sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Assassinatos na rua Morgue

Edgar Allan Poe

Quais as canções que cantavam as Sereias ou que nome Aquiles adotou quando se escondeu entre as mulheres são questões que, embora intrigantes, não se acham além de toda a conjectura.
Sir Thomas Browne

As características mentais geralmente denominadas analíticas são, em si mesmas, pouco suscetíveis a uma análise. Podemos apreciá-las somente através de seus efeitos. Sabemos delas, entre outras coisas, que quando possuídas em grau incomum, sempre são, para seu possuidor, uma fonte do mais vivo prazer. Assim como o homem robusto vibra em sua força e habilidade física, dedicando-se com entusiasmo aos exercícios que põem seus músculos em ação, assim o analista se glorifica naquela atividade moral que desembaraça e deslinda. Encontra prazer até mesmo nas ocupações mais triviais que lhe permitam exercer seus talentos. Ama os enigmas, os paradoxos e os hieróglifos; exibe, na solução de cada mistério, um grau de acurácia que parece sobrenatural às pessoas de compreensão mais ordinária. Seus resultados, ainda que obtidos através da própria alma e essência do método, apresentam, de fato, todo o aspecto da intuição.

A faculdade da resolução de problemas possivelmente é muito fortalecida pelo estudo das matemáticas, especialmente pelo mais elevado de seus ramos, o qual, injustamente, apenas em função de suas operações de revisão dos fatos, vem sendo chamado de análise, como se fosse somente isso. Todavia, calcular não é o mesmo que analisar. Um enxadrista, por exemplo, calcula sempre, sem se esforçar por efetuar análises. Segue-se que o jogo de xadrez, em seus efeitos sobre o caráter mental, é em grande parte mal-compreendido. Não me disponho agora a escrever um tratado, mas estou simplesmente prefaciando uma narrativa um tanto peculiar através de observações bastante casuais; aproveitarei a ocasião, portanto, para afirmar que os poderes mais altos do intelecto reflexivo são exercitados de forma mais decidida e mais útil através do humilde jogo de damas do que pela frivolidade elaborada do xadrez. Neste último, em que as peças têm movimentos diferentes e bizarros, com valores os mais diversos e variados, aquilo que é somente complexo provoca o engano (um erro bastante comum) de parecer profundo. O que entra principalmente no jogo é a atenção. 

Se falhar por um momento, o jogador se distrai e comete um erro para seu prejuízo ou derrota final. Uma vez que os movimentos possíveis não somente são numerosos como labirínticos, a possibilidade de ocorrência de tais distrações é multiplicada; em nove casos em dez, o vencedor não é o jogador mais inteligente, mas sim o mais concentrado. No jogo de damas, ao contrário, em que os movimentos são sempre os mesmos e existe muito pouca variação, as probabilidades de um movimento inadvertido são diminuídas e a mera atenção fica relativamente fora do jogo, as vantagens obtidas por qualquer um dos parceiros são conseguidas através de maior perspicácia. Para sermos menos abstratos, vamos supor um jogo em que as peças sejam reduzidas a quatro damas e no qual, naturalmente, não se espere qualquer distração. É óbvio que aqui a vitória pode ser decidida (uma vez que os adversários têm peças absolutamente iguais) somente através de algum movimento muito recherché[1], resultado de um grande esforço intelectual. Sem possuir mais recursos do que ele, o analista se lança no espírito de seu oponente, identifica-se com ele e, com alguma frequência, observa de relance o único método (algumas vezes absurdamente simples) através do qual pode seduzi-lo a cometer um erro ou apressar-se a fazer um cálculo errado.

O jogo de whist vem sendo notado há muito tempo pela influência que exerce sobre o que é denominado o poder de cálculo; homens com intelectos de primeira ordem aparentemente sentem um prazer inexplicável através desta diversão, ao mesmo tempo que desprezam o xadrez por sua frivolidade. Não há dúvida que nenhum jogo de natureza semelhante exige tanto da faculdade de análise. O melhor jogador de xadrez da Cristandade pode não ser nada mais que o melhor enxadrista; porém a proficiência no whist implica uma capacidade de sucesso em todos os empreendimentos mais importantes nos quais uma mente disputa com outra. Quando uso o termo “proficiência”, indico aquela perfeição no exercício do jogo que inclui um entendimento de todas as fontes de que uma vantagem legítima pode ser derivada. Estas são não apenas múltiplas como multiformes, e frequentemente se encontram em recessos da mente totalmente inacessíveis para a compreensão das pessoas comuns. Observar atentamente significa lembrar distintamente; deste modo, o enxadrista concentrado vai se dar muito bem no whist; ao mesmo tempo que as regras de Hoy le (que se baseiam no próprio mecanismo do jogo) são em geral suficientemente compreensíveis.[2] 

Deste modo, a posse de uma memória retentiva e a capacidade de proceder “conforme o livro” são as qualidades geralmente consideradas suficientes para se ser um bom jogador. Mas é nas questões que vão além dos limites impostos pelas regras que se evidencia a habilidade do analista. Em silêncio, ele realiza uma série de observações e inferências. Talvez seus companheiros façam o mesmo; a diferença na quantidade de informações que assim são obtidas não se baseia tanto na validade da inferência como na qualidade da observação. O conhecimento necessário é o do que deve ser observado. Nosso jogador perito não estabelece limites para si próprio; nem ao menos, considerando que o jogo é o objetivo, ele rejeita deduções a partir de coisas totalmente externas ao jogo. 

