e "Tentei salvar meu pai, meus cães e minha tese de doutorado em Petrópolis"
Motoqueiros formam exército para chegar aos morros mais atingidos em Petrópolis
Voluntários levam alimentos, roupas e produtos de higiene a locais sem acesso de carros
Júlia Barbon, Eduardo Anizelli e Orlando de Souza, 21/02/2022, FSP
Petrópolis (RJ) O som dos motores e escapamentos se junta ao das sirenes nas ruas de Petrópolis, no Rio de Janeiro. São as centenas de motoqueiros que formaram uma espécie de exército, levando e trazendo doações aos lugares que carros e caminhões não alcançam.
Percebendo que esse seria o único jeito de ultrapassar as barreiras de terra e o asfalto coberto de lama, quem tinha moto vestiu capacete e bota e foi ajudar. Uma chuva histórica arrasou a cidade imperial na última terça (15), deixando ao menos 181 mortos e 104 desaparecidos. Muitos usam a experiência que já tinham como motoboys, alguns emprestam os veículos que têm parados na garagem aos amigos, e outros organizam pontos de apoio para além daqueles montados pela prefeitura ou por igrejas, que abrigam mais de 800 pessoas.
"É um trabalho muito difícil porque a mochila fica muito pesada, é muito estressante. Mas muito gratificante também. Você chega e as pessoas agradecem e falam: vocês são heróis. Na sexta, um rapaz me abraçou e chorou", diz o motoboy Igor Gomes, 28. Foi levar remédios controlados e buscar soro na paróquia Santo Antônio, onde o fluxo de motoqueiros foi tão grande nos primeiros dias que o padre resolveu criar um cadastro com nome e placa, para evitar os poucos que se aproveitavam para pegar as doações e depois vender. A lista já tem cerca de 50.
Juntam-se também aqueles que já costumavam fazer trilhas ou motocross como hobby, com máquinas ainda mais preparadas para subir morros e conhecimento dos atalhos locais, e os que vieram de outros municípios, como Rio de Janeiro, Nova Friburgo e Teresópolis. Luís Rodrigues de Oliveira, 44, é um deles. Trabalhando com transporte na capital fluminense há anos, formou um comboio com cerca de 40 motos e 10 carros que percorreu os 72 quilômetros entre as cidades para levar água, alimento e roupas no último sábado (19).
"Muitos clientes meus doaram", diz ele. "Agora estamos para ir de novo, as pessoas estão precisando mais de roupa íntima, calcinha, cueca, sutiã, absorvente e material de limpeza. Estou vendo se conseguimos comprar para levar", diz ele.
O gerente comercial João Luis de Oliveira, 44, estacionava a sua moto vermelha e branca estampada com seu nome numa esquina de Alto da Serra nesta segunda (21). "Todo mundo da trilha está ajudando, ontem eram uns 15. Vamos compartilhando a localização no WhatsApp", conta. A moto pesa 105 kg –65 kg a menos do que a sua convencional, usada pelo colega ao lado — e tem pneus especiais. Um deles chegou a furar em um dos trajetos, mas deu tempo de voltar à cidade e colar. "Essa sobe em qualquer lugar", diz.
Quem não tem dinheiro também tem contado com a ajuda dos borracheiros da cidade, que abrem uma exceção para os voluntários. "Tem que ajudar, não tem jeito. Não sabemos quando vamos precisar também, né?", diz José Erivelto, 63, o "Doidinho" da Doidinho Pneus e Rodas. As cerca de cinco motos que apareciam diariamente por ali subiram para 20 depois da tragédia. Normalmente, precisam colar pneu furado e esticar a correia para limpar a lama e passar óleo. "Está fora do comum o número que tem vindo aqui", espanta-se Antônio Carvalho, 43.
Eles também contam com ajuda para encher o tanque, que normalmente sai por cerca de R$ 90 ou R$ 100. Alguns postos fornecem R$ 15 de combustível, por exemplo. Um estudante de 17 anos e seus amigos conseguiram uma doação inusitada. O jovem, que ainda não tem habilitação, mas já pilota, diz que um colega seu que joga videogame contou para um adversário chinês o que havia acontecido na cidade. Direto da China, o amigo virtual mandou uma transferência de R$ 300 para abastecer as motos.
Ele começa de manhã, umas 10h, e só para à noite. Consegue colocar 20 quentinhas por viagem dentro da mochila, em pilhas de cinco. Só pretende parar quando as aulas no primeiro ano do ensino médio voltarem, depois do Carnaval, porque foram interrompidas pela tragédia. A alguns quilômetros dali, em Alto da Serra, o advogado Daniel Vasconcelos, 28, transformou seu escritório numa base de arrecadação, distribuição e apoio para os motoqueiros, com banheiro, lanche, cafezinho, guaraná Guaravita e água gelada.
