Como transformar a tristeza em beleza?
São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer
Mirian Goldenberg, FSP, 19/10/2022
Sou muito convidada para dar palestras e entrevistas sobre "a curva da felicidade" desde que o meu TEDx "A invenção de uma bela velhice" viralizou no YouTube. Mas, ultimamente, não estou conseguindo falar sobre felicidade. Na verdade, bem antes da pandemia já achava difícil falar sobre felicidade.
Em 2019, tive um grave problema de saúde e consultei seis médicos. Todos receitaram antidepressivos. Não tomei o medicamento, pois achava que, depois de 21 anos de análise e da leitura compulsiva de livros de psicologia e filosofia, já tinha as ferramentas necessárias para lidar com meus traumas, pânicos e ansiedades.
Quando minha mãe teve câncer, e sofreu por mais de dois anos, escrever foi a única maneira que encontrei para ter força e coragem para cuidar dela. No dia em que ela morreu, liguei para o antropólogo Gilberto Velho para avisar que não iria conseguir entregar o trabalho final do seu curso no meu doutoramento no Museu Nacional. Ele me deu mais um mês de prazo. Eu chorava desesperadamente e me perguntava: "Como vou conseguir sobreviver sem a única pessoa que cuidou de mim?"
Foi assim que nasceu "A Outra: Um Estudo Antropológico Sobre a Identidade da Amante do Homem Casado". O livro foi um grande sucesso em 1990, ficando na lista dos mais vendidos do Brasil. Gilberto Velho adorou o trabalho e me aconselhou a publicá-lo como livro. Mas ele sugeriu que eu cortasse a introdução, na qual eu contava que minha mãe acreditava que havia ficado doente por ter descoberto que meu pai tinha uma amante, sua secretária, há mais de 20 anos. Na dedicatória escrevi: "Para minha mãe, com saudade". E até hoje choro por não ter conseguido salvar a minha mãe de um inferno de traições, agressões, gritos e brigas.
Seis anos depois, meu pai, que era alcoólatra, morreu de câncer no pâncreas. Cuidei dele durante os três meses e meio da sua doença. Logo após a sua morte, sonhei com meu pai me pedindo para publicar o livro "Cem Dias de Lágrimas" com tudo o que eu havia escrito durante a sua doença. Não consegui publicar o livro até hoje.
Três anos após a morte do meu pai, atendi o telefonema de uma mulher desconhecida:
"Sou a amante do seu marido. Você sabe que ele transa com garotas de programa? Deixa de ser idiota."
Assim que meu marido chegou do trabalho, perguntei se era verdade. Ele negou, disse que era vingança de uma ex-namorada que queria destruir o nosso casamento. Perdi completamente a confiança que sempre tive nele. Na mesma hora em que ele foi embora levando todas as suas coisas, chegou uma caixa da minha editora. Era o meu livro "Infiel: Notas de uma Antropóloga".
Nos momentos mais traumáticos da minha vida, nasceram meus livros. Em vez de antidepressivos e ansiolíticos, a escrita tem sido o meu remédio. Ou será o meu vício? Posso passar dias sem comer e sem dormir, mas nunca passei um só dia sem escrever. Minha primeira terapeuta, aos 21 anos, me aconselhou: "Pare de escrever e vá viver sua vida". É verdade: sou viciada em escrever.
Não me curei, e sei que nunca vou conseguir me curar, dos meus traumas, fobias e ansiedades. Muitas vezes mergulho no fundo do poço da tristeza e não sei como sair de lá. Escrever sempre foi, e sempre será, a minha salvação. Parafraseando Rubem Alves, escrever é o único jeito que encontrei de tentar transformar a minha dor em beleza.
"É o jeito que eu tenho de brincar. Livros são brinquedos para o pensamento. De todos os que escrevi, acho que o que eu mais amo é 'A Menina e o Pássaro Encantado'. Escrevi para transformar uma dor em beleza... A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável... São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas."
Tenho um armário abarrotado de cadernos com tudo o que vivi, pensei e sofri desde os meus 16 anos até hoje. Desisti de tentar curar a minha tristeza. Desisti de parar de sofrer e de ter tanto medo e ansiedade. Nunca desisti de escrever. Hoje, minha angústia existencial é outra: como posso conseguir transformar a minha tristeza em beleza?
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GOLDENBERG, Mirian. Infiel: notas de uma antropóloga. Rio de Janeiro: Record, 2006. 364 p.
Débora Krischke Leitão Universidade Estadual de Londrina – Brasil
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 418-420, jul./dez. 2007
Numa grande rede de livrarias, pergunto à vendedora pelo último livro de Mirian Goldenberg. Ela vai até a estante e retorna com um exemplar do livro de capa vermelha. Estendo a mão para pegar. Ela desvia de mim, entrega-o para sua colega de trabalho:
– Menina, temos que ler é pra já.
– Opa! Infiel, que livro é esse?!
Duas outras vendedoras chegam. Folheiam e examinam o livro entre risotase olhares. Lá pelas tantas se lembram de mim:
– Ah, é pra ela o livro.
– É, quero dar uma olhada.
– Sobre isso, quem não quer?
Para os leitores assíduos de Mirian Goldenberg, Infiel é a retomada bem costurada de discussões que a autora vem produzindo ao longo de 20 anos de pesquisa e escrita. É possível ali identificar a contribuição de cada um de seus livros anteriores. [1]
Para o neófito, ainda que provoque o desejo de conhecer melhor sua extensa produção bibliográfica, trata-se de uma obra completa e de acabamento impecável.
