quarta-feira, 17 de agosto de 2022

João Carlos Salles, UFBA

Uma palavra final, 15/08/2022

Por JOÃO CARLOS SALLES*

Discurso proferido na cerimônia de encerramento do segundo mandato como Reitor da Universidade Federal da Bahia

1.

O pensamento mal deixa entrever o sublime. Costuma aproximar-se dele pelo negativo, como se as palavras não pudessem agarrar seu resíduo mais importante, sua essência, que resistiria inefável. Em uma fórmula antiga, o mais elevado, o divino mesmo, não poderia ser louvado pelos nossos lábios.

Em relação à universidade pública, não é bem assim. Ela se nos aparece em valores e em fatos, como se habitasse duas dimensões imiscíveis e, todavia, interligadas, e nos deixasse dizer o que ela é apenas quando também dizemos o que não é ainda, ou seja, o que ela deve ser. Afinal, a universidade é nossa instituição mais elevada e, não obstante, sempre permanece terrena. Por isso, temos muito a contar sobre a universidade, vivenciada segundo essa tensão constitutiva.

Permitam que nos aproximemos dela primeiro com uma frase negativa, para esconjurar qualquer mau agouro e lhe sacudir um pouco a poeira do corpo. A universidade não é uma mera coisa, um objeto, um quê. Perguntar de início o que seja a universidade seria quase cometer um erro categorial. Instituição viva, ela é como um organismo. Mais ainda, é um sujeito, um quem; e, sobretudo, é um nós, um sujeito coletivo.

Ela decerto depende da energia de cada membro da comunidade e, contudo, nos ultrapassa a todos. Não existiria sem nossa adesão, sem nossa entrega, sem nossa doação; entretanto, é bem maior do que a soma de todos nós. Mais que um lugar de pensamento, é pensamento coletivo, um corpo vivo, que, em um espaço de múltiplos encontros e constantes desafios, trabalha, respira, delibera, dança e sonha.

Não escondo aqui minha inspiração. Em um dos mais belos textos jamais escritos, “Juízos de valor e juízos de realidade”, Émile Durkheim desenhou essa força do coletivo, que seria a fonte de toda liga social e estaria na origem de cada autoridade legítima: “o pensamento coletivo metamorfoseia tudo aquilo que toca. Ele mistura os reinos, confunde os contrários, inverte aquilo que se poderia tomar como a hierarquia natural dos seres, nivela as diferenças, diferencia os semelhantes, numa palavra, substitui o mundo que nos é revelado pelos sentidos por um outro mundo absolutamente diferente, que não é mais que a sombra projetada pelos ideais que ele constrói”. (DURKHEIM, Émile, Sociologia e filosofia, Forense, p. 112).

Não por acaso, portanto, uma vez tocados pela fonte mesma que nos autoriza a autonomia, por essa ligação interna entre ensino, pesquisa e extensão, vivemos na UFBA, ou melhor, vivemos a UFBA em meio a maravilhas. Somos tocados, dia a dia, pelos ideais que nos constituem e mesmo nos definem.

2.

A universidade não é uma repartição pública a mais. Todo serviço público é nobre, tem missão elevada, mas não é por isso homogêneo, não contando todo ele, por exemplo, com a prerrogativa constitucional da autonomia. Somente uma visão gerencial obtusa, com fortes implicações ideológicas, pode nivelar o tecido das instituições e lhes suprimir a diversidade, reduzindo todas à mesma medida. Tal olhar tecnocrático anularia então quaisquer valores, dizendo-nos mais ou menos isso: na administração em geral, tudo vale quanto pesa, quanto arrecada, quanto custa, e a sociedade não deve imantar certas regiões da vida pública (saúde e educação, por exemplo) com valor algum mais elevado.

Essa visão tacanha, infelizmente, tem prosperado. Ela está presente em reduções orçamentárias, contingenciamentos, bloqueios e cortes, por conta dos quais é devastador o dano causado ao sistema público de educação superior. Está presente no desrespeito do atual governo ao princípio da autonomia, pois com tal ataque se desconhece exatamente que a universidade é heterogênea a outras instituições, tem outras medidas administrativas, uma vez que sua gestão é determinada, não por princípios abstratos que valeriam para uma empresa qualquer, mas sim por suas finalidades, seu tempo próprio e sua história.

