o tour Bergman Safari, enquanto Chris visita outros lugares relacionados a Bergman com um sueco que conhece a ilha. Ademais, o casal conhece a presidente da Fundação Bergman e se instala em imóveis que o cineasta utilizou, como sua sala de projeção e o moinho que usava às vezes como escritório. Tudo muito curioso para os fãs de Ingmar Bergman.
Um roteiro em desenvolvimento

Na segunda metade de A Ilha de Bergman, Chris conta a Tony o que já escreveu em seu novo roteiro. Então, o filme leva para as telas a história de Chris, um drama romântico no qual Amy (Mia Wasikowska) viaja para um casamento na ilha e lá encontra o ex-namorado Joseph (Anders Danielsen Lie). Essa trama mostra que Amy ainda está apaixonada por Joseph – eles transam, mas Joseph não está disposto a deixar a família por causa da ex-namorada. A transição entre esses dois momentos narrativos é um dos belos trechos do filme, dentre outros de apuro estilístico, como a câmera que acompanha de fora o caminhar de Chris dentro da casa de Bergman.

No entanto, o que instiga nessa segunda metade é a demonstração do processo de criação de um roteiro. Não didaticamente, mas em relação à influência da vida pessoal do autor na obra. Nesse sentido, vemos Hampus, o estudante sueco que mostrou a ilha para Chris, ser um coadjuvante no filme que ela escreve. Além disso, sua personagem Amy possui pontos em comum com sua vida real. Por exemplo, as duas possuem uma filha pequena. E, em cenas de realismo mágico, Chris conversa numa mesa de restaurante com seus personagens Amy e Joseph.

Chris e Tony

Da mesma forma, Chris e Tony também possuem elementos da relação entre Mia Hansen-Løve e o cineasta (26 anos mais velho) Olivier Assayas, com quem ela tem uma filha. Por outro lado, lembram Woody Allen e Mia Farrow, ou seja, o diretor famoso e intelectual e a artista (aqui roteirista e não atriz) melosa e insegura. No entanto, seja qual foi a inspiração para construí-los, são dois protagonistas individualistas que provocam mais aversão do que empatia no público. Da mesma forma, assim são os personagens criados por Chris. Em suma, Tony e Joseph são dois homens que não tratam suas companheiras (ou ex-companheira) com o devido afeto que elas merecem. Já Chris e Amy parecem mulheres que reclamam o papel de vítimas sofredoras.

Em A Ilha de Bergman, o final aberto se mostra acertado, apesar de desagradar os espectadores clássicos. Essa ausência de uma conclusão dialoga com o problema da protagonista Chris, que não sabia como terminar seu filme. E a presença da filha que se encontra com ela na última cena abre duas possibilidades. Uma delas, que Chris conseguiu terminar o seu roteiro e, agora, pode curtir a filha. A outra possibilidade é que Chris desistiu da obra para se dedicar à família, como sugerira Tony em certo momento do filme. Duas conclusões antagônicas entregues para cada espectador escolher o final preferido. Assim, desta vez Hansen-Løve se apoia na afirmação de uma artista, enquanto seu filme anterior, Maya (2018), versava sobre a redescoberta de si mesmo.
 

12/01/23
Aftersun, 2022, Charlotte Wells

AFTERSUN – AUDÁCIA E CRIATIVIDADE
Como um período tranquilo de férias abre caminho para memória, dor e tensão
Eduardo Escorel, 18 jan 2023, piaui

Em exibição há sete semanas no Brasil, após estrear em 1º de dezembro do ano passado, Aftersun, escrito e dirigido por Charlotte Wells, iniciou em maio de 2022 sua laureada carreira, participando da Semana da Crítica do Festival de Cannes. Na ocasião, recebeu o Prix French Touch du Jury (Prêmio Toque Francês do Júri), atribuído, pela primeira vez, para “laurear a audácia e a criatividade de um ou uma cineasta por uma de suas primeiras obras cinematográficas”. Além da honraria, o Prix French Touch inclui 8 mil euros (cerca de 44 mil reais) para o diretor ou diretora do filme escolhido.

Audácia e criatividade são de fato dois, entre inúmeros, atributos notáveis de Aftersun, aos quais se poderia acrescentar a sutil contraposição feita entre, de um lado, o dia a dia tranquilo das férias de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio) – pai e filha –, na Turquia, no final da década de 1990, e, de outro, a discreta, mas crescente tensão entre os dois que parece estar sempre à beira de eclodir. Outros traços identitários marcantes desse filme raro são o visível e o invisível, o dito e o não dito, o passado e o presente, a elegância da narrativa visual elíptica e dos movimentos suaves da câmera, o peso da memória, sem esquecer a excelência das interpretações de Mescal e Corio, ela menina estreante nascida em 2010.

No início de novembro do ano passado, o júri da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, formado por Lina Chamie, André Novais e Rodrigo Areias, deu sua contribuição aos louvores generalizados feitos a Aftersun. Atribuiu o troféu Bandeira Paulista, principal prêmio do evento, ao filme, escolhido entre os favoritos indicados pelo público.

No final de dezembro, foi a vez de o jornal The Guardian celebrar Aftersun, escolhido como melhor filme do ano. Em entrevista ao jornal (23/12/2022), Wells afirmou: “…eu não estava pensando quanto à forma em conformidade necessariamente com nada além de seguir filmes que me interessam. Portanto, ter resultado tão acessível foi uma surpresa muito boa. Eu quero fazer filmes sempre dessa maneira. Acho que você deve perseguir o que te interessa. Não penso em fazer filmes para outras pessoas. O que não quer dizer que não considere o público, mas tentar conscientemente atender a requisitos alheios enquanto se usa o cinema como um meio de autoexpressão parece um caminho perigoso a seguir.”
Aniversários podem ser datas traumáticas, conforme Aftersun reitera. O diálogo de Calum e Sophie no prólogo, retomado e desenvolvido na metade do filme, gira em torno dessas datas que demarcam a passagem do tempo e expectativas frustradas nessas celebrações.

A primeira imagem de Aftersun é instável – está sendo gravada em MiniDV por Sophie e a câmera balança. O pai faz gaiatices:
Sophie: “Meu Deus! O que é isso?”
Calum: “São meus movimentos.”
Sophie: “Pare. Isso é tão constrangedor.”
Calum: “Não é nada constrangedor.”
O pai vira de costas.
Sophie: “Ei, eu ia te entrevistar.”
Calum: “Ia? O que você ia perguntar?”
Sophie: “Não sei. Bem, acabei de completar 11 anos. E você tem 130 e vai completar 131 em dois dias…”

Sophie vira a câmera para si mesma e a vemos pela primeira vez, sorrindo. Gira a câmera de volta para seu pai.
Sophie: “…então, quando tinha 11, o que você achava que estaria fazendo agora?”
Parado diante da câmera, o pai fica sem responder de imediato. Transcorreram apenas cerca de dois minutos do filme, incluindo os créditos iniciais. A gravação de Sophie então parece estar sendo rebobinada em alta velocidade e é seguida de flashes de pessoas dançando em uma boate sem que se consiga distinguir quem são, cena que irá pontuar todo o filme.
A resposta do pai vem cerca de 45 minutos depois, na continuação da sequência de abertura. Após interromper a gravação que Sophie estava fazendo, o pai conta o que aconteceu quando ele fez 11 anos – um fato entre outros que, como fica claro, deixou uma cicatriz nele para sempre.

Pouco depois, outro diálogo marcante entre pai e filha, depois de jogarem xadrez, lida com a falta de sensação de pertencimento a um lugar e a possibilidade de romper laços com o passado.
Sophie: “Você acha que vai voltar para a Escócia um dia?”
Calum: “Não.”
Sophie: “Por quê?”
Calum: “Não tem sol suficiente.”
Sophie: “Engraçadinho.”
Calum: “É tudo passado, para mim. É só isso. E há essa sensação de que uma vez que você deixou o lugar onde cresceu, você não pertence mais àquele lugar por completo. Não de verdade. Mas em Edimburgo nunca senti que pertencesse de fato lá…”

O diálogo prossegue. Quando termina, a câmera recua diante da porta do quarto no corredor do hotel. E após novos flashes de pessoas dançando, Calum está em pé na grade do terraço do quarto, na luz do amanhecer, com os braços abertos, como se fosse saltar. Em seguida, já de dia, em céu azul, sem nuvens, turistas voam de parapente, outra cena que pontua toda a narrativa.
Em um cartão postal está escrito o que Calum talvez não soubesse dizer à filha: “Sophie, eu te amo muito. Nunca esqueça disso. Papai.” Talvez se possa dizer que o foco de Aftersun é esse bloqueio.
Na entrevista ao The Guardian citada acima, Wells afirmou ainda: “A emoção do filme e a dor manifestada são minhas. E isso é algo muito fácil de admitir porque, como eu disse, isso para mim era uma forma de expressão e era disso que, em última análise, eu estava querendo tratar.

Mas em termos de: isso aconteceu ou eu estava nessas férias? A resposta é não. Comecei a me opor cada vez mais à autobiografia, quanto mais vejo as pessoas inclinadas a traçar uma relação direta entre mim e o filme. É difícil. Eu também tenho esse impulso. Quando você assiste a algo, você imediatamente indaga: este é o criador? Mas agora tenho uma visão muito diferente desse impulso. Há muito trabalho dedicado a esse filme e esse trabalho é frequentemente descartado ao dizer: ‘isto é apenas o que aconteceu’… Estou interessada em coisas contraditórias: pessoas e emoções. Acho que há algo no cinema que permite usar todas essas camadas e ferramentas à sua disposição para expressar algo um pouco mais complexo.”

Disponível na plataforma de streaming Mubi e sendo exibido em 23 cinemas, Aftersun estava em décimo primeiro lugar na lista das vinte maiores bilheterias do fim de semana de 12 a 15 de janeiro, já tendo sido visto por 41.755 espectadores e tido queda de renda em relação ao fim de semana anterior de 26% (Dados do Filme B Box Office).

Para A.O. Scott, em The New York Times (20/10/2022), o poder do “sensível e devastador Aftersun vem de acolher o fato básico e universal da perda… [O filme] é sobre uma experiência na maior parte feliz… que termina em lágrimas. As suas lágrimas.”

AFTERSUN: Memórias e um adeus | Crítica

13/01/23
O Pálido Olho Azul, The Pale Blue Eye, 2022, Scott Cooper


Crítica | O Pálido Olho Azul
Pálido, sem dúvida.

Por Ritter Fan 10 de janeiro de 2023

Pode ser que eu esteja viajando, mas, durante toda a projeção de O Pálido Olho Azul, não consegui me desvencilhar dos paralelos com O Nome da Rosa, de Jean-Jacques Annaud, filme que adoro quase que sem restrições. Não só há a origem literária dos dois longas, como, também, a base “em fatos reais” de uma história detetivesca de época com elementos de ocultismo em que um investigador veterano arregimenta os serviços de outro mais jovem e mais inocente para lidar com assassinatos brutais em um ambiente rígido com tendência a se fechar em copas para evitar escândalos. Até mesmo o uso de Edgar Allan Poe como o “investigador mais jovem” paraleliza a obra original de Umberto Eco e a adaptação de Annaud, em razão da referência direta a William de Baskerville ser um Sherlock Holmes medieval.

Diria até mesmo – e aí é suposição pura mesmo – que Scott Cooper tentou emular a atmosfera opressiva que Annaud estabeleceu em seu longa de 1986, transportando-a, lógico, para o período e país adequados ao romance de Louis Bayard , o que de forma alguma tira o mérito das equipes de direção de arte, figurino e cenários que, ao contrário, conseguem evocar muito bem os arredores ermos e até assustadores da prestigiosa academia militar de West Point, no interior de Nova York, nos idos de 1830. Aliás, a produção toda é muito boa nesse quesito amplo de criação de atmosfera, seja pelos cuidados elementos históricos, seja pela fotografia azulada de Masanobu Takayanagi (Guerreiro e dos três filmes da parceria de Cooper com Christian Bale) que toma conta essencialmente das sequências externas no frio do lugar que se opõe ao amarelado doente dos interiores mais aquecidos.

Ajuda muito também a costumeiramente ótima atuação de Bale como o ex-detetive de polícia Augustus Landor que é retirado de sua quieta aposentadoria em uma cabana na região para investigar a morte e especialmente a mutilação do corpo do morto – um cadente de West Point – já no necrotério, com a cuidadosa extração de seu coração. Percebendo que o cadete E. A. Poe (que, na vida real, efetivamente teve uma passagem por lá), vivido por Harry Melling, tem tino para investigação, ele arregimenta seus serviços para que os dois possam, então, desvendar o mistério. A dupla Bale e Melling, sejam juntos ou separadamente, fazem do filme o que ele é e o salvam de um roteiro – adaptado pelo próprio Cooper – que basicamente tenta cobrir todas as suas bases, sem conseguir fazê-lo apropriadamente em nenhum momento.

Seja o drama pessoal de Landor com sua filha que aparentemente fugira com alguém algum tempo antes, seja o bullying em cima de Poe, seja o próprio mistério principal em si – antes da reviravolta que não abordarei para manter a crítica sem spoilers -, tudo é trabalhado de maneira muito rasa, sem qualquer profundidade dramática que aponte com vigor para o norte da obra. Mesmo com algumas participações especiais bacanas aqui e ali, notadamente Gillian Anderson e o veteraníssimo Robert Duvall, o longa parece perdido sobre o que quer ser: um mistério engajador, uma “história de origem” para Poe (as referências para quem conhece as obras do autor são muitas, começando pelo próprio Augustus Landor, claro) ou uma crítica ao ambiente militar e também à religião muito na linha do citado O Nome da Rosa.

E o resultado é uma sopa homogênea, rala e um tanto quanto sem gosto, mas que é ironicamente feita de ingredientes nobres por um chef de cozinha com mais talento do que ele demonstra aqui e que parece muito bonita em um primeiro momento. Em outras palavras, a apresentação é muito boa, os elementos que formam o todo são ótimos, notadamente Bale e Melling, mas o que fica é mais um mistério cujo twist no final torna tudo ainda pior, por exigir uma ginástica mental que leva a apenas à conclusão de que a quantidade de conveniências narrativas é tão grande para fazer o filme ficar de pé, levando a seu resultado (i)lógico que isso chega a distrair mesmo o mais leniente dos espectadores.
Sim, O Pálido Olho Azul inexoravelmente me lembra de O Nome da Rosa, mas isso funciona tanto no que os filmes têm de parecido quanto no que eles têm de diferente e em tudo que a obra de Cooper se desvia da de Annaud, ela se revela apenas como uma pálida versão do excelente conto medieval. Não que o longa não divirta, pois a mera presença de Bale em cena, especialmente contracenando com Melling, garante a diversão, mas ele nunca consegue ir além disso e, quando acaba, não deixa qualquer marca.

O PÁLIDO OLHO AZUL: É o Edgar Allan Poe? | Crítica do filme

14/01/23
A Mulher dos Mortos Totenfrau, Série de TV, 2022, Nicolai Rohde 

“A Mulher dos Mortos”: Conheça a trilogia que deu origem e pode continuar a série sucesso da Netflix
Aline Resende 11/01/2023

A série austríaca A Mulher dos Mortos se tornou um dos maiores sucessos da Netflix nesse início de ano, com assinantes de todos os tipos elogiando amplamente sua trama ousada e cheia de mistério.
Com apenas seis episódios em sua primeira temporada, muitas pessoas já se perguntam sobre uma possível continuação da história, que apesar de ainda não ter sido confirmada, tem grandes chances de acontecer já que A Mulher dos Mortos é baseada em uma saga literária de sucesso na Europa.

Conhecida como Trilogia Die Totenfrau (Trilogia A Mulher Morta), os livros mantém o foco na protagonista apresentada na série, Brünhilde Blum, que após investigar e ir atrás dos assassinos do marido, continua em uma jornada sombria de autodescoberta de sua própria psique perturbada.
A trilogia é assinada pelo escritor Bernhard Aichner, e se tornou uma saga best seller na Áustria, Alemanha e outros países europeus. A seguir a gente te conta um pouco mais sobre cada livro, te dando uma boa noção do que esperar caso a série da Netflix seja renovada para uma nova temporada.

