Isto é EDIÇÃO Nº 2740 29/07
As cartas escritas pelo capitão Carlos Lamarca à sua amada Iara Lavelberg dias antes das trágicas mortes de ambos, em 1971, revelam o lado passional de revolucionário implacável.
Iara Iavelberg tinha o rosto lindo, a cabeça brilhante e o coração revolucionário. Era a musa da esquerda brasileira em 1969, quando um capitão do Exército, Carlos Lamarca, desertou de armas em punho para se tornar comandante da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR. Logo tombaria de encantos por Iara. A paixão do capitão pela guerrilheira virou lenda entre a intelectualidade pátria, nossa melhor versão de Tristão & Isolda ou de Garibaldi & Anita. Há 35 anos ambos, Lamarca & Iara, morreram nas mãos dos militares. Caíram na Bahia, em locais e datas distintas. O que poucos sabem é que Lamarca deixou um diário como legado, redigido durante seu exílio na caatinga baiana. São 39 trechos, redigidos entre 8 de julho e 16 de agosto de 1971 (um por dia), endereçados a Iara e obtidos por ISTOÉ através de um oficial de alta patente. O diário é um documento singular. Os textos se parecem muito mais com uma longa lírica romântica do que com registros racionais de um revolucionário.
Guardam impressionante paralelo com as cartas da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo a Leo Jogiches, onde ela discute a revolução, mas dedica-se principalmente a falar do amor colossal que sente pelo amante. Nas cartas de Lamarca, como nas de Rosa, há trechos marxistas, mas os pontos fortes desse documento são as declarações de amor que revelam o imaginário do nosso mais conhecido guerrilheiro:
– Neguinha, a fôrça da coletivização é espantosa, fico a imaginar uma fazenda coletiva – e me babo só de pensar! (A grafia original foi mantida)
Lamarca passou seus últimos dias escrevendo para a amada. Isso se tornara uma estranha obsessão. Alguns trechos dessas cartas vazaram em 1980, mas eram relacionados às convicções ideológicas do capitão; nada sobre Iara. Os originais do diário se encontram até hoje em poder dos militares. Ainda são considerados documentos “reservados” das Forças Armadas. ISTOÉ teve acesso a uma cópia datilografada pelos militares, totalizando 41 páginas. O diário começou a ser escrito em resposta a uma carta enviada pela guerrilheira.
MUSA
Filha de família abastada, Iara mergulhou na militância política, mas destoava dos padrões tradicionais da esquerda
– Sonhei com você. Acordei num misto de alegria e tristeza – compreendi que te desejava. (…) Sinto-me ôco. Esse estado não posso superar, o que posso fazer? No fim, um cocô atolado.
Em sua carta a Lamarca, lara cobra mais firmeza do amado, diz que ele deveria fazer-se respeitar mais pelos companheiros. Em sua resposta, o capitão se esforça para mostrar à musa sua disposição revolucionária e seu valor intelectual. Tece longas análises sobre a situação política na China, na Mongólia, em Cuba, na Jordânia e no Paquistão. Em meio disso, desanda a escrever sobre o amor. Começa heróico, em idílio marxista, para já na segunda frase revelar, de forma sutil, seu grande temor – o de que Iara termine nos braços de outro homem:
– O nosso amôr é uma realidade que veio sendo transformada – hoje atinge um nível nunca por mim sonhado, mas vamos continuar transformando. Sonho com êle numa fazenda coletiva – juro não ser ciumento e lutar junto contigo pela tua liberdade – e vou te amar mais intensamente, isto é possível, sinto que é. Nosso amôr não está isolado na realização de nós dois, nem nos milhares de filhos que teremos, êle nasceu e estará umbilicalmente ligado à Revolução e construção do Socialismo.
Depois escorrega a falar de solidão.
– Quando estou longe de você, tudo muda. É outro mundo, falta aquele calor que só emana de você mesma – fico imaginando e me delicio com tua lembrança, tôda viva, junto de mim.
– Continuo então aguardando ansiosamente a oportunidade de te encontrar, olhar dentro de teus olhos lindos (perguntadores e atentos olhos), te abraçar, te beijar (queridinha) e amar. Já vi que não sei mais passear, só após a guerra poderemos passear – qualquer pedaço de rua, ainda teremos, é visto por mim taticamente como um campo de luta.