Ele examina a fisionomia de seu parceiro de dupla e a compara cuidadosamente com os rostos de cada um de seus oponentes. Ele considera o modo de classificar as cartas em cada mão; muitas vezes conta trunfo a trunfo e figura por figura, através dos olhares lançados pelos portadores uns sobre os outros. Ele nota cada variação na expressão dos semblantes à medida que o jogo se desenrola, reunindo um tesouro de pensamentos a partir das diferenças de expressão de certeza, de surpresa, de triunfo ou de derrota. A partir da maneira como é vencida uma vaza ele julga se a pessoa vencedora pode ganhar outra em seguida ou não. Ele reconhece o que é jogado para iludir o adversário através do jeito com que a carta é jogada sobre a mesa. Uma palavra casual ou inadvertida; a queda acidental ou a virada de uma carta, com a ansiedade ou desimportância associada à sua ocultação; a contagem das vazas, na ordem de seu aparecimento; o embaraço, a hesitação, a ansiedade ou a trepidação – tudo fornece à sua percepção aparentemente intuitiva indicações do verdadeiro estado do jogo. Depois que as duas ou três primeiras mãos foram jogadas, ele está em pleno controle do valor das cartas que cada jogador possui e, a partir daí, descarta as suas com uma precisão de propósito tão absoluta como se o resto dos participantes estivesse jogando a descoberto.

O poder analítico não deve ser confundido com a simples engenhosidade; porque, embora o
analista seja necessariamente engenhoso, um homem de engenho muitas vezes é perceptivelmente incapaz em análise pura. O poder construtivo, ou capacidade de combinação, através do qual a engenhosidade é em geral manifesta e para o qual a frenologia (acredito que erroneamente) designou um órgão cerebral separado, supondo que seja uma qualidade primitiva, tem sido com muita frequência encontrado em pessoas cuja capacidade intelectual em outras áreas se aproxima da idiotia, um fato que já atraiu observação geral entre os escritores e os moralistas. Entre a engenhosidade e a qualidade analítica existe uma diferença muito maior, sem a menor dúvida, do que aquela existente entre a fantasia e a imaginação, porém de um caráter muito estritamente análogo. Pode ser comprovado na prática que os engenhosos são sempre fantasiosos, enquanto os realmente imaginativos sempre se demonstram analíticos.

A narrativa que se segue provavelmente se tornará mais clara para o leitor, se tomar em consideração os comentários e as afirmações que acabo de expor.
Quando residi em Paris durante a primavera e parte do verão de 18—, travei conhecimento com um Monsieur C. Auguste Dupin. Este jovem cavalheiro pertencia a uma excelente – de fato, ilustre – família, porém, através de uma série de eventos inesperados, havia sido reduzido a uma tal pobreza que a energia de seu caráter sucumbiu perante ela e desistiu de enfrentar o mundo ou preocupar-se em recuperar sua fortuna. Por cortesia de seus credores, permanecia em sua posse uma pequena parte de seu patrimônio; com esta renda e mantendo rigorosa economia, ele conseguia obter as necessidades básicas da vida, sem se preocupar com suas superfluidades. De fato, os livros eram seu único luxo; e, em Paris, é fácil consegui-los.

Nosso primeiro encontro foi em uma biblioteca obscura na rua Montmartre, em que o acidente de que ambos estávamos em busca do mesmo volume muito raro e notável fez com que entrássemos em contato e estabelecêssemos uma comunhão de interesses mais íntima.
Encontramo-nos vezes sem conta. Eu estava profundamente interessado na pequena história de sua família que ele me detalhava com toda aquela ingenuidade que um francês demonstra quando o assunto é ele mesmo ou alguma coisa de seu interesse pessoal. Fiquei espantadíssimo, também, com a vasta extensão de suas leituras; e, acima de tudo, minha alma foi despertada pelo fervor ardente e ao mesmo tempo pela vívida originalidade de sua imaginação. Estando em Paris a fim de realizar certos objetivos que não vêm ao caso expor, senti que a sociedade de um homem assim seria um tesouro inestimável, e confiei-lhe esta impressão com toda a franqueza. Finalmente, decidimos morar na mesma casa enquanto durasse minha permanência naquela cidade; uma vez que minhas circunstâncias materiais eram um pouco menos difíceis que as dele, foi-me permitido incorrer nas despesas necessárias para alugar e mobiliar, em um estilo que agradasse à melancolia bastante fantástica de nossos temperamentos tão semelhantes, uma mansão grotesca e maltratada pelo tempo, deserta há muito tempo, devido a superstições que não nos interessaram muito e ao fato de que estava a meio caminho de desabar, localizada em uma parte remota e um tanto desolada do Faubourg St.-Germain.
Se a rotina de nossa vida neste lugar fosse conhecida do mundo, teríamos sido encarados como dois loucos – ainda que talvez nos considerassem como dois loucos mansos. Nossa reclusão era perfeita. Não recebíamos nenhum visitante. De fato, a localização de nosso retiro tinha sido mantida cuidadosamente em segredo de meus antigos amigos e associados; e já faziam muitos anos desde que Dupin tinha cessado de ter relações de amizade ou mesmo de ser conhecido em Paris. Existíamos somente para nós mesmos.

Por uma exacerbação da fantasia de meu amigo (de que mais posso chamá-la?), ele se achava enamorado da Noite, apenas pelo prazer de gozá-la; e eu mesmo recaí nesta situação bizarra, do mesmo modo que partilhei de todas as suas outras peculiaridades, entregando-me a seus caprichos ardentes com um perfeito abandono. A divindade negra não queria habitar conosco sempre, mas podíamos fingir-lhe a presença. Assim que os primeiros sinais da aurora surgiam, fechávamos todos os postigos maciços de nosso velho edifício e acendíamos alguns círios que, embora fortemente perfumados, projetavam apenas os raios de luz mais débeis e merencórios. Sob esta fraca luminosidade, ocupávamos nossas almas em sonhos – lendo, escrevendo ou conversando –, até que o relógio nos advertia da chegada da verdadeira Escuridão. Era então que saíamos às ruas, lado a lado, continuando nossa discussão dos tópicos do dia; ou simplesmente vagabundeando sem destino até alta madrugada, procurando, entre as luzes e sombras turbulentas da populosa cidade, aquele infinito de excitação mental que somente a observação tranquila pode conceder.

