Por que o perdão das dívidas estudantis nos EUA não é elitista. Não, não é um socorro a baristas preguiçosos
Paul Krugman, 30/08/2022, FSP
Confissão embaraçosa: tenho assistido a "Mulher-Hulk: Defensora de Heróis". Em geral, não sou fã do gênero super-herói; mas depois de "Orphan Black" eu vejo qualquer coisa estrelada por Tatiana Maslany. De todo modo, um dos pontos da trama do programa é que a personagem-título está relutante em revelar seus superpoderes. Por quê? Entre outras coisas, ela se preocupa (corretamente, ao que parece) que, quando as pessoas souberem o que ela é capaz de fazer, ela terá dificuldade para pagar seus empréstimos estudantis.
Não acho que os autores pretendessem fazer uma declaração política. Eles estavam apenas reconhecendo a onipresença da dívida estudantil –e a ansiedade sobre ela– nos Estados Unidos modernos. E essa generalidade é o motivo pelo qual os ataques dos republicanos à política de perdão das dívidas do presidente Biden – que eles geralmente retratam como um presente para elites privilegiadas ou para gastadores preguiçosos– provavelmente fracassarão.
Vamos falar sobre os números. O governo Biden diz que seu plano proporcionará alívio a até 43 milhões de americanos. É muita gente, não uma pequena elite mimada. Em particular, os dados do Fed de Nova York dizem que mais de 12 milhões de americanos na faixa dos 30 anos –mais de um quarto desse grupo– ainda têm dívidas estudantis não pagas.
O que isso significa é que mesmo que você concorde com a teoria política de lanchonete de Trump –segundo a qual os únicos eleitores que importam são operários que usam bonés de beisebol– deve estar ciente de que alguns desses caras provavelmente pegaram empréstimos para frequentar escolas de comércio ou faculdades comunitárias, muitas vezes recebendo em troca nada além de dívidas. Mesmo entre os que não tomaram empréstimos estudantis, muitos provavelmente têm filhos, irmãos, primos ou amigos que o fizeram. Assim, o plano Biden afetará muitas pessoas.
Resumindo, o perdão das dívidas estudantis não é algum tipo de preocupação da elite; é uma questão ampla, pode-se até dizer populista. A votação inicial sobre o plano de Biden é um pouco mista, com uma pesquisa do Emerson College mostrando um apoio muito maior do que outra do CBS/YouGov. Mesmo esta última, no entanto, mostra que a maioria dos americanos aprova o plano; ele ainda encontra muito menos oposição entre os brancos não universitários do que se poderia esperar, dada a desaprovação geral desse grupo a tudo o que é ligado a Biden.
A outra ponta da reação da direita envolve invocar a responsabilidade pessoal – na verdade, pintar os destinatários do perdão das dívidas como rainhas do bem-estar. Os esforços republicanos nessa frente, entretanto, foram extraordinariamente surdos.
Apenas sob princípios políticos gerais, dizer a dezenas de milhões de americanos que são preguiçosos e irresponsáveis –que são todos, como disse Ted Cruz, como um "barista preguiçoso" que desperdiçou anos "estudando coisas completamente inúteis"– parece… burrice. Para ser brutalmente franco, esse tipo de caricatura pode ter funcionado para os republicanos quando os insultos eram dirigidos aos negros urbanos. Mas é provável que saia pela culatra quando estamos falando de um amplo espectro de americanos que estavam apenas tentando subir na vida. Além disso, muitos dos críticos mais proeminentes do perdão das dívidas são quase comicamente fora de sintonia, hipócritas ou ambos. Na verdade, apague o "quase".
Por exemplo, Marco Rubio orgulhosamente declarou que pagou toda a sua dívida estudantil –depois que foi eleito para o Senado e conseguiu um contrato para escrever um livro. Por que todos não podem fazer isso?
Na frente da hipocrisia, a Casa Branca está tendo um dia de folga zombando de congressistas republicanos cujas empresas receberam perdão de dívidas sob o Programa de Proteção de Salários. É verdade que o perdão das dívidas para empregadores que mantiveram suas forças de trabalho durante a pandemia de Covid-19 foi incorporado a esse programa; também é verdade que pesquisas posteriores sugerem que apenas cerca de um quarto dos fundos do programa apoiavam empregos que, de outra forma, teriam desaparecido. O resto foi, na verdade, um presente para os empresários.
De maneira mais geral, é difícil levar a sério as palestras sobre responsabilidade pessoal quando vêm de um movimento cheio de pessoas –de Donald Trump, famoso por dar calote em seus empreiteiros, para baixo– que há muito se recusam a pagar o dinheiro que devem. É difícil superar o espetáculo de Stephen Moore, que Donald Trump tentou nomear para o Federal Reserve, chamando as pessoas que não pagam suas dívidas de "caloteiros"; afinal, a indicação de Moore falhou em parte porque ele se recusou a pagar à sua ex-mulher US$ 300 mil em pensão alimentícia aos filhos.
Agora, nada disso significa que o plano de Biden deva ser isento de críticas, embora a veemência com que alguns centristas o atacaram permaneça intrigante. Acima de tudo, o plano oferece um alívio pontual, mas não resolve o problema subjacente que levou a toda essa dívida estudantil – que não é uma proliferação de baristas preguiçosos; é uma sociedade que exige credenciais educacionais para muitos empregos sem tornar a educação acessível.