ROMANCE
José Dirceu, então líder estudantil, foi namorado de Iara
Ele chegou a cometer dois poemas socialistas. O suor e as lágrimas e Isolado. Este último começa assim:
– Ouço ao longe/ um campona cantar/ triste, lamentos/ risos de crianças/ no rio se banhando/ fim de tarde, de/ trabalho/ Gritos de mãe,/ filho chamando.
Depois de 30 dias no sertão, longe de lara, Lamarca está enlouquecido de solidão. De dia, discute com os companheiros sua necessidade psicológica de reencontrar lara. E registra tudo no diário:
– Sonhando com você, acordo no meio da noite e volto a sonhar. Sonhei com você até nas vias de fato, pode? Ora, porque o sonho? Necessidade sexual não pode ser só, já sonhei inclusive nêsse nível com você. Como, até mesmo dormindo contigo sonhei, só posso concluir que a minha cuca é mais complicada do que eu pensava.
Lamarca e Iara se conheceram em abril de 1969, dois meses depois de ele desertar do Exército. Foi paixão fulminante. Ele era casado e tinha dois filhos. Nascido em 1937 no morro do Estácio, no Rio de Janeiro, era filho de um sapateiro e de uma dona-de-casa. Adolescente, já se mostrava disciplinado nos hábitos, do tipo que mantém o sapato engraxado e o uniforme engomado. Casou-se com a própria irmã de criação, Maria Pavan. Foi criado na moral proletária; depois adestrado no moralismo da caserna; por fim, na ortodoxia stalinista. Jamais gostou da dialética socialista – era, como se diz, um “homem de ação”.
Ela nasceu em 1944, em uma abastada família de judeus paulistanos. Casou-se em 1960, aos 16 anos, com Samuel Halberkon, um médico da comunidade. Separou-se três anos depois e aderiu à militância política. Estudou psicologia na Universidade de São Paulo e virou professora. Era alta, loira, tinha os olhos claros, grandes, e um rosto com sardas. Vaidosa, cuidava muito bem do corpo, dos cabelos e das roupas, hábitos inusitados para a esquerda da época. Separada, passou a exercitar o amor livre e as relações fugazes – entre seus namorados, o então líder estudantil José Dirceu. Era o comportamento comum entre as elites em Paris, Ipanema e Jardins. Chamava-se revolução sexual e fazia parte do contexto de libertação da mulher.
Tornou-se público na VPR que a relação extraconjugal incomodava o capitão. Confessava aos companheiros uma enorme culpa por ter arrumado outra depois de submeter a família ao exílio em Cuba. Mas logo começaram a viver juntos. Passaram dez meses trancados em aparelhos clandestinos. O romance foi testemunhado pela guerrilheira Vanda, codinome de Dilma Rousseff, hoje ministra da Casa Civil. “Eu e Lamarca lavamos muitos pratos juntos”, revela Dilma a ISTOÉ. “Era nessas horas que ele me fazia inconfidências sobre sua paixão por Iara.”
O diário revela o conflito entre esses dois mundos tão distantes, mas ligados pela fé na revolução. O encontro entre Lamarca e Iara foi um choque social, cultural e político. A relação enfrentou pressões dentro da VPR e das demais organizações marxistas, quase todos condenando aquele amor. No início de 1970 os dois começaram o treinamento militar. Caçados pelo Exército, espalharam-se pelas ruas do País cartazes com fotografias dos dois e os seguintes dizeres: “Bandidos terroristas procurados pelos órgãos de Segurança Nacional.” Lamarca escreveu no diário:
PRECOCE
Aos 16 anos, Iara se casou com Samuel Halberkon
– Sem você tudo teria desabado, e não sei como me encontraria perante a mim mesmo. Aprendi a lutar com você, e posso estar todo errado e estar fraquejando nessa luta. Mas quero que você compreenda que quero lutar, vou lutar pelo relacionamento.
No início de 1971, a VPR já estava completamente destruída, com seus militantes mortos, presos ou exilados. Os farrapos da organização foram incorporados a uma outra, o MR-8, Movimento Revolucionário Oito de Outubro. Lamarca foi rebaixado a militante de base e enviado para se esconder no interior da Bahia. Iara foi alçada à cúpula da nova organização e alocada em Salvador. O capitão tinha fama de ser intelectualmente despreparado. A imagem de Iara, ao contrário, era a de ser o cérebro do casal. Talvez por essa razão ele tenha tentado exibir dotes intelectuais ao redigir em seu diário análises sobre a conjuntura econômica e a política internacional.