No dia da chuva, quando ainda não havia bombeiros equipados, ele conta que tirou uma barreira e amarrou uma corda para facilitar o acesso de uma rua por cima de um carro. Colocaram tábua, portão e tampa de caixa d’água para os moradores conseguirem passar. Depois dormiu duas horas e pensou em como poderia ajudar, percebendo que as motos seriam a melhor opção para circular. Chegou a ralar a perna toda ao cair da garupa de um amigo, que derrapou na lama enquanto carregava mantas e mochilas.
"Aqui é o olho do furação", diz ele, numa ladeira que fica entre alguns dos lugares com mais deslizamentos, como o Morro da Oficina, Sargento Boening e Vila Felipe, dando play no áudio de uma mulher que agradecia a entrega de fraldas e leite porque não podia sair de casa com duas crianças e a sogra com deficiência visual.
Ele agradece que tantos motoqueiros tenham vindo ajudar. "Nos dias normais, a gente costuma se irritar, reclamar deles no trânsito, mas quando acontece alguma coisa assim a humanidade prevalece", diz. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social, os itens que chegaram em menor quantidade à central de arrecadação são absorventes, roupa íntima nova (infantil, feminina e masculina), fralda geriátrica, desodorante, máscaras de proteção individual, álcool 70° INPM (líquido e em gel), luvas descartáveis, sacos de lixo e travesseiros.
Livraria perde milhares de exemplares após chuvas em Petrópolis vídeo
Tentei salvar meu pai, meus cães e minha tese de doutorado em Petrópolis
Astrônoma Geisa Ponte visitava o pai quando a chuva subiu um metro em 20 minutos
Sabine Righetti, 21/02/2022, FSP
Perdi também minha coleção de lápis de cor de aquarela, da minha infância, que tinha planejado levar para São Paulo, onde passo a maior parte do tempo por causa do doutorado, para voltar a pintar. Os lápis literalmente se derreteram com a água.
E estamos aqui limpando a casa do meu pai depois de uma enchente. Tenho muito orgulho da minha origem humilde, das minhas raízes e de onde vim. E ainda assim não consigo parar de pensar: como é difícil viver no Brasil.
Petrópolis (RJ) A astrônoma Geisa Ponte, 36, visitava o pai quando a chuva que abalou Petrópolis chegou na casa da família na última terça (15). Em cerca de 20 minutos, a água já passava de um metro. Foi o tempo que ela teve para tirar o pai e os cachorros de casa —e de correr para o alto de uma escada no vizinho da frente.
Não houve nenhum tipo de alerta oficial sobre a chuva forte e o risco de enchente. A família de Ponte perdeu tudo — com exceção da casa, que segue em pé (ainda que sem um dos muros laterais). Na correria, ela tinha uma preocupação extra: salvar também a tese de doutorado em astrofísica em andamento na USP.
Eu tinha acabado de tirar minhas roupas do varal. Lavei tudo porque as roupas ficaram dois anos guardadas dentro do armário — o tempo em que fiquei em São Paulo sem conseguir visitar meu pai em Petrópolis por causa da pandemia. No final do ano passado, consegui vir para cá e fui ficando na casa dele, já que estou trabalhando de casa. Ainda bem que estava aqui. Naquela terça à noite, eu estava no meu quarto onde cresci, dobrando as roupas — que estavam cheirosinhas —, quando meu irmão me mandou uma mensagem. Ele também mora em Petrópolis e disse que tinha chovido muito forte na casa dele. Estava preocupado.
A casa da minha família fica numa região baixa de um morro e perto de um rio, então chuva forte sempre foi motivo de alerta. Mas em 40 anos, desde que meu pai [76 anos] construiu a casa, nada disso tinha acontecido. Resolvi me prevenir. Se entrar água em casa, pensei, é melhor que as coisas estejam em lugares altos. Coloquei toda a minha roupa limpa, que eu estava dobrando, em cima da minha escrivaninha. Não vai chegar até essa altura, pensei.
Para cima do guarda-roupa foi o meu ventilador, que tenho desde que eu era criança. É um ventilador de metal, tem uns 30 anos, bem retrô, do qual tinha maior ciúmes. Parece estranho falar assim de um ventilador, mas eu gostava muito dele. Para a mochila foram documentos, remédios e o computador de trabalho e estudo.