 

Sobre a trilogia “A Mulher dos Mortos”

A trilogia que segue a vida de Blum foi publicada originalmente na Áustria entre 2014 e 2017.
O primeiro livro da série foi traduzido para algumas outras línguas além do alemão, incluindo o inglês e o espanhol. O livro, no entanto, não conta com versão em português.
Abaixo você conhece um pouco mais sobre cada uma das obras dessa trilogia.
Atenção, as sinopses abaixo podem trazer spoilers da primeira temporada da série e de suas possíveis sequências.

Livro 1 – Totenfrau (A Mulher Morta)

O primeiro livro da trilogia A Mulher dos Mortos foi publicado em 2014 sob o título original Totenfrau.
Nesse livro conhecemos Blum, uma agente funerária, mãe de dois filhos e esposa, que apesar da frieza, leva uma vida feliz ao lado da família. Tudo desmorona quando ela presencia a morte de seu marido, atropelando em frente de casa em uma manhã.
Em pouco tempo, Blum descobre que Mark não morreu de forma acidental, e passa a investigar o que realmente está por trás da tragédia que atingiu sua vida. Quando descobre, ela parte em uma jornada vingativa sangrenta, dando vazão a um lado seu que tentou enterrar durante a maior parte de sua vida.

Livro 2 – Totenhaus (A Casa Morta)

No livro 2 da série, lançado em 2015, a história que acabou de forma chocante, agora é ambientada dois anos depois. Na nova trama, a exumação de um corpo em Innsbruck, revela um caixão contendo duas cabeças e quatro pernas. O mais surpreendente é que partes dos corpos encontrados, pertencem a um famoso ator que havia desaparecido há mais de um ano sem deixar pistas.
Logo as autoridades chegam à conclusão de que apenas o agente funerário responsável por cuidar dos trâmites poderia ser o culpado pelo crime.
Assim, Brünhilde Blum está mais uma vez no centro de um assassinato desconcertante, o qual, sem dúvidas ela é a autora. O problema é que, sozinha, a mulher parece ter desaparecido da face da terra.

Livro 3 – Totenrausch (A Corrida da Morte)

O terceiro livro, que fecha a jornada de Blum, foi lançado originalmente em 2017, e na internet pela opinião dos fãs, é considerado o melhor da trilogia. Aqui, Blum agora é uma assassina procurada internacionalmente, e que enfim, parece ter abraçado seu lado sombrio.

Desesperada por um recomeço ao lado das filhas, ela está em Hamburgo e invade o escritório de um cafetão pedindo por novas identidades. O pagamento? O assassinato de qualquer um que o homem deseje. Blum consegue o que quer, e se muda com a família para a pacata casa de um pescador, enquanto trabalha esporadicamente na funerária local.
Em pouco tempo, no entanto, sua promessa precisará ser cumprida. O problema é que o homem que salvou sua vida exige a morte de alguém querido por Blum.

O que já se sabe sobre a continuação da série Netflix?

Como dissemos anteriormente aqui, até agora a Netflix não confirmou uma continuação para A Mulher dos Mortos. Porém, em sua primeira semana na plataforma, a série está no top 10 mundial do streaming, como uma das séries mais assistidas, com mais de 20 milhões de horas de exibição.

Além disso, uma vantagem é que A Mulher dos Mortos não é uma produção 100% do streaming, e sim uma parceria entre Netflix e a produtora ORF da Alemanha, que exibe a série na TV alemã. Com isso, o orçamento da série não sai apenas da “canceladora nata”, Netflix, o que pode sim viabilizar a produção de novas temporadas a depender também da audiência televisiva.
Resta aguardar por novas informação que devem surgir em breve.


15/1/23
Os Sapatinhos Vermelhos, The Red Shoes, 1948, Michael Powell e Emeric Pressburger



Moira Shearer(1926-2006)
Não é estranho que algo que você nunca quis realmente fazer acabe sendo a mesma coisa que lhe deu um nome e identidade? . . . Os Sapatinhos Vermelhos (1948) arruinou minha carreira no balé. Eles [seus colegas] nunca mais confiaram em mim. (Moira Shearer)

Crítica | Os Sapatinhos Vermelhos (1948)

Por Guilherme Almeida, 20 de junho de 2018

"Começou a dançar, mas, quando queria ir para a direita, os sapatos a puxavam para a esquerda, e, quando quis subir ao salão, os sapatos a levaram para fora, desceram a escada, atravessaram a rua e saíram pelo portal da cidade. Ela dançava, não podia mais parar. E, dançando sempre, foi levada pelos sapatos até a sombria floresta."
Hans Christian Andersen

"Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!"

Olavo Bilac

Michael Powell e Emeric Pressburger foram, durante os anos 40 e 50, a dupla de ouro do cinema britânico. Autointitulavam-se “Arqueiros” por causa da companhia sob sua direção, a Archers Film Productions, responsável pela realização de uma série de ótimos filmes, como Coronel Blimp – Vida e Morte e Narciso Negro, além do especialmente famoso Os Sapatinhos Vermelhos (1948), indicado em cinco categorias no Oscar e vencedor das estatuetas de melhor trilha sonora e melhor direção de arte.
O filme se baseia em texto literário original de mesmo nome, escrito por Hans Christian Andersen, autor dinamarquês conhecido por seus contos de fada. No caso de Andersen, todo o drama gira em torno da culpabilização da cobiça, da substituição pecaminosa da fé pelo desejo de fama. O conto tem como pano de fundo uma moralidade cristã, de maneira que os tons rubros dos sapatinhos remetem inequivocamente ao universo simbólico da maçã, efígie da contravenção, fruto que desde de a Idade Média se confundiu com o fruto proibido do Jardim do Éden. A lição que se depreende da história consiste em que a conexão espiritual com Deus deve sempre se sobrepor aos prazeres e intentos mundanos, a reza dedicada vale muito mais do que qualquer bem material, mesmo se ele for um sapatinho que reluz com beleza e brilho incomparáveis.

Pode-se dizer que a relação do filme com o conto existe apenas como pretexto. Não se trata mais de uma obra de cunho didático-moralizante, com cariz cristão, mas de um filme que aproveita um aspecto da trama de Andersen (o fato de os sapatinhos escravizarem sua vítima numa dança eterna) ao mesmo tempo que a transpõe para o mundo do ballet. Apresentam-se grandes espetáculos, amparados por um know-how russo e por vultuosos montantes de investimento, conjunção capaz de criar apresentações com apuro formal, coreografias perfeitas e orquestras retumbantes.

A história começa quando Victoria Page (Moira Shearer) e Julian Craster (Marius Goring) são aceitos, quase no mesmo momento, na companhia de ballet liderada Lermontov (Anton Walbrook), esteta obsessivamente dedicado à dança. Victoria sonha ser a melhor bailarina do mundo, e a grandiosidade do desejo é desde logo indicada pelas conotações triunfais de seu próprio nome; já Julian Craster é um talentoso compositor musical, conseguindo tomar para si a responsabilidade de criar a trilha que acompanhará o mais novo espetáculo sob o comando de Lermontov, “Os Sapatinhos Vermelhos”.
Walbrook vai criando um vilão fascinante, obcecado pelo controle total de suas bailarinas, de modo a anular nelas qualquer desejo extrínseco à Arte. Quando uma das dançarinas se casa, um irado Lermontov não se dá nem ao trabalho de parabenizá-la, virando-lhe as costas como que atingido por uma traição inaceitável. Sua personalidade manipuladora tende a transformar todos em títeres a sua disposição, numa tentativa de esvaziamento do livre-arbítrio alheio em nome dos intentos pessoais deste pequeno ditador que alça a perfeição da coreografia a verdadeira profissão de fé.

Não foram poucas as vezes em que o cinema retratou a ligação de personagens enlouquecidos com uma ou outra atividade. Para tomar exemplos mais próximos, quem não se lembra do ritmo frenético de Whiplash e seu protagonista em busca da performance impecável? Ou de Trama Fantasma, onde vemos o sempre competente D. D. Lewis na pele de uma famosa figura da alta-costura, absorvido de corpo e alma na produção de opulentas indumentárias para a elite europeia? Essas obras levam a determinação de personagens principais às últimas consequências, questionando até que ponto e em que medida é permissível a persecução irrefreada de um objetivo artístico.

Outra realização trava com Os Sapatinhos Vermelhos uma relação profunda, em aspectos tanto temáticos quanto estruturais. Em Cisne Negro (2010) o ponto de foco é também o ballet, porém as semelhanças não param por aí: em ambos os casos o drama representado pela dança se espelha no drama vivido pelas protagonistas na parcela não artística de suas vidas. Para ficarmos apenas no filme de 1948, pode-se constatar que o dilema pessoal de Victoria é polarizado entre a permanência no mundo da arte (e a consequente escolha por uma assepsia amorosa) ou a aposta na paixão por Craster (e o decorrente abandono de cargo na equipe de Lermontov).

Aliás, quando o vilão descobre o affair entre os jovens, uma aproximação violenta da câmera torna explícito o descontentamento de sua face. Não fica de todo claro se Lermontov nutre por Victoria algum desejo mais do que artístico, mas o importante é que qualquer tensão sexual, se existente, foi sublimada e canalizada para a realização do domínio no universo sublimizado da Arte. Toda a vida do esteta russo parece ter sido estilizada, desde as vestimentas até a decoração dos ambientes, numa espécie de revivescência afetada do dandismo.

O jogo de espelhos narrativo que estrutura a obra de Powell e Pressburger fica transparente quando vem à tona a apresentação bailarina da história dos sapatinhos vermelhos. Por sinal, essa é a sequência mais famosa do filme, pois leva a cabo uma hibridização total entre as linguagens teatral e cinematográfica. Veja-se que Victoria não dança no espaço delimitado de um palco fixo, mas percorre uma sucessão de cenários ligados pela montagem; além disso, a performance é recheada de trucagens fílmicas, com cortes, fusões e projeções. Do ponto de vista do roteiro da dança, acompanhamos a morte de uma menina dominada pelo bailar incessante dos sapatos, efeito de uma maldição terrível.

As cores realçam o que está em jogo no filme. Os Sapatinhos Vermelhos é conhecido por ter feito um dos melhores usos do Technicolor, construindo composições visuais coloridas com elegância. O vermelho em seus diversos tons está sempre prefigurando e projetando a simbologia trágica dos sapatos, embora seu valor acolha outros significados, desde o amor, passando pelo desejo e pelo luxo e chegando, no limite, ao sangue que marca a morte.

Victoria vê-se encalacrada pelo poder sedutor de Lermontov (quase mefistofélico) e o amor por seu parceiro. Futuro artístico garantido versus vida familiar burguesa, terna e apaixonada. Neste que não à toa é um dos filmes preferidos de Martin Scorsese (que, inclusive, fez a supervisão da restauração da fita), a necessidade impõe a escolha entre termos incomensuráveis e irredutíveis. O espelhamento entre o fim trágico de Karen, protagonista do conto de Andersen, e o desastre pessoal de Victoria parece pôr em cena a força de um destino sádico. Acaso ou não, a atriz que faz a personagem principal, uma bailarina que teve sua estreia no cinema exatamente nesse filme, chamava-se Moira, notadamente uma entidade tripartida da mitologia grega, responsável por tecer o Fado dos indivíduos.

Apesar do tom dramático do roteiro, as peripécias vão se desenrolando com uma sutileza bailarina. A montagem se aproveita de semelhanças visuais ou sonoras para garantir fluidez e continuidade, enquanto o fade out – fade in várias vezes substitui o corte seco. Justamente premiadas, a direção de arte e a trilha sonora de Brian Easdale, conjuminadas com a inteligência do entrecho, que torna homólogas, refletidas e refratadas as várias instâncias narrativas que compõem a malha do filme (o texto de Andersen, a adaptação para o ballet, os arcos dos personagens), formam um dos grandes clássicos do cinema britânico, criminosamente esquecido pelo público. O filme acerta ao recriar com originalidade o conto de fadas dinamarquês, acrescentando a dura lição de que, às vezes, acossados por decisões impossíveis, os indivíduos são obrigados a escolher a abstenção radical, o fechar de olhos eterno.

Os Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes)- Inglaterra, 1948
Direção: Michael Powell e Emeric Pressburger
Roteiro: Hans Christian Andersen (conto), Michael Powell, Emeric Pressburger e Keith Winter (diálogos adicionais)
Elenco: Moira Shearer, Marius Goring, Anton Walbrook, Ludmilla Tchérina, Léonide Massine, Austin Trevor, Irene Browne, Esmond Knight, Robert Helpmann
Duração: 134 min.
Anton WalbrookAustin TrevorEmeric PressburgerEsmond KnightHans Christian AndersenIrene BrowneKeith WinterLéonide MassineLudmilla TchérinaMarius GoringMichael PowellMoira ShearerRobert Helpmann

Guilherme Almeida
Estudante de Letras e apaixonado por literatura e cinema, acho Crime e Castigo o auge da inteligência humana, não consigo assistir Tarkovski sem acender uma vela e me emocionar, e toda vez que vejo Taxi Driver me olho no espelho e lanço um “You talking to me?”. Se por uma desgraça cósmica preciso passar um dia sem contato com a Arte, sofro de profunda abstinência e preciso ser amarrado numa camisa de força. Nesses momentos, não se aproximem.

OSCAR 1948 - DEBATE #20 - MEU TIO OSCAR 


16/01/23
Vortex, 2021, Gaspar Noé

‘Vortex’: Gaspar Noé como você nunca viu (e isso é muito bom)
Postado por Lucas Pistilli, set 27, 2021

É normal que, em algum momento da vida, artistas se ponham a refletir sobre a mortalidade. Com “Vortex”, o cineasta ítalo-argentino radicado na França Gaspar Noé (“Clímax”) entra para esse clube. O filme, exibido no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary deste ano depois de sua estreia em Cannes, toca em vários dos temas da obra de Noé, mas vem com uma sutileza jamais vista em sua filmografia.

A produção acompanha um casal em seus anos outonais, interpretado por Dario Argento (sim, o grande diretor de horror italiano) e Françoise LeBrun, enquanto desfalecem. Ele tenta escrever um livro sobre cinema e tem um caso extraconjugal que não vai a lugar nenhum. Ela é uma psiquiatra aposentada que continua prescrevendo medicamentos para si mesma apesar de ter demência. Juntos, apesar de todo o amor, os dois são uma receita para o desastre.

UM ‘fait accompli’

A morte sempre esteve nos arredores das tramas de Noé, mas em “Vortex”, ela ocupa o primeiro plano. Seus protagonistas morrem aos poucos, como “todos aqueles cujos cérebros apodrecerão antes de seus corações” – a quem o filme é dedicado. Em seu apartamento parisiense, que parece seu caixão, eles se esbarram, mas, pouco se veem de verdade. Os dois estão presos em suas viagens individuais rumo ao vazio.

À exceção de poucas cenas, a maior parte do filme é contada em tela dividida, com uma câmera na mão acompanhando o personagem de Argento e outra a de LeBrun. Essa divisão reforça a solidão do envelhecimento e isolamento que a deterioração da mente causa mesmo entre as pessoas mais próximas. Mesmo com esse recurso, que permanece sempre em destaque, “Vortex” é o longa de Noé que menos depende de uma fotografia ousada para causar impacto – e o mais focado em atuações desde “Irreversível”.

Como sua história acompanha uma desintegração lenta, o ritmo da produção é inegavelmente moroso. Com robustos 142 minutos, o filme se estende demais em certos trechos e poderia ter perdido uns bons 20 minutos sem nenhum prejuízo a seu impacto – principalmente, em seu terço final, no qual muitos dos acontecimentos tem um aspecto de fait accompli.

REDENÇÃO NÃO, AFETO SIM

Amor”, de Michael Haneke, é um longa que toca em temas similares e poderia fazer uma boa sessão dupla com este por ser um claro predecessor. Ambos os diretores partilham um niilismo e uma descrença na capacidade de sentimentos elevarem a condição humana, mas as comparações acabam aí. Estilisticamente, onde o filme de Haneke é frio e comedido, o de Noé é expansivo e sem compostura.
Mesmo com suas longas tomadas e peculiar trabalho de câmera, Noé cria um conto sensível (ainda que duro) e devastador. Quando na metade do filme, a mulher pede conforto ao seu homem e suas mãos se tocam, atravessando a barreira da tela dividida, a plateia é convidada a refletir sobre esse toque. Ao fim de “Vortex”, não há redenção. Há apenas o lembrete de que, na hora da última travessia, o que ficará serão os momentos de afeto – nada mais. 