Em relação a tantas e tamanhas ameaças, a UFBA mostrou nestes anos sombrios que não tem apenas duração; ela vive e tem história. Mais ainda, reafirmando sua maturidade e autonomia, com a competência de toda equipe da administração central, mas também com a mobilização dos dirigentes de nossas unidades, dos diversos grupos e coletivos, das representações de nossas categorias e do compromisso de nossos estudantes, técnicos, docentes e terceirizados, a UFBA mostrou-se um lugar por onde se tece nossa história, tanto na definição de projetos internos quanto na afirmação de um projeto mais amplo de nação – projeto que, em nossas autênticas universidades, resulta de uma trama característica de conhecimento e solidariedade.

Devemos convir que a instituição tem outras faces, que não apenas as mais luminosas. Essas outras faces, todavia, não conformam a verdade que juntos escolhemos. Sempre há de haver, fora ou dentro da universidade, quem prefira ver ruínas onde enxergamos projetos, quem encontre nos efeitos do assalto orçamentário razões ou desculpas para esbanjarem uma inteligência cítrica e pouca disposição para o trabalho conjunto, quem adote a postura fácil do consumidor e não a postura crítica própria da cidadania universitária.

Os fatos, porém, não depõem sozinhos e não nos obrigam à rendição. Soubemos ser herdeiros do Corneteiro Lopes  e, quando nos apareciam dificuldades reais (que são muitas) e nos apontavam mazelas (que são múltiplas e algumas atávicas), juntos evitamos soluções fáceis e demolidoras, juntos afastamos quaisquer caminhos que pudessem comprometer o patrimônio material ou imaterial da Universidade, abalassem sua higidez institucional ou fizessem o orçamento tão necessário depender de injunções danosas à sua autonomia e aos seus valores.

Assim, entre todas as universidades possíveis, em meio a fatos gratificantes ou adversos, desenhamos juntos um horizonte de defesa da Universidade como um projeto de longa duração, porquanto projeto de estado e de nação, em função do qual não nos caberia jamais renunciar ao financiamento público de sua plena atividade, nem caberia, por qualquer proselitismo, amesquinhar suas promessas de expansão – expansão que, sendo essencial, deve também ser autêntica, nela encontrando abrigo o talento e a cor de nossa gente e por ela sempre se preservando sua qualidade acadêmica.

3.

Retomemos nosso exercício de teologia negativa. A universidade não é um mero instrumento, uma ferramenta valorizada exclusivamente por sua aplicação ou por resultados imediatos. Entretanto, na linguagem da burocracia governamental, ela encontraria justificativa tão somente na proporção de suas “entregas”. De modo semelhante, também os saberes passariam a valer tão somente pelos empregos que podem gerar, devendo ser descartados ou diminuídos cursos e profissões que não encontrem resposta no mercado.

Ora, a universidade pública nunca deixa de apresentar respostas de forma imediata, e o tem feito, aliás, de maneira notável em momentos graves, como este da pandemia, servindo, portanto, seu conhecimento a interesses de diversa ordem e diversa medida temporal. Porém, ela jamais se reduz a tais resultados ou entregas, não lhe cabendo abandonar a múltipla dimensão de saberes a serem cultivados e protegidos, nem condenar à inanição dimensões cuja resposta dizem mais respeito ao próprio sentido da instituição, com independência do retorno que ela possa oferecer no curto prazo.

Incompreensões dessa ordem, resultantes de uma visão instrumental e pragmática, são pervasivas e costumam enfeitiçar agentes públicos de um amplo espectro político. Por isso mesmo, por ser tão insidiosa essa imagem, dificilmente poderá cessar nossa luta contra projetos como o Future-se e outros arremedos – projetos que têm em comum a subordinação da universidade a algum interesse externo e limitado, a alguma dimensão unilateral, seja porque veem a universidade como um obstáculo, seja porque a têm na conta de um bem supérfluo. E mesmo em ambientes que supúnhamos progressistas, vez ou outra, é possível encontrar a manifestação explícita ou mal disfarçada de algum desdém pela universidade.

A universidade incomoda. Seria tolice fechar os olhos a esse incômodo, seja ele motivado por completa ignorância do seu significado estratégico, seja por algum tipo de ressentimento. É verdade que passou a incomodar mais ainda quando, como no caso da UFBA, ela se enriqueceu por seu enegrecimento e por todas as demais ações afirmativas que lhe ampliaram o horizonte de possibilidades e lhe alargaram o campo de direitos; mas incomoda também a quem, mesmo supostamente progressista, só é capaz de pensar a coisa pública em função do cálculo orçamentário e não de pensar, ao contrário, o cálculo orçamentário em função de uma hierarquia posta e pactuada pelo interesse público de longa duração.

4.

Outubro logo chegará, trazendo-nos justas esperanças. É preciso, então, redobrar o cuidado. Não estaremos livres de ameaças nem mesmo quando virarmos a página atual de autoritarismo e obscurantismo, pois não é de hoje que nossa sociedade, autoritária e excludente, faz negociações para esvaziar a autonomia da universidade e lhe comprometer a sustentação. Ao afastarmos o ignorante, o preconceituoso, não afastaremos, em um passe de mágica, a ignorância ou o preconceito.

Com efeito, vícios antigos podem assumir a roupagem de novas virtudes e, a pretexto de valorizar as universidades, podem reduzi-la a um banco de prestadores de serviços ou a uma máquina azeitada de produção de diplomas – o que equivaleria a uma terceirização da vida universitária (edulcorada no discurso como virtude acadêmica e necessidade orçamentária pragmática), ou a uma redução de seu escopo estratégico, limitando-se este ao que, aliás, as instituições privadas sabem fazer bem (ampliar vagas), sem que as privadas (com as conhecidas e louváveis exceções) procurem seguir os padrões próprios, elevados e bem regulados de nossas instituições públicas.

À inteligência da política costuma faltar a mais mínima sabedoria. Eis o perigo. A valorização da vida universitária pode sim, com belas imagens e em outro cenário político, ser associada de modo sutil ao descompromisso com o financiamento da atividade acadêmica como efetivamente deve ser, ou seja, com autonomia para pesquisa e investimento em todas as áreas do saber – repito, em todas as áreas do saber, e não apenas nas que porventura sirvam melhor aos interesses de ocasião do mercado, de partidos ou mesmo a alguma política pública mais imediata do próprio governo.

Outubro já vem, com sua música, com seus encantos. Que saibamos lembrar à primavera vindoura que Universidades são projetos de longa duração. Com um país em frangalhos, carente de respostas instantâneas, é com tanto mais empenho que devemos evitar o risco de se tratar a educação superior como se fora uma repartição a mais e mais um problema.

Outubro já vem, com sua alegria. Temos então o dever de alertar os que acaso carregam as mais justas esperanças e em quem hipotecaremos nossos sonhos, que medidas de austeridade não se aplicam aos projetos civilizatórios, que proselitismos ou espertezas orçamentárias nunca hão de cumprir o propósito de fazer brilhar o talento e o requinte de nosso povo, nossa gente diversa e bela, sendo ainda maior nosso dever de estender a todos, com qualidade, o direito a uma educação pública plena.

A universidade não é uma mera prestadora de serviços, subordinada a uma pauta ou determinada por demandas para cujo desenho ela não contribui. Caso contrário, ela se reduziria a um banco de produtos simbólicos sem valor próprio, uma vez perdido seu lugar na constituição do repertório desejável de símbolos.

Em qualquer cenário, portanto, a luta há de continuar, e a Universidade, agora fortalecida na adversidade, moída no áspero, amadurecida na resistência, nunca aceitará qualquer proposta que lhe retire o sentido ou lhe amesquinhe o futuro – esse nosso futuro, em nós presente como promessa de uma nação que não seja desigual, mas sim profunda e radicalmente democrática.

5.

Nós nos aproximamos do divino pelo negativo. Afinal, o que ainda não vingou há de ser nossa mais profunda justificativa, sendo a universidade ela mesma uma finalidade e um valor universal. Por conseguinte, ela precisa multiplicar-se, mas nunca sem a garantia de seu direito a um amadurecimento pleno. Logo, não estaremos em ambiente universitário, caso se multipliquem vagas (como pretendem com o Reuni Digital) sem garantir em cada novo espaço as condições para aquela articulação definidora e indissociável entre ensino, pesquisa e extensão.

As Universidades, é verdade, têm tempos distintos. Elas amadurecem por meio de um investimento constante e, sobretudo, pelo adensamento de sua comunidade acadêmica. Não brotam inteiras, mas não podem estar atrofiadas de saída. As marcas da construção, as cicatrizes de seu crescimento são próprias de um processo, e não uma condenação. É preciso assim continuar o combate ao que outrora batizei de “síndrome de Virchow”, ou seja, à ideia de que universidades em sentido pleno estariam destinadas a uns poucos centros, valendo para o norte ou o nordeste alguma estrutura inane, com a qual o sul e o sudeste jamais poderiam estar satisfeitos.

A regra é simples, e deve ser aplicada de norte a sul. Não há excelência acadêmica legítima sem compromisso social. Tampouco há compromisso social de qualidade sem excelência acadêmica. E, em suma, tanto as universidades têm o dever essencial de procurar a plenitude, quanto nosso povo tem direito a universidades plenas.

A expansão é necessária. Ela deve assim ser projeto, e não um pretexto ou recurso de proselitismo. A expansão autêntica não é, portanto, um mero inchaço que, na cruel fórmula nietzschiana, entregaria os pobres ao diabo e à estatística. A universidade não pode ser, portanto, um simulacro de política pública, mas sim promessa de ampliação de um lugar exemplar e democrático de formação – espaço infenso à rudeza da barbárie, onde a boa pesquisa nos redime das marcas gélidas da razão, onde a imaginação nos liberta do mero cálculo, onde horizontes e direitos se ampliam e no qual a crítica severa, porque rigorosa, pressupõe o encontro, acolhe a fala do outro e não procura sua destruição.

A Universidade, ademais, não deve ser um palco para disputas alheias à sua natureza. Caso reduzida ao atendimento de demandas externas, tanto fica comprometida sua autonomia coletiva para a pesquisa, dirigida doravante por sua aplicação, quanto, por sua feita, se desnatura o pesquisador individual, diminuído (quiçá voluntariamente) à condição de mero consultor – talvez até com vantagens financeiras, mas certamente não intelectuais.

Poderia continuar horas a fio esse exercício de teologia negativa. Devo parar. Esse exercício continuará a ser feito por quem herda agora toda a confiança e a energia de nossa construção coletiva, a força de sermos UFBA, uma certa UFBA, entre tantas possíveis. Somos UFBA, essa que se reconhece e sorri em cada formatura, em cada grito e mesmo em cada artigo ou livro. Somos essa UFBA, presente na pesquisa e nas assembleias, nos laboratórios e no diálogo com as comunidades tradicionais. Somos a UFBA da balbúrdia, que fervilha nas ruas e nas redes, nas academias e nas salas de aula. A UFBA que sempre dirá não à barbárie.

6.

Este é meu gesto derradeiro como reitor. Ainda deste lugar, eu lhes dirijo agora uma palavra final. Pude aludir acima ao que talvez não possa ser dito – a isso que, enfim, nenhuma palavra agarra ou conserva. Findo o trabalho, sei que, sozinhas, as palavras espalhadas podem até dizer o significativo (isso que diz como as coisas estão), mas nunca expressar o relevante, que toca nossos problemas de vida.

Muitas palavras, decerto. Quem as lê ou escuta pode ainda estar longe de perceber a energia que as habita. Contudo, se a linguagem não alcança o relevante, não há outro caminho senão ela mesma para ultrapassar o meramente significativo. E, com elas, penso dever registrar precisos gestos derradeiros.

Já esvaziei as gavetas. Já me despedi de órgãos, unidades, categorias e grupos em separado, e agora o faço coletivamente, expressando a todos a minha mais profunda gratidão. Saio agora como entrei, de cabeça erguida. Como meu pai Divaldo Sales Soares, que exerceu antanho a função de delegado de terras, não demarquei para mim um metro sequer de terra devoluta.

Não fiz amigos nem inimigos à toa; não beneficiei quem esperava benesses; tampouco prejudiquei quem esperava hostilidades. Procurei assim honrar o cargo. Ou seja, cumprir o dever, que é de toda gestão legítima, de favorecer-nos sobretudo a unidade e de nos movermos tão somente pelos interesses da instituição.

Também, com nossa equipe, procurei seguir o bom exemplo, que juntos construímos e que, tenho certeza, continuará nesse mesmo espírito já nesta próxima segunda-feira, de uma gestão estruturada, em sintonia com os propósitos de nossa comunidade e com o mais elevado projeto de nação, sem que jamais se deva esperar desse nosso ofício outra coisa que não o estritamente próprio de servidores públicos – o que, aliás, torna a gestão pública, especialmente na universidade, um exercício de fazer a utopia banhar a instituição com as prerrogativas e exigências do comum.

Reitores precisam ter muito desse tipo de vaidade, a decorrente da obrigação de representação do coletivo e a de todo e cada gesto dever corresponder às expectativas da instituição. A vaidade está então em ser com mais força, na fórmula consagrada, de todos os servidores o mais humilde. A vaidade está em saber que um reitorado é tão somente o que pode ser a equipe com a qual dividimos o trabalho e o cotidiano da gestão.

Devo aqui dizer, com todas as letras, que não teríamos nenhum sucesso sem a dedicação e a competência de toda nossa equipe. Porque juntos e misturados, não tivemos trégua e sequer direito à inocência, ao tempo que nunca pudemos ou quisemos esperar gratidão por cumprirmos nosso dever. E não houve outros segredos. Tivemos juntos consciência de que a gestão sempre nos traz tudo que é capaz de entregar e nos cobra por completo o que já lhe devíamos desde o início.

Aprendi muito. Sou hoje outra pessoa, para além dos cabelos encanecidos. Como já disse em outra ocasião, saio deste lugar mais sábio, rico, forte e honrado. Sábio por ter aprendido muito com todo mundo, com cada fala, inclusive as mais dissonantes; forte o bastante por aceitar a força do interesse coletivo, que me leva inclusive, na hora certa, a seguir outro rumo; rico, e muito rico, por estar envolto na riqueza e no refinamento de nossa gente que faz ciência, cultura e arte; e orgulhoso, vaidoso mesmo, de ter a honra única de, com minhas falhas tantas, não ter envergonhado a quem me confiou, por tão longo e tão curto tempo, a representação desse nós, desse sujeito coletivo.

7.

Não há lugar mais elevado. Os colegas reitores e reitoras aqui presentes entenderão o que me esforço por dizer, pois devem sentir o mesmo. Estamos, por assim dizer, no centro do centro do nosso singular universo. E cada reitor, cada reitora, só pode sentir o mesmo estando em sua casa. Da mesma forma, deve poder sentir-se assim cada membro da comunidade, cada diretor, cada docente, cada estudante, cada técnico, no momento em que se liga a essa esfera infinita de saber e formação, cujo centro está em todas as partes e cuja circunferência em nenhuma.

Eis a singularidade, aliás, de uma associação como a ANDIFES, que reúne os dirigentes das instituições federais de ensino superior – e que nos dá a imensa honra de estar reunida em Salvador e presente nesta cerimônia. A singularidade de nossas universidades faz com que a força da associação não seja independente de sua situação algo paradoxal. A ANDIFES, como já afirmei ao estar em sua presidência, é maior que o conjunto dos reitores, mas é menor que qualquer uma de nossas universidades. Entender esse aparente paradoxo leva-nos a prezar o equilíbrio entre a necessidade da luta conjunta, do nosso trabalho conjunto, e o estrito respeito à autonomia e ao específico de cada uma de nossas instituições, que são a fonte de qualquer legitimidade. Meu abraço afetuoso aos reitores e reitoras aqui presentes e minha gratidão àqueles com quem pude compartilhar a experiência de gestão nestes oito anos, que ora se encerram.

Alguns de vocês talvez sintam uma ponta de inveja da possibilidade que se abre para mim de poder doravante manifestar mais direta e individualmente posições e opiniões acerca deste momento em que, em nosso país, tanto se agudiza o embate entre o obscurantismo mais rude e uma saída democrática. Não deixarei de aproveitar (logo, logo) esse direito de cidadão e de expressar, de outro lugar e modo, a posição que tenho tido em defesa das liberdades democráticas e contrária ao próprio absurdo, participando, então, por outros meios, da luta (que tem sido de todos nós) em defesa da educação e contra a barbárie.

Entretanto, a situação do país se nos revela delicada e instável. Com isso, o cenário pode vir a exigir de todos os indivíduos e instituições manifestações pouco usuais e em ritmo de emergência pública. Afinal, não está afastado o absurdo de vermos desafiadas as condições mesmas de um estado de direito. Tenho certeza que, em tal caso, se for necessária manifestação ainda mais contundente da UFBA, essa não deixará de vir, com a marca característica de nossa resistência política e institucional. Se necessária a manifestação das universidades públicas, tenho convicção, a sintonia de nossas instituições se revelará forte e imediata. Se for preciso resistir, não há dúvida, também a ANDIFES erguerá sua voz. Todos nós, certamente, não deixaremos de dizer: Ditadura nunca mais!

Como é bom poder dizer isso em alto e bom som no Salão Nobre da Reitoria da UFBA, com a convicção e a serenidade de que nosso Conselho Universitário não repetirá grave erro de outrora e jamais voltará a assentir a um golpe. Ditadura nunca mais!

8.

Saio agora de cabeça erguida e, ademais, muito contente. Afinal, o sucesso de uma gestão está também no terreno que prepara para outros continuarem a semear e colher bons frutos. E o futuro da UFBA, tenho certeza, será luminoso.

A gestão futura traz a promessa de muitas maravilhas. Até mesmo os discursos futuros devem ganhar estando livres de meus vícios de linguagem e afastados de meu gongorismo. Terão talvez menos “portantos” e “porquês”, evitarão naturalmente a profusão de conjunções adversativas, serão mais naturais e belos. A força e a densidade da instituição, todavia, não deixarão de lhes perpassar a tessitura mais ampla e a mais fina.

Reflito agora, brevemente, sobre este momento em que nos afastamos e precisamos nos afastar, meu amigo Paulo Miguez, tecendo considerações breves e gramaticais sobre as noções de ‘saudade’ e ‘falta’ – noções que costumamos confundir. É até verdade: se digo, por exemplo, que tenho saudade de Ubirajara Dórea Rebouças, Milson Berbert Pessoa e Fernando Antônio Lopes Rego, isso significa e implica, em condições normais de uso das palavras, que eles me fazem falta – aliás, uma falta imensurável.

Podemos notar que, não obstante esse emprego corrente, as noções são gramaticalmente distintas e, muita vez, importa separá-las. Pensando no reitorado que ora se encerra, seria um infortúnio enorme para mim se as pessoas dele não sentissem nem saudade nem falta. Porém, será um infortúnio para o próximo reitorado, se do nosso sentirem saudade e falta. O infortúnio, curiosamente, passaria a valer para ambos os reitorados em outra combinação dos termos, a saber, o caso em que sentiriam falta do nosso reitorado, mas nenhuma saudade.

A gramática filosófica nos ensina: é preciso separar as noções para chegarmos à única fórmula adequada e desejável, qual seja, esperamos que sintam sim alguma saudade de nosso reitorado, mas não sua falta. E estou confiante de que assim será. Sabemos todos que, com a crise atual, os desafios serão imensos, mas o novo reitorado brota de nossa experiência comum, de nosso trabalho conjunto, e nasce bem mais preparado para corresponder aos maiores desafios e realizar os melhores valores da universidade.

Por outro lado, em nível pessoal e o mais íntimo, é uma questão crucial também poder separar as duas noções. Salvo melhor juízo, eu mereço ser abençoado com a mesma fórmula. Tenho direito de sentir saudade. E é claro que sentirei saudade de tudo isso, desse tempo em que fui jogado, com a nossa comunidade, no centro de uma história de resistência.

A saudade já começou e vai ficar ainda mais forte, mas os céus hão de prover as condições para que eu possa, sentindo muita saudade, não sentir falta; para que eu consiga, com a memória de nossas peripécias e do afeto dos amigos, retomar minha vida e enfrentar novos desafios.

Nesse sentido, quis o acaso, com seus sinais, com sua sabedoria, que a cerimônia de encerramento tivesse lugar neste 13 de agosto de 2022. Hoje, meu mestre e amigo Ubirajara Dórea Rebouças completaria 85 anos. Só posso atribuir a essa obra do acaso um especial e inadvertido simbolismo. Afinal, Bira teve papel decisivo, por volta de 1980, em minha escolha profissional pela filosofia – o que mudou inteiramente o rumo de minha vida. Ele esteve assim na origem de um movimento que me trouxe enfim a este lugar.

Agora, neste seu aniversário, sua memória manda seus sinais e abençoa este momento de despedida, confirmando minha convicção mais profunda acerca do caminho a seguir. A lembrança de Bira me faz pressentir e agradecer a presença do eterno, na forma única da amizade, em meio a toda precariedade do humano. E eis que ela abençoa sim o acerto de minha decisão firme e clara de retomar o rumo da dedicação plena à filosofia, de onde talvez, acreditam alguns, eu nunca deveria ter saído e da qual, sabem outros, eu em verdade jamais saí.

9.

Concluo, enfim, e nessa despedida eu me atrevo a alterar uns belíssimos versos Drummond – não para os tornar mais belos (isso não seria possível), mas para os tornar mais apropriados ao sentimento que acredito presidir este momento. Nos dois tercetos finais do poema “Memória”, Drummond é por demais severo na afirmação da finitude:

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.

Decreta, assim, a permanência das coisas findas. Com isso, permanece o que termina, prisioneiros que somos dessa nossa finitude incontornável. Entretanto, mesmo sem escaparmos ao humano, agarramos algo além do perecível – à procura, quem sabe, de uma redenção ou de um consolo. Por isso, com as desculpas devidas, acredito valer a pena reescrever o último terceto e afirmar, como um falso Drummond:

Mas as coisas lindas,

muito mais que findas,

essas sim ficarão.

Sentirei decerto muito saudade, ela é imensa e natural; mas me ocuparei bastante para realizar a obrigação de também não ser falta, guardando a lembrança fortuita mas intensa de alguma beleza que acaso tenhamos logrado.

Estar na UFBA é estar sim em um lugar privilegiado e belo, um desses lugares que nos permitem sentir o pulso da história. Agora, porém, eu me retiro. Satisfeito inclusive, quero crer, por nunca ter desistido quando até mesmo alguns mais chegados faziam parecer impossível vencer este ou aquele desafio.

Com todos os erros, com todas as falhas, com todas as dificuldades e limitações que tivemos, Miguez e todos os amigos da nossa gestão, não sentimos em momento algum o sabor do fracasso. Mas como poderíamos fracassar? Estávamos juntos! Como não poderíamos ser bem-sucedidos, mesmo nas circunstâncias mais adversas, nessas circunstâncias extremas e fora do comum em matéria de absurdo? E como não há de ter pleno sucesso a próxima gestão? Impossível! A gestão que se encerra e a gestão futura têm a UFBA no coração, e esse é o segredo de nossa força comum. Quem tem a universidade pública no coração, tudo pode e nunca há de fracassar.

Nesses oito anos, tive direito à palavra. Tenho agora o dever do silêncio. Tive a honra de representar esta comunidade na qual se faz a história e, ao me retirar desse lugar, tenho o dever de deixar inteira e sem jaça a magnificência em seu lugar único e adequado, pois ela pertence tão somente à própria instituição.

A UFBA me deu tudo. Não cheguei nem perto de retribuir tudo que me foi concedido. E, a partir de agora, já sou ontem. Retorno à minha vida, que, por ser na UFBA, segue plena de encantos. E, enfim, exercendo a autoridade que até aqui me foi concedida para representar e por representar a Universidade Federal da Bahia, posso afirmar, pela última vez: Está encerrada esta sessão!


*João Carlos Salles é ex-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

.................

Em tempo

O Corneteiro Lopes  é um curta-metragem brasileiro de 2003, dirigido por Lázaro Faria. Este filme, que é o quarto trabalho do diretor baiano, reconta livremente a história lendária de um evento ocorrido pelas guerras de independência ocorridas no Brasil após a declaração de Dom Pedro I.

A Bahia encontra-se sitiada pelas tropas portuguesas que vêm pouco a pouco deteriorando as forças de resistência comandadas pelo General Labatut. Em meio a uma feroz ofensiva, o comandante ordena ao corneteiro português servindo nas fileiras baianas Luiz Lopes a tocar a "retirada". Por motivações que se tornam ambíguas pela trama, o corneteiro Lopes desobedece e altera o toque para "avançar cavalaria, a degolar". O resultado, premeditado ou não, é a fuga desordenada das tropas portuguesas que pensam terem os baianos conseguido reforços. Deste modo foi vencida a Batalha de Pirajá, decisiva para a independência da Bahia. 

O Corneteiro Lopes, o filme aqui 

A Batalha de Pirajá e o Corneteiro Lopes vídeo  

Nenhum comentário:

Postar um comentário