No computador está minha pesquisa de doutorado em andamento no Departamento de Astronomia do IAG-USP — e todos os programas que utilizo. Tudo configurado para o meu trabalho, que tem foco em estrelas de tipo solar. Recentemente, tenho analisado a composição química dessas estrelas por meio de dados de espectroscopia [estudo da interação entre luz e matéria]. É um trabalho bastante intenso, que faço com bolsa da Capes [agência ligada ao MEC].
Quando vi a água entrando na casa, disse para o meu pai que precisávamos sair. Ele foi muito resistente e chegamos a discutir. Em mais ou menos 20 minutos a água já passava de um metro de altura. Os vizinhos do outro lado da rua começaram a gritar desesperados que tínhamos de sair. Foi o tempo de pegar meu pai e seis cachorros —uma eu não consegui levar comigo— e de subir em uma escadaria de acesso ao morro que fica na frente da casa, de onde vimos a água na nossa casa chegando cada vez mais alto. De lá, sentada no chão, encharcada e com frio, escrevi nas minhas redes sociais: "perdemos tudo, tudo."
Na escada, meu pai só falava na cachorra, a Cacau, que ficou para trás. E chorava muito. Depois de um tempo, alguém nos disse que tinha a visto em cima de um tronco, que talvez fosse ela, algo assim, que ela poderia estar viva. De fato, ela sobreviveu. Mas está muito traumatizada.
É difícil imaginar que a fuga de uma casa que está enchendo de água da chuva envolve esse tipo de coisa: convencer um pai idoso a deixar tudo para trás, levar com você sete cachorros. E as coisas acontecem muito rápido. A correnteza tinha muita força e a gente não sabia o que havia naquela água. A qualquer momento você pode ser atingido por um sofá, um tronco, um muro. O nosso muro, que faz divisa com a casa vizinha, caiu com a força da água.
Na correria da saída de casa, cheguei a pensar que iria morrer. Meu pé prendeu no portão de casa que havia desabado no chão virando uma armadilha e eu não conseguia me soltar. Eu estava carregando os cachorros, alguns deles sem coleira. Não sei exatamente como consegui correr. Depois pensei: se meu irmão conseguiu me avisar da chuva forte que se aproximava, por que o poder público não fez a mesma coisa? Não houve nenhum alerta, nenhuma sirene, nada. Não há nenhum tipo de preparo ou de orientação sobre como a população deve agir em caso de enchente. E se meu pai estivesse sozinho em casa com os cachorros?
Quando a chuva parou, a água ainda levou umas duas horas para baixar. A casa do meu pai tem bastante jardim, mas é como se a terra não desse conta de absorver tanta água e lama. Entramos em casa sem acreditar no que estávamos vendo. Tínhamos perdido tudo. Toda a minha roupa recentemente lavada —que eu estava dobrando— virou um bloco enlameado. E meu armário, aquele no qual protegi meu ventilador na parte de cima, desabou completamente por causa da água. Virou um papel.
Perdi também minha coleção de lápis de cor de aquarela, da minha infância, que tinha planejado levar para São Paulo, onde passo a maior parte do tempo por causa do doutorado, para voltar a pintar. Os lápis literalmente se derreteram com a água. Tinha taco que se soltou do piso da sala dentro do vaso sanitário. Perdemos sofá, fogão, a TV que eu tinha acabado de dar para o meu pai, financiada em 12 parcelas. Ele adora assistir TV.
Naquela noite, dormimos exaustos em cima dos colchões encharcados. E, desde então, estamos trabalhando para limpar a casa. Temos recebido a visita de muitos voluntários, que trazem cesta básica, produtos de higiene, água potável e marmitas — o que é bem importante porque, sem fogão, não dá para fazer e nem esquentar comida. Tem gente que passa aqui todas as manhãs com café. Gente que nunca vi e nem sei o nome. Mas nunca veio ninguém do poder público.
Tenho sentido muito enjoo e há temor de leptospirose, um risco em caso de enchente. Também não consegui tomar vacina antitetânica, então estou acompanhando eventuais sintomas enquanto limpo os estragos na casa do meu pai.
Eu sou cientista e sei que essa situação toda só tende a se agravar. Precisamos ter políticas públicas, mas sei que isso não vai acontecer. O que posso fazer, então, é tentar tirar meu pai da casa dele e colocá-lo em um lugar mais seguro.
E estamos aqui limpando a casa do meu pai depois de uma enchente. Tenho muito orgulho da minha origem humilde, das minhas raízes e de onde vim. E ainda assim não consigo parar de pensar: como é difícil viver no Brasil.
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