Lucas Pistilli
Jornalista e advogado baseado no Reino Unido. Cobre eventos cinematográficos internacionais como os festivais de Cannes, Karlovy Vary e Londres. Já foi repórter das edições impressa e digital do jornal amazonense A Crítica, onde escreveu sobre cultura, economia e política. Hoje, além do Cine Set, também colabora para o site cinematográfico britânico DMovies.org e assina o blog Culture Frequencies (ambos em inglês).


19/01/23
O Menu, The Menu, 2022, Mark Mylod

 

O espectador que entra na sala de cinema para assistir a O Menu (The Menu) esperando ver mais um filme sobre culinária se sentirá tão surpreendido quanto os clientes do exclusivo restaurante do Chef Slowik (Ralph Fiennes). Eles se deslocam num barco até a ilha onde fica o estabelecimento, ansiosos pela promessa de uma experiência singular de degustação. Para alguns deles, não será a primeira vez; mas para todos será a última.

Dentro da filmografia de Mark Mylod, mais assíduo como diretor de séries, esse seu quarto longa se aproxima mais de seu Quem é Morto Sempre Aparece (The Big White, 2005), comédia de humor ácido estrelada por Robin Williams. O Menu começa com o olhar cínico da protagonista Margot (Anya Taylor-Joy), escort girl convidada pelo gourmet Tyler (Nicholas Hoult) para acompanhá-lo nessa experiência, como substituta de sua (provável) namorada. Por isso, Margot é a única cliente não incluída no premeditado plano de retaliação do Chef Slowik. A primeira parte do filme se concentra nas observações de Margot sobre esse ambiente que ela vai conhecendo e achando não fazer nenhum sentido. Até então, o tom é leve, e acompanha a animação dos visitantes.

 
Durante o jantar, servido em várias etapas, as situações ficam cada vez mais absurdas, até o filme assumir um tom sombrio, com cenas violentas dignas do gênero terror. O chef explica, ao longo da trama, as motivações para a escolha de suas vítimas, que vão desde fatos racionais (em relação ao time do investidor que assumiu o controle do restaurante) até implicâncias frívolas (ele não gostou do filme do ator). Mas a presença não programada de Margot acaba sendo um fator de desequilíbrio no planejamento desse vilão que se perdeu em sua obsessão em ser perfeito.

Da entrada à sobremesa

O Menu prende a atenção do público até um pouco mais de sua metade, enquanto descobrimos o que está por vir. Porém, a partir da revelação de que todos correm perigo real, como o enredo precisa apresentar os motivos que justificam a presença de cada uma das vítimas, o interesse cai vertiginosamente. Há momentos bem entediantes, quando a narrativa parece estacionada. Por fim, o interesse pela história retorna quando a trama descola ainda mais Margot do restante do grupo, e torcemos pela sua salvação.

Em relação ao seu tema, O Menu diretamente serve como crítica ao exagero que beira a insensatez da gastronomia gourmet. O Chef Slowik, exacerbando sua maestria, tenta distanciar suas criações da função primordial das refeições, que é a de alimentar. Por exemplo, retira o pão das entradas. Mas, é claro que o filme admite expandir a interpretação para outros temas. Por exemplo, o do esnobismo das elites, que pretende alijar aqueles que não pertencem à mesma classe. A atitude de Tyler em relação a Margot indica esse posicionamento, bem como o do chef. Por isso, a protagonista consegue desmontar o vilão ao pedir um hambúrguer, levando-o a reviver a fase mais difícil de sua vida. Usando sua esperteza, Margot pode apreciar de longe a explosão dessa elite exclusivista.   

O Menu - Crítica do filme - Sátira social harmonizada com boas doses de tensão


20/01/23
O Velho: A História de Luiz Carlos Prestes, 1997, Toni Venturi

O Velho. A história de Luiz Carlos Prestes.
Blog do Pedro Eloi Rech , 19 de janeiro de 2015

O Velho. A história de Luiz Carlos Prestes é um filme documentário produzido em 1997, sob a direção de Toni Venturi e narração de Paulo José que retrata os mais de 90 anos vividos pelo "Velho", como era chamado, especialmente em seu círculo familiar. Os recursos de som e imagem são bem trabalhados e se constituem no ponto alto da obra. São mostradas fotos de personagens e de documentos junto com entrevistas de pessoas relevantes e ainda, de estudiosos de sua vida.

O documentário é dividido em seis partes: A inocência, a coragem, a esperança, a sombra, a maturidade e o resto dos anos. Na abertura são mostradas cenas da derrubada do muro de Berlim, em 1989, para logo em seguida mostrar cenas da Revolução Russa de 1917. A vida de Prestes foi profundamente marcada por esses fatos históricos. Eles direcionaram e redirecionaram todo o ideário de sua vida. Por sessenta anos estes fatos marcaram e dividiram a história do século XX. Havia dois grandes polos ideológicos, duas grandes formas de organizar a sociedade, que dividiram profundamente a humanidade, numa guerra ideológica sem precedentes.

Na primeira parte - a inocência - a Coluna recebe a maior atenção. Ela foi produto dos anos 1920 e foi uma reação imediata à eleição de Artur Bernardes, presidente insuportável aos quarteis. Ela começou em 1924 e terminou em 1927 com o grande feito de nunca ter sido derrotada. A Coluna chamou a atenção dos jovens tenentes, que dela participaram, para os graves problemas sociais existentes, especialmente o retrato da miséria no Brasil interiorano. Mostra ainda o seu encontro com a literatura marxista.

Na segunda parte - a coragem - já o encontramos na URSS (1931) trabalhando como engenheiro e se preparando para a revolução brasileira. Mostra a desconfiança dos soviéticos em relação a ele e, inclusive, se suspeita que Olga fora indicada para acompanhar os seus passos. A ação revolucionária se deflagra em 1935 com o episódio da Intentona Comunista, que foi um fracasso. Mostra que a organização do Partido Comunista do Brasil (PCB) se dava quase que exclusivamente dentro do exército e que ele obedecia às diretrizes traçadas pela Terceira Internacional. O episódio de 1935 serviu para isolar ainda mais os comunistas da população em geral.

 
Olga Benário, a mulher de Prestes era alemã de origem judaica. Foi entregue aos nazistas pelo governo Vargas.

Na terceira parte - a esperança - o foco recai essencialmente sobre o Estado Novo e o seu período posterior, marcado pela redemocratização, fato que dá origem ao título de "a esperança". Neste período o Partido vive na legalidade e elege deputados constituintes para 1946 e o próprio Prestes como senador, por São Paulo. A vida livre é breve. O Partido logo será decretado ilegal, os constituintes tem seus mandatos cassados e Prestes volta à clandestinidade. Um período bastante contraditório porque Prestes apoiara  a permanência de Getúlio no poder em 1945, mesmo tendo sido preso e, Olga, a sua mulher ter sido entregue à polícia de Hitler. O mundo e o Brasil viviam a Guerra Fria.

Na quarta parte - a sombra - Prestes é mostrado como clandestino dentro de seu próprio partido. As contradições do regime soviético começavam a aflorar e houve o processo de depurações, que levavam todos a desconfiar de todos e ninguém confiar em ninguém. Prestes mantém o seu prestígio, por ser visto como a única pessoa capaz de manter a unidade do partido. Por isso ele era tolerado, mas já vivendo num grande isolamento. Era o fenômeno do stalinismo. Marca também o encontro com Maria Ribeiro, a sua segunda esposa, com quem teve sete filhos. Maria já tivera dois, numa relação anterior.

Na quinta parte - a maturidade -  é mostrado o governo JK e os espíritos desarmados desse período. Mostra toda a impaciência dos quarteis, com os governos, Jânio e, especialmente, Jango Goulart. Mostra toda a passividade do Partidão, diante do dilema entre a luta armada e a resistência passiva. A maioria dos militantes optou pela luta armada e o partido se fragmentou. Ele volta para a URSS, com a liderança desgastada e contestada. Volta ao Brasil com a Anistia de 1979. Segundo Maria, a vivência na URSS foi o melhor período em suas vidas (1971-1979).

A última parte - o resto dos anos - é muito bonita e revela dados pouco conhecidos, como a relação com a sua numerosa prole, um fato nada comum na vida de um revolucionário. De maneira geral os depoimentos dos filhos vão na direção de uma relação filial fria e distante, de um pai ausente. Ele dividia a sua solidão com os seus livros. Com os netos já teve uma relação de absoluta dedicação e ternura. Se desliga do partido e ainda participa da reorganização sindical dos trabalhadores e das eleições presidenciais de 1989. 1990 será o ano de sua morte. Já era mais visto com os olhos da curiosidade do que da admiração.

A maior riqueza do documentário são as entrevistas em que foram colhidos os depoimentos. Merece destaque o próprio Prestes, presente ao longo de todo o documentário, de seus filhos, de Miguel Costa Jr., Fernando Moraes, Carlos Heitor Cony, Brizola, Fernando Gabeira, entre outros. Não existe nenhuma participação de Anita, a filha de Prestes com Olga Benário. Daniel Aarão Reis também se queixa da não participação de Anita na elaboração de seu livro. Olga está preparando a sua versão da vida do pai, em livro a ser lançado, ainda no primeiro semestre de 2015, pela Boitempo.

21/01/23
A Queda, Fall, 2022, Scott Mann

A Queda (2022): tensão nas alturas

Tenso e despretensioso, este suspense de sobrevivência é um exercício criativo de extrair o maior número possível de situações a partir de uma premissa simples, mas intrigante.
Dirigido e coescrito pelo cineasta Scott Mann, “A Queda” é o típico thriller de baixo orçamento, mas impressionantemente bem produzido, no qual nos perguntamos o tempo todo: “o que eu faria nessa situação?”. E justamente por isso, fechamos os olhos para os diversos clichês e estereótipos que tornam certas reviravoltas e o desfecho previsíveis. Afinal, neste caso, a jornada importa mais do que a chegada.

Um ano após uma tragédia nas montanhas, as melhores amigas Becky (Grace Caroline Currey) e Hunter (Virginia Gardner) decidem escalar uma enorme torre de TV abandonada. Ao chegar ao topo, a escada envelhecida desmorona, deixando a dupla presa enquanto lutam desesperadamente para sobreviver aos perigos, à falta de suprimentos e à altitudes que causam vertigem.
Bem, a essa altura, talvez você já tenha notado uma certa familiaridade com tantas outras histórias que giram em torno de personagens tentando sobreviver a situações extremamente adversas. Obras como “127 Horas”, de Danny Boyle, e “Águas Rasas”, de Jaume Collet-Serra, são bons exemplos desse gênero capaz de despertar o máximo de interesse com o mínimo de recursos. E a direção de Mann e a fotografia de MacGregor (“Vivarium”) conseguem explorar essa característica de maneira espetacular.
Embora os primeiros vinte minutos estabeleçam de forma protocolar a origem do trauma de Becky e sua complicada relação com o pai, interpretado por Jeffrey Dean Morgan, o que vem a seguir faz todo o resto valer a pena. E, de fato, é admirável ver como algo tão trivial como subir as escadas de uma velha torre ganha ares cinematográficos. A cada rangido e tremor, a estrutura metálica parece ganhar vida própria, em parte graças à alternância de close-ups e planos panorâmicos que, além de dar ritmo e senso de escala, também antecipa o desastre que está por vir.

 
Então, quando Becky e Hunter finalmente se encontram isoladas a uma altitude equivalente ao dobro da Torre Eiffel, elas realizam uma série de tentativas de se salvarem, que exigem não apenas coragem e habilidade, mas sobretudo inteligência. Entretanto, devido à displicência do roteiro de Mann e Jonathan Frank (“Refém do Jogo“), é necessário manter um alto nível de suspensão de descrença para ignorar as inúmeras falhas e inconsistências do enredo, visto que uma mera corda mais longa seria suficiente para resolver o conflito que se estende além do necessário.

Apesar das ressalvas, “A Queda” é uma experiência intensa e imersiva, capaz de prender a atenção do público mesmo com poucos artifícios. Ao invés do habitual uso exagerado do CGI, a produção opta por efeitos práticos misturados com o uso sutil da técnica digital. Além disso, há uma boa combinação entre a bela fotografia de MacGregor com a direção dinâmica de Mann que, juntas, compõem uma atmosfera tensa e vertiginosa, em que a cada tentativa fracassada resulta em um novo desafio ainda mais arriscado e emocionante.

A Queda | Por Sérgio Alpendre 

Crítica
Para algumas pessoas, o pior medo é o medo de altura. Para Hunter (Virginia Gardner) e Becky (Grace Caroline Currey), protagonistas de A Queda (Fall, 2022), esse medo inexiste. Elas escalam montanhas rochosas como quem pratica uma simples caminhada. Até que Dan (Mason Gooding), marido de Becky, se descuida na escalada e cai no abismo.
Becky se afunda na bebida, para desespero de seu pai, até que Hunter, quase um ano depois, a chama para escalar uma torre de TV que está prestes a ser demolida. Uma enorme agulha desafiando os elementos no meio do deserto.

Ideia esdrúxula, percebemos, porque se está prestes a ser demolida, provavelmente também estará toda enferrujada, com suas armações já muito frágeis.
Com um terço de filme, as duas chegam no topo. E para descer? Com o peso e o movimento os parafusos que já estavam frouxos caíram e a escada velha de metal que as levou caiu também. O drama passa então a ser a baixa possibilidade de sobrevivência das duas, ali no topo, sem sinal de celular e sem ninguém mais saber que elas tinham escalado aquela torre. Os abutres espreitam, as águias também. Desafiar as alturas significa lidar também com aves de rapina.

A câmera de Mann

Scott Mann, o diretor, tem em suas mãos uma trama meio besta, escrita por ele mesmo e por Jonathan Frank. Mas já vimos tramas até mais tolas que possibilitaram filmes bons, por vezes até extraordinários. Em cinema, a trama importa bem menos do que a maneira como ela é tratada.
A Queda trabalha a partir daí com o medo que a maior parte dos espectadores tem, em maior ou menos grau, de grandes alturas. Por isso Mann realiza movimentos de câmera favorecendo a verticalidade do espaço, como já dá para intuir pelo cartaz de divulgação do filme. Hunter e Becky precisam sobreviver num espaço minúsculo, onde mal podem dormir.

É justamente o comportamento da câmera que nos dá a sensação de vertigem, que nos coloca em posição privilegiada para sentir mais ou menos o que as personagens sentem ali em cima. Na verdade, sentir um pouco mais por um lado, já que o movimento da câmera não espelha o delas, que é muito mais limitado. Mas um pouco menos também, já que em alguma instância nos lembramos que só podemos cair da poltrona. A cada voo da câmera, temos a sensação de que a torre está ali por algum milagre, que seu destino inevitável é a queda.

Quando parece que a trama vai ficar tola demais até pelo que esperávamos de saída, há uma virada que torna as coisas mais interessantes, mas não a ponto de impedir um desfecho anticlimático, cujo único valor é encerrar, também de modo simplório, a subtrama que havia se apresentado.

Outras vertigens

Três filmes me vieram à mente enquanto assistia a este A Queda. O primeiro está bem acima: No Coração da Montanha (Cerro Torre: Schrei aus Stein, 1991), de Werner Herzog. O segundo um pouco abaixo que o primeiro, mas ainda superior: Escalado para Morrer (The Eiger Sanction, 1975), de Clint Eastwood. O terceiro é um entretenimento meio picareta que acaba divertindo: Risco Total (Cliffhanger, 1993), de Renny Harlin.

O melhor de A Queda é que desta vez temos mulheres comandando a aventura, não um desfile de testosterona. O pior é que faltou uma diretora com talento para esse tipo de filme. Imaginemos Kathryn Bigelow na direção.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.


A QUEDA é de gelar a espinha! | Crítica SEM Spoilers |

Fall (A Queda) - Crítica: acrofobia, tensão e adrenalina! 

A QUEDA (2022) BASTIDORES DO FILME


22/01/23
Em Busca da Honra, In Pursuit of Honor, Filme para televisão, 1995

No iutubi aqui

Após receberem ordem para matar 400 cavalos que não estavam mais servindo ao regimento, um tenente, um sargento e alguns soldados decidem desobedecer ao comando e soltam os animais. Passam, então, a ser perseguidos pelo exército.

23/01/23
Vale do Pecado, The Canyons, 2013,  Paul Schrader

 Critica

Dirigido por Paul Schrader. Com: Lindsay Lohan, James Deen, Nolan Gerard Funk, Amanda Brooks, Tenille Houston, Gus Van Sant.