Era nessas ocasiões que eu não podia deixar de notar e admirar (embora já estivesse preparado, por suas afirmações variadas e inteligentes observações, a esperar por ela) uma habilidade analítica peculiar em Dupin. Ele parecia, também, ansiar por ela e extrair o maior prazer em exercitá-la – ou, talvez mais exatamente, em exibi-la – e não hesitava em confessar o prazer que experimentava. Ele se gabava, com uma risadinha baixa e discreta, de que podia ler as intenções e pensamentos da maioria dos homens, como se tivessem janelas no peito; e tinha o costume de acompanhar estas assertivas com provas diretas e bastante assombrosas do seu conhecimento íntimo de meus sentimentos. 

Nestes momentos, seu aspecto era frígido e abstraído; seus olhos mostravam uma expressão vazia; e sua voz, geralmente ostentando um belo timbre de tenor, subia para um trêmulo que teria parecido resultado de atrevimento e petulância se não fosse pela deliberação e completa distinção com que era enunciada. Ao observá-lo quando se achava nesta disposição, muitas vezes me recordava meditativamente da velha filosofia da alma bipartida e me divertia a fantasiar a existência de um duplo Dupin – o criativo e o investigador.
Mas não se suponha, a partir do que acabei de relatar, que estou detalhando algum mistério ou escrevendo algum romance. O que eu descobri no meu amigo francês foi meramente o resultado de uma inteligência superexcitada ou, talvez, até mesmo doentia. Mas quanto ao caráter de suas observações durante o período que está sendo descrito, um exemplo demonstrará melhor a ideia.
Uma noite, estávamos passeando por uma rua comprida e suja, nas proximidades do Palais Royal. Estando ambos, aparentemente, imersos em pensamentos, nenhum de nós tinha proferido uma sílaba por, no mínimo, quinze minutos. Repentinamente, Dupin proferiu estas palavras:
Ele é um camarada muito baixinho, é verdade: serviria bem melhor para o Théâtre des
Variétés.

Não resta dúvida – respondi distraidamente, sem observar a princípio (por encontrar-me profundamente absorvido em reflexões) a maneira extraordinária com que meu interlocutor tinha entrado justamente no espírito de minha meditação. No instante seguinte, percebi o que havia acontecido e meu espanto foi profundo. – Dupin – disse eu, gravemente –, isto vai além de minha compreensão. Não hesito em dizer que estou assombrado e dificilmente posso acreditar na evidência de meus sentidos. Como foi possível que você soubesse que eu estava pensando em...?
fiz uma pausa neste ponto, como para me convencer além de toda dúvida de que ele realmente sabia em quem eu estivera pensando.

Em Chantilly , naturalmente – disse ele. – Por que fez uma pausa? Você estava observando para si próprio que sua figura diminuta não era adequada para papéis trágicos.
Fora precisamente este o assunto de minhas reflexões. Chantilly tinha sido, quondam[3], um sapateiro remendão da rua St.-Denis que havia pego a febre do palco e fora tentado a representar o papel de Xerxes, na tragédia de mesmo nome, de Crébillon, tendo sido notoriamente satirizado por seus esforços através de panfletos anônimos.
Explique-me, por amor de Deus – exclamei –, o método, se é que houve um método, por meio do qual você foi capaz de ler meus pensamentos dessa forma.
De fato, eu estava muito mais impressionado do que me dispunha a admitir.
Foi o vendedor de frutas – replicou meu amigo – que o levou à conclusão de que o sapateiro-remendão não tinha altura suficiente para o papel de Xerxes et id genus omne.[4]

O vendedor de frutas! Agora mesmo não entendi nada! Não conheço nenhum fruteiro!
O homem que veio correndo em sua direção quando entramos nesta rua, deve ter sido há uns quinze minutos.
Lembrei-me então que, de fato, um vendedor de frutas, carregando na cabeça um grande cesto cheio de maçãs, quase tinha me derrubado por acidente, quando dobramos da rua C - para a avenida em que estávamos agora; mas não havia a menor possibilidade de associar esse fato a meus pensamentos sobre Chantilly . Mas Dupin não era absolutamente dado a charlatânerie.
Eu vou explicar – disse ele. – Para que você possa compreender mais claramente, vamos primeiro retraçar o curso de suas meditações, desde o momento em que eu lhe falei até nosso rencontre com o quitandeiro que acabei de mencionar. Os elos maiores da cadeia são os seguintes; Chantilly , Órion, Dr. Nichols, Epicuro, Estereotomia, os paralelepípedos da rua e o vendedor de frutas.
Há poucas pessoas que não tenham, em determinado período de suas vidas, se divertido a tentar retraçar as etapas através das quais conclusões particulares de suas próprias mentes possam ter sido atingidas. Essa ocupação muitas vezes é cheia de interesse; e aquele que tenta realizá-la pela primeira vez pode ficar assombrado pela distância aparentemente ilimitada e incoerente entre o ponto de partida e o objetivo alcançado. Imagine-se então meu pasmo, minha estupefação ao escutar o francês emitir aquelas sentenças que recém havia pronunciado, especialmente depois que não pude deixar de reconhecer que havia falado a verdade, ponto por ponto. 