A questão é que Biden tentou resolver esse problema subjacente; faculdade comunitária gratuita fazia parte de sua proposta original Reconstruir Melhor. Mas ele não conseguiu aprová-la no Congresso. Ele está, porém, oferecendo uma ajuda real a milhões de americanos –e os republicanos claramente não têm ideia de como responder.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
Enquanto isso no Fies - Brasil
Fies: inadimplência cresceu 82% em 2020
Biden confirma perdão a dívidas estudantis nos EUA próximo a eleição
Medida vale para devedores que ganham até US$ 125 mil por ano e deve ser contestada na Justiça
Zolan Kanno-Youngs, Stacy Cowley, Jim Tankersley, 24/08/2022
Washington | The New York Times
O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou nesta quarta-feira (24) que dará um perdão de US$ 10 mil (R$ 51 mil) nas dívidas de empréstimos estudantis contraídas por americanos que ganham menos de US$ 125 mil (R$ 639 mil) por ano.
Foram meses de expectativa em relação a essa promessa que ele fez em campanha. Biden também prorrogou até o final do ano uma suspensão do pagamento dos empréstimos em vigor desde março de 2020, na época da pandemia de Covid.
Em anúncio no Twitter no qual descreveu detalhes do plano, ele destacou o "alívio às famílias trabalhadoras e de classe média que se preparam para retomar os pagamentos de empréstimos estudantis federais em janeiro de 2023".
Biden também disse que os que fizeram empréstimos para graduação poderão limitar pagamentos a 5% da renda mensal, mudança capaz de reduzir significativamente as contas de milhões de devedores. Os atuais planos governamentais baseados em renda geralmente limitam os pagamentos a 10% da renda discricionária de quem fez o empréstimo.
O perdão da dívida, embora muito menor que o valor pedido por alguns democratas, ocorre após meses de deliberações na Casa Branca sobre justiça e temores de que o plano possa exacerbar a inflação antes das eleições de meio de mandato. O plano quase certamente enfrentará recursos na Justiça.
Nos EUA, 45 milhões de pessoas devem um total de US$ 1,6 trilhão (R$ 8,2 trilhões) de empréstimos federais contraídos para cursar a faculdade —mais do que devem em financiamentos de carros, cartões de crédito ou qualquer dívida de consumo, exceto hipotecas.
NB: O PIB dos EUA estimado para 2022 é de US$ 24 trilhões
Muitos democratas argumentaram que o perdão da dívida é necessário para sanar disparidades raciais na economia. Mas os críticos dizem que o perdão generalizado é injusto para aqueles que apertaram os cintos para pagar a faculdade. Republicanos e alguns democratas afirmam ainda que isso aumentará a inflação, dando aos consumidores mais dinheiro para gastar.
A Casa Branca procurou tratar dessas preocupações econômicas direcionando a ajuda, que só será estendida a mutuários que ganham menos de US$ 125 mil por ano ou famílias que ganham menos de US$ 250 mil (R$ 1,3 milhão). O governo afirma que 90% do alívio irá para famílias que ganham US$ 75 mil por ano ou menos.
Os alunos que receberam bolsas Pell, para estudantes de baixa renda, terão direito a mais US$ 10 mil em perdão de dívidas. À primeira vista, a medida poderá custar aos contribuintes cerca de US$ 300 bilhões ou mais em dinheiro efetivamente emprestado e que nunca será reembolsado. Mas o verdadeiro custo é mais difícil de calcular, e menor, porque era provável que grande parte dessa dívida não fosse paga. Mais de 8 milhões de pessoas —1 em cada 5 devedores— deixaram de saldar seus empréstimos antes da pandemia. Muitas tinham saldos pequenos e agora poderão ter as dívidas canceladas.
Legisladores democratas e grupos progressistas argumentaram que lidar com as disparidades raciais econômicas exigiria o perdão de US$ 50 mil, citando relatórios que mostram que negros tomadores de empréstimos acabam tendo saldos médios mais altos do que seus pares brancos.
O deputado Tony Cárdenas, que se reuniu com a Casa Branca para defender o cancelamento da dívida, disse que mesmo o alívio financeiro limitado pode ser o fator de dinamização necessário para o partido de Biden antes das eleições de novembro. "Muitos jovens vão poder dar um suspiro de alívio, vão poder comprar uma casa em breve. Eles podem fazer planos de começar uma família mais cedo."
Ele e outros membros da bancada latina ajudaram a aumentar a pressão sobre Biden. Mas na Casa Branca os principais assessores discutiam ramificações políticas e econômicas da decisão. O presidente estaria preocupado que o projeto fosse visto como uma doação, o que seria uma afronta aos que pagaram suas mensalidades ou as de seus parentes. Alguns argumentavam que Biden não teria autoridade legal e deveria trabalhar com o Congresso em vez de usar um ato executivo.
A inflação crescente (Inflação nos EUA acelera para 9,1% em junho, maior nível em 40 anos) também complicou o processo. "No meio da esmagadora inflação de Biden, como o presidente poderia justificar uma doação de empréstimos estudantis que ignora os americanos mais prejudicados pela inflação?", questionou no mês passado o deputado republicano Kevin Brady.
Os conselheiros econômicos de Biden, no entanto, argumentaram que, ao retomar os pagamentos de empréstimos e combinar o perdão com limites de renda, isso teria um efeito desprezível no aumento dos preços ao consumidor. O chefe de gabinete Ron Klain ainda destacou que a ajuda poderia galvanizar jovens eleitores, cada vez mais frustrados com o presidente.
Contestações legais são esperadas, embora não esteja claro quem teria legitimidade para levar o caso ao tribunal. Um artigo recente na revista Virginia Law Review argumentou que a resposta pode ser ninguém: os estados, por exemplo, têm pouca influência na operação de um sistema federal de empréstimos.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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