Em Salvador, Iara morava num apartamento com o militante Félix Escobar Sobrinho, 20 anos mais velho. A idéia era um disfarce de pai e filha. Lamarca começou a escrever seu diário logo depois que soube, através daquela carta da amada, que ela morava com outro. Demonstra no diário que, desde o início, ficou com ciúmes. Primeiro tenta se mostrar compreensivo. Depois escreve sobre a distância e as necessidades físicas de ambos; chega a liberar Iara para novos relacionamentos.
– A tua situação é terrível, e a sua necessidade afetiva muito grande, e se não houver possibilidade de nos encontrarmos mais, tenho de abrir mão do nosso relacionamento no que se refere a você – dar a você a liberdade de relacionar com outro companheiro. No nível que atingiu o meu amôr, não posso admitir a possibilidade de me relacionar com outra pessoa, nunca mais, mas a minha estrutura é diferente da tua, posso viver só com você na cuca.
– Tenho que admitir as suas necessidades efetivas e comparar com o que a realidade está aos poucos mostrando para nós o que mais tarde será inexorável o aumento de suas necessidades. Não quero estar sendo um puto com você – entenda neguinha, por favor. Sinto-me um cocô sem poder te ajudar.
Mas Lamarca promete, de sua parte, manter a fidelidade para todo o sempre. Era, em verdade, somente sua tática inicial para não parecer um porco chauvinista:
– Não te preocupes que não existirá nunca uma cabrita. Te respeito muito e sou feliz por ser o teu amor; sinto saudade de tudo e me alimento das lembranças, penso adoidadamente em ti – é impressionante – nunca pensei amar tanto.
Shakespeare já afirmava que o curso do verdadeiro amor nunca foi sereno. Rosa Luxemburgo, por exemplo, passou 15 anos cobrando de Leo Jogiches casamento burguês e filhos. Quando, por fim, Rosa se cansou da espera e iniciou um relacionamento com outra pessoa, o amante enlouqueceu de ciúmes e ameaçou matá-la. Por muito menos, Lamarca também perdeu o controle emocional. Em suas anotações, de dia, é compreensivo.
– Não sei explicar toda essa imensa necessidade – o importante é que existe. Sei que a presença é necessária, que lutaremos pelas oportunidades de estarmos juntos, mas, enquanto separados PELO TEMPO QUE FOR, EM QUALQUER SITUAÇÃO – VOCÊ É MINHA MULHER – só você, sempre.
De noite, tortura-se de ciúmes:
– Falei em abertura pelo seu lado (do meu não admito, nem existirá nunca condições) do nosso relacionamento – que é observado – e como última hipótese; pode ser um puta ciúme meu de existir alguém cumprindo a minha função.
Na anotação de 13 de agosto, o guerrilheiro faz “autocrítica” e admite estar sofrendo de “machismo” e “autoflagelação”. Revela que decidira discutir politicamente com os companheiros uma forma de burlar a segurança para se encontrar com Iara (“Preciso de você, eis a realidade”). Por fim, em 16 de agosto de 1971, em sua última anotação, ele decide acabar com a tormenta, pelo menos na sua imaginação, da forma mais conservadora possível:
– Peço a você que não se abra diante de conversa mole de ninguém – o relacionamento com todos os companheiros deve ser político e não sentimento e outros bichos. Tome cuidado.
O diário jamais chegou à destinatária. Foi entregue pelo capitão ao militante João Lopes Salgado, codinome “Fio”, e depois foi repassado ao militante César Queiroz Benjamim, o “Menininho”, na época com 17 anos. Em 21 de agosto, escondido no Rio de Janeiro, Benjamim passou um telegrama para Iara, sem saber que já estava morta. Minutos depois, foi abordado por uma blitz da PM, entre as praias de Ipanema e Leblon. Estava num Fusca, com três outros militantes. Benjamim escapou durante a revista. No Fusca, ficaram os companheiros e uma maleta com roupas, uma arma e um envelope lacrado. “Eu não sabia que o diário estava no envelope”, relata Benjamim, que foi candidato a vice-presidente da República na chapa de Heloísa Helena. “Só sabia que deveria entregar um envelope para a Iara.” O Exército já descobrira que o capitão da guerrilha se escondia na Bahia, mas não tinha idéia do local exato. Ao receber o diário, os militares concluíram, pelas anotações, as coordenadas prováveis do esconderijo. Eis as últimas linhas de Lamarca, uma promessa que não poderia cumprir.
– Te amo, te adoro. Segue esta carta impregnada de amor – vou te ver nem que seja a última coisa da minha vida e mil beijos do teu amor.
Jamais se veriam novamente. Iara Iavelberg foi encontrada a 20 de agosto, em um apartamento da Pituba, Salvador. Segundo os militares, quando se viu cercada, conseguiu escapar para o apartamento vizinho e trancou-se no banheiro de empregada. O Exército estava esvaziando todo o prédio para iniciar a caçada. Então, uma criança do edifício voltou para pegar um brinquedo e viu Iara se escondendo. Assustada, avisou os militares. A versão oficial é a de que Iara teria dado um tiro no próprio peito, aos 27 anos, enquanto um soldado tentava arrombar a porta do banheiro. Sua família, contudo, levanta a hipótese de ela ter sido executada. “Há fotos, laudos e depoimentos de que ela não se matou”, afirma Mariana Pamplona, sobrinha de Iara e roteirista de um documentário em produção, Suicídio?, sobre a tia.
Os militares a mantiveram por um mês na geladeira do IML de Salvador. Só depois que o capitão foi morto os pais de Iara foram avisados. O Exército não deixou que um rabino fizesse a lavagem ritual do corpo, a tahara. Entregou-a em caixão lacrado. Somente a família foi autorizada a comparecer ao enterro. Havia o temor de que a esquerda roubasse o corpo para transformá-lo em estandarte. É possível, também, que se tentasse evitar uma contestação à versão oficial de suicídio. lara passou 32 anos enterrada na ala dos suicidas do cemitério judaico do Butantã, em São Paulo. Samuel Iavelberg, irmão de Iara, tentou removê-la para outro local em 1997, mas os rabinos impediram. “Isso incomodava muito meus pais, eles eram muito religiosos”, relata Samuel. “Mas para mim o essencial é que não prevalecesse a vontade da ditadura.” Em setembro de 2003, por ordem da Justiça, Iara foi exumada. Os rabinos tentaram protelar alegando que seria profanação. Foi preciso ameaçá-los de prisão. Em junho de 2005, o corpo de Iara foi finalmente enterrado na ala sagrada do cemitério, ao lado dos pais.
Lamarca soube da morte da amada dias depois. Perdeu a vontade de prosseguir na luta. Já havia caminhado em fuga cerca de 300 quilômetros pelo sertão baiano, ao lado do companheiro José Campos Barreto, o Zequinha. Foi encontrado em 17 de setembro por uma patrulha comandada pelo major Nilton Cerqueira, depois deputado federal e secretário de Segurança do Rio de Janeiro. Os comandantes torciam para que resistisse à prisão e não voltasse vivo. Contudo, de acordo com um militar que participou do episódio, as ordens do Centro de Informações do Exército eram para prendê-lo vivo. A idéia era mais tarde desaparecer com o corpo de Lamarca e vazar o boato na esquerda de que ele seria um agente infiltrado. Contudo, Cerqueira decidiu atender ao desejo da tropa.
O capitão da guerrilha estava desanimado, fraco, desnutrido e doente. Foi encontrado dormindo debaixo de uma árvore. Zequinha ainda tentou reagir; morreu na fuga. Lamarca ficou no chão. O major e o capitão mantiveram então um rápido diálogo. Cerqueira indagou pelo nome: “Capitão Carlos Lamarca!”, identificou-se. A seguir perguntou onde estariam sua mulher e filhos: “Em Cuba”, respondeu. A última das perguntas: “Você sabe que é um traidor do Exército brasileiro?” Lamarca não respondeu, segundo Cerqueira. De acordo com um militar que acompanhou os acontecimentos, a desfeita de Lamarca teria sido pior. Balançou os ombros e braços, no gesto de quem quer dizer “e daí?”, e tentou se levantar dando as costas à patrulha. Terminou fuzilado no chão, aos 33 anos, pelo major Cerqueira. Segundo a autópsia, no estômago e nos intestinos do capitão Lamarca só havia capim. Da aventura, só restaram as mensagens jamais entregues à musa inspiradora.
– Uma coisa é absoluta, inexorável – você é minha mulher – e isso é o que de mais lindo me aconteceu na vida. Se é antidialético crêr no absoluto, no eterno, eis-me, nesse caso um antidialético ferrenho. Saudade imensa, muito amor; seu só teu.
Sobre Iara
Audiência da Comissão da Verdade trata do caso Iara Iavelberg
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