Ele continuou:
Estávamos falando sobre cavalos, se me lembro corretamente, um instante antes de dobrarmos a esquina da rua C——. Foi este o último assunto que discutimos. No momento em que entramos nesta rua, um quitandeiro, com um cesto grande na cabeça, passando rapidamente por nós, empurrou-o sobre uma pilha de paralelepípedos colocada junto ao ponto em que o pavimento está sendo consertado. Você pisou em uma das pedras soltas, escorregou, distendeu levemente o tornozelo, ficou incomodado e de mau humor por alguns instantes, resmungou umas poucas palavras, voltou-se para olhar a pilha e então prosseguiu em completo silêncio. Eu não estava prestando atenção particular ao que você fazia, porém a observação vem se tornando para mim, nos últimos anos, uma espécie de necessidade, como se fosse uma segunda natureza. Bem, você continuou com os olhos fincados no chão – olhando, com uma expressão aborrecida, para os buracos e valas do pavimento (foi assim que eu percebi que ainda estava pensando nas pedras), até que chegamos àquela viela chamada Lamartine, que foi pavimentada, como uma experiência, com aqueles blocos que se superpõem e são rebitados uns aos outros. Aqui seu rosto
se iluminou; e percebendo um certo movimento em seus lábios, não pude duvidar de que tenha pronunciado a palavra “estereotomia”, um termo que estão aplicando muito afetadamente a essa espécie de pavimento. Nesse mesmo momento, eu soube que você não poderia ter dito a si próprio “estereotomia”, sem ser levado a pensar na “atomia” e assim nas teorias de Epicuro;[5] e uma vez que, ao discutirmos este assunto há relativamente pouco tempo, eu lhe mencionei que de forma singular, embora não estivesse despertando muita atenção, as adivinhações vagas daquele nobre grego estavam sendo agora confirmadas pela recente cosmogonia nebular, proposta pelo dr. Nichols, senti que você não poderia evitar de erguer os olhos para a grande nebulosa de Órion, e fiquei esperando que você fizesse isso. De fato, você olhou; e agora eu tinha plena certeza de que tinha seguido corretamente seus passos.[6] Porém, naquela amarga crítica feita a Chantilly , que apareceu no Musée de ontem, o satirista fez algumas alusões desgraciosas à mudança de nome do sapateiro, depois que colocou os coturnos de um ator de tragédias e citou um verso em latim sobre o qual conversamos com frequência. Refiro-me à linha: Perdidit antiquum litera prima sonum.[7] Eu já lhe havia dito que esta citação referia-se a Órion, porque antigamente era escrito Úrion; devido à questão que debatemos em torno desta explicação, tinha certeza de que você não teria podido esquecê-la. Estava claro, portanto, que você não poderia deixar de combinar as ideias de Órion e Chantilly . Que você realmente as combinou, eu percebi pelo sorriso que passou por seus lábios. Você estava pensando na imolação do pobre sapateiro. Até aquele momento, você estava andando meio cabisbaixo; mas, nesse momento, esticou-se de modo a mostrar sua plena estatura. Tive então certeza de que estava refletindo sobre a figura minúscula de Chantilly . Foi nesse ponto que interrompi suas meditações para observar que, de fato, ele era um sujeito muito pequeno, quero dizer, Chantilly – e que ele teria muito mais sucesso no Théâtre des Variétés.

Pouco tempo depois disso, estávamos olhando uma edição vespertina da Gazette des Tribunaux, quando o seguinte parágrafo atraiu nossa atenção:
“EXTRAORDINÁRIOS ASSASSINATOS – Esta madrugada, por volta das três horas da manhã, os habitantes do Quartier St.-Roch foram acordados do sono por uma sucessão de gritos terríveis que partiam, aparentemente, do quarto andar de uma casa na rua Morgue cujas únicas moradoras conhecidas eram uma certa Madame L’Espanay e e sua filha, Mademoiselle Camille L’Espanay e. Depois de algum atraso, ocasionado pela tentativa infrutífera de obter admissão da maneira usual, o portão de entrada foi rebentado com um pé de cabra e oito ou dez dos vizinhos entraram, acompanhados por dois gendarmes. A essa altura, os gritos já haviam cessado; porém, enquanto o grupo corria pelo primeiro lance de escadas, duas ou mais vozes grosseiras, aparentemente discutindo furiosamente, foram distinguidas, parecendo provir da parte superior da casa. Quando o grupo chegou ao segundo patamar, também estes sons haviam cessado e tudo permanecia em perfeito silêncio. As pessoas se espalharam e correram de peça em peça. Ao chegarem a um amplo quarto na parte dos fundos do quarto andar (cuja porta foi forçada, porque estava trancada com a chave do lado de dentro), apresentou-se um espetáculo que encheu a todos os presentes não tanto de horror como de estupefação.

“O apartamento estava na mais completa desordem – o mobiliário quebrado e os pedaços jogados em todas as direções. Quase no centro do quarto havia um estrado para suportar um leito, mas a cama fora tirada de cima dele e jogada no meio do assoalho do aposento. Sobre uma cadeira, havia uma navalha manchada de sangue. Na lareira havia duas ou três mechas longas e espessas de cabelo humano grisalho, também cobertas de sangue, que pareciam ter sido arrancadas pela raiz. Em diversos locais do assoalho foram encontrados quatro napoleões,[8] um brinco de topázio, três colheres grandes de prata, três colheres menores de métal d’Alger e duas bolsas, contendo quase quatro mil francos em ouro. As gavetas de uma cômoda, ainda colocada em um dos cantos da sala, estavam abertas e tinham sido aparentemente revistadas, embora muitos artigos de vestuário ainda permanecessem dentro delas. Um pequeno cofre de ferro foi descoberto no chão, embaixo da cama (não embaixo do estrado), no lugar aonde esta tinha sido atirada. Estava aberto, com a chave ainda na porta. Continha apenas algumas cartas velhas e outros papéis de pouca importância.

