Quanto tempo tem o futuro? Debater nossa finitude lança luz sobre possibilidade de extinção da humanidade em função de dinâmicas já em curso
Álvaro Machado Dias, FSP, 14/08/2022
O mundo parece surgir da nossa existência individual e compartilhada, e isso ajuda a entender por que falamos tão pouco sobre o desaparecimento da espécie humana. Acontece que mais de 99% das espécies que um dia habitaram o planeta desapareceram, incluindo os outros oito tipos de hominídeos que já passaram por aqui.
O entendimento de como isso aconteceu, aliado à análise dos riscos existenciais que vivenciamos desde que deixamos nossos últimos concorrentes diretos para trás, serve de bagagem, enquanto a identificação de tecnologias prováveis em cenários distópicos, mas plausíveis, serve de roteiro para quem topa se aventurar pela temática do fim absoluto.
As descobertas no caminho interessam. A primeira é que extinção humana e colapso civilizatório são fenômenos distintos, que não mantêm entre si relações obrigatórias de causa e efeito. Colapso civilizatório é o estágio em que as condições materiais, as práticas sociais e a demografia declinam a ponto de inviabilizar qualquer projeto coletivo de reconstrução nas mesmas bases.
Cientistas de diferentes matizes usam simulações interativas como usinas de insight sobre o assunto. A ideia é ver o que acontece quando aceleramos essas dinâmicas gameficadas, indo além do limite inerente aos nossos modelos mentais de entendimento, que é de apenas algumas gerações.
O que invariavelmente se observa é o colapso civilizatório emergindo quando agentes egoístas realizam objetivos que demandam movimentos de recuperação superiores àqueles que o resto do mundo consegue oferecer. Em graus um pouco menores, isso também ocorre quando agentes sensíveis a interesses de grupo entram em loops de reciprocidade destrutiva com outros grupos. Esses cenários nos tornam frágeis, assim aumentando a chance do fim, que também pode ocorrer sem raiva, gritos ou dor.
Como vamos desaparecer
A principal hipótese para o desaparecimento dos dinossauros é de que um asteroide atingiu a Terra, gerando uma nuvem de poeira fatal. Causas naturais como essa dificilmente serão responsáveis pelo nosso fim. A chance anual de algo do tipo acontecer equipara-se a de chover canivete: 1/87 mil.
Com ou sem autocrítica, seremos protagonistas da própria extinção, como de tantas outras espécies. O vetor desse processo pode ser tecnológico, sendo que uma das formas de abordá-lo é tomando-o como consequência puramente casual das nossas descobertas. Nesse caso, as invenções humanas seriam como frutos que colhemos em um bosque repleto de plantas nutritivas, que também tem algumas espécies venenosas. Cada invenção nos deixaria mais fortes, ao mesmo tempo que aumentaria a chance de encontrarmos o fim, por envenenamento. Nick Bostrom, futurista de Oxford de quem divirjo em muita coisa, pensa assim; outros também.
A minha crítica é que o ethos é ainda mais importante que as tecnologias, de modo que representar nossa extinção em função de engenhos que a mera passagem do tempo nos levará a conhecer é como dizer que o carro atropelou o pedestre, em vez de falar que foi o motorista.
As seções abaixo trazem as rotas para o fim mais debatidas entre os futuristas que atribuem importância à convergência entre descobertas e conjunturas psicossociais.
Extinção silenciosa
É sedutor pensar que o desaparecimento da espécie humana vai acontecer na dor, mas a verdade é que pode também acontecer no amor — e na falta dele. Uma linha de desenvolvimento tecnológico que está indo de vento em popa é a manipulação estrutural do organismo por meio de alterações no código genético e de próteses computacionais.
