'Era Trump converteu toda notícia em telenovela', diz Alma Guillermoprieto
Jornalista mexicana, uma das maiores da América Latina, vem ao Brasil após 30 anos
Sylvia Colombo, Folha de São Paulo, 29/03/2019
Jornalista, bailarina e torcedora da Mangueira, a mexicana Alma Guillermoprieto, 69, começou a entrevista, por telefone, comentando o mais recente desfile da escola de samba carioca, vencedora do Carnaval de 2019.
"Foi um desfile maravilhoso por sua valentia ao tratar de modo politizado a história dos negros, indígenas e mulheres do Brasil, num momento tão oportuno. Ainda assim, achei que, do ponto de vista da tradição visual, tenha sido um desfile um pouco diferente da tradição mangueirense."
Se alguém está se perguntando porque esta mulher, nascida em Guadalajara, no México, que cresceu nos EUA, escreve boa parte de sua obra em inglês e que, nos últimos anos, se radicou em Bogotá, sabe tanto sobre a Mangueira, a resposta vem num português cheio de sotaque, mas gramaticalmente perfeito.
"Eu vivi um ano dentro da escola de samba, no Rio. Queria escrever sobre a Mangueira e não havia outro modo de fazê-lo do que entrando aí e convivendo com as pessoas." Além da obra "Samba" (1990), que resultou dessa experiência, ela conta ter virado "a fotógrafa da Mangueira". Naquela época, conta, "ninguém tinha celular, então começaram a me pedir fotos. Eu tirava, revelava e distribuía, era uma troca muito carinhosa. Também aprendi a coser fantasias, desfilei, foi inesquecível".
Guillermoprieto, a atração deste sábado no Festival Serrote, em São Paulo, é uma das principais jornalistas da América Latina. Ganhou, entre outros prêmios, o Maria Moors Cabot (1990) e o Princesa de Asturias (2018).
No início, queria ser bailarina, e se dedicou com afinco à dança até descobrir o jornalismo. Escreveu para o Guardian, para o Washington Post, foi editora da Newsweek, e segue trabalhando para a New Yorker. Guillermoprieto é testemunha ocular de vários momentos essenciais da história recente da América Latina, tendo coberto a Revolução Sandinista na Nicarágua (iniciada em 1979), os conflitos com a guerrilha e o narcotráfico na Colômbia, o derramamento de sangue deixado pelo Sendero Luminoso no Peru, além de outros episódios.
Quando perguntada sobre seu principal furo de reportagem, ela não duvida em destacar a descoberta do Massacre de El Mozote, quando o Exército salvadorenho matou cerca de 900 civis em 1981. "Não esquecerei jamais aquelas imagens. A partir de então passei a me preocupar mais com o processo narrativo, em como ele deve ser claro como uma visão de uma cena como aquela. Não se pode contar as coisas com quaisquer palavras. E também passei a valorizar o trabalho de edição, que melhora e aproxima o leitor do que é narrado, porque aponta vazios que você não contou, detalhes que você não valorizou e que fazem diferença".
Sobre o jornalismo dos dias de hoje, Guillermoprieto lamenta a crise da indústria que "foi minando esse entorno editorial que melhorava o seu trabalho, os checadores, os bons editores, o tempo dedicado a um trabalho." Por outro lado, celebra a velocidade e o alcance que a leitura vem ganhando com a internet. "Também espero que, com essas mudanças, desapareça também o machismo que há em redações, e eu senti isso sendo editora. Quando é uma mulher que manda, a dificuldade de fazer um homem mexer num texto, corrigi-lo, melhora-lo, é imensa. Espero que as novas gerações não tenham de lidar com isso, pois é terrível."
Há mais de 30 anos sem ir ao Brasil, Guillermoprieto quer entender o novo momento do país. "Bolsonaro é parte de um fenômeno mundial, e sem Trump não existiria Bolsonaro. O que eu não compreendo ainda são as raízes e as fontes dessa enorme raiva que me parece que tomou conta de uma grande proporção do mundo."
Para parte de suas indagações, crê ter encontrado a resposta. "A era Trump converteu toda notícia em telenovela, e não sei como podemos sair disso. Por exemplo, o dia em que abro a página do jornal e não aparece Trump dizendo algo escandaloso, eu sinto uma pequena desilusão, porque é minha dose de drama do dia, e creio que isso contaminou a cobertura jornalística em seu desejo de captar o público. Devemos refletir sobre isso."
Alma Guillermoprieto
Alma Guillermoprieto entrevista da tv unam
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Toda feminista precisa militar?
Alma Guillermoprieto se coloca no bolo das perdidas, massacradas diariamente pelas diretrizes do patriarcado
Tati Bernardi, Folha de São Paulo, 31/05/2022
A autora mexicana Alma Guillermoprieto é também uma das mais importantes jornalistas da América Latina. Cobriu conflitos, movimentos sociais e retratou histórias de mulheres fortes e sobreviventes de inúmeras formas de violência. Já trabalhou no Guardian, no Washington Post e atualmente colabora na New Yorker.