“Não foi encontrado sinal de Madame L’Espanay e; mas tendo sido observada uma
quantidade desusada de fuligem na lareira, a chaminé foi pesquisada, e o cadáver da filha (coisa horrível de se relatar!), de cabeça para baixo, foi puxado dali; tinha sido empurrado para cima, através da abertura estreita da chaminé, por uma distância considerável. O corpo ainda estava bastante quente. Quando foi examinado, encontraram-se muitas escoriações, sem dúvida ocasionadas pela violência com que foi empurrado chaminé acima e pelo esforço necessário para retirá-lo. No rosto, foram achados muitos arranhões fundos, e no pescoço, hematomas escuros, com sinais profundos de unhas, indicando que a defunta tinha sido estrangulada.
“Após uma investigação completa de cada porção da casa, sem novas descobertas, o grupo entrou em um pequeno pátio calçado, que fica na parte de trás do edifício, onde jazia o corpo da velha senhora, com a garganta cortada a tal ponto que, ao tentarem erguer o cadáver, a cabeça caiu no chão. Tanto o corpo como a cabeça estavam terrivelmente mutilados; o primeiro a um ponto que mal retinha qualquer semelhança com um corpo humano.

“Para este horrível mistério não existe ainda, segundo acreditamos, a menor pista.” O jornal do dia seguinte trazia os seguintes detalhes adicionais:
“A tragédia da rua Morgue. Muitos indivíduos foram examinados com relação a este caso tão extraordinário e assustador (A palavra affaire (caso) ainda não tinha na França esta leveza de significado que transmite a nós.), mas ainda nada transpirou que pudesse lançar alguma luz sobre ele. Transcrevemos abaixo todos os testemunhos materiais obtidos.
“Pauline Dubourg, lavadeira, depôs que conhece ambas as falecidas há três anos, período
em que lavou-lhes as roupas. A velha senhora e sua filha pareciam manter muito boas relações e serem muito afeiçoadas uma à outra. Pagavam com regularidade. Não podia dizer qual era sua renda ou meio de sustento. Achava que Madame L’Espanay e ganhava a vida como cartomante. Segundo diziam, tinha dinheiro guardado. Nunca encontrou qualquer pessoa de fora quando ia buscar as roupas para lavar ou as trazia de volta à casa. Tinha certeza de que não tinham empregadas. Parece que não havia mobília em qualquer parte do edifício, exceto no quarto andar.

“Pierre Moreau, vendedor de cigarros e de fumo, depõe que habitualmente vendia pequenas quantidades de tabaco e de rapé a Madame L’Espanay e e que a atendia há uns quatro anos.
Tinha nascido no bairro e sempre residira por lá. A falecida e sua filha moravam há mais de seis
anos na casa em que os cadáveres tinham sido encontrados. Anteriormente, fora ocupada por um joalheiro, que sublocava os andares superiores para várias pessoas. A casa era de propriedade de Madame L’Espanay e. Ela ficou descontente com a maneira como o imóvel era maltratado pelo seu inquilino e mudou-se para lá, recusando-se a alugar quaisquer aposentos. A velha senhora tinha um comportamento meio infantil. A testemunha tinha avistado a filha umas cinco ou seis vezes no decorrer daqueles seis anos. As duas viviam uma vida muito retraída – o povo dizia que tinham dinheiro. Também tinha ouvido alguns dos vizinhos comentarem que Madame L’Espanay e lia o futuro das pessoas – mas não acreditava nisso. Mesmo porque nunca tinha visto ninguém entrar na casa, exceto a velha senhora e sua filha, um carregador uma vez ou duas e um médico, umas oito ou dez vezes.
“Muitas outras pessoas, na maioria vizinhos, apresentaram evidências no mesmo sentido. Não se falou de ninguém que frequentasse a casa. Não se sabia se Madame L’Espanay e e sua filha tinham parentes vivos. Os postigos das janelas da frente raramente eram abertos. Os postigos do fundo permaneciam sempre fechados, com a exceção daqueles de uma grande sala dos fundos do quarto andar. A casa era boa e sólida – não era muito antiga.

“Isidore Musèt, gendarme, depõe que foi chamado à casa por volta das três da manhã e encontrou umas vinte ou trinta pessoas diante do portão, esforçando-se para entrar. Finalmente forçou a porta com uma baioneta – não foi com um pé de cabra. Teve pouca dificuldade para abrir, porque era um portão de duas folhas e não estava trancado nem em cima nem embaixo. Os gritos continuavam enquanto o portão estava sendo arrombado – mas cessaram subitamente. Pareciam os gritos de uma pessoa (ou pessoas) em grande agonia – eram altos e prolongados, não eram curtos e rápidos. A testemunha subiu as escadas à frente de todos. Quando chegou ao primeiro patamar, escutou duas vozes discutindo alta e furiosamente – uma das vozes era rouca e zangada, a outra muito mais aguda – uma voz muito estranha. Conseguiu distinguir algumas das palavras emitidas pela primeira voz, que era de um francês. Tinha certeza de que não era uma voz de mulher. Tinha distinguido as palavras sacré e diable. A voz mais aguda era de um estrangeiro. Não tinha certeza se era uma voz de homem ou de mulher. Não havia entendido nada do que dissera, mas acreditava que falava em espanhol. O estado do apartamento e dos corpos foi descrito pela testemunha conforme relatamos ontem.

“Henri Duval, um vizinho, fabricante de objetos de prata, depõe que participava do primeiro grupo que entrou na casa. Em geral, corrobora o testemunho de Musèt. Logo depois que forçaram a porta, fecharam-na por dentro, para impedir a entrada da multidão, que se reuniu muito depressa, não obstante o adiantado da hora. A voz aguda, segundo pensa esta testemunha, era de um italiano. Tem certeza de que não era de um francês. Não tinha certeza se era voz de homem. Poderia ser de mulher. A testemunha não sabia falar a língua italiana. Não pôde distinguir as palavras, mas pela entonação estava convencido de que a pessoa falava em italiano. Conhecera Madame L’Espanay e e sua filha. Tinha conversado muitas vezes com ambas. Tinha certeza de que a voz aguda não pertencia a nenhuma das falecidas.
“— Odenheimer, proprietário de um restaurante. A testemunha apresentou-se voluntariamente para testemunhar. Como não falava francês, foi examinada por meio de um intérprete. É nascida em Amsterdam. Estava passando pela casa por ocasião dos gritos. Duraram por vários minutos – provavelmente dez. Eram longos e altos, muito terríveis e apavorantes. Foi um dos que entrou no edifício. Corroborou a evidência prévia em todos os respeitos, exceto um. Tem certeza de que a voz mais aguda era de um homem e que este era francês. Não conseguiu entender as palavras proferidas. Eram altas e rápidas, desiguais, emitidas aparentemente tanto com medo quanto com raiva. A voz era áspera, muito mais áspera do que aguda. Não poderia realmente classificá-la como aguda. A voz mais grossa disse repetidamente sacré, diable e uma única vez, mon Dieu.[9]

