A última visita
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1º de outubro de 1908 [1]
Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte.
No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos.
E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranquila e soberana.
E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heroico na morte…
Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Netto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Corrêa e Rodrigo Octávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas, – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador, tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de sua existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa…
Neste momento, precisamente ao enunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: “ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra esta ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado”.
E o anônimo juvenil [2], – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.
Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade…
Euclides da Cunha
[1] Reproduzimos este belo artigo do Sr. Euclides da Cunha, por ter saído com incorreções. N. do E. [do Jornal do Commercio]
[2] Segundo Lúcia Miguel Pereira, em Machado de Assis: estudo critico e biográfico (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936), seria o escritor Astrojildo Pereira Duarte da Silva (1890-1965). N. do E.
O comunista que beijou Machado de Assis no leito da morte
Em 1964, a casa de nº 11 da rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, foi invadida e saqueada pela polícia. Ali morava um perigoso subversivo chamado Astrojildo Pereira Duarte Silva, de 74 anos e armado de livros até o teto.
Por Sérgio Augusto*, publicado 06/02/2019
De quê o acusavam? De haver conspirado para derrubar o governo. Não o que acabara de derrubar João Goulart, mas o que nos governara cinco décadas antes, quando aquele pacato senhor tinha apenas 28 anos e fazia parte de um grupo anarquista, liderado pelo professor José Oiticica.
A prisão de Astrojildo Pereira mobilizou jornalistas, escritores e artistas, todos preocupados com o seu coração, avariado, meses antes, por um enfarte. Já estávamos em 1965 quando outro enfarte, daquela vez fatal, desfalcou as hostes comunistas de seu mais respeitável crítico literário. Seu enterro, coroado com um discurso de Otto Maria Carpeaux, foi num cemitério de Niterói – a mesma cidade de onde, 56 anos antes, Astrojildo saíra do anonimato para a história da literatura.
28 de setembro de 1908.
Um jovem de quase 18 anos pega a barca da Cantareira rumo à Praça XV, do outro lado da baía de Guanabara. Nem seus pais sabiam que ele pretendia visitar Machado de Assis no leito de morte. Tenso, Astrojildo bateu à porta do casarão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e implorou para que o deixassem entrar e ver o mestre de perto.
Em vigília na sala de estar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha e Rodrigo Otávio manifestaram-se contra a entrada do rapaz desconhecido. Acordado pelo burburinho, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto, ajoelhasse ao lado da cama e lhe beijasse a mão, partindo logo depois sem se identificar. O escritor morreria na madrugada seguinte.
“Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”, escreveu Euclides da Cunha, num célebre artigo intitulado “A última visita”, publicado no Jornal do Commercio, dois dias depois da morte do escritor. “Qualquer que seja o destino desta criança”, vaticinou, “ela nunca mais subirá tanto na vida”.
Três paixões
Durante quase 30 anos Astrojildo moitou sobre a identidade da “última visita” de Machado, afinal revelada por Lúcia Miguel Pereira em 1936. Àquela altura, ele já era um nome bem conhecido, junto às esquerdas principalmente. Fazia então quatro anos que o Partido Comunista o afastara de seus quadros, por considerá-lo um “intelectual pequeno-burguês” e “oportunista”. Além do mais, prestista. Foi por seu intermédio que o tenente Luís Carlos Prestes, exilado na Bolívia, teve acesso aos primeiros clássicos do marxismo-leninismo.
Três paixões Astrojildo teve na vida. As duas maiores, por ordem de entrada em cena, foram Machado (a quem dedicou, em 1959, um precioso estudo sociológico, reeditado pela Oficina de Livros de Belo Horizonte) e o comunismo. A terceira, marcante mas passageira, foi Ruy Barbosa.
Para o rapazola de Rio Bonito que acompanhava de Niterói a cosmopolitização do Rio, Machado e Ruy eram os dois símbolos máximos da modernização da velha capital, seu ponto de encontro com o nacional e o internacional, o fascínio e o desencanto, a elegância e a brutalidade, a utopia republicana e a luta de classes, a vida literária e as festas populares, “tudo em contraditória tensão, sem a qual não se pode compreender a origem do revolucionário”, para usar as palavras de Martin Cesar Feijó em O Revolucionário Cordial, biografia intelectual e política de Astrojildo que Boitempo Editorial veio a lançar.
Feijó já escrevera, na década de 80, um ensaio sobre a formação política de Astrojildo, agora expandido e aprofundado nessa obra francamente empenhada em caracterizar o mestre informal de Prestes como um sujeito de boa alma, afável, honesto e tolerante, utilizando-se da terminologia consagrada por Sergio Buarque de Holanda, que aliás conheceu Astrojildo em 1929, em Berlim. Para sua surpresa, em vez de um “bolchevique inflexível”, encontrou “um homem refinado e de excelente formação literária”. Intelectuais tão díspares quanto Carpeaux, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Antonio Candido passaram pela mesma surpresa. Até o ferrenho anticomunista Nelson Rodrigues reverenciava a figura e a opinião de Astrojildo.
Autodidata desde a adolescência, o “revolucionário cordial” nem concluiu o curso ginasial. Como tantos jovens da sua geração, foi civilista, anarquista, e antes mesmo de desviar para o comunismo, em 1921, já não via com bons olhos o Águia de Haia. Quando este morreu, em 1923, foi todo ironia: “O proletariado não perdeu nada com isso, antes pelo contrário”. Mas a Machado e ao comunismo permaneceu fiel a vida inteira.
* Sérgio Augusto é um dos mais importantes jornalistas culturais na história da imprensa brasileira. O texto acima é parte de um artigo de sua autoria publicado no Estadão em 6 de outubro de 2001.
O REVOLUCIONÁRIO CORDIAL
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