Em “Será que sou feminista?”, Alma quer saber, depois de ter sido recriminada, em 2019, por ter focado apenas perguntas sobre literatura ao entrevistar uma escritora militante qual o papel dela perante o feminismo: “Será que é possível ser feminista sem ser ativista? E será que é possível ser ativista e feminista sem ser ativista do feminismo? Ou seja, o feminismo é uma forma de ver o mundo, uma prática cotidiana ou uma militância”?
Guillermoprieto abre o livro contando que seu único texto explicitamente feminista, até então, tem mais de 40 anos: “Devo dizer que o escrevi como mulher ofendida”. Foi para uma revista mexicana chamada “fem” e tratava de uma denúncia colérica de quadrinhos machistas vendidos em bancas de jornais. Neles, as mulheres sempre apareciam feridas, mortas, estupradas e sobretudo “arreganhadas”.
Durante a ditadura mexicana (que durou até 1970), a autora vivia mergulhada no socialismo e nos movimentos de guerrilha, mas percebia que a revolução era compreendida como “coisa de homem”. Ela narra que era obrigada a aturar até uma marcha que dizia: “A parir, mães latinas! A parir mais guerrilheiros!”. Alguns companheiros faziam uma autocrítica e tentavam ouvir democraticamente as feministas, mas uma hora se enchiam: “O que é mais importante: a Revolução ou os problemas das mulheres?”.
Então Alma, nesse livro tão corajoso e verdadeiro (tão diferente de hashtags limitadoras e cancelamentos toscos na internet), confidencia que para ela, “fervorosa pró-revolucionária” e mulher “despenteada e atormentada por viver numa época em que não saber como ser uma mulherzinha significava ofender a ordem social”, era uma honra ter um guerrilheiro charmosão que a desejasse, e ela não estragaria isso por nada: “por que discutir patriarcado?”.
E conclui lindamente: “Percebo que não consegui contribuir em nada para a solução de um terrível dilema: como conciliar o desejo de sermos mulheres fisicamente livres com o desejo de sermos desejadas”.
Apesar de nunca ter participado de nenhuma reunião pelos direitos das mulheres, Alma viveu sob os preceitos do que chama de “ética feminista”: jamais deu rasteira em uma colega mulher (nem em colega homem), não jogou charme para se beneficiar no trabalho, não casou apenas por medo da solidão, deu protagonismo ao preferir contar histórias de mulheres, se cercou de colaboradoras etc.
Ao dar sua opinião sobre moças trôpegas pela cidade, claramente brigando com os sapatos desconfortáveis, ela faz o impensável nos dias de hoje, abre mão do que poderia ser uma sororidade forçada e tira sarro: “será que aceitam com fervor os saltos altos não apesar de machucarem e deformarem, mas exatamente por isso?”. E conclui: “essa dor ela oferece ao olhar do mundo ou ao caçador que ela busca em algum lugar: veja faço isso pra você. Essa é a sedução”.
Contudo, em muitos momentos do livro, Alma se coloca no bolo das perdidas, massacradas diariamente pelas diretrizes do patriarcado: “Olhamos para nós mesmas como se fossemos bonecas, objetos, estudando-nos para ver o que é preciso podar, colar, esticar, desinfetar […]”.
Outro trecho perigoso em tempos de redes sociais doutrinadoras e ávidas por destruir pensamentos mais originais é quando Guillermoprieto revela certa compaixão pelos machistas: “penso como deve ser difícil manter essa ereção metafísica 24 horas por dia”, e ainda: “a libertação das mulheres implica necessariamente a libertação dos homens dos mitos e terrores e obrigações estúpidas que os oprimem”.
A autora reconhece a importância de movimentos como o #MeToo (“tomara que se reproduza em todos os países”) e tenta entender o que tanto lhe incomodava nele. Pergunta-se se é porque na sua juventude teve que confrontar assédios e abusos sem fazer tanto alarde, mas em uma madrugada insone ela obtém a resposta: “não me sinto à vontade porque é um movimento das redes sociais”. Ou seja, proveniente da mesma internet geradora de tanto ódio, “onde florescem aberrações sem fim” e elegem monstros como Trump e Bolsonaro.
Depois de suas citações preferidas de obras feministas clássicas, uma pequena lista de pessoas que mereciam ter estátuas (a saber, dois homens: Gregory Pincus, inventor da pílula anticoncepcional e John Stuart Mill, filósofo defensor da igualdade entre homens e mulheres) e uma linda homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, Guillermoprieto encerra sua enxurrada de indagações concluindo que não tem alma de militante, mas, ainda assim, interpelou recentemente, num parque espanhol, um garoto hipster que usava uma camiseta estampada com uma mulher retratada como um pedaço de carne e perguntou se ele acreditava mesmo que aquilo era ser mulher. Ficou na dúvida se tinha virado “uma dessas velhinhas que passam o tempo reclamando e dando guarda-chuvadas” ou… se é apenas feminista.
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