quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sair do palco no auge da encenação

Quero morrer em sala de aula...

O desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação. Dar aulas era o que valia.

Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo, 31 de agosto de 2022

Foi a mensagem que guardei. A expressão desse desejo nos tirava da plenitude da juventude; daquele indomável impulso para o futuro que os jovens imaginam como inacabável e nos colocava em contato direto com o oposto da juventude: a maturidade profissional, a velhice e a morte. 

 'O desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação.' Foto: Pixabay

Espantei-me com a frase. Primeiro pensei que fosse uma trivial expressão de complacência, mas me desfiz desse engano, porque percebi que o desejo do nosso melhor professor era sair do palco no auge da encenação, pois “dar aula” era o que importava. Era o que fazia com mais cuidado e amor.

Jamais esqueci esse mestre - vamos chamá-lo de Freitas e imaginar que morava num pequeno apartamento coalhado de livros numa rua ao lado da faculdade; e que tinha uma esposa compreensiva e paciente. Que era simples, e que dele emanava o raro gosto daqueles que fazem o que amam. 

Como disse, fiquei surpreso com a declaração feita no início de uma aula, quando da apresentação do programa do curso sobre Sociologia Comparada. Matéria que, para ele, era um método de evitar julgamentos superficiais, essa fonte de preconceitos, porque sempre comparamos com base no nosso ponto de vista. Para realizar uma autêntica comparação, dizia, era preciso apagar-se no ponto de vista do diferente, porque o diferente é sempre vítima de mal-entendidos. Ou ele é lido como superior, o que nos reduz a meros vira-latas; ou ele é visto como inferior, o que nos coloca como superiores. 

A perturbadora diversidade humana -, pois, tirando os livros sagrados, ninguém sabe como ela foi implantada - é o maior desafio das comparações. É complicado, terminava, descobrir que o outro é um alternativo: um outro modo de construir o mundo. Guardei como um tesouro essa lição. E, com ela, professor que também sou, mantive essa “inocência” comparativa que, antes de julgar, tenta penetrar no espaço do outro para trazê-lo de volta à nossa consciência.

Deixei a faculdade faz tempo. Mas soube que o professor Nilo foi afastado pela idade. Um diretor imbecil entendeu que, depois de 70 anos, os professores seriam aposentados. Nessa onda, foi-se o professor Freitas que não morreu em sala de aula, como sonhava, mas num hospital...

Uma pessoa disse que seus colegas nada fizeram para protestar quando Freitas foi afastado - pois eram realistas e tinham bom senso -, ficaram um pouco tristes, mas logo foram tomados por suas vidas e logo esqueceram o colega, mas os escritores servem para relembrar por um momento esse amor pelo ato de ensinar que possuía o professor banido. Antes que a vida com sua voracidade nos faça esquecer novamente. 

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