sábado, 20 de agosto de 2022

Gore Vidal e Billy Wilder

Mudando de assunto 

No Rio, Gore Vidal tornou nossa festa do Oscar mais animada do que a do Dorothy Chandler Pavilion

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 30 de julho de 2022 

Todos os anos, o jornalista e crítico de cinema Nelson Hoineff juntava os amigos mais chegados em seu apartamento na Av. Atlântica para assistir à entrega dos Oscars. A plateia se dividia entre os televisores do living e do escritório do anfitrião. Na noite de 30 de março de 1987, com a cerimônia ainda nos salamaleques iniciais, a campainha da entrada social tocou, e o conviva mais próximo à porta, ao abri-la, espantou-se com o que viu.  “Nelson”, comunicou o estupefato conviva ao dono da casa, “sabe quem acabou de chegar? O Gore Vidal.”  

Escritor Gore Vidal na '2005 Literary Awards'.  Foto: Mario Anzuoni/Reuters/Arquivo

Entregue ao meu ciceronato no Rio, quando veio ao Brasil lançar a coletânea de ensaios De Fato e de Ficção, Vidal não pensou duas vezes ao ser convidado para assistir à festa do Oscar daquele prédio na mesma calçada do Copacabana Palace, em cuja suíte 217 ele e o companheiro Howard Austen estavam hospedados. Hoineff esquecera-se de informar aos amigos da possível passada do escritor, que não só passou como ficou até o fim da festa, e mais um pouco.

Por que estou a lembrar de Vidal? Porque amanhã faz dez anos que ele morreu e falar de um morto da sua estatura é mais prazenteiro e profícuo que falar, outra vez, do vivo mais vil desta republiqueta - sim, ele.

Com seu formidável repertório de fofocas dos bastidores de Hollywood, onde viveu, trabalhou como roteirista e morreria (de pneumonia) 25 anos depois, Vidal tornou a nossa festa do Oscar mais animada do que a montada no palco do Dorothy Chandler Pavilion. Sua infrene maledicência só baixou a guarda na premiação de “melhor ator”: Paul Newman, por A Cor do Dinheiro. Newman foi um dos maiores amigos do escritor e também seu afilhado de casamento com a atriz Joanne Woodward.

Era madrugada quando, em meio às despedidas entre as mesas externas de um restaurante adormecido, o ilustre visitante improvisou um show privado e a capela de Mr. Austen: boa voz e uma espantosa memória do cancioneiro popular americano. A calçada da Fiorentina jamais serviu de palco a tão inusitada performance. 

Vidal e Howard viveram juntos 53 anos, numa relação a mais aberta imaginável. Nada de sexo entre eles ou com amigos comuns; dormiam em quartos separados e não se referiam mutuamente como “marido” ou “parceiro”. Contudo foram, a seu modo, afetivamente fiéis e inseparáveis até que a morte, esta infiel, os separou. 

Um tumor cerebral levou Howard em 2003. “Não era isso o combinado”, confessou Vidal, a quem horrorizava a hipótese de “ficar sozinho”. Nove anos depois, o escritor recuperou a companhia: lado a lado, nos túmulos que reservara no Cemitério de Rock Green, em Washington, meticulosamente colados ao do historiador Henry Adams, talvez a maior admiração intelectual de Vidal. 

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Billy Wilder foi maior presente que jornalismo deu a Hollywood 

Entre suas entrevistas estão Arthur Schnitzler e Richard Strauss

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 20 de agosto de 2022

Um dos diretores mais admirados do cinema falado – sobretudo pelas falas de seus filmes e dos que roteirizou para outros cineastas, notadamente para seu mestre Ernst Lubitsch – Billy Wilder (1906-2002) foi o maior presente que o jornalismo deu a Hollywood. 

Nascido austro-húngaro, numa cidade há tempos polonesa, Billy primeiro foi Billie, mas desde sempre Wilder (ou “Vílder”, na pronúncia em alemão). Foi como Billie Wilder que ele, bem jovem, fez carreira em jornais e revistas do eixo Viena-Berlim nas décadas de 1920 e 1930, entrevistando celebridades e escrevendo artigos, notinhas, críticas de filmes e até horóscopo e palavras cruzadas. Com a mesma verve que depois levaria para o cinema. 

Billy Wilder foi jornalista antes de dirigir 'A Montanha dos Sete Abutres' Foto: IMDB

 Como ter acesso ao jornalismo wilderiano, bem pessoal e moderno, diga-se, com tanta terra por cima? Noah Isenberg, pesquisador da Universidade do Texas, cuidou disso. A edição brasileira dessa façanha arqueológica (Billy Wilder: Um Repórter em Tempos Loucos) sai no fim do mês editado pela DBA. A tradução, de Tanize Mocellin Ferreira, embora no geral correta, me irritou um pouco pelo uso reiterado do verbo “gravar” no lugar de “filmar” ou “rodar”. Wilder só fez filmes na era analógica, com película, sem pixels.

Seu primeiro grande feito como repórter foi cobrir a badalada turnê da banda jazzística de Paul Whiteman a Viena, em 1926. Whiteman era, na época, o homem mais famoso na América depois de Chaplin. Billie amarrou-se no bigodinho (“esplêndido, inigualável, divino, fantástico”) do bandleader. 

Sua maior proeza teria sido uma entrevista surpresa com o morador do número 19 da rua Berggasse, em Viena, em dezembro de 1935. Mas Sigmund Freud, com um guardanapo pendurado no pescoço, recusou-se a interromper o almoço para recebê-lo e revelar como via a montante do fascismo na Europa.

Infelizmente, não há vestígio algum desse frustrado encontro no livro, nem do que sobre a onda fascista lhe responderam o psicanalista Alfred Adler, o músico Richard Strauss e o escritor Arthur Schnitzler, também pautados para a enquete. O piche que ele deu na Coca-Cola, debutante no mercado europeu em 1929, comparando seu sabor ao de um pneu queimado, me trouxe à lembrança o atarantado executivo da Coca-Cola vivido por James Cagney em Cupido Não Tem Bandeira. 

Seus dois filmes sobre jornalismo marrom (A Montanha dos Sete Abutres e A Primeira Página) e a banda feminina de Quanto Mais Quente Melhor também parecem tributários daquele período e daquelas loucas experiências. E que chegaram ao fim quando o êxodo dos judeus forçado por Hitler e a vontade de fazer cinema levaram Billie até Paris e, em 1934, ao exílio permanente em Hollywood, onde pôde finalmente virar Billy e ser abraçado pelo mundo.

Quando crítico, Wilder foi implacável com a megalomania de Erich von Stroheim e fez restrições a Ouro e Maldição (“desequilibrado e cheio de símbolos sem sentido”). Não sei se houve algum mal-estar no encontro dos dois, 15 anos depois, nos estúdios da Paramount, antes das filmagens de Cinco Covas no Egito, em que Stroheim fez o papel de Rommel, a “raposa do deserto” nazista. O ator diretor não só não passou recibo como ainda topou encarnar um ersatz seu em O Crepúsculo dos Deuses. 

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