A primeira imagem que vemos em Vale do Pecado é a fachada semidestruída de um cinema abandonado – algo que se tornará uma rima visual ao longo da projeção, funcionando como marcações de viradas no tom da narrativa e se transformando eventualmente em um símbolo da decadência crescente de seus personagens. Porém, se este parece ser o significado óbvio desta rima no contexto da história, é também perfeitamente possível interpretá-lo como um comentário quase metalinguístico feito pelo experiente diretor Paul Schrader, que financiou o projeto através de crowdfunding: o Cinema clássico hollywoodiano – seja em seu modelo de produção ou em suas ambições artísticas – está morto ou quase; é hora de reinventá-lo ou de perecer com ele. E é isto que Schrader parece estar tentando fazer aqui com seu modelo de produção super-ultra-hiper-independente, mesmo falhando relativamente nos aspectos artísticos de sua obra.

Escrito por Bret Easton Ellis (responsável pelos livros que originaram Psicopata Americano e Regras da Atração), Vale do Pecado acompanha um triângulo amoroso composto pela bela e problemática Tara (Lohan), pelo milionário Christian (Deen) e pelo aspirante a ator Ryan (Funk). Morando com Christian há cerca de um ano, a garota insiste para que este escale Ryan no filme de terror B que o namorado está financiando apenas para provar ao pai que está fazendo algo de produtivo na vida e sem revelar que tem um interesse oculto nisso, já que, há três anos, ela e o ator mantiveram um relacionamento. Não demora muito, porém, para que Christian descubra o envolvimento entre Tara e Ryan, o que desperta impulsos perigosos no já naturalmente agressivo rapaz.

Personagem típico de Elis em sua natureza niilista, Christian (o nome é de um simbolismo tolo) é encarnado como um tipo antipático e unidimensional pelo péssimo James Deen, astro pornô que Schrader escalou sabe-se lá por quê. Ao contrário do que ocorreu com Sasha Grey em Confissões de uma Garota de Programa, que oferecia uma performance convincente e reveladora, Deen jamais parece se descolar dos trejeitos de garanhão profissional, ignorando que seu personagem não é apenas obcecado por experiências sexuais, trazendo também traços de sociopatia que deveriam ser explorados com mais eficiência. E se Nolan Gerard Funk, como Ryan, consegue rivalizar com Deen em inexpressividade, Lindsay Lohan finalmente parece preocupada em demonstrar os talentos que a transformaram em uma estrela há tantos anos, já que confere ansiedade e angústia a Tara, retratando bem a divisão da garota entre o que sente pelo ex-namorado e o conforto material que finalmente conseguiu alcançar com o atual – e a cena na qual ela explica isto para Ryan, em um shopping, é provavelmente um dos melhores momentos da carreira da atriz.

É uma pena, portanto, que o roteiro de Ellis se mostre tão frágil, limitando-se a enfocar as obsessões de Christian (eventualmente transformando-o em um monstro completo) e Ryan, que se mostra incapaz de respeitar os desejos de Tara ao forçar sua presença na vida da moça. Sim, há uma dinâmica interessante entre os personagens de Deen e Lohan no que diz respeito às mentiras constantes que contam um para o outro, sempre tentando forçar-se mutuamente a uma postura defensiva, mas este é um elemento menor dentro da narrativa e, consequentemente, longe de ser suficiente para torná-la envolvente.
Prejudicado também pela fotografia digital absolutamente medíocre de John DeFazio, Vale do Pecado não faz jus nem à carreira de Paul Schrader nem ao talento aqui demonstrado por Lindsay Lohan (embora sim à sua carreira problemática), mas é suficientemente eficaz para provar que ambos ainda têm potencial para trabalhos muito melhores do que este.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival do Rio 2013. 3 de Outubro de 2013

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

23/01/23
El Diablo, Filme para televisão, 1990, Peter Markle

 
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Quando uma de suas alunas é raptada por perigoso fora-da-lei, professor texano se junta a pistoleiro negro e seu bando para caçar o bandido. Quando uma de suas alunas é raptada por perigoso fora-da-lei, professor texano se junta a pistoleiro negro e seu bando para caçar o bandido.

24/01/23
The English, Minissérie de televisão, 2022, Hugo Blick

The English: Série do Amazon Prime estrelada por Emily Blunt ganha trailer

Marco Victor

Com o seu desenvolvimento já tendo sido noticiado anteriormente, agora a minissérie The English, estrelada por Emily Blunt, teve o seu primeiro trailer divulgado pelo Amazon Prime Video e o canal britânico BBC.

O trailer provoca as sequências emocionantes cheias de ação que os espectadores devem esperar ver no drama ocidental. Apresenta Lady Cornelia Locke, interpretada por Blunt, enquanto ela pede a ajuda de Eli Whipp, interpretado por Chaske Spencer, para decretar sua vingança pela morte de seu filho.
Assista ao vídeo:

The English - Teaser Trailer | Prime Video

“Um faroeste épico de perseguição, a minissérie leva os temas centrais de identidade e vingança para contar uma parábola convincente sobre raça, poder e amor. Uma aristocrática inglesa, Lady Cornelia Locke, e um ex-escoteiro da cavalaria Pawnee, Eli Whipp, se reúnem em 1890 na América Central para atravessar uma paisagem violenta construída sobre sonhos e sangue.

Ambos têm uma noção clara de seu destino, mas nenhum deles está ciente de que está enraizado em um passado compartilhado. Eles devem enfrentar obstáculos cada vez mais aterrorizantes que os testarão até seus limites, física e psicologicamente. Mas à medida que cada obstáculo é superado, eles os aproximam de seu destino final – a nova cidade de Hoxem, Wyoming.
É aqui, após uma investigação do xerife local Robert Marshall e da jovem viúva Martha Myers sobre uma série de assassinatos bizarros e macabros não resolvidos, que toda a extensão de sua história entrelaçada será verdadeiramente compreendida, e eles ficarão cara a cara. com o futuro que devem viver”.

The English é criado, produzido, dirigido e escrito por Hugo Blick. Além de Blunt e Spencer, o elenco ainda é formado por Stephen Rea (The Shadow Line), Valerie Pachner (A Hidden Life), Rafe Spall (The Salisbury Poisonings), Tom Hughes (A Discovery of Witches), Toby Jones (Marvellous) e Ciarán Hinds (The Terror).

Making Of THE ENGLISH - Best Of Behind The Scenes With Emily Blunt, Chaske Spencer & Hugo 

Tár, 2022, Todd Field

Crítica | Tár
A falsa decadência do artista. Por Gabriel Zupiroli 30 de janeiro de 2023

Há uma aura estilística muito clara e estabelecida que cerca toda a narrativa de Tár. Desde as primeiras cenas, onde o espectador é jogado diretamente nas especificidades daquele mundo através de diálogos nada convidativos, a direção de Todd Field procura sempre apresentar a personagem através de uma encenação sóbria, asséptica, estéril. Existe um universo muito bem definido que carrega a tonalidade cinzenta de Berlim como uma espécie de reflexo de Lydia Tár. E esse universo se localiza justamente espalhado pelos aspectos “oficiais” de sua vida. Está contido nos locais de conversa com outras figuras importantes da música, nas ruas, nos escritórios e inclusive na casa que divide com a esposa – primeira violinista de sua orquestra – e a filha adotada. 

Em oposição, outro mundo aparece carregando uma inversão completa em relação a essa assepsia, habitando, por sua vez, os espaços onde Tár parece estar mais confortável, mais entregue, mais honesta. O palco, o estúdio, a outra casa que insiste em manter, todos esses locais surgem em meio à narrativa como uma espécie de refúgio para a personagem. Pois no fim, Tár é um filme sobre essas idas e vindas, sobre as contradições de alguém que carrega uma dualidade muito tensionada entre uma força voraz e uma fragilidade evasiva.

Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett, é uma maestrina cuja carreira se encontra no auge. Em meio aos diferentes tensionamentos que esse status envolve, Tár precisa lidar com a cada vez mais incômoda carga de consequências relacionadas a sua forma rígida e egoísta de lidar com as pessoas ao seu redor. Portadora de “relações transacionais”, como a mesma coloca em dado momento do filme, é nesse escalonamento da crise que se dá a destruição das bases estáveis sobre as quais se apoiava sua vida. Em suma, trata-se de uma obra que se estabelece em meio a diversos contrapontos: as contradições de sua personagem, o debate sobre a relação entre a vida do artista e sua obra, sobre o criar e o conduzir e a maneira como uma personalidade egocêntrica consome todo o ambiente ao seu redor em vias da própria destruição.

E o estabelecimento de Tár se apoia justamente sobre as dualidades visuais supracitadas. Não apenas seu pensamento e suas atitudes carregam uma tensão constante, mas a própria maneira de lidar com as consequências é refletida na encenação de Field em relação aos diferentes espaços que a cercam. E essa tentativa da direção de conter as contradições nos espaços cinzentos e claros evoca esse lugar-comum da agressividade e da fuga. Tár está sempre localizada nesse ambiente oficial que a cerca, assim como a câmera muito limpa capta sempre sua clareza, seu enquadramento contido, como o aprisionamento de sua própria figura nessas instâncias. O que, de certa forma, conduz muito bem esse estudo que Field propõe, especialmente na primeira hora do longa-metragem. Entretanto, à medida que a narrativa vai se construindo, essa assepsia cênica surge cada vez mais como um refúgio vazio. As próprias zonas em que a personagem se refugia soam contraditórias, envoltas em uma clareza quase anuladora, como se perpetuasse seu estado anterior. É por essa condução, por exemplo, que a decadência de Tár se faz de maneira apressada, como se interessasse menos à direção especular esse lugar já presumidamente óbvio e mais encerrar, de uma vez por todas, esses espaços de tensão.

Nesse sentido, Tár é um filme que se insere em um conjunto de estudos de personagem que compartilham quase sempre dessa mesma encenação. A decadência do artista, da personalidade fraturada e narcisista, é retratada através dessa forma burocrática de lidar com as instituições narrativas e cinematográficas. Como se precisasse de tal controle, a tensão na verdade acaba por nunca, de fato, existir e se desfazer em meio ao filme, tornando-se apenas uma evocação espectral, vazia. Os fantasmas de Tár, sua obsessão pelo controle e sua negação da realidade que a cerca se apresentam, mas se sustentam apenas como sugestão. A própria relação com as figuras mais novas, embebidas de uma tensão sexual com caráter apenas de objeto de troca, assume tal higienização que amputa qualquer trabalho verdadeiro com o sentimento – e com as consequências.

E isso se dá de tal forma que a própria queda de Tár nunca é, de fato, apresentada dessa forma. A fuga e a relação com a culpa existem, mas como uma falsa muleta que objetiva apenas sua reconstrução. Nunca se perde de verdade pois não há risco de perda. O controle de Field – que é responsável por criar ótimos momentos quando a personagem se encontra, de fato, sobre a torre de marfim – se torna tão massivo e assumido que de antemão não se espera que os riscos sejam, no fim, reais. Tár perde, sem dúvidas, tudo ao seu redor, mas não perde da forma que a decadência é anunciada ao longo de todo o filme. A sensação que fica, no fim, é de uma esperança – que é a última que morre, segundo a personagem – agridoce, de que falta algo para tornar aquela narrativa valiosa o suficiente.

É nesse contraste entre as dualidades – da personagem e da encenação – que Tár acaba por habitar essas duas potencialidades coexistentes. Na entrega de sua sobriedade, se trata de um filme ótimo, com uma performance cruel de Blanchett que realmente vale a pena. Entretanto, nas fugas, nos desvios, o filme não consegue de fato se desfazer do outro lado. O mundo cinzento de Berlim e da direção de Field contaminam toda a obra, impedindo que a decadência do artista se torne algo concreto, palpável. No final, sobre a ambiguidade se o que foi visto concorda ou discorda com o debate proposto por ela, que também está cercado de contradição. É um filme que bebe de uma articulação visual muito precisa, mas que perde justamente em ficar por aí. É um filme, talvez, sobre a sobriedade das instituições, e não verdadeiramente sobre aquilo que habita o interior de sua personagem.

Tár - Análise e História Por Trás do Filme de Cate Blanchett | Oscar 2023

TÁR - MUSIC FROM AND INSPIRED BY THE MOTION PICTURE

 

Coração de Trovão, Thunderheart, 1992, Michael Apted

"Coração de Trovão" é um "thriller" que tem por base a investigação do FBI sobre uma conspiração, envolvendo mortes violentas, para roubar terra aos índios. O argumento de John Rusco é baseado em acontecimentos que ocorreram em 1970 na Reserva de Pine Ridge, no South Dakota. Val Kilmer é o agente Ray Levoi, a quem é entregue a investigação devido ao facto do seu pai ser um índio Sioux, o que o coloca em confronto com as suas raízes.


26/01/23
O Corcunda de Notre Dame, Notre-Dame de Paris, 1956, Jean Delannoy

 
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Gina Lollobrigida(1927-2023)

 Victor Hugo (1802-1885) (credits 255)

Sinopse: A bela e famosa história escrita por Victor Hugo do corcunda de Notre Dame, um sofrido deficiente que morava nas dependências da catedral. O ano é 1942, e o Festival dos Tolos já está correndo na praça de Notre Dame em Paris. Enquanto muitos brincam e encenam peças, o horroroso corcunda Quasimodo (Anthony Quinn), o tocador do sino da catedral, está sendo humilhado e atormentado por um bando de ciganos. Mas ninguém pode atingi-lo, pois ele é protegido pelo chefe de justiça da cidade Frollo (Alain Cuny). Além de estar cheio de problemas, Frollo está com a consciência atormentada pela beleza da sexy cigana Esmeralda (Gina Lollobrigida), e um romance entre os dois seria considerado completamente inadequado para sua posição, visto que os ciganos são nômades rejeitados pela sociedade. Quando Frollo envia Quasimodo para cortejar a cigana para ele, o corcunda acaba assustando-a e é preso; enviando Esmeralda para os braços de Phoebus (Jean Danet), o capitão do exército. Esmeralda passa a sentir pena de Quasimodo, e tenta libertá-lo quando ele é trancafiado. Mas quando o capitão Phoebus é esfaqueado até a morte, apesar de possuir muitos admiradores, Esmeralda logo é considerada a principal suspeita do crime...

O Corcunda de Notre Dame - 1956

O filme é contado pelo artista cigano Clopin. Tudo começa em Paris, em 1482, quando quatro ciganos são barrados ao tentar entrar na cidade pelo Ministro da Justiça, Claude Frollo, que nutre ódio por esse povo. Três dos ciganos são presos, mas a outra, que possuía um embrulho entre os braços foge. Frollo persegue-a sob o seu cavalo até a Catedral, julgando que o que ela tinha em mãos eram coisas roubadas. A cigana clamou santuário desesperadamente, até que Frollo, tenta tirar-lhe o embrulho, dando-lhe um pontapé violento, matando-a. Já com o embrulho nas mãos, Frollo, apercebe-se que era um bebé, mas depois de o desenrolar, vendo uma criança desformada, considera-a um monstro, e dirige-se a um poço, com intenção de o largar. Mas é impedido pelo arquidiácono, que o faz aperceber das suas atrocidades já cometidas, dando-lhe como única esperança de salvação da sua alma, cuidar da criança, como sua. Frollo concordou, desde de que a dita ficasse escondida, a viver no campanário. E batizou-a de Quasimodo.

Vinte anos depois, Quasímodo é um homem feio e corcunda, que vive trancado no campanário da Catedral tocando os sinos, com a companhia de apenas três gárgulas - Victor, Hugo, e Laverne. Instigado por eles, Quasímodo aventura-se a sair da catedral para participar do "Festival dos Tolos" (ou no Festival dos Bobos, na versão portuguesa), a maior festa do ano realizada em frente à catedral francesa, apesar de Frollo proibí-lo de sair, dizendo que era para o seu próprio bem. Durante a festa, num concurso para designar a cara mais feia de Paris, Quasímodo vence, e é proclamado rei do festival, mas depois é gozado e torturado pela multidão, sendo apenas defendido por Esmeralda, uma cigana que dançava para ganhar dinheiro. 

Ao ajudar Quasímodo, a moça desperta a ira de Frollo, que manda prendê-la. Ela foge, escondendo-se sob a protecção da Catedral, onde reencontra Quasímodo, que em forma de agradecimento, ajuda-a a escapar da Catedral, pois todas as saídas estavam vigiadas pelos guardas por ordens de Frollo. Quando o juiz (que está obcecado pela cigana) descobre sua fuga, procura-a por toda a cidade prendendo todos os ciganos e queimando Paris. Quasímodo, depois de se aperceber de que Esmeralda está em perigo, vai ao seu encontro, ao esconderijo dos ciganos, a "Corte dos Milagres", juntamente com Febus, um "ex-capitão da guarda". Mas não sabia que estava a ser vigiado por Frollo, que finalmente descobriu o esconderijo dos ciganos, prendendo toda a gente.

Esmeralda é condenada à fogueira pelo crime de feitiçaria. Quasímodo fica preso na Catedral, sob correntes. Na praça em frente da catedral, estava a cigana, atada a um poste, prestes a morrer queimada. Mas, quando Esmeralda está prestes a ser queimada, Quasímodo, num acto de raiva, liberta-se das correntes, e desce do ponto mais alto da Catedral até à praça, salvando Esmeralda, e trazendo-a de volta à Catedral, inconsciente, devido a fumaça. Frollo dá então ordem aos seus homens para invadirem a Catedral. 

E nesse momento, Febus, consegue roubar a chave de um soldado, libertando-se a si e aos ciganos das celas, apelando à multidão para não ficar parada, que responde atacando o exército de Frollo. No meio da batalha, Frollo consegue entrar pela catedral, encontrando o Corcunda num quarto com Esmeralda, acreditando que ela estava morta. Frollo lamenta, mas diz que era o seu terrível dever matá-la, e enquanto se lamenta tenta esfaquear Quasímodo, que derruba-o e foge com Esmeralda pelas varandas da Catedral. Frollo encontra-os, e apanha Quasímodo com o seu manto, atirando-o da Catedral, mas o Corcunda agarra-se no manto e leva Frollo consigo, mas Esmeralda agarra Quasímodo, que por sua vez, não deixa Frollo cair, que se balançando se agarra a uma gárgula, mas ela acaba desabando levando junto Frollo.

Mas Quasímodo não consegue segurar a mão de Esmeralda, e ela cai também, sendo salva por Febus. Quasímodo, mesmo apaixonado por Esmeralda, compreende o amor entre a cigana e Febus. Esmeralda, então, encoraja Quasímodo a sair da Catedral, e ao sair, observado pela imensa multidão, é acariciado por uma criança que depois o abraça, sendo aclamado como herói pela população.

28/1/23
Triângulo da Tristeza, Triangle of Sadness, 2022, Ruben Östlund

Triângulo da Tristeza, Triangle of Sadness

Crítica por Pablo Villaça

Dirigido e roteirizado por Ruben Östlund. Com: Harris Dickinson, Charlbi Dean, Dolly De Leon, Vicki Berlin, Zlato Burić, Sunnyi Melles, Iris Berben, Amanda Walker, Oliver Ford Davies, Henrik Dorsin, Arvin Kananian, Alicia Eriksson, Jean-Christophe Folly e Woody Harrelson.

Os três últimos filmes do sueco Ruben Östlund têm algo importante em comum: ambientados totalmente (ou em sua maior parte) em espaços bastante específicos e limitados (os alpes franceses, um museu de Estocolmo, um iate de luxo/uma ilha), Força Maior, The Square: A Arte da Discórdia e Triângulo da Tristeza empregam estes espaços para delimitar microcosmos sociais e analisar o comportamento, as expectativas e as posições de seus personagens nestes contextos. Não que o objetivo do cineasta seja criar algum tratado sociológico, já que, extrapolações à parte, seus interesses principais residem no ridículo da natureza humana, no sentimento de autoimportância que muitas de suas criações exibem e na sátira.

Adotando o estilo de uma metralhadora giratória, o roteiro escrito pelo próprio Östlund inicia seu massacre pelo mundo da moda, apresentando-nos ao modelo Carl (Dickinson), que, onipresente em capas de revistas apenas dois anos antes, agora experimenta os efeitos de uma indústria que cospe “ícones” com a mesma facilidade com que os cria, vendo-se forçado a se submeter a audições para marcas que há pouco o considerariam caro demais para suas campanhas (um lembrete de que ícones instantâneos são menos “ícones” do que produtos com tempo de validade reduzido). O mais interessante desta introdução, contudo, é a maneira irreverente com que o diretor aponta o contraste entre o marketing de marcas populares e aquelas mais caras: enquanto as primeiras habitualmente trazem modelos sorridentes, as últimas praticamente esperam que seus manequins expressem em sua postura um quase desprezo por seus consumidores, numa sugestão de que parte do impulso da compra reside talvez num desejo inconsciente de conquistar o respeito dos oráculos da moda (leia-se: dos que ditam as regras da alta sociedade).

Numa sociedade na qual a imagem é mais importante do que a realidade e este “respeito” está diretamente associado ao glamour exibido nas redes sociais (no universo digital, a máxima de O Homem que Matou o Facínora seria “para que a lenda se torne fato, instagrame a lenda”), Carl é também um mero personagem secundário na existência virtual da namorada, a influencer Yaya (Dean), que ostenta viagens que não tem condições de fazer, pratos que não pode degustar e roupas pelas quais não pode pagar enquanto convence seus seguidores de que leva uma vida que, como certamente sabe, deixará de existir até mesmo como fantasia caso suas fotos deixem de gerar o engajamento necessário – e neste sentido é irônico constatar como ela se esforça para “produzir conteúdo” (suspiro) continuamente para manter um cotidiano que não é o seu, como se tivesse passado a acreditar na ficção apresentada em seu próprio perfil no Instagram.

Mestre em criar desconforto no espectador ao expor a hipocrisia dos personagens que acompanha, Östlund também emprega o jovem casal em uma longa sequência na qual, sob o pretexto de desafiar convenções de gênero, Carl expõe sua frustração com o teatro criado por Yaya sempre que chega o momento de pagar a conta ao fim de uma refeição, sendo patente como seus protestos de que a discussão “não é sobre dinheiro” nada mais é do que sobre dinheiro e que sua defesa da “igualdade” não ocorreria caso seu cartão de crédito não estivesse sobrecarregado. É notável, diga-se de passagem, como o realizador acentua a patetice e o incômodo da situação através de recursos como o som do limpador de para-brisas durante o trajeto até o hotel e de como, logo depois, a tentativa de Carl de apresentar seus argumentos de forma convincente é sabotada pelas portas do elevador que insistem em interromper seu discurso.

Porém, por mais eficiente que seja este primeiro ato de O Triângulo da Tristeza, a base temática do filme é de fato estabelecida no segundo, que ocorre durante o luxuoso (em um contexto de decadência ocidental) cruzeiro no qual somos apresentados a vários outros personagens – ou melhor: tipos – que serão utilizados para debater as obsessões do cineasta: o oligarca russo Dimitry (Burić), o desenvolvedor de apps Jarmo (Dorsin), a faxineira Abigail (De Leon) e a chefe desta, Paula (Berlin) – além do capitão Thomas (Harrelson) e dos já mencionados Carl e Yaya. Explorando o absurdo intrínseco ao simples conceito deste tipo de produto turístico (centenas de pessoas pagando pequenas fortunas pela hospedagem em um hotel flutuante), Östlund encontra a metáfora visual perfeita para esta sociedade insustentável em seus excessos e desigualdades ao enfocar os passageiros sempre inclinados graças à instabilidade do navio, completando a imagem com os ângulos holandeses que reforçam o desequilíbrio (ou seja: quando as pessoas não surgem em posição oblíqua, é o próprio mundo que está fora de prumo).

O que nos traz a uma sequência que, perdoem-me o clichê que creio nunca ter utilizado em quase três décadas de carreira, é uma verdadeira tour de force: o longo jantar perturbado pelo mar revolto e suas consequências sobre a saúde dos turistas. Construída com paciência e disciplina pelo diretor, que inicialmente utiliza o desenho de som para sugerir o caos que se instala pelo salão, a passagem culmina em um vômito coletivo que faz jus à competição de devoramento de tortas de Conta Comigo, mas com um propósito maior do que a mera escatologia: a princípio, ao retratar como os demais passageiros se esforçam ao máximo para ignorar o que está acontecendo ao redor, há a sensação óbvia de estarmos vendo pessoas que há muito se convenceram de que nada pode atingi-las – e à medida que o enjoo chega para todos, o filme não tenta ser sutil (e nem deveria, pois a abordagem funciona bem para a sátira) ao ilustrar como, mesmo no meio do desastre, há o condicionamento (ou melhor: imposição) sócio-econômico dos papeis pré-determinados em que os proletários são forçados a se prostar e a limpar a sujeira da elite mesmo que esta seja exposta por Östlund em toda sua fragilidade (sim, estes indivíduos podem estar na lista de bilionários da Forbes, mas isto não os ajuda quando estão reduzidos a espasmos de vômito e diarreia em suas cabines suntuosas).

Mas se Triângulo da Tristeza já mereceria todos os créditos pela insanidade desta sequência (que, vale lembrar, inclui ainda uma troca de citações entre – como se definem – “um russo capitalista e um americano socialista”), o terço final do longa completa a discussão de maneira inspirada ao atirar alguns de seus personagens em uma situação que os despe do que possuem e os resume ao que são. Qual o valor de uma influencer de estilo de vida ou de um modelo num cenário em que todos precisam contribuir para o bem geral? Não por acaso, é aqui que a faxineira Abigail (De Leon deveria ter sido indicada a todos os prêmios possíveis) subitamente se vê no topo da pirâmide depois de uma existência de oportunidades negadas e de limitações profundas que expõem a ideia de “meritocracia” como a canalhice autocongratulatória que aqueles que já nasceram com os caminhos abertos adoram berrar.

Pois é muito fácil endeusar Reagan, Thatcher e o neoliberalismo quando são os outros que sustentam a utopia em que você vive: programa social é “esmola para preguiçosos”, enquanto subsídios e isenção de impostos “fazem a economia girar”. Bastaria que a situação se invertesse levemente, porém, para que os mesmos que citam Milton Friedman adotassem Marx como guru e defendessem que “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Enquanto isto não ocorre, para esta elite a necessidade do outro será apenas um privilégio exigido por quem cometeu o equívoco de ter uma família humilde. 07 de Fevereiro de 2023.

Em tempo

Causa da morte repentina da estrela de 'Triângulo da Tristeza' é revelada

Charlbi Dean faleceu em 29 de agosto, aos 32 anos.

Daniel Medeiros, 22 dez, 2022

Um porta-voz do Instituo Médico Legal de Nova York revelou à revista People a causa da morte da atriz e modelo Charlbi Dean. A estrela do filme vencedor do Festival de Cannes, 'Triângulo da Tristeza', faleceu repentinamente em 29 de agosto, aos 32 anos. Segundo a informação divulgada, Dean morreu de sepse bacteriana após ser exposta à bactéria Capnocytophaga. A sepse ocorre quando substâncias químicas são liberadas na corrente sanguínea para combater uma infecção e desencadeiam uma inflamação em todo o corpo. Ela tinha predisposição à doença porque precisou remover um baço após um acidente de carro ocorrido na Cidade do Cabo, na África do Sul, em 2009.

A sua trágica morte aconteceu quando ela estava prestes a alavancar sua carreira de atriz, após ter interpretado a modelo Yaya em 'Triângulo da Tristeza', do sueco Ruben Östlund, que também foi eleito Melhor Filme Europeu do ano pela Academia Europeia de Cinema. A atriz também era conhecida por ter vivido uma vilã na série de super-heróis 'Raio Negro' (Black Lightning). "A morte repentina de Charlbi é um choque e uma tragédia", escreveu Östlund no Instagram logo após sua morte. "É uma honra ter conhecido e trabalhado com ela. Charlbi tinha um cuidado e uma sensibilidade que animavam seus colegas e toda a equipe de filmagem. O pensamento de que ela não estará ao nosso lado no futuro me deixa muito triste. Neste momento difícil, meus pensamentos vão para seus entes queridos, sua família e seu noivo Luke".

29/1/23
Os últimos Foras-da-Lei, The Last Outlaw, 1993, Geoff Murphy

No iutubi aqui

Um grupo de ex-soldados que serviram no exército americano na Guerra Civil Americana andam pelas cidades do Oeste. Liderados por Graff, eles assaltam bancos e eliminam quem atrapalhar seu caminho. Após uma emboscada e um sangrento tiroteio, Graff exige que um de seus homens, ferido em combate, seja deixado para trás. Revoltados, os membros da gangue tentam matar Graff e partem para fronteira. O ex-líder, porém, sobrevive e vai começar uma vingativa caçada e só vai parar quando eliminar um por um de todos aqueles que o traíram.

30/01/23
Onde os Homens São Homens, McCabe & Mrs. Miller, 1971, Robert Altman

No iutubi aqui

Julie Christie, 1940

'Quando os Homens São Homens', o filme mais triste já feito

Luiz Carlos Merten, Terra, 10 set 2020

Robert Altman iniciou-se na direção na vertente da juventude transviada em 1957, com The Delinquents, interpretado pelo futuo diretor Tom Laughlin. Tinha 32 anos. Aos 45, em 1970, ganhou a Palma de Ouro em Cannes com a comédia de guerra MASH. Seguiram-se Voar É com os Pássaros e o western Quando os Homens São Homens/McCabe & Mrs. Miller, que ele pretendia fazer com Elliott Gould, mas terminou aceitando Warren Beatty por facilidade de produção. Altman emendou Imagens antes de fazer, agora sim com Gould, Um Perigoso Adeus/A Long Goodbye, um policial na vertente noir, à maneira de Raymond Chandler.

Talvez esse título - Imagens - seja revelador, pois mostra uma tendência de Altman, que sempre abordou os gêneros para desconstruir seus códigos tradicionais. Ainda nos 70 ele fez sua obra-prima, Nashville, atravessando depois uma fase difícil nos 80, antes de ressurgir nos 90. A fase que vai de O Jogagor, de 1992, a Assassinato em Gosford Park, de 2000, é das melhores. Quando os Homens São Homens. O título brasileiro tem a ver com uma visão romântica da conquista do Oeste como terra de heróis. Não encontra guarida no revisionismo do autor. Desde que o próprio John Ford filmou a degradação dos mitos em O Homem Que Matou o Facínora, de 1962, o foco crítico tornou-se dominante . O filme poderia chamar-se Quando os Homens não Prestam, ou São Todos Canalhas.
McCabe and Mrs. Miller, Warren Beatty e Julie Christie, na fase em que mantinham uma intensa ligação que resultou em pelo menos três filmes - o Altman, Shampoo, de Hal Ashby, que, coincidência ou não, havia sido montador de Altman, e O Céu Pode Esperar, codirigido pelo próprio Beatty (com Buck Henry). 

McCabe é um jogador que chega, debaixo de chuva, a Presbyterian Church. O detalhe está longe de ser insignificante. A cidade está sendo construída com madeira bruta arrancada à floresta. O céu é cinzento e, quando não é a chuva, é a neve. Ele chega ao precário saloon, arma sua mesa de jogo - uma simples toalha - e começa a dar as cartas. Depena os adversários e usa o dinheiro para comprar três mulheres. Uma velha, outra gorda e a terceira desdendentada. Chega a madame - Mrs. Miller -, com quem McCabe funda um negócio. Tornam-se sócios, e amantes. O plano é montar um bordel com salão de jogos e outro, de banhos. A higiene chega ao Oeste selvagem.

Prebyterian Church cresce, atrai a escória do Oeste. Logo no começo, o brutal assassinato do personagem interpretado por Keith Carradine, no primeiro de seus três filmes com o diretor - e a sua estreia no cinema -, prepara o público para a violência que virá, e o que poderá ocorrer com McCabe. Carradine faz um moleque atrevido. Passou a noite com as p... Na saída, ao atravessar a ponte, reencontra o pistoleiro que diz, friamente que vai matá-lo. E mata. No western de Altman, ninguém escapa a seu destino. Vale lembrar que o gênero, na tradição de Hollywood, desenvolveu-se associado aos planos gerais, que valorizam a paisagem. Um homem, um cavalo, uma arma e a pradaria imensa - nos primórdios do western não eram necessários mais que esses elementos básicos. Ford criou sua grande obra no marco de uma paisagem grandiosa, Monument Valley. 

Sam Peckinpah introduziu as metralhadoras e os carros, como signos de transformação histórica. O gênio de Altman, pois foi um toque de gênio, consistiu em fazer da própria cidade em construção uma personagem. Ali dentro, sitiados pela neve, a chuva, operários da construção e mineradores ganham, gastam, envidividam-se, trabalham mais ainda - até que chegam os pistoleiros. O décor é de barro e neve, e o tempo todo a direção de arte faz com que a construção dos espaços sacros (a igreja) e profanos (o bordel e o saloon) seja o contraponto aos conflitos que fazem avançar a narrativa.

John Ford mostrou como se constrói uma civilização. Altman documenta a construção do espaço, mas não tem o amor de Ford pela recriação da vida comunitária. A civilização é um sonho, ou melhor, um delírio, e o desenlace violento se faz paralelamente à imagem de Julie/Mrs. Miller fumando ópio com o olhar perdido, prenunciando o escape na droga dos gângstes judeus de Sergio Leone em Era Uma Vez na América. O Altman é um filme de atmosfera - o diretor chegou a revelar que teve a ideia ouvindo as canções cabareteiras e etílicas de Leonard Cohen. Deu-se conta de que era assim que visualizava o 'seu' Oeste'. As prostitutas assaltam os clientes, os assassinos são sádicos, o pastor é covarde, a Mrs. é uma capitalista corrompida que venderia a própria mãe, se tivesse uma, e McCabe é um arrivista sem moral, mas não sem escrúpulos. É até motivo de atrito com a madame, que o ama.

Por que McCabe recusa a oferta da mineradora? Por que não tenta salvar a pele, por que não foge dos assassinos, mas os enfrenta? Por menos heroico que seja, é um homem com um código de ética e certamente não se compara à mineradora e seus sicários - o capitalismo nascente, nessa terra de bárbaros, não admite concorrência. Mrs. Miller tenta convê-lo de que errou ao rejeitar a oferta, ele tenta recuar, mas não tem volta. Seu destino está selado. Olha o spoiler - a determinação do amado de ir à luta atira a desesperada Mrs. Miller no ópio, em busca de acolhimento. Há algo de profundamente belo e triste neste desfecho, e Roger Ebert chegou a escrever, em A Magia do Cinema - Ediouro, 2003 -, que se trata de um dos filmes mais tristes já feitos, recheado por uma ânsia de amor e de abrigo que nunca virão. (Ebert também escreveu, e é verdade, que poucos diretores lograram fazer filmes perfeitos. O Altman de Quando os Homens São Homens é um deles.) Mais que uma pungente história de amor, é sobre o fracasso de um empreendimento comercial no quadro do nascimento de uma nação.

Não é McCabe e Mrs. Miller - e sim, McCabe & Mrs. Miller. Quem é esse homem? Quando chega a Prebyterian Church, ele não porta pistola - está mais para almofadinha -, mas a destreza com a garrucha indica que o jogador teve um passado com as armas. Um pistoleiro tentando redimir sua honra? Um derrotado fordiano disposto a resgatar sua grandeza? A relação com Mrs. Miller é mercantilizada - Constance (seu nome) cobra ao fazer sexo com ele, e numa cena, num solilóquio, McCabe queixa-se de que a parceira não veja a poesia armazenada em seu peito. Quando é atingido e talvez morra na neve, essa talvez seja sua sepultura, mas o manto branco promete também a definitiva purificação.

McCabe & Mrs. Miller (1971) Trailer

Sangue sobre a neve - com a cumplicidade de seu grande fotógrafo, Vilmos Zsigmond, Altman consegue criar beleza na tragédia. O negativo foi exposto para destruir a claridade - o diretor queria criar a sensação de coisa antiga, como se o mundo estivesse sendo visto por meio de um painel de vitral. E foi nesse filme que ele definiu a que se tornaria uma das características mais marcantes de seu estilo. O diálogo sobreposto teria surgido de maneira quase acidental . Em vez de usar potentes gravadores para captar a cena toda, Altman tentou uma experiência. Cada ator tinha o seu microfone pessoal ligado a um canal e ele descobriu que poderia manipular o som no estúdio. Isso se percebe desde o começo, na chegada de McCabe. O diálogo é desconexo. Uma frase solta aqui ("Ele já matou um homem"), outra ali ("Laura, o que teremos no jantar?"), longos silêncios, murmúrios. O som ambiente é tratado realisticamente num filme encenado, de época. Ao som soma-se a particular mobilidade de câmera, que parece solta entre os personagens e, a partir de Nashville, de 1975, essa virou uma marca registrada de Altman.

Paulo Francis achava que era uma lição assimilada de Luís Buñuel, mas que não torna menos original o recurso nos filmes do norte-americano. Uma palavra sobre Beatty. Altman queria Elliott Gould no papel, e ele foi magnífico em Um Perigoso Adeus, de 1973. Embora fosse um ano mais velho - nasceu em 1937 -, Beatty passava muito bem por garoto e Altman forçou-o a usar barba cerrada, o que deu outro look ao ator e favoreceu o personagem. Existiram de fato um McCabe e uma Mrs. Miller e, na puritana América do século 19, foram precursores no empreendedorismo da indústria do sexo. Conta a lenda que ela amarrou o amante para raspar sua cabeleira e deixá-lo careca. Julie está linda com o cabelo encrespado. Foi indicada para o Oscar de melhor atriz, que já recebera em 1965 - por Darling, a Que Amou Demais, de John Schlesinger -. mas era o ano de Jane Fonda, por Klute, o Passado Condena, de Alan J. Pakula. Altman morreu em 2006, aos 81 anos. Havia sido indicado cinco vezes para o Oscar de direção e naquele ano recebeu um prêmio honorário da Academia "por sua carreira que reinventou continuamente a arte cinematográfica, servindo de inspiração permanente para outros realizadores e o público".

31/01/23
Paixão dos Fortes, My Darling Clementine, 1946, John Ford

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Crítica | Paixão dos Fortes por Luiz Santiago 15 de agosto de 2014

Muito antes de tornar lendária a frase do “publique-se a lenda” em O Homem Que Matou o Facínora, John Ford já vinha há muito preferindo essa forma de narrativa dos fatos ao rigor histórico tão valorizado no cinema. Isso não quer dizer que o diretor nunca tenha abordado o western, o drama, a comédia ou a guerra com realismo, mas, mesmo nessas ocasiões, sua verdade abria espaço para “aquilo que a História oficial não contou”, para o que ele imaginava ter sido verdade ou que tenha ouvido de alguém como verdade. Levando isso em consideração, o longa Paixão dos Fortes é a sua realização que mais se assume como lenda divulgada.

Em 1927, Ford conheceu Wyatt Earp pessoalmente e, até a morte do famoso xerife em 1929, eles estiveram relativamente próximos segundo relato do próprio Ford para James Stewart e Henry Fonda em um documentário feito para a CBS em 1971. https://www.youtube.com/watch?v=SAObTxfEOH0 Earp se tornou, inclusive, um visitante de honra no set de filmagem de Justiça do Amor (1928), quando, durante os cafés que tomava com Ford nos intervalos, acabou narrando a história de como aconteceu o tiroteio do OK Corral, em Tombstone, Arizona. Ford assegura que o roteiro de Paixão dos Fortes mostra precisamente aquilo que ele ouviu de Wyatt Earp, uma versão que obviamente contrasta com a ‘história oficial’.

John Ford on Wyatt Earp vídeo

Percebe-se que o caráter de memória e tradição, de publicação da lenda e valor da memória sentimental estão na gênese desse western, realizado no ano seguinte ao término da II Guerra Mundial (onde John Ford e Henry Fonda serviram na Marinha) e que por isso mesmo traz uma atmosfera de retorno ao lar, de tradição do povo e costumes americanos do Velho Oeste com o qual o diretor se identificava grandemente, mesmo não sendo nativo da região.
Além disso, Paixão dos Fortes é a volta de Ford aos westerns desde Ao Rufar dos Tambores (1939), que seria seguido por quatro longas de outros gêneros (As Vinhas da Ira, A Longa Viagem de Volta, Caminho Áspero e Como Era Verde Meu Vale) e uma série de documentários patriotas ou de educação e moral para soldados durante a II Guerra Mundial.

 
 Nesse rearranjo histórico, Ford fez uso de seu território de filmagem in loco favorito, o Monument Valley, mas também gravou parte da produção no vulcão Torre do Diabo, no Wyoming. Essas paisagens contextualizam o espectador já na abertura do filme, apresentando o território como uma “terra estranha” capaz de fazer o gado definhar ou morrer de fome e sede. O primeiro contato de Wyatt Earp (vivido de maneira preciosamente contida por Henry Fonda) com os Clanton também se dá nessa abertura, talvez uma das mais dissimuladas introduções da maldade no caminho de um homem do oeste já feitas pelo diretor.

Nós ainda não sabemos, mas o roteiro, a essa altura, já está trilhando o caminho do “impactante conto de fadas do oeste”, que terá sua motivação com o assassinato de James Earp. As sequências são filmadas com a intenção de equilibrar a tragédia e a superação da dor através das raízes firmadas, exatamente o que faz Wyatt Earp quando aceita o emprego de xerife de Tombstone. Sua intenção inicial é encontrar as pessoas que mataram seu irmão caçula e roubaram seu gado mas, a longo prazo, a atmosfera familiar ganha espaço, especialmente após o aparecimento de Clementine, que trará luz aos olhos do xerife e um motivo a mais para fazer de Tombstone um lugar bom para se viver.
A cidade cresce a olhos vistos e elementos clássicos do western e cultura americana regional se misturam, culminando em dois pontos importantes: o tiroteio épico (em significado, não em constituição estética) e a semente do amor.

Há muito da memória da guerra em Paixão dos Fortes. Ao mesmo tempo em que vemos demonstrações de amizade e as complexas relações amorosas em cena, entendemos desde cedo que a tragédia pode facilmente colocar fim a esse filete de felicidade, quase como uma maldição a que os homens precisam passar para amadurecerem e saberem valorizar algumas coisas, mesmo que elas não tenham efeito a longo prazo (a emocionante e silenciosa cena de comemoração após Doc Holliday operar Chihuahua é um exemplo disso).

Como de costume nos filmes de John Ford, a trilha sonora tem um papel dramático de introdução e tradição, e é mais utilizada no começo do que ao final da fita. Cyril J. Mockridge (Consciências Mortas, O Rio das Almas Perdidas) apresenta bons temas para o Saloon – alguns deles apenas arranjos de canções tradicionais – e orquestração de caráter épico para o início, porém, com rápido ponto de cadência, passando de um trecho em fortíssimo para um acompanhamento mais leve, especialmente das cordas. Esse jogo de temas tem o seu retrato na fotografia de Joseph MacDonald (Viva Zapata!) que explora com bastante competência os tons escuros do quadro, quase flertando com o estilo noir. Repare no modo como o fotógrafo enquadra e ilumina o personagem de Victor Mature nos momentos mais tensos da fita. O mesmo vale para as belíssimas tomadas noturas, tanto em Tombstone quanto no OK Corral ou no deserto.

Paixão dos Fortes é uma obra sobre as raízes do homem do oeste, sempre lutando para se firmar em um terreno que teima em querer arrancar-lhes a vida. Percebemos nele a delicadeza de mulheres e homens (Wyatt Earp é extremamente vaidoso, com direito a perfume com aroma de rosas e tudo; Doc Holliday não é muito chegado em uísque e sim em champanhe…) e como eles se relacionam emotiva e socialmente. John Ford então lhes dá a oportunidade de serem “o mais americanos possível” e propositalmente brinca com a veracidade histórica de suas vidas, colocando para o público escolher não a versão verdeira (quem se importa com isso?) mas a que mais bonita e emocionante lhe parece.


5/2/23
Babilônia, Babylon, 2022, Damien Chazelle

Crítica | Babilônia

O barulhento cinema mudo. Por Kevin Rick 21 de janeiro de 2023

Uma curiosidade: assisti Babilônia alguns dias depois de ver Os Fabelmans, uma experiência que me trouxe algumas reflexões que acredito serem interessantes de pontuar rapidamente. Ambos os filmes são cartas de amor ao Cinema e à sua História, ainda que de maneiras extremamente diferentes. Spielberg tem essa abordagem cheia de ternura, magia e tom fabular mesmo em seus dramas ao retratar seu ofício, enquanto Damien Chazelle continua obcecado com a obsessão de artistas, sempre com narrativas espirais sobre o preço do sucesso e da perfeição.

Acredito que ambos os retratos são válidos e importantes, principalmente quando uma obra está interessada em analisar a podridão interna de Hollywood, como é o caso de Babilônia. No entanto, quis trazer esse rápido paralelo, porque Spielberg, mesmo com seus problemas de foco em Os Fabelmans, tem uma sinceridade tão bonita em como enxerga o Cinema. Já Chazelle me parece um pouco falso em Babilônia, usando uma narrativa cheia de lições manipulativas, moralismos chatos e mensagens um tanto óbvias sobre como a indústria cinematográfica cospe seus indivíduos para continuar rodando. A coisa é: o envelope dessa mensagem confusa é um espetáculo audiovisual que transforma a película em uma experiência divertidíssima.

Antes de adentrar mais nesse pensamento, contexto: Babilônia acompanha um grupo de personagens durante a transição do cinema mudo para os filmes falados, entre os anos 20 e 30. A narrativa é uma colagem de crônicas que se intercalam e se conectam durante a fita, onde seguimos, principalmente, Manny Torres (Diego Calva), um mexicano que quer trabalhar num set de filmagens; uma aspirante a atriz chamada Nellie LaRoy (Margot Robbie); uma estrela do cinema mudo chamado Jack Conrad (Brad Pitt); além dos subutilizados Sidney (Jovan Adepo), um trompetista de jazz, e Lady Fay Zhu (Li Jun Li), uma cantora de cabaré, entre outros coadjuvantes excêntricos e coloridos.

Se pudesse definir a obra de Chazelle, diria que é o encontro maluco de Cantando na Chuva com O Lobo de Wall Street, nos entregando uma peça de excessos e luxúria durante um período importante e turbulento de Hollywood. A meia hora de abertura aqui é simplesmente esplêndida, com o cineasta concentrando seus esforços em criar uma obra hipercinética e propulsiva sobre libertinagem e depravação. É folia da mais alta qualidade, com uma produção completa que não se desculpa pelo retrato grotescamente eletrizante de valores como moral e ética sendo desprezados por uma indústria completamente hedonista.

Dos passeios de Chazelle pelos cenários detalhadamente produzidos até suas impressionantes composições que dão uma escala absoluta para a festa, o cineasta tem uma condução primorosa para nos situar na forma de vida daqueles personagens. A cinematografia de Linus Sandgren é cheia de vida e cor, enquanto a trilha sonora de Justin Hurwitz encontra o perfeito equilíbrio entre barulho e movimentação. Sinto que muitos artistas hoje retratam festas e depravação com um tom gratuito, mas Chazelle e seus colaboradores sabem como deixar tudo dançante. O clímax do trompete de Sidney desencadeia uma longa sequência pelo salão; um solo de bateria está condicionado à coreografia da exuberante LaRoy; e a produção como um todo consegue dar um senso de humor perverso a muitas sequências.

É um início muito divertido, que deixa claro que será uma obra sobre curtir a vida adoidado e sobre figuras autodestrutivas, até que algo venha e interrompa a festa – ironicamente e propositalmente, é a chegada do cinema falado que inicia esse processo, assim como um moralismo social que atravessa a libertinagem. Depois da aparição do título, porém, a diversão é mais esparsa e o desenvolvimento narrativo tem seus tropeços. A intercalação das histórias merece críticas negativas, seja pela edição que não consegue dar fluidez para a conexão dos núcleos, seja pelo pouquíssimo foco dado ao Sidney e a Lady Fay Zhu, para mim os dois personagens mais interessantes junto de Manny em suas representações de personagens marginalizados na indústria – parece até que Chazelle encaixou eles na história como um pensamento posterior ou tangente; talvez uma “obrigação” depois das críticas que recebeu por ter feito duas obras sobre jazz sem um personagem negro de destaque?

No entanto, tenho outros problemas de ordem narrativa que são maiores, todos envolvidos pela mensagem esquisita de Chazelle que expliquei no início do texto. Existem muitas cenas extremamente didáticas sobre artistas sendo quicados para fora da indústria cinematográfica, incluindo um monólogo enfadonho para Jack Conrad, um arco previsível de LaRoy e até mesmo o título. A obra é cheia dessas pequenas lições morais e mea culpa por personagens de péssima índole. O próprio desfecho (que é aberto a interpretações) e sua montagem experimental da história do Cinema me parecem querer justificar que tudo valeu a pena, que os excessos são justificados para fazer Arte e uma sugestão cínica de que o progresso do Cinema nasce de vidas destruídas. 

Faltou, para mim, a ambiguidade de Whiplash ou o sentimentalismo de La La Land em seus desfechos similares sobre a busca pelo sucesso artístico. Não sei se é essa mensagem que Chazelle quis passar, mas é a sensação que tive, de uma espécie de orgulho (a)moral por tudo aquilo no sorriso de Manny. Ou talvez ele só ficou feliz de estar marcado e participado daquele período. E mesmo passando por isso, o roteiro consegue ser um tanto superficial em suas críticas, leves referências e toques de metalinguagem, e arcos narrativos comuns ou mal trabalhados. O que realmente eleva a experiência é o estilo com que tudo é feito, os maneirismos de câmera e dos personagens, e as diversas cenas icônicas, sensuais e malucas, mesmo que a fita em si acabe sendo inchada e com muitas sequências arbitrárias – o bloco da cobra, por exemplo, é completamente desnecessário para mim, enquanto o evento com participação de um insano Tobey Maguire é perturbador e aterrorizante da melhor maneira possível.

Particularmente, minhas cenas favoritas envolvem os retratos que Chazelle faz dos sets e da transição de períodos do Cinema, como num bloco fantástico com a loucura de vários filmes sendo feitos ao mesmo tempo, com centenas de extras, mortes e destruições de câmera, ou noutro bloco especial sobre a agoniante e inadvertidamente cômica passagem para a era de som com a personagem de LaRoy. Quando Chazelle também se deixa levar pela história sem lições morais, os atores brilham, com destaque para uma Margot Robbie que encapsula a autodestruição e paixão pelo prazer de sua personagem; Brad Pitt com o ego, a ambição e a melancolia de uma estrela em decadência; e o Manny como um avatar da audiência que ama as telonas.

Babilônia é um filme cheio de momentos, mas sem se tornar um todo orgânico, se me entendem. É menos inteligente e crítico do que quer ser, e pode ser óbvio e um tanto cafona às vezes em sua trama recorrente sobre aqueles destruídos pela indústria cinematográfica. No entanto, mesmo em seus tropeços dramáticos e superficialismos narrativos, é uma tremenda experiência divertida sobre os bastidores de um sucesso desenfreado, suas lendas urbanas e os problemas de excessos, ainda que Chazelle pareça estar celebrando tudo aquilo e não criticando.

07/02/23
Marte Um, 2022, Gabriel Martins

MARTE UM – RUMO AO PLANETA VERMELHO
Filme de Gabriel Martins mostra esperanças e sonhos de uma família num Brasil em turbulência

Eduardo Escorel, 24 ago 2022, piaui

Filmado em Contagem e Belo Horizonte no final de 2018, com roteiro e direção de Gabriel Martins, Marte Um tem como um de seus protagonistas o menino que deseja estudar astrofísica e cuja aspiração máxima é ir para Marte, nada mais, nada menos. O personagem, chamado Deivinho (Cícero Lucas), diz no final do filme a seu pai Wellington (Carlos Francisco), sua mãe Tércia (Rejane Faria) e sua irmã Eunice ‘Nina’ (Camilla Damião) que o planeta está a distância aproximada de 60 milhões de km da Terra. Desse modo, a premissa dramática central de Marte Um fica definida – é o direito libertário de sonhar com o impossível ou, ao menos, com o que assim parece.

Para o pai de Deivinho, no entanto, o futuro do filho e, por extensão, de toda a família, depende do menino, apesar de usar óculos, aproveitar a grande oportunidade de sua vida – ser selecionado na peneira do Cruzeiro Esporte Clube e se tornar jogador de futebol profissional. A essas expectativas conflitantes, uma visionária, a outra usual, agrega-se a tensão criada pelo namoro de Eunice e a amiga Joana (Ana Hilário), ambas estudantes de direito, além de os tormentos que assaltam Tércia, a começar pela pegadinha inqualificável, feita por um programa de televisão, da qual ela é vítima enquanto está em uma lanchonete, tranquila, comendo um pastel.

Na abertura do filme, antes da primeira imagem, ouve-se o espocar de fogos e gritos distantes comemorando a vitória do candidato a presidente da República eleito em 2018. Em seguida, o sonhador Deivinho, deitado em uma espreguiçadeira, observa o firmamento e parece arrancar um dente (será mesmo isso que ele faz?). Na manhã seguinte, enquanto o café da manhã está sendo preparado, uma locutora em off anuncia que “Bolsonaro será o 38º presidente do Brasil, eleito com 55% dos votos válidos no segundo turno…”. O filme transcorre, a partir desse dia preciso, ao longo dos meses seguintes, indo até depois da posse do atual ocupante provisório do Palácio da Alvorada, à qual Wellington assiste pela televisão, enquanto almoça, no final da primeira metade de Marte Um.
Ao situar a ação nesse período da história recente do país, o roteiro de Martins cria um pano de fundo marcante para a narrativa que não exerce, no entanto, influência direta na trama. Salvo, talvez, por indicar, de modo deliberado ou não, a desconexão existente entre a instância máxima do poder político e as aflições cotidianas de uma família modesta. Seus integrantes são pessoas comuns cujos desejos enfrentam restrições concretas, sendo todos dependentes do trabalho do pai e da mãe, ela como diarista, ele como porteiro de um condomínio de apartamentos residenciais.

A produção de Marte Um se tornou possível graças ao projeto do filme ter sido selecionado, em 2016, no edital Longa BO Afirmativo, parceria da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura com a Agência Nacional do Cinema, com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, reservado para “filmes inéditos de ficção, com temática livre, dirigidos por cineastas negros”, com orçamento total no máximo de 1,8 milhão de reais, podendo receber até 1,25 milhão de reais. A esses recursos se somaram a coprodução do Canal Brasil e o apoio do Projeto Paradiso, iniciativa do Instituto Olga Rabinovich, voltado para formação profissional e geração de conhecimento no setor audiovisual.

Chama atenção ter sido necessário dedicar seis anos à realização de Marte Um, mesmo levando em conta as consequências da pandemia, inclusive a suspensão de exibições em salas de cinema por cerca de um ano e meio, entre 2020 e 2021. Tamanho período de produção ratifica que o sistema de produção baseado em editais tem um aspecto disfuncional, começando por premiar com uma mão e castigar com a outra.

No início deste ano, pouco antes de estrear na seleção oficial do Festival de Sundance, Marte Um teve sua distribuição mundial contratada pela Magnolia Pictures International, o que representa por si só um feito para uma produção brasileira de orçamento modesto, ínfimo se comparado ao padrão internacional. Quando foi anunciado, em janeiro, o acordo que poderá propiciar a exibição do filme fora do Brasil, as palavras da chefe de vendas internacionais da Magnolia, Lorna Lee Torres, prenunciaram a recepção calorosa que Marte Um viria a ter: “Gabriel Martins criou um filme inspirador e terno sobre as esperanças e sonhos de uma família, ambientado em um Brasil em constante turbulência. Estamos muito entusiasmados em representar esse lindo filme e convidamos o público a compartilhar os sucessos, fracassos, medos e amores desses personagens – todos retratados com delicadeza e encanto.”

Após a exibição em Sundance, além de críticas favoráveis, como a que considerou Marte Um “uma jóia”, houve também ressalvas, entre elas as de Jessica Kiang na Variety, em 20 de janeiro. No final de um longo resumo descritivo do filme, ela escreve: “Mas realmente investigar a fundo essas [injustiças e privações das quais a família deseja fugir] exigiria um grau de fúria e raiva temática de que esse filme de bom coração, otimista e estranhamente antiquado não trata, para o bem ou para o mal. Dependendo do seu estado de espírito, pode ser tocantemente idealista ou tão irrealista e suave quanto uma novela. Apesar de todos os contratempos que eles enfrentaram, esses quatro adoráveis ​​lutadores conseguem encontrar um terreno comum e uma esperança compartilhada em seu quintal, na beira da sarjeta, olhando para Marte.” Em termos, a restrição é válida pois, como a crítica mesma assinala, as “injustiças e provações das quais” Deivinho e Nina querem fugir “têm causas e soluções inteiramente terrestres”, embora, ao contrário do que Kiang supõe, não possam ser atribuídas ao resultado da eleição presidencial de 2018.

Premiado em São Francisco e Los Angeles, Marte Um participou também de outros festivais mundo afora, entre eles os promovidos em Nova York, Edimburgo, Gotemburgo, Munique e Melbourne.
Para Martins, Marte Um trata, em última instância, da maneira de “descobrir o que os outros realmente querem. Essa família está tentando se unir, mas mesmo assim eles têm seus próprios interesses na vida. Mas a forma como vai funcionar é tentando entender o que o outro está passando. Veja a filha que ama outra mulher e não é aceita pela família. Ou a mãe que está tendo sua própria luta interior. Cada um tem um sonho e uma luta. E até que eles se entendam não pode haver paz nessa família. É realmente um filme sobre empatia e compaixão. E isso é algo muito importante neste mundo hoje; especialmente neste mundo no qual todos estão tão envolvidos pessoalmente. Então, não é apenas um filme sobre sonhos pessoais, mas também sobre compreensão. Entendendo um ao outro”. (entrevista completa disponível aqui).

Esta coluna sobre Marte Um começou a ser escrita sem que eu soubesse do entusiasmo e aplausos da plateia no 50º Festival de Cinema de Gramado após a exibição de quarta-feira passada (17/8), depois da qual muitos passaram a considerar o filme um dos favoritos da premiação a ser anunciada no sábado (20/8).

No domingo 21 de agosto, de manhã, tive notícia pela internet de que Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, ganhou o prêmio de melhor longa-metragem e recebeu também os prêmios de melhor ator (Gabriel Knoxx), melhor ator coadjuvante (Chico Diaz), melhor atriz coadjuvante (Joana Gatis), além de menção honrosa ao ator Adanilo e o prêmio do júri da crítica para o melhor longa-metragem.
Marte Um ganhou o Prêmio Especial do júri, foi considerado o melhor longa-metragem pelo júri popular e recebeu também os prêmios de melhor roteiro e Melhor trilha musical.
Resta para Marte Um a árdua missão de atrair público a partir de amanhã (25/8), quando estreará afinal em 30 cinemas de 22 cidades, incluindo, entre outras, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Salvador… Terá que vencer barreiras difíceis de transpor para demonstrar que seu apelo não é restrito às animadas plateias dos festivais.

Em tempo
Marte um

Holy Spider
, 2022, Ali Abbasi

Zar Amir-Ebrahimi, 1981 

'Holy spider': Diretor que enfureceu o Irã diz que seu filme é sobre 'sociedade de assassinos em série'
De origem iraniana, Ali Abbasi parte de crimes reais para fazer um painel desolador do país

Por Carlos Helí de Almeida, O GLOBO, 24/01/2023

Horas depois do encerramento do Festival de Cannes, em maio do ano passado, a Organização de Cinema do Irã se manifestou sobre a vitória, no prêmio de melhor interpretação feminina, de “Holy Spider”, de Ali Abbasi, filme que estreou quinta-feira no Brasil. No longa dirigido pelo cineasta dinamarquês (de origem iraniana), a atriz Zar Amir-Ebrahimi encarna uma jornalista que persegue um homem, assassino de prostitutas na cidade sagrada de Mashad. Embora inspirado em um caso real, a organização iraniana condenou a mostra francesa por ter premiado um filme que “insulta as crenças e valores de milhões de muçulmanos no mundo”, chamando-o de “um produto da mente confusa de um dinamarquês-iraniano e financiado pela arrogância global”.

Reprovação

Era uma reação esperada a um projeto reprovado pelo regime dos aiatolás desde o início: Abbasi chegou a pedir permissão para filmar “Holy Spider” em Mashad, santuário sagrado do islamismo xiita e cenário dos crimes que o inspiraram. O diretor se dispôs a aceitar as restrições que lhe fossem impostas, como não filmar mulheres sem véus, mas as autoridades locais negaram-lhe o pedido. A produção, que agora está entre os finalistas ao Oscar de melhor filme internacional, representando a Dinamarca, também foi impedida de filmar na Turquia, antes de acabar encontrando lugar na Jordânia. O filme sugere que houve pouca pressão oficial, inclusive da polícia, para capturar o assassino, que acaba se tornando um herói entre a direita religiosa.

— Se os censores iranianos tiveram problemas com a violência explícita, o uso de drogas e as cenas de prostituição do filme, eles têm um problema com a realidade, não comigo — disse Abbasi em Cannes, de onde o realizador saíra, quatro anos antes, com o principal prêmio da mostra paralela Un Certain Regard com “Border” (2018), mistura de thriller policial e fantasia que chegou a concorrer ao Oscar de melhor maquiagem. — Tudo o que é mostrado no filme faz parte da vida cotidiana das pessoas. Há evidências suficientes de que também se faz sexo no Irã. E há também amplas evidências de que há prostituição em todas as cidades do país.

Holy Spider | Trailer Legendado

Abbasi não é fã de histórias sobre serial killers ou que se prestem a desvendar crimes. Mas ficou particularmente obcecado pela reação de parte da sociedade iraniana ao caso do pai de família, operário e muito religioso que, no início dos anos 2000, ficou conhecido como “Spider Killer”. “Holy Spider” segue os passos de Saeed (Mehdi Bajestani) que, munido de convicções religiosas, atrai e mata mulheres pobres que se prostituem pelas ruas escuras de Mashad. Os crimes conseguem atrair a atenção de Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi), jovem repórter de Teerã que passa a investigar as ocorrências, apesar da misoginia das autoridades locais.

— O caso só ganhou outra dimensão para mim a partir do momento em que um certo segmento da sociedade iraniana, incluindo imprensa e as autoridades policiais e jurídicas, começaram a se referir ao criminoso como uma espécie de herói altruísta, que se sacrificou pelo bem de sua sociedade. Então, o filme que fizemos não é apenas sobre um assassino em série, é sobre uma sociedade de assassinos em série — disse Abbasi. — O mais curioso é que, apesar de ter repercutido na imprensa estrangeira, o assassino só caiu no radar da imprensa local depois que a décima mulher apareceu morta. Aí explodiu, se tornou um grande caso de visibilidade nacional a partir de sua prisão e julgamento.

“Holy Spider” demonstra simpatia pelas vítimas do criminoso, descrevendo a realidade que as leva à prostituição, única maneira de sustentar a si ou aos seus filhos. Uma delas é Somayeh (Alice Rahimi), mãe solteira que é vista logo no início do filme, com um semblante cansado e maltratado, dando um beijo de boa noite no filho pequeno antes de sair para a rua onde, logo depois, é brutalmente assassinada. Mais do que falar sobre a condição da mulher no Irã, o diretor disse que estava interessado “em construir um universo sombrio, com seus pontos fracos, seus vícios, e todos os tipos de conflitos morais e éticos em andamento”. E essa visão passa longe da tradição cinematográfica de seus contemporâneos iranianos, que ele acredita ser “metafórica demais”.

— Tenho muito respeito pelos cineastas da região, mas não me sinto confortável no cinema iraniano atual — disse Abbasi. — Nos filmes, sempre há uma flor balançando ao vento, que deveria ser símbolo de alguma coisa. Para mim, um filme deveria ser um tapa na cara. O que temos visto nos últimos 50 anos no cinema é uma realidade paralela do Irã. Nela, as mulheres nunca tiram a roupa, dormem com cinco metros de pano na cabeça. Nunca fazem sexo. Isso não é uma inspiração, ou não deveria ser. Meu tipo de cinema é aquele que expõe as coisas.

8/2/23
Rastros de Ódio, The Searchers, 1956, John Ford

Rastros de Ódio (1956)
Não apesar, mas sim por todas as contradições, John Ford faz por merecer o topo do panteão histórico dos cineastas

Vitor Torga - 20 de janeiro de 2021

Dentre os cineastas da Era de Ouro de Hollywood, talvez nenhum tenha sido mais aclamado em vida, e questionado em morte, do que o mestre do faroeste John Ford. Além de ser um dos maiores ícones da história do cinema, é também um dos mais aclamados por vários outros. Jean-Marie Straub o descreveu como “o mais brechtiano dos cineastas”, Frank Capra se referiu a ele como “rei dos diretores”. Orson Welles ao ser questionado sobre qual diretor mais o atraía, famosamente respondeu: “Eu gosto dos velhos mestres, ou seja John Ford, John Ford e John Ford.” E sobre o próprio Rastros de Ódio, ninguém menos que Jean-Luc Godard comparou o final com “o reencontro de Ulisses e Telêmaco” na Odisseia de Homero. No entanto, não é incomum se deparar com questionamentos recorrentes em sua filmografia, notoriamente a duração um pouco longa em suas narrativas relativamente simples, a ausência de protagonistas femininas e a representação dos povos nativo-americanos em seus faroestes.

Visitar (ou no meu caso, revisitar) grandes clássicos do passado requer certa imersão no momento em que o filme foi produzido, não só pelo típica enxurrada de pensamentos socialmente atrasados, mas também por carregarem métodos e arquétipos há muito abandonados pela indústria cinematográfica contemporânea. Modelos narrativos, estilos de atuação, composições visuais, estudos de moralidade e afins são tendências muito específicas de cada uma das muitas eras do cinema. Portanto, ver tantos clássicos indiscutíveis reduzidos a “devagares”, “xenofóbicos”, “simplistas” é de partir o coração, ainda mais quando tais reduções permeiam o espaço profissional e dos entusiastas do cinema. Não nego que em muitos casos é possível encaixar tais caracterizações, mas arrisco dizer que na maioria das vezes, isso tende a ser mero revisionismo superficial disfarçado de progressismo. Espanta a facilidade com que se desmerece um cinema tão influente e respeitado universalmente por vários dos maiores mestres da indústria.

A história de Rastros de Ódio é: Ethan Edwards (John Wayne), um ex-soldado confederado, retorna à casa de seu irmão Aaron (Walter Coy) no Oeste texano e em um momento descuido, cai na tática de distração de uma tribo Comanche, permitindo que esta massacre sua família e rapte suas sobrinhas. Acompanhado de seu mestiço sobrinho adotado Martin Pawley (Jeffrey Hunter), ele passa os próximos anos em busca das sobrinhas para resgatá-las de seus captores. É uma descrição que pode vir a preocupar o desavisado ou o superficial; um homem branco que lutou pelos direitos escravagistas perseguindo o povo nativo da terra que ele ocupa e a todo momento os taxando de selvagens. Mas é aí que Ford (e mais alguns contemporâneos dele) abusa da sua genialidade para passar a perna nos espertinhos do momento. O velho John está completamente consciente das limitações morais do seu protagonista, e ele simplesmente não se importa.

Muito se fala de querer filmes com protagonistas imorais, imperfeitos, defeituosos mesmo, mas quase nunca se valoriza o cinema que realmente apresenta personagens que estão além da redenção, tanto pela dificuldade do público em se identificar ou gostar desses protagonistas ou pela decisão errada do filme de oferecer essa redenção a esses personagens que não merecem. Ethan Edwards é um monstro, certamente, mas nem por isso deixa de merecer seu próprio filme. Não é um herói limpinho, honroso e carismático porque simplesmente não é um herói, é apenas o personagem principal. Ford desde o início estabelece o caubói como um sujeito detestável. Apático com o irmão, ressentido com o Estado, teimoso em suas convicções cretinas e ainda por cima, um hipócrita. O único carinho que o sujeito oferece é dirigido à cunhada Martha (Dorothy Jordan) e aos sobrinhos, praticamente roubando o lugar do irmão como patriarca da casa. Ainda há a forte implicação que o ouro e os dólares que carrega consigo são roubados e que talvez a caçula Debbie (Natalie Wood) seja na verdade a filha de Ethan, visto que este deixou a casa há oito anos, a mesma idade da sobrinha no início da trama.

Há inclusive um pequeno momento brilhante em uma conversa entre Ethan, Aaron e Martha, em que Ford posiciona Wayne e Jordan no mesmo plano enquanto ouvem Coy falar. Ethan olha para Martha até o momento que precisa responder Aaron, nesse momento ele dirige o olhar para o irmão e finalmente Martha olha de volta para ele. Esse momento indica onde se encontra a verdadeira afeição de Martha, mas também a submissão a qual está imposta, sempre dando atenção ao homem da vez. Quando Ethan retorna à casa após o massacre familiar, não demonstra nenhum sentimento em relação à perda do irmão ou sobrinho. Em voz alta ele apenas repete o nome da cunhada.

Outra prova do desinteresse de Ford em redimir Ethan é através de sua relação com Martin ao longo do filme. Em nenhum momento ele estende alguma simpatia que seja pelo sobrinho adotado, sempre o tratando com certo distanciamento e desconfiança devido a sua herança indígena. No máximo chega a aceitá-lo relutantemente como ajudante, relegando-o ao papel de servitude. O único momento em que parece se importar com Martin logo se revela que Ethan apenas estava usando-o como isca para emboscar um ladrão. Não há uma mudança de personalidade, uma aproximação sincera, nem mesmo com o único disposto a dividir sua missão ao longo dos anos. Sequer aceita dignificá-lo como homem, sempre referindo-se a ele como “garoto” e afins e o desdenhando por não conhecer o Velho Oeste tão bem como ele. É importante reconhecer que a natureza do desprezo de Ethan pelos nativos não vem de ignorância, ele é extremamente versado na cultura Comanche, conhecendo as táticas de batalha, costumes, crenças religiosas e até fala a língua, mas isso não o impede de odiá-los ferventemente.

O ponto que talvez seja o mais difícil de “justificar” de certa forma não é nem a decisão do ex-soldado de matar a sobrinha ao encontrá-la vivendo em harmonia com os nativos, chegando a ser uma das esposas do chefe da tribo, mas sim a dela de “aceitar” o resgate. Em um primeiro momento pode parecer uma decisão apressada, para adiantar o final ou confirmar a civilidade dos brancos frente a selvageria dos Comanches. Mas há dois poréns; o primeiro é a cena em que Ethan e Martin finalmente reencontram Debbie. Ao entrarem na cabana de Cicatriz (Henry Brandon), o tradutor explica que os filhos do chefe da tribo estão mortos e portanto as suas esposas, dentre as quais a sobrinha tão procurada, ocupam o lugar de honra da cabana. É um ponto-chave porque expõe que o ataque dos Comanches à família Edwards não foi um ato de selvageria impensada, mas de represália vingativa e da mesma natureza que nossos protagonistas tentam exercer durante o filme inteiro. Isso já põe em xeque a ideia que o filme simpatiza ou defende a superioridade branca.

O segundo porém, e talvez o mais importante, é a cena do confronto final, onde Martin mata Cicatriz e Ethan o escalpeia. Até ali o personagem de Wayne estava decidido a matar a sobrinha, preferindo vê-la morta do que vivendo harmoniosamente na tribo, mas ao reafirmar sua dominância sobre o inimigo “selvagem” performando o seu ritual, o escalpe, ele reencontra em si não a bondade, mas o poder sobre a mulher. A própria Debbie nunca engaja na ideia de ser resgatada por Ethan. Pelo contrário, é simpática somente a Martin, seu irmão adotivo que também possui herança nativo-americana. Ela teme a represália do tio até ser poupada. No raciocínio atrasado mas coerente de Ethan, a mulher é a posse de um homem, e Debbie, liberta do esposo Cicatriz, deve resignar-se novamente a essa submissão como forma de sobrevivência. O poder havia sido maculado pelo sequestro e transformação social que esta havia passado, mas assim como a morte do irmão o liberta para expressar a afeição pela cunhada, a morte de Cicatriz liberta Ethan para novamente ser o “dono” de Debbie. A masculinidade é reposta, tornando possível a reconciliação para o protagonista.

No entanto, em uma das viradas mais geniais que o cinema já viu, num momento de brilhantismo imagético tão impensável que ainda está para ser alcançado, Ford nos nega essa conciliação. Ele não permite que Ethan, que deveria ser o patriarca após a morte do irmão (nunca se confirma isso mas o nome Aaron indica que o falecido era o mais velho), adentre o lar dos vizinhos Jorgensen (que não carregam um típico sobrenome americano, mas norueguês, povo que tipicamente imigrou para o norte, bem longe do Texas). Em certo momento do filme a senhora Jorgensen havida declarado: “Algum dia esse país será um bom lugar para se estar. Talvez ele precise dos nossos ossos abaixo da terra antes que esse tempo possa chegar.” E é isso. A sobrinha criada pelos “selvagens”, mesmo demonstrando certo estranhamento, é bem recebida pelos proprietários e o mestiço Pawley entra como esposo da filha Laurie Jorgensen (Vera Miles), mas Ethan sequer pisa na varanda do rancho. Ele apenas observa pela porta aberta, e nós o observamos finalmente em vulnerabilidade, com o olhar perdido e timidamente segurando o braço. Não há espaço para figuras como ele no bom lugar que a América pode se tornar um dia.

10/1/23
Shiva Baby, 2020, Emma Seligman

Shiva Baby: a angústia de se tornar adulta

Por Julia Alimonda | jan 24, 2022

E se você encontrasse seu sugar daddy em um shiva onde está toda a sua família? È a partir dessa premissa que Shiva Baby (2020), da canadense Emma Seligman, se desenvolve. A protagonista Danielle, interpretada por Rachel Sennott, é uma jovem recém-formada que decide utilizar um aplicativo de sugar baby para conseguir uma grana extra, já que não consegue emprego na sua área. Entretanto, acaba encontrando um dos seus clientes em um shiva, um velório judaico. O filme, disponível na MUBI, é uma comédia e ao mesmo tempo um thriller, onde a protagonista está sempre tensa com os discursos que são produzidos sobre ela e com a possibilidade de que descubram coisas desconfortáveis sobre sua vida.

Devido ao seu baixo orçamento, o longa estreante de Seligman foi todo gravado em praticamente só uma locação interna, o que dá ao filme o tom angustiante. Além disso, o excesso de pessoas no ambiente, todas vestidas de preto, contribuem para a transmitir a sensação de claustrofobia que a protagonista está passando, assim como a opção da diretora de fotografia, Maria Rusche, por utilizar muitos planos fechados. A edição de Hanna A. Park e a trilha sonora de Ariel Marx também ajudam a construir o ambiente de angústia. As cargas de tensão que a protagonista sofre variam ao longo do filme, mas ela nunca está totalmente tranquila. O ambiente interno e lotado de familiares aprisiona a personagem, controlando sua vida profissional e sexual através de padrões normativos, dificultando seu crescimento em direção ao que deseja.

Danielle precisa lidar com as várias versões dela mesma: filha, sugar baby e ex-namorada. As pessoas mais velhas expõem suas expectativas sobre a jovem e acabam falando por ela: o que ela deve fazer, com quem ela deve se relacionar, quantos quilos deve pesar. Além disso, outra carga de tensão que contribui para a ansiedade da protagonista são as cobranças em torno de sua vida adulta, ou seja, sua profissão. Grande parte das conversas que escutamos, dentro e fora de quadro, são sobre trabalho. Ele é o tema central e o que mostra o valor da pessoa. É por isso que existe tanta expectativa sobre o que a jovem recém-formada vai fazer. Além disso, não basta qualquer emprego: os trabalhos artísticos ou acadêmicos não são valorizados. Ninguém entende porque a protagonista se formou em estudos de gênero e faz aulas de teatro.

Danielle vive confortavelmente com seus pais pagando suas contas, mas eles a pressionam para que ela arranje um emprego logo. Não entendem suas escolhas de carreira. O pai pergunta se feminismo dá emprego e a filha marca que feminismo não é uma profissão, mas uma lente sobre a qual enxergamos o mundo. Seligman constrói muito bem as ansiedades dos jovens adultos que se formam em áreas que lhes dão algum prazer, mas precisam conseguir emprego em um mundo onde trabalhos estáveis e direitos trabalhistas foram precarizados pelo neoliberalismo, uma realidade que os pais de Danielle não entendem e tentam desesperadamente conseguir um estágio para a filha em administração.

A jovem recém-formada mente para os pais falando que trabalha como babá, mas na verdade ela é uma sugar baby, uma trabalhadora sexual que se relaciona com homens mais velhos. Longe de apresentar uma representação estereotipada do trabalho sexual, a diretora mostra as contraditórias relações de poder da sugar baby, que não é uma vítima e nem empoderada. Os aplicativos de trabalho sexual são um reflexo da uberização do trabalho em nível global. Danielle não consegue um emprego na sua área, mas vê no trabalho sexual precarizado uma forma de ganhar algum dinheiro e começar sua vida profissional. Além disso, em entrevista para o Mulher no Cinema, a diretora, que já experimentou o aplicativo de sugar baby, contou que percebeu o quanto as suas colegas universitárias utilizavam esses encontros para pagar as contas das faculdades e para se sentirem validadas em uma relação que não era só sexual porque as babys são acompanhantes que conversam e saem para jantar com os clientes. É interessante notar como Danielle está o tempo todo obcecada com sua validação sexual, ela gasta muita energia tentando ser sexy, como se seu poder e sua autoestima dependesse da sua capacidade de ser desejada. Seu amadurecimento profissional e sexual passa pelo doloroso processo de perceber que ela tem poder sexual, mas isso não garante tudo.

Devido ao estigma que o trabalho sexual carrega, a protagonista não conta para ninguém sobre o que faz, afinal, ela sente que já é uma grande decepção para os pais com as coisas que eles sabem. A possibilidade de que o segredo seja revelado e se torne um escândalo público no velório, faz com que o filme ganhe uma excelente camada de suspense, que só pode ser entendida a partir da dinâmica da sociedade patriarcal que separa as mulheres entre boas e más. A filha tenta preservar sua imagem de pureza para a família, que iria condena-la se descobrisse que ela cobra para fazer sexo. Apesar da capacidade de ganhar dinheiro ser extremamente valorizada naquele ambiente, a prostituição é considerada imoral e vulgar. Pode-se vender a mão de obra para qualquer coisa, menos para o sexo. Essas normas sexuais são uma forma de controle que causam angústia na protagonista que, além de ser sugar baby, é bissexual, o que não é visto com bons olhos pela família.

Shiva Baby, uma adaptação de um curta que a diretora fez em 2018, lida muito bem com as contradições. Mescla a comédia com o thriller, expõe os conflitos familiares e sexuais e torna visível o desconforto de Danielle ao estar naquele ambiente onde ela tem que esconder seus desejos conflitantes. O contraste entre a vida sexual e a familiar também é ampliado pelo fato de que a ex-namorada de Danielle, Maya, está presente no evento. Maya representa a vida perfeita que Danielle deveria ter: ela possui um emprego em direito, vai fazer pós-graduação e é extremamente simpática com todas as senhoras do shiva. A diretora, que é bissexual, tomou cuidado para que o filme não realizasse queerbaiting, então fica claro que as personagens tinham uma relação afetiva e que todos sabiam dela. Shiva Baby não apresenta o clichê de descoberta sexual onde a protagonista esta confusa por sentir atrações por mulheres. Além disso, Maya e o sugar daddy não estão competindo, como se ela tivesse que escolher entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Danielle nutre sentimentos conflitantes por ambos.

A bissexualidade de Danielle faz parte da avalanche de assuntos constrangedores que aparecem no filme. Sua mãe fala que ela já passou dessa fase de experimentar e depois pede para a filha não se jogar em qualquer um, reforçando os preconceitos de que a bissexualidade é só uma fase de promiscuidade, como se não fosse uma orientação sexual válida. Apesar de quase todo o filme se passar no mesmo ambiente interno, as duas cenas em que Danielle é sexualmente livre são fora do shiva: ela beija Maya do lado de fora da casa e transa com o daddy em outro ambiente, no início do filme. Na casa fechada, onde existem normas sociais rígidas que devem ser cumpridas, a jovem não consegue seguir seus desejos e ser quem ela é.

Emma Seligman faz um excelente trabalho em seu longa de estreia. Consegue comprimir todos os desejos e medos de uma jovem adulta em 78 minutos de filme. Danielle parece que vai explodir a qualquer momento e, assim como o bebê que está presente no shiva chorando o tempo todo no colo da mãe, a protagonista sente que crescer é uma jornada dolorosa e a família, por mais acolhedora que seja, pode sufocar sua subjetividade. O filme tensiona as relações sexuais e familiares e mescla a comédia com o suspense, apontando que as contradições fazem parte da vida, por mais difícil que isso seja.

Emma Seligman fala sobre "Shiva Baby" 

"Shiva Baby": Um velório, mil saias-justas
 



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