“Jules Mignaud, banqueiro, da firma Mignaud et Fils, sediada na rua Deloraine. É o sócio mais velho da firma. Madame L’Espanay e tinha algumas propriedades. Tinha aberto uma conta em sua casa bancária na primavera do ano de **** (oito anos antes). Fazia frequentes depósitos de pequenas somas. Nunca havia sacado nada até o terceiro dia antes de sua morte, quando retirou pessoalmente a soma de 4.000 francos. Esta soma foi paga em moedas de ouro e um amanuense a acompanhou até em casa com o dinheiro.
“Adolphe Le Bon, amanuense da firma Mignaud et Fils, depõe que, no dia em questão, por volta do meio-dia, acompanhou Madame L’Espanay e até sua residência com os 4.000 francos guardados em duas bolsas. Assim que a porta foi aberta, Mademoiselle L’Espanay e apareceu e tomou de suas mãos uma das bolsas, enquanto a velha senhora segurava a outra. Ele então cumprimentou-as com uma curvatura e saiu. Não viu nenhuma pessoa na rua nessa ocasião. É uma rua lateral, solitária e muito pouco trafegada.

“William Bird, alfaiate, depõe que era uma das pessoas que entraram na casa. É de nacionalidade inglesa. Mora em Paris há dois anos. Foi um dos primeiros a subir as escadas. Escutou as vozes em discussão. A voz grave e zangada era de um francês. Entendeu várias palavras, mas não lembra mais de todas. Escutou distintamente sacré e mon Dieu. Por um momento, escutou um som que parecia o de várias pessoas lutando, como se o chão estivesse sendo arranhado e pisoteado. A voz aguda era muito alta, bem mais alta que a voz grave. Tem certeza de que não era a voz de um inglês. Parecia mais ser a voz de um alemão. Poderia ser uma voz de mulher. A testemunha não fala alemão.

“Quatro das testemunhas acima, tendo sido reconvocadas, depuseram que a porta do quarto em que foi encontrado o corpo de Mademoiselle L’Espanay e estava trancada por dentro quando o grupo chegou até lá. Tudo se encontrava agora em perfeito silêncio – não havia gemidos, nem ruídos de qualquer tipo. Ao forçarem a porta, não viram ninguém. As janelas, tanto da sala da frente como do quarto dos fundos, estavam com os postigos fechados e firmemente trancadas por dentro. Uma porta entre as duas peças estava fechada, porém não trancada. A porta que dava da sala da frente para o corredor de acesso estava trancada, com a chave do lado de dentro. Uma pequena peça na parte da frente da casa, no quarto andar e junto às escadas, estava aberta, com a porta escancarada. Esta peça estava atopetada de camas velhas, caixas e coisas assim.

Todos os objetos foram cuidadosamente removidos e examinados. Não houve uma polegada em qualquer lugar da casa que não fosse objeto de uma pesquisa cuidadosa. Limpa-chaminés foram feitos subir e descer pelas chaminés. A casa tinha quatro andares, com águas-furtadas (mansardes). Um alçapão no forro tinha sido pregado com toda a segurança; não dava a impressão de ter sido aberto durante anos. O tempo decorrido entre o som das vozes discutindo e o arrombamento da porta da sala foi declarado de maneiras variadas pelas testemunhas. Alguns declararam que se haviam passado uns três minutos, outros chegaram a cinco. A porta foi aberta com muita dificuldade.
“Alfonzo Garcio, agente funerário, depõe que reside na rua Morgue. É de naturalidade espanhola. Pertencia ao grupo que entrou na casa. Mas não subiu escadas acima. É um homem nervoso e estava apreensivo com relação às possíveis consequências da agitação. Escutou as vozes discutindo. A voz mais grave era de alguém falando em francês. Não pôde compreender o que estava sendo dito. A voz aguda pertencia a alguém falando em inglês. Neste ponto, tem certeza absoluta. Não fala o idioma inglês, mas julga pela entonação.

“Alberto Montani, confeiteiro, depõe que se achava entre os primeiros que subiram as escadas. Escutou as vozes mencionadas. A voz grave e violenta falava em francês. Conseguiu perceber diversas palavras. A pessoa que falava parecia estar repreendendo. Não conseguiu entender as palavras proferidas pela voz aguda. Falava rápido e de maneira desparelha. Mas acha que as palavras eram em russo. Corrobora o testemunho geral. É italiano. Nunca conversou com um natural da Rússia.
“Diversas testemunhas, ao serem reconvocadas, testemunharam que as chaminés de todas as peças do quarto andar eram estreitas demais para admitir a passagem de um ser humano. Por “limpa-chaminés” queriam dizer escovas cilíndricas de limpeza, do tipo que são empregadas por aqueles que limpam chaminés para retirar o acúmulo de fuligem. Estes escovões foram passados para cima e para baixo de cada saída de lareira e de cada cano de ventilação existente na casa. Não existe uma porta dos fundos pela qual alguém pudesse haver descido enquanto os salvadores subiam as escadas. O corpo de Mademoiselle L’Espanay e estava tão firmemente entalado na chaminé que não pôde ser descido até que cinco ou seis pessoas unissem suas forças para puxá- lo