Quais expectativas homens e mulheres depositam no casamento? A fidelidade é um princípio que guia os arranjos conjugais contemporâneos? A infidelidade masculina é fruto de um desequilíbrio demográfico, de uma “natureza” intrínseca, de uma dupla moralidade machista? As mulheres traem tanto quanto os homens?
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[1] Como, por exemplo, A Outra: um Estudo Antropológico sobre a Identidade da Amante do Homem Casado (1990), Ser Homem, ser Mulher: Dentro e Fora do Casamento (1991), Toda Mulher é meio Leila Diniz (1995) e De Perto Ninguém é Normal: Estudos Sobre Corpo, Sexualidade, Gênero e Desvio na Cultura Brasileira (2004).
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O estigma recai sobre quem trai ou sobre quem é traído? Com algumas questões semelhantes, Infiel nos ajuda a compreender as relações de gênero no país, além de demonstrar a importância que os brasileiros dão ao tema da (in)fidelidade.
Conhecemos no livro esposas e maridos (in)fiéis, esposas e maridos traídos, esposas que também são a Outra, Outras que se consideram as verdadeiras esposas, homens que se dizem monogâmicos, homens que se classificam como poligâmicos, homens que são extremamente fiéis a suas Outras, mulheres frágeis e fortes a um só tempo, mulheres que lutam contra a passagem do tempo, e algumas que realmente têm o tal borogodó. [2]
Além dos dados de suas pesquisas, Goldenberg traz-nos notas da imprensa sobre seus próprios trabalhos (e repercussão deles, por vezes curiosa). A autora também recheia o livro com discussões midiáticas sobre fidelidade e infidelidade, que vão da “vida real” de brasileiros comuns até os affairs (de) Bill Clinton, Príncipe Charles e Chico Buarque.
Tudo isso tendo como fio condutor a trama narrada pela tão humana e por vezes misteriosa Mônica, uma entrevistada que, como muitas mulheres, aborda a antropóloga depois de ouvir suas palestras ou ler seus livros, querendo contar-lhe sua própria história. Histórias sobre as quais, sendo nossas ou alheias, todos temos sempre o que contar. E, tomando como exemplo a reação esboçada pelas vendedoras da livraria, histórias e temáticas sobre as quais todos querem ler ou ouvir falar. Por seu conteúdo, que desperta interesse de um variado público leitor, e por sua forma, que torna a leitura prazerosa como a de um bom romance, Infiel certamente será lido por antropólogos e por não-antropólogos.
Para o leitor que não é antropólogo, graças à escrita leve e agradável, o livro contribuirá para a difusão das reflexões contemporâneas sobre as relações de gênero no Brasil, sobre os arranjos conjugais, sobre corpo, emoções e sexualidade. Igualmente, levará adiante, e para fora das fronteiras acadêmicas, todo o corpus teórico que a autora expõe – Mauss, Bourdieu, Becker, Clastres, Simmel, Freyre, Goffman, entre outros tantos. Citando e discutindo tais autores, amalgamados a seus dados empíricos, mas sem perder a delicadeza da escrita, Goldenberg os aproxima de um grande número de leitores não especializados
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[2] Atrativo, qualidade, magnetismo pessoal que, nos relatos trazidos no livro, dizem menos respeito à aparência física do que ao modo – seguro, confiante, independente – de ser e agir
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Essa virtude, presente noutros livros de Goldenberg, mas especialmente potencializada nesse, é apontada pela entrevistada Mônica no seguinte trecho de Infiel:
Eu já li alguns dos seus livros e também gosto da forma como você escreve. Não sei se é preconceito, mas não consigo ler a maior parte dos livros acadêmicos brasileiros. Uns são muito mal escritos, outros são tão pedantes que me sinto uma idiota tentando compreender o que querem dizer. (p. 49).
O livro também tem o mérito de levar para fora das fronteiras acadêmicas, tanto nas descrições a respeito de seus procedimentos de pesquisa quanto pelos trechos em que relata um pouco de seu cotidiano, certas particularidades do ofício do antropólogo.
Contando ao leitor sobre momentos de sua vida, suas pesquisas, palestras, entrevistas, preparação de aulas, noites de insônia e escrita, Goldenberg humaniza essa exótica – e por vezes desconhecida – personagem urbana cujo trabalho [...] apresenta um curioso paradoxo. O público o percebe como um curioso passatempo de explorador erudito [...] mas nosso universo familiar é menos a estepe, a selva ou os desertos do que a sala de aula e o combate noturno com a folha de papel em branco [...]. (Descola, 1993, p. 34, tradução minha).
Para o leitor especializado, sua contribuição é ainda maior. Além de trazer os resultados de pesquisas, argumentos e propostas analíticas da autora, Infiel deixa, indiretamente, boas pistas para pensar sobre nosso próprio exercício profissional e sobre as escolhas que fazemos a respeito da divulgação de nossas produções. Ainda que não seja seu principal objetivo, Infiel traz em si valiosas provocações sobre a possibilidade – ou necessidade – de levarmos nossas contribuições também para leitores extramuros.
Referência
DESCOLA, Phillipe. Les lances du crépuscule. Paris: Plon, 1993
INFIEL - NOTAS DE UMA ANTROPÓLOGA
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