Apesar de tudo o que nos fizeram e nos fazem, sobrevivemos, aqui estamos e brilhamos.
Com dez episódios, ‘The Underground Railroad’ traz imagens realistas
Dor relembra o trauma da escravidão. Diretor fez questão de ter um terapeuta no set para apoiar elenco
Mariane Morisawa, Especial para o Estadão, 14 de maio de 2021
‘A democracia em meu país tem 27 anos, e eu faço 30 em breve. A opressão ainda está muito presente’, diz atriz sul-africana Thuso Mbedu. Foto: Amazon Prime Video
Barry Jenkins queria muito dirigir a adaptação de The Underground Railroad - Os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer de 2017 e lançado no Brasil pela HarperCollins. Mas tinha medo. A minissérie sobre Cora, uma mulher escravizada no sul dos Estados Unidos que foge para o norte, o assombrava, até porque amigos e familiares disseram que ele não deveria fazer The Underground Railroad, cujos dez episódios estreiam hoje, 14, no Amazon Prime Video.
Ele explicou sua decisão de seguir em frente numa declaração para a imprensa: “A ideia de imagens como as que a série contém tem suscitado sentimentos de vergonha, de trauma. O trauma advindo de representações da instituição norte-americana da escravidão é tão grande que a simples noção de criar tais imagens é suficiente para trazer à tona a vergonha. Mas, se não agora, quando? Quando será apropriado desmantelar o mito do excepcionalismo americano perpetrado pela manipulação da história e da linguagem, criando uma apresentação mais verdadeira da história por meio de uma linguagem clara e rigorosa?”. As cenas desse capítulo sombrio da história dos Estados Unidos são, como no Brasil, pouco mostradas e debatidas. E o diretor dos vencedores de Oscar Moonlight - Sob a Luz do Luar e Se a Rua Beale Falasse se perguntou: a quem isso serve? Depois de pensar em filmes sobre o Holocausto, como A Lista de Schindler, ele se deu conta de que “o trauma é real, mas a vergonha não é nossa”. Nossa, aqui, dos afro-americanos.
Jenkins então abraçou o projeto, com as imagens difíceis de olhar que ele pedia, mas com o cuidado de não cair no sensacionalismo e com a consciência de que as imagens que produziria jamais chegariam perto do que foi a realidade. Uma das coisas que o cineasta procurou foi expandir ainda mais em relação ao livro os espaços para os personagens existirem. Cora é uma mulher comum, que foi abandonada pela mãe ainda criança e foi isolada por conta disso. “Ela quase nunca fala. Mas você sempre sabe o que ela está sentindo”, disse a atriz Thuso Mbedu, em entrevista ao Estadão, sobre a jornada de sua personagem, tendo em seu encalço Ridgeway (Joel Edgerton).
“Perdi minha mãe cedo, então me sentia assim também. E foi muito libertador poder expressar essas coisas e ver Cora encontrar partes diferentes de si.” Jenkins também prossegue com sua recontextualização da masculinidade negra, tanto no personagem Caesar (Aaron Pierre), que foge com Cora, quanto em Royal (William Jackson Harper), que ela encontra mais tarde. “Caesar tem uma inteligência emocional que faz com que seja capaz de transcender o espaço onde está”, disse Pierre ao Estadão.
Mesmo assim, foi difícil contar essa história. Tanto que Barry Jenkins fez questão de ter uma terapeuta no set e deixou claro que se os atores, os figurantes ou a equipe precisassem parar em algum momento, era só dizer. Ele mesmo precisou. Porque a simples ideia daquelas imagens era forte demais. Pisar o solo de uma fazenda onde os antepassados de muitos ali tinham lutado para sobreviver ou perecido era forte demais. “Só posso agradecer como Barry conduziu tudo. O bem-estar mental, físico e espiritual de todos estava sempre adiante de qualquer outra coisa”, contou Pierre.
Mbedu acredita que mostrar esse passado é fundamental para avançar para o futuro. “Estamos num momento em que dizem para quem tem o corpo negro: supere, aconteceu faz tanto tempo. Mas a verdade é que continua ocorrendo hoje, em 2021”, disse a atriz. Nascida e criada na África do Sul, Mbedu sabe o que são as marcas de um regime racista e cruel. “A democracia em meu país tem 27 anos, e eu faço 30 em breve. Então, a opressão ainda está muito presente. Está em mim, no meu sangue. Minha avó nunca falou com a gente sobre o apartheid. Não sabemos o que ela passou. Era interessante explorar como é esse trauma geracional.”
Pierre nasceu na Inglaterra, mas as origens de sua família estão na Jamaica, Serra Leoa e Curaçau. Ele frisa que esta é uma história especificamente da experiência afro-americana. “Mas, sendo um jovem negro que é parte da diáspora, para mim, qualquer história de trauma e devastação dentro do escopo da diáspora me afeta.” Para o ator, The Underground Railroad não mostra apenas os horrores da vida cotidiana de pessoas negras escravizadas nos EUA. “O livro e a série celebram a magnitude da força e da resiliência dessas pessoas para superar essas circunstâncias e honram esses seres humanos.” O que torna essas imagens mais do que necessárias.
CRÍTICA: A câmera chega o mais perto que pode da realidade
O medo que Barry Jenkins sentiu ao adaptar The Underground Railroad - Os Caminhos para a Liberdade para a televisão não é infundado. Nos últimos anos, o bem-vindo crescimento do número de filmes e séries sobre pessoas negras gerou muitas vezes produtos que falam quase somente do trauma, seja da escravidão ou da segregação ou da brutalidade policial.A preocupação com isso é evidente em The Underground Railroad, desde já a minissérie obrigatória de 2021. Jenkins não tem como escapar dos horrores vividos por Cora (Thuso Mbedu), que foge da fazenda na Georgia e percorre Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee e Indiana. Ele nem quer, pois ignorar a crueldade seria um desserviço. O diretor é explícito quando precisa ser - por exemplo, em uma cena brutal no primeiro episódio. Mas o homem castigado retém sua dignidade. Indigno é quem faz aquilo para ele. A câmera chega o mais perto que pode da realidade. O foco principal, no entanto, está na reação dos homens, mulheres e crianças obrigados a assistir àquilo. E na face de Cora, que finalmente se rende aos apelos de Caesar para fugir.
A verdadeira força da minissérie é o espaço que dá para os personagens respirarem, sentirem, serem e existirem. Cora, antes de ser uma mulher ferida pelas circunstâncias de sua escravização, é uma filha abandonada pela mãe. Caesar, que lê As Viagens de Gulliver, inspiração para o próprio Whitehead, não aceita nada além da liberdade que lhe foi prometida e depois negada. Jasper (Calvin Leon Smith) canta e decide morrer em seus próprios termos.
E há os grupos de pessoas que olham diretamente para a câmera, sejam nas plantações ou nas estações de trem - os registros dos figurantes viraram o média-metragem The Gaze (O Olhar), uma peça de acompanhamento de The Underground Railroad. Nesses momentos, fica mais claro o objetivo de Jenkins com a minissérie: retomar a narrativa, o olhar, a História. Porque aquelas pessoas ali representam os milhões de negros escravizados cujas histórias nunca foram contadas, cujos nomes não foram registrados e que vivem em seus muitos descendentes.
Cada episódio termina com uma música contemporânea, de Outkast, Marvin Gaye, Kendrick Lamar, Childish Gambino, como forma de dizer: apesar de tudo o que nos fizeram e nos fazem, sobrevivemos, aqui estamos e brilhamos. (Mariane Morisawa)
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