Para Virgínia e Valentina
Apaziguar a parte do outro que se sente louca sempre será a carícia mais civilizatória
Tati Bernardi, FSP, 13/10/2022
Um dia a carioca Valentina Seabra me procurou via Instagram. Contou que era minha leitora e adorava ouvir meu podcast de psicanálise. Porque diante de um enorme leque de opções comportamentais, vez ou outra, infelizmente escolho a secura, pensei: "Ai, meu Deus, já tenho uma pilha de livros aqui, por favor não me mande o seu!". Bem, Valentina não queria me mandar um livro, mas sim 407.
Sua avó materna, a psicanalista, jornalista, musicista e bailarina Virgínia Portas, pessoa-chave por trás da Rádio MEC e da Fundação Freudiana, ambas no Rio de Janeiro, falecera havia dois meses, e Valentina procurava alguém que merecesse receber parte da magnífica biblioteca da matriarca. Valentina fez questão de usar essa palavra, "matriarca", nos áudios emocionados que mandava: "Ela era uma mulher incrível, forte, sua casa vivia cheia de gente interessante, de música, de livros, todo mundo perguntava tudo pra ela, todo mundo a amava demais".
Eu, que estava em uma das piores semanas da minha insignificante existência, passando por questões pessoais e profissionais desgastantes e um tanto lesivas, ganhei um dos mais bonitos e vultosos presentes da vida. No dia em que as caixas chegaram à minha casa, recebi uma mensagem que dizia: "Para quando lhe faltar força".
Virgínia foi criada por uma tia, ficou viúva aos 25 anos e precisou cuidar sozinha de duas meninas. Em seu segundo casamento, teve mais dois filhos: um que nasceu com problemas graves de saúde e outro que foi brutalmente assassinado em um assalto no Arpoador. Apesar de tantas perdas e sofrimentos, nas palavras de sua neta, "foi uma mulher que se reinventou a todo instante a partir da arte, da literatura, da música, da dança e sobretudo da psicanálise".
Fazer chegar a espetacular doação carioca até minhas cobiçosas prateleiras paulistanas teve seus momentos de aventura. Paulo prometeu trazer de ônibus. Eu avisei que seria uma missão ingrata. Ele me garantia: "Farei isso por você". Quando recebeu as fotos das caixas, nunca mais falou comigo. Anna ia dividir a tarefa com o ex-marido. Os dois viajariam de ponte aérea em horários diferentes. No instante em que lhe informei o número total de obras, respondeu: "Eu te levo aos poucos. Até 2025 prometo que você receberá todos". Por fim, uma boa alma chamada Mariana me contou que estaria em terras fluminenses, para o casamento dos meus amados Renato e Angélica, e voltaria com o porta-malas vazio.
Desde então, quando encontro as anotações de Virgínia em tantas páginas, sinto que as cacholas mais angustiadas por respostas — não importam espaço e tempo — estão e estarão sempre conectadas. Valentina, que se tornou minha amiga, sabia exatamente que apaziguar a parte do outro que se sente louca e desamparada sempre será a carícia mais sublime e civilizatória que existe. E um jeito digno de acalmar o que também dói em nós.
Em meio a obras de Freud, Lacan, Winnicott, Melanie Klein, Ferenczi, Foucault, Laplanche, Mezan, Spinoza, Garcia-Roza, Green e Deleuze, ainda tomei conhecimento de mais autores pelos quais já estou um tanto obsessiva: Giorgio Agamben, Hugo Bleichmar, Conrad Stein e Chaim Samuel Katz.
Sempre preferindo provocar a agradar, Elisabeth Roudinesco nos respondia, em um livro de 1944, "Por que a psicanálise?". Lacoste, que neste caso não é marca de roupa, escrevia em 1992 onde cinema e Freud se encontram. Você conhece o filósofo Nicolas Grimaldi? Eu não conhecia, mas já estou terminando seu livro espetacular sobre o ciúme, a partir da obra de Proust. Em "As erínias de uma mãe: ensaio sobre o ódio", do psicanalista e psiquiatra francês Conrad Stein, achei uma quantidade gigantesca de respostas para perguntas que nem eu sabia que me perturbavam tanto.
Virgínia e Valentina, nós nunca fomos e jamais seremos solitárias.
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