.“Paul Dumas, médico, depõe que foi chamado para examinar os corpos mais ou menos
quando o dia clareava. Nessa ocasião, ambos estavam deitados sobre a cobertura de estopa do estrado da cama, no mesmo quarto em que Mademoiselle L’Espanay e fora encontrada. O cadáver da jovem estava muito machucado e arranhado. O fato de ter sido empurrado chaminé acima poderia perfeitamente causar essa aparência. A garganta estava muito machucada. Havia diversos arranhões profundos logo abaixo do queixo, juntamente com uma série de marcas lívidas que eram, evidentemente, as impressões deixadas por dedos. O rosto estava arroxeado de uma forma apavorante e os olhos saltavam das órbitas. A língua tinha sido parcialmente mordida. Um grande hematoma foi descoberto sobre o estômago, produzido, aparentemente, pela pressão de um joelho. Na opinião de M. Dumas,[10] Mademoiselle L’Espanay e tinha sido estrangulada até morrer por uma pessoa ou pessoas desconhecidas. O cadáver da mãe estava horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço direitos estavam mais ou menos esmagados. A tíbia esquerda tinha sido partida em mais de um lugar, do mesmo modo que todas as costelas do lado esquerdo. O corpo inteiro estava terrivelmente marcado e arroxeado. Não era possível afirmar como os ferimentos haviam sido infligidos. Um porrete pesado de madeira ou uma barra larga de ferro, uma cadeira, qualquer arma grande, pesada e contundente teria produzido tais resultados, se fosse brandida pelas mãos de um homem muito robusto. Nenhuma mulher poderia ter desferido aquele tipo de golpe com qualquer arma. A cabeça da falecida, quando foi vista pela testemunha, estava inteiramente separada do corpo e os ossos também se achavam em grande parte esmagados. A garganta havia sido evidentemente cortada com algum instrumento muito afiado – provavelmente uma navalha.
“Alexandre Etienne, cirurgião, foi convocado com M. Dumas para examinar os corpos.
Corroborou o testemunho e as opiniões de M. Dumas.
“Nada mais de importância foi descoberto, embora diversas outras pessoas fossem interrogadas. Um assassinato tão misterioso e intrigante em todos os seus detalhes jamais foi cometido antes em Paris, se é que realmente houve um assassinato. A polícia está inteiramente confusa, uma ocorrência pouco comum em casos desta natureza. Não há, entretanto, a sombra de uma pista.”

A edição vespertina do jornal declarava que a maior excitação ainda perdurava no Quartier St.-Roch, que os aposentos do prédio tinham sido novamente examinados e novos exames das testemunhas realizados, tudo sem o menor resultado. Um pós-escrito, entretanto, mencionava que Adolphe Le Bon tinha sido preso e encarcerado, embora nada parecesse incriminá-lo, além dos fatos que já foram detalhados.
Dupin pareceu-me singularmente interessado no progresso das investigações, ou pelo menos foi o que julguei a partir de suas ações, porque não fez o menor comentário. Foi somente depois que a prisão de Le Bon foi anunciada que ele pediu minha opinião sobre os assassinatos.
Eu somente podia concordar com toda Paris ao considerá-los um mistério insolúvel. Não via maneira através da qual fosse possível identificar o assassino.

Não podemos julgar os meios – disse Dupin – a partir de um exame tão superficial. A polícia parisiense, que é tão exaltada por sua argúcia, é esperta, mas nada mais do que isto. Não existe método em seus procedimentos, além do método sugerido pela inspiração do momento. Desfilam uma série de medidas tomadas a fim de satisfazer ao público; mas não é infrequente que estas sejam tão mal adaptadas ao objetivo proposto, que nos recordam a frase famosa de Monsieur Jourdain, que mandou buscar seu robe-de-chambre – pour mieux entendre la musique.[11] Os resultados que eles obtêm não deixam de surpreender com uma certa frequência, mas na maior parte são obtidos por simples diligência e grande atividade. Quando faltam estas atividades, seus esquemas falham. Vidocq, por exemplo,[12] além de saber adivinhar, era um homem perseverante. Porém, desprovido de um pensamento educado, ele errava continuamente pela própria intensidade de suas investigações. Prejudicava a própria visão por segurar os objetos perto demais. Podia ver assim, quem sabe, um ou dois pontos com clareza extraordinária, mas seu procedimento o levava necessariamente a perder a visão do conjunto.

Porque existe uma coisa que podemos chamar de excesso de profundidade. A verdade não se encontra sempre no fundo de um poço. De fato, no que se refere aos conhecimentos mais importantes, acredito que seja invariavelmente superficial. A profundidade acha-se nos vales em que a buscamos e não no topo das montanhas, onde a verdade é encontrada. Os modos e fontes deste tipo de erro são bem tipificados pela contemplação dos corpos celestiais. Olhar uma estrela de relance, observá-la pelo canto dos olhos, voltando para ela as porções laterais da retina (mais suscetível às fracas sensações luminosas que a parte central) significa percebê-la distintamente – é assim que apreciamos melhor o seu brilho – um brilho que vai se enfraquecendo na proporção em que voltamos a visão diretamente sobre ele. De fato, um número maior de raios cai sobre o olho neste último caso, porém, no anterior, existe a capacidade de compreensão mais refinada. Através de um excesso de profundidade, enfraquecemos o pensamento e o deixamos perplexo; é possível fazer até mesmo Vênus desaparecer do firmamento através de um escrutínio demorado demais, excessivamente concentrado ou direto em demasia.
“Quanto a estes assassinatos, vamos fazer alguns exames nós mesmos, antes de formar nossa opinião com respeito a eles. Nosso pequeno inquérito nos dará algum divertimento (achei que o termo estava sendo aplicado de maneira muito exótica, mas não disse nada) e, além disso, uma vez Le Bon me prestou um pequeno serviço, pelo qual ainda sou grato. Vamos visitar os aposentos e observá-los com nossos próprios olhos. Conheço G—, o chefe de polícia, e não terei dificuldade em obter a necessária permissão.