O impulsionamento da edição de genes, em conjunto com biologia sintética, pode levar à proliferação de indivíduos transumanos, que deixem de se reproduzir conosco. Em um cenário de baixas taxas de natalidade, o surgimento dessas variantes pode servir de derradeiro desincentivo à reprodução na espécie original, sem qualquer ação violenta e sem que surja um sistema de castas e coerção como o que H.G. Wells descreveu no clássico "A Máquina do Tempo" (1895). Esta é a principal hipótese de extinção sem colapso civilizatório.
Niilismo em uma era de tecnologias potencialmente fatais
A portabilidade da engenharia genética e o progresso da biologia sintética possivelmente irão democratizar o desenvolvimento de patógenos sintéticos, muito mais letais que os conhecidos hoje em dia. Em um cenário de profunda descrença, assassinos seriais de diferentes partes e com motivações diversas podem contaminar e recontaminar o planeta com essas criações, em uma intensidade superior à nossa capacidade de defesa e recuperação. Essa é a ideia de que o fim viria após um estágio de colapso civilizatório, por meio da ação pouco coordenada de sujeitos motivados a acabar com tudo.
Conflitos entre grupos com fraco senso de autopreservação
As tensões nucleares do passado não escalaram pela certeza de destruição mútua. Esse é o resultado esperado quando as partes são racionais e colocam a autopreservação acima dos outros objetivos, como tende a ser o caso com os Estados-nação.
A situação pode ser diferente caso armas de fácil acesso e alta letalidade tornem-se acessíveis aos mais diversos grupos de interesse. O mesmo argumento aplica-se a eventuais guerras mundiais, ainda que de maneira menos relevante, já que isso passa pelos interesses dos Estados-nação. Estes cenários igualmente envolvem o colapso civilizatório como etapa na extinção humana.
Aquecimento global
O que Michael Mann, Paulo Artaxo e outros grandes especialistas em clima dizem é que não existe risco direto da espécie ser extinta por causa do aquecimento global. Em contraste, a elevação da temperatura média do planeta em apenas 3 graus pode ser suficiente para nos levar a mais um cenário factível de colapso civilizatório, que por sua vez pode acirrar ações de pessoas e grupos empenhados em aniquilar a espécie, bem como nos mover à extinção silenciosa.
Eliminação pela inteligência artificial
A hipótese de que as máquinas podem se rebelar e nos eliminar pauta-se por dois conjuntos pressupostos, que são próximos, mas não se confundem. O primeiro considera que a IA tende a seguir nossos direcionamentos e que os objetivos mais altos que lhe reservamos favorecem o nosso extermínio. Por exemplo, autômatos desenvolvidos para preservar a natureza não tardariam a incorporar a máxima de que a única maneira de fazer isso seria nos removendo do planeta.
O segundo preconiza que os autômatos tendem a ganhar consciência e que esta os levaria a concluir que exercemos papel deletério em relação a eles, gerando o mesmo desfecho. Essas hipóteses têm poucas chances de lograrem êxito, mesmo considerando que a IA dê saltos quânticos de sofisticação. O fator limitante é que não somos uma pessoa, mas 7,8 bilhões delas.
O poder agregado de uma população que ocupa o mundo inteiro e controla todas as fontes de energia conhecidas é imenso. Assumir que robôs nos eliminariam, sem antes formar grupos cooperativos, os quais são obviamente improváveis, é brincar de super-herói às avessas.
Quando vamos desaparecer
Ninguém sabe quando vamos sumir, mas isso não significa que o assunto seja impenetrável. Em 1983, Brandon Carter desenvolveu um experimento mental interessante, que ficou conhecido como o argumento do juízo final, o qual foi reelaborado —e mesmo simplificado — diversas vezes.
Imagine que lhe sejam apresentadas duas urnas digitais, sendo uma com dez bolinhas numeradas e outra com 10 mil bolinhas. Uma bolinha numerada aparece na tela; nela está anotado o número 6. Você diria que ela veio da primeira urna ou da segunda?
Não precisa ter uma mente muito matemática para notar que é mais intuitivo que venha da primeira. Isso porque existe 1 chance em 10 de sair um 6 dessa e 1 chance em 10 mil daquela. A relação entre urnas e bolinhas é regida pela tipicidade. O 6 tende a vir do 1-10 porque ali há mais chances de aparecer. Há quem diga que isso é verdade para tudo. Assim, quando observamos um fenômeno, é mais provável que estejamos frente a algo comum naquela classe de fenômenos que a algo raríssimo.Quando vamos desaparecer
Ninguém sabe quando vamos sumir, mas isso não significa que o assunto seja impenetrável. Em 1983, Brandon Carter desenvolveu um experimento mental interessante, que ficou conhecido como o argumento do juízo final, o qual foi reelaborado —e mesmo simplificado — diversas vezes.
Imagine que lhe sejam apresentadas duas urnas digitais, sendo uma com dez bolinhas numeradas e outra com 10 mil bolinhas. Uma bolinha numerada aparece na tela; nela está anotado o número 6.
Você diria que ela veio da primeira urna ou da segunda?
Não precisa ter uma mente muito matemática para notar que é mais intuitivo que venha da primeira. Isso porque existe 1 chance em 10 de sair um 6 dessa e 1 chance em 10 mil daquela. A relação entre urnas e bolinhas é regida pela tipicidade. O 6 tende a vir do 1-10 porque ali há mais chances de aparecer. Há quem diga que isso é verdade para tudo. Assim, quando observamos um fenômeno, é mais provável que estejamos frente a algo comum naquela classe de fenômenos que a algo raríssimo.
As coisas que você sente e vive têm mais chance de emergir de mananciais de estímulos convencionais que de formas extraordinárias de manifestação fenomênica. E assim por diante.
Aplicando o princípio à nossa existência na linha do tempo de toda a espécie, considere: será que a maioria das pessoas está morta ou viva? Morta. A Terra já recebeu cerca de 117 bilhões de pessoas, sendo que 7,8 bilhões estão vivas neste momento (menos de 8%). Assim, podemos representar os nascidos de toda a história da humanidade como uma longa fila, na qual você teria, por exemplo, o número 113.322.459.098.
A questão que segue é: o número 113.322.459.098 mais provavelmente veio de uma população capaz de formar uma fila de 200-300 bilhões de pessoas, ou de uma com um trilhão? Da fila menor, que circunscreve o estado do mundo que inclui você pensando sobre isso de maneira mais típica.
Como já deve ter dado para notar, o argumento do juízo final é uma construção mental sugerindo que estamos mais para o meio da fila do que para as pontas, do que segue que a finitude é mais provável em torno da época em que a fila dobrar.
Estimativas que desconsideram mudanças na taxa de natalidade humana e que por isso são um tanto capengas apontam que isso deverá acontecer em cerca de 750-800 anos.
O juízo final ignora a excepcionalidade
O argumento do juízo final foi criticado inúmeras vezes, com base no entendimento de que não faz sentido opor cenários de fim próximo e fim distante como se fossem análogos a urnas e também de que não estamos em um lugar qualquer dessa fila imaginária, mas em um muito peculiar.
Há também o argumento de que desconhecemos as probabilidades a priori dessas urnas.
Eu tendo a concordar com algumas dessas críticas e não acho que abordagens desapegadas da realidade sejam ideais. Ao mesmo tempo, considero importante debatermos a nossa finitude, especialmente porque isso lança luz sobre a profusão de cenários em que a extinção humana ocorre em função de colapsos civilizatórios derivados de dinâmicas que já estão em curso.
Como William MacAskill falou, nosso grande compromisso ético é com os humanos do futuro. Eles são a verdadeira maioria silenciosa. Eles dependem de nós, unilateralmente e em estado de impotência absoluta. O que caracteriza a excepcionalidade da nossa era não são os avanços técnicos e conflitos pontuais, mas o fato de sermos mais definitivos que nunca para as pessoas que virão.
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