segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Psicanalistas não votam em Bolsonaro

Psicanalistas pela democracia

Leitores de Freud não podem alegar que não sabem o que está em jogo nesta eleição 

 Vera Iaconelli, FSP, 17/10/2022

Voltou a circular um vídeo de menos de dois minutos no qual eu e Christian Dunker explicamos porque psicanalistas não deveriam votar em Bolsonaro. As falas são categóricas e foram gravadas na véspera das eleições de 2018. A partir daí, ouvimos todo tipo de questão sobre o lugar da política na psicanálise e do psicanalista na política, algumas bem preocupantes.

A obra-prima de Freud "Psicologia das massas e a análise do Eu" foi retomada como se tivesse acabado de ser publicada, tão atual se revelou. Só para recordar, Freud, tentando compreender a ascensão do autoritarismo na Europa, demonstra como, diante de uma crise aguda, parte significativa da sociedade faz apelo a um pai mítico, cuja onipotência a livraria do caos. Identificados como irmãos, uma vez que compartilham o mesmo mito, abrem espaço para a eliminação dos que não comungam de suas ideias e que lhes servem de bode expiatório.

Lembremos que o texto é de 1921, logo após a Primeira Grande Guerra, mas muito antes de que se pudesse imaginar que parentes, vizinhos e amigos seriam retirados de suas casas e arrastados para campos de concentração, torturados e mortos por serem judeus, ciganos, homossexuais, adversários políticos ou simplesmente desafetos. Discursos de ódio, cenas de racismo e intolerância, injustiça e violência encampadas pelo Estado não se mostraram sinais suficientes para que o cidadão do bem reconhecesse o trágico rumo que as coisas tomavam.

Em "Casta: as origens de nosso mal estar" (2020), Isabel Wilkerson explica como a segregação racial norte-americana oficializada pelas Leis de Jim Crow e o sistema de castas indiano serviram de modelo para o nazi-facismo europeu e para o apartheid sul africano. Os modelos têm suas próprias circunstâncias e requintes de crueldade, mas a base é a mesma: somos todos iguais perante Deus, alguns são mais iguais do que outros. Os "menos iguais" encarnam o mal. Os "mais iguais" entendem que são melhores e que as injustiças sociais nada mais são do que um misto de desejo divino, mérito pessoal e sorte. Gênero, raça ou papai rico não participam da conta, claro.

O argumento mais pernicioso dessa eleição é a ideia de que se trata da livre escolha entre dois candidatos, cada um com seus defeitos e qualidades. É falsa simetria o nome dessa argumentação. O jogo seria simétrico se fosse jogado no mesmo campo, com as mesmas regras. O campo comum, obviamente, seria o da democracia e das regras republicanas.

Já temos mostras suficientes de como cada candidato lida com a gestão pública, ninguém pode fingir ser forasteiro aqui. Mas, acima de tudo, temos exemplos inequívocos de como lidam com a própria democracia. Bolsonaro testou todos os limites da complacência social ao premiar a brutalidade policial, enaltecer o torturador Ustra, omitir-se diante da morte de centenas de milhares de pessoas durante a pandemia, de perseguir jornalistas, ameaçar os outros poderes, enaltecer a ditadura e expor sua incontrolável escatologia. A lista é gigante e segue crescendo. Saiu ileso de todas essas barbaridades e poderia multiplicá-las, caso fosse reeleito.

Não me interessam, absolutamente, os argumentos contra Lula/PT –eles existem e alguns são razoáveis–, porque não é disso que se trata aqui. Trata-se de reconhecer o que significa cidadania e democracia para cada um de nós, uma vez que já vimos como cada candidato lida com ambas.

A luta contra o autoritarismo, seja de direita ou de esquerda, está no DNA da psicanálise. Não há o que justifique um psicanalista fazer coro com o horror.

Vera Iaconelli e Christian Dunker em 2018 

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP. 


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