Obtida esta, fomos imediatamente à rua Morgue. Era uma dessas ruelas miseráveis que ficam entre a rua Richelieu e a rua St.-Roch. Já era o final da tarde quando chegamos lá, porque este bairro fica a grande distância daquele em que residíamos. A casa foi encontrada prontamente: ainda havia muitas pessoas olhando para os postigos cerrados com uma curiosidade sem objetivo, paradas no outro lado da rua. Era uma casa parisiense comum, com um portão; em um de seus lados, havia um observatório de vidro, uma caixa quadrada com uma janelinha e um painel corrediço, indicando um loge de concierge.[13] Antes de ingressarmos no prédio, subimos a rua, dobramos a esquina em um beco, dobramos novamente e passamos por trás do edifício. Enquanto isso, Dupin examinava toda a vizinhança, tanto quanto a casa, com uma minuciosidade cujo motivo eu não podia discernir.
Retornando sobre nossos passos, chegamos novamente à frente da residência, tocamos a campainha e, tendo apresentado nossas credenciais, fomos admitidos pelos agentes de polícia que estavam de guarda. Subimos as escadas e entramos na sala em que o corpo de Mademoiselle L’Espanay e tinha sido encontrado e no qual ainda jaziam ambas as defuntas. A desordem da sala tinha sido deixada conforme se achava, de acordo com o costume. Não vi nada que não tivesse sido detalhado na Gazette des Tribunaux. Dupin escrutinou cada canto da sala, sem excetuar os corpos das vítimas. Passamos então às outras peças e depois ao pátio, acompanhados o tempo todo por um gendarme. O exame ocupou-nos até ficar escuro, o que nos fez ir embora. Em nosso caminho para casa, meu companheiro parou por um momento no escritório de um dos jornais diários.

Já comentei antes que os caprichos de meu amigo eram numerosos e que je les ménageais – para esta frase não há um equivalente em inglês.[14] Sua disposição presente era a de evitar qualquer conversação referente aos assassinatos e assim permaneceu até mais ou menos o meio- dia seguinte. Então indagou-me, subitamente, se eu havia observado alguma coisa peculiar na cena da atrocidade. Havia alguma coisa na maneira como enfatizou a palavra “peculiar” que me fez estremecer, sem saber por quê.
Não, nada de peculiar – disse eu. – Pelo menos, não vi nada que nós dois já não tenhamos lido nas reportagens do jornal.

A Gazette – replicou ele – não entrou em detalhes, segundo eu temo, sobre o horror
incomum dessa coisa. Mas descarte as opiniões casuais que foram impressas. Segundo me parece, esse mistério é considerado insolúvel, pela própria razão pela qual se deveria considerá- lo como muito simples. Quero dizer, o caráter outré de suas peculiaridades.[15] A polícia está confusa pela aparente ausência de motivo; não pelo próprio assassinato, mas pela atrocidade envolvida na matança. Também estão atarantados pela impossibilidade aparente de reconciliar as vozes que foram ouvidas discutindo com o fato de que ninguém foi encontrado no andar superior, salvo a assassinada Mademoiselle L’Espanay e, do mesmo modo que não havia um meio de saída aparente que não pudesse ser percebido pelo grupo que subia as escadas. 

A desordem espantosa da sala, o cadáver empurrado, com a cabeça para baixo, pelo cano da chaminé, as terríveis mutilações sofridas pelo corpo da velha senhora; estas considerações, tomadas em conjunto com as que mencionei antes e outras que não necessitam serem citadas, foram suficientes para paralisar as autoridades, demonstrando a completa inexistência da perspicácia atribuída aos agentes do governo. Caíram todos no erro comum e grosseiro de confundir o incomum com o abstruso. Mas é justamente através destes desvios do plano ordinário que a razão se conduz, se é que existe algum caminho, em sua busca da verdade. Em investigações como esta que estamos agora realizando, não se deve tanto perguntar “o que ocorreu”, como “o que ocorreu que nunca havia ocorrido antes”. De fato, a facilidade com que chegarei – ou já cheguei – à solução deste mistério está em razão direta de sua aparente insolubilidade aos olhos da polícia.

Fiquei olhando para meu interlocutor, tomado de um espanto mudo.
Agora estou esperando – continuou ele, olhando para a porta de nossa casa. – Estou esperando por uma pessoa que, embora talvez não tenha sido o perpetrador desse massacre, está, até certo ponto, implicada em sua perpetração. Provavelmente é inocente da parte pior dos crimes cometidos. Espero estar certo nesta suposição, porque é sobre ela que construí minhas esperanças de resolver o enigma inteiro. Estou esperando que o homem chegue aqui – a esta sala
a qualquer momento. É verdade que ele pode não vir, mas a probabilidade é de que virá. Se ele vier, será necessário detê-lo. Temos aqui estas pistolas, e nós dois sabemos como usá-las quando a ocasião se apresenta.

Peguei as pistolas sem saber exatamente por que e tampouco sem acreditar muito no que ouvia, enquanto Dupin prosseguia, quase como se recitasse um monólogo. Já falei anteriormente de seu comportamento abstraído nesses momentos. Seu discurso me estava sendo dirigido; mas sua voz, embora não estivesse absolutamente alta, apresentava aquela entonação que em geral é empregada quando se fala a alguém que se encontra a uma boa distância. Seus olhos contemplavam somente a parede, tomados de uma expressão vazia.

A evidência dos testemunhos demonstrou totalmente – disse ele – que as vozes que estavam discutindo e foram escutadas pelas pessoas que subiam as escadas não eram as vozes das mulheres assassinadas. Isso nos exime totalmente de qualquer dúvida no sentido de que a velha senhora pudesse ter matado primeiro a própria filha e depois cometido suicídio. Menciono este ponto unicamente por uma questão de método, porque a força de Madame L’Espanