sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Dia de lutar para salvar uma democracia que nunca houve no Brasil

Milly Lacombe, UOL, 11/08/2022 

Atos pela democracia pipocam por todos os cantos nesse 11 de agosto. Pessoas e lideranças de diferentes frentes se unem para, segundo elas, manter o estado democrático de direito que está ameaçado. A ameaça - e isso não é dito nas cartas - é Jair Bolsonaro. Uma ameaça real e perigosa.

Diante de tudo o que faz e diz o atual mandatário passou a ser incontornável uma aliança em torno desses manifestos pró-democracia. Eles são importantes e, a bem da verdade, servem de amparo não apenas legal, mas também afetivo. Estamos todas e todos carentes desses afetos.

Mas seria preciso deixar marcado que nossa luta não é pela manutenção da democracia plena porque não podemos lutar para manter o que nunca houve. Ou, mais precisamente, houve apenas em algumas poucas regiões, frequentadas por cidadãos muito específicos. Não há democracia se sua porta pode ser arrombada pela polícia.

Não existe estado democrático de direito se sua casa pode ser invadida por homens de farda sem mandado de nenhuma espécie. Se você não tem como buscar reparação jurídica quando seu filho é assassinado por balas do estado. Se quase todas as pessoas que você conhece, todos os seus vizinhos, já perderam um parente por morte violenta.

Não há democracia plena se metade da população é negra mas nenhum ministro do STF é. Se metade da população é feminina mas são raras as mulheres em cargos de poder ou no Parlamento. Não há democracia plena quando uma em cada quatro crianças vive em insegurança alimentar.

Não há democracia plena enquanto existir uma pessoa em situação de rua em qualquer lugar desse enorme país. Seria preciso repetir essas ideias, pegar essa visão como dizem por aí; democracia que serve a poucos e nunca foi vista pela maioria não é democracia por definição de termos. Democracia pouca não nos serve. A única democracia pela qual vale lutar é uma democracia radical. O Brasil nunca foi uma democracia plena e a luta não é para manter nada, é para fazer nascer uma democracia que, como o nome diz, seja de todos e para todos; de todas e para todas; de todes e para todes. 

Uma das cartas lidas nesse 11 de agosto coloca a democracia estadunidense como égide de democracias no mundo. Eu diria que a dita democracia estadunidense é tudo menos isso. Podemos chamar de democrático um estado que invade outros países em busca de recursos naturais? Um estado que planeja, coordena e executa uma campanha terrorista de drones sobre países do Oriente Médio? Um estado parceiro de ditaduras sanguinárias? Não seria preciso sequer entrar no âmbito dos direitos civis de sua própria população, tão grotescamente desrespeitados, para entender que os Estados Unidos não são uma democracia plena. Nosso exemplo não deveriam ser os Estados Unidos. Nossa luta não deveria ser para manter o que nunca tivemos.

Criticar pontos das cartas não é refutá-las. Como disse antes, apoiá-las passou a ser ação incontornável diante do que estamos vivendo. Mas, se posso terminar com mais uma crítica, eu diria que as cartas chegam com atraso de alguns anos.

A ameaça de golpe nasceu quando, em 2016, um deputado federal votou, em plenário, a favor de um golpe de estado celebrando um torturador em declaração oficial. No momento em que Jair Bolsonaro votou homenageando Carlos Brilhante Ustra e não saiu de lá em algemas, tudo passou a ser possível e tacitamente permitido nesse país que hoje tentamos recuperar.

11.ago.2022 - Pessoas de concentram diante do prédio da Faculdade de Direito da USP, centro de São Paulo, durante o ato em defesa da democracia. Imagem: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
 


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