Nhanderu usa ayahuasca na cracolândia contra dependência
Adriano e Tuca buscam redução de danos com chá e rapé no centro paulistano
Marcelo Leite 20/08/2022 FSP
À primeira vista, parece contrassenso: utilizar uma droga psicodélica para tirar dependentes da fissura por cocaína e crack. No Instituto Nhanderu, que tem sede em plena cracolândia paulistana, usar drogas nunca foi problema e a ayahuasca, ali, entra na condição de "medicina da floresta", assim como o rapé.
Na liderança da instituição religiosa, que tem 62 associados contribuintes, se destaca o casal Adriano de Camargo e Sebastiana da Silva Fontes, a Tuca, ambos com 44 anos. Ela, socióloga piauiense especializada em direitos humanos e população de rua. Ele, neto de guaranis, ex-detento que já morou nas calçadas do centro de São Paulo e se formou professor na cadeia. "A ayahuasca salvou a nossa vida, não é exagero", diz Tuca. "Entramos na rota da ayahuasca juntos, para nos curar."
Na realidade, ela chegou um pouco antes. Adriano estava no final da caminhada para abandonar o uso abusivo de álcool e outras drogas e receava tomar qualquer coisa. Tuca vinha de anos de tratamento para depressão e remédios como o antidepressivo fluoxetina e o hipnótico zolpidem. Sentia-se escravizada. "Vou tomar isso a vida inteira? Quando a ayahuasca chegou, me senti libertada."
A assistente social já vinha ouvindo falar do chá e de como frequentadores de rituais ayahuasqueiros pareciam ter menor incidência de transtornos psíquicos. Um dia um amigo de Sorocaba apontou a garrafa que mantinha em casa e lhes perguntou se queriam. Adriano respondeu por Tuca: "Eu não, mas ela quer".
"Foi uma experiência muito marcante, limpeza total, alívio imediato", conta hoje Tuca. "Só eu e a força, sem música. Me senti mais inteligente." Ela ainda tomaria os medicamentos por um ano, mas livrou-se deles de vez.
"Força" é um nome comum entre adeptos da ayahuasca para os efeitos psicodélicos do chá. Ele contém dimetiltriptamina (DMT), substância psicoativa das folhas do arbusto chacrona, um dos ingredientes do sacramento em igrejas como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.
Adriano só aderiu à bebida psicodélica mais à frente, quando começaram a frequentar a casa de um psicólogo, Bruno Ramos Gomes, que trabalhava com população de rua e dependentes. Também em seu caso foi transformador. "Minha vida, e a da Tuca, está pautada no cuidado de pessoas em condição de vulnerabilidade social", diz o líder do Nhanderu. "A ayahuasca veio depois, como mais um elemento no nosso cinto de utilidades. É uma ferramenta."
Foi trabalhando nas ruas que eles se reencontraram, anos depois de terem um caso. Tuca, formada em Ciências Sociais na Fundação Santo André, tinha prestado concurso para a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social e assumira a coordenação de tendas de atendimento em bairros paulistanos centrais como Santa Cecília e Barra Funda.
Adriano, após seguidas internações em clínicas e comunidades terapêuticas, formou-se professor em Letras pela Anhanguera Educacional. Trabalhou em projeto de reinclusão que usava o futebol como ponto de partida para criar vínculos e foi orientador no núcleo de convivência ligado à tenda de Santa Cecília, onde topou com Tuca. Namoraram de novo e logo se casaram.
Como a mulher, ele entrou para a Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd). Ali aprendeu sobre o conceito de redução de danos, que de pronto associou com os benefícios da ayahuasca. "Essa medicina vai reduzir dez anos de terapia em uma sessão", conta ter ouvido do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da Unifesp, um estudioso da ayahuasca e outros psicodélicos. "Outro universo se abriu para mim. Por que não levar isso para outras pessoas?"
Adriano conta que foi estudar e se informar mais. Fez cursos de psicanálise. Retomou contato com sua ascendência guarani, os avós da etnia Mbya no litoral paulista (Nhanderu quer dizer algo como "Criador", em sua língua). Fez várias viagens ao Acre para aprender o feitio de ayahuasca com povos tradicionais, como os Noke Koi (Katukina).
Tuca e ele estavam cansados de lidar, nas tendas, com o atendimento de 500, 600 pessoas. Queriam começar um trabalho mais sustentável, em ponto pequeno, baseado em redução de danos, criação de vínculo com rituais, terapia de substituição e cuidado continuado, por meio de acompanhamento psicológico.
No Nhanderu, fundado em 19 de abril de 2018 com ajuda de amigos, não se exige abstinência, por exemplo. "Usar droga não é errado", defende Adriano. "Pode usar sem se destruir."
O instituto nasceu em uma salinha comercial da rua Conselheiro Nébias, em meio à cracolândia. Hoje ocupa dois andares, incluindo a loja de produtos e acessórios que figura como maior fonte de recursos para o Nhanderu, rendendo em média R$ 6.000 mensais. Os 62 associados contribuem com mensalidades a partir de R$ 60 para pagar as contas.
A porta de entrada para dependentes e moradores de rua são as rodas de rapé, às quintas-feiras. Usuários de cocaína, por exemplo, se adaptam bem ao pó soprado nas narinas por meio de tipis (instrumento com um caniço oco). O impacto do rapé é fortíssimo, mais físico que psíquico, mas nada que derrube quem está habituado a drogas mais pesadas.
Com o passar do tempo, o frequentador pode ser convidado para as cerimônias de cura com ayahuasca e rapé que acontecem aos domingos. O salão tem um pequeno altar com velas, santos, plantas e outros objetos xamânicos, rodeado por colchonetes, cobertores e almofadas. Após ouvir breve preleção e tomar o chá, os participantes se acomodam e passam horas escutando música. Quando o efeito começa a passar, abre-se uma roda de conversa em que se ouvem relatos tocantes de superação de traumas e abusos. O encontro termina com uma ceia, compartilhando as comidas trazidas por todos.
O cuidado prossegue com atendimento por terapeutas, às terças-feiras. A ideia de Tuca e Adriano é usar a espiritualidade para reconectar a pessoa com uma vida mais serena e produtiva – espiritualidade, e não esta ou aquela religião, Adriano ressalva. Nas paredes do salão onde ocorre o ritual dominical há um pouco de tudo, de Jesus a Ganesh e Iemanjá. Para os recém-chegados, Adriano pede que os dotados de mediunidade se abstenham de incorporar entidades, para não incomodar os que não são seus crentes.
O ecletismo neoxamânico é a marca do Nhanderu: "Pode acreditar em Jesus, Buda, fogo ou água, em energias", explica Adriano. "Não é como igreja evangélica, nunca digo que a salvação está aqui ou ali."
"O desafio de conduzir e sustentar esse trabalho por anos a fio é enorme", elogia Lucas Maia, pesquisador de DMT no Instituto do Cérebro da UFRN, que já trabalhou com Adriano na Unifesp. "Tiro o meu chapéu para o serviço que Adriano, sua esposa Tuca e toda a equipe de colaboradores do Instituto Nhanderu estão realizando."
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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".
Não deixe de ver também as reportagens da série A Ressurreição da Jurema:
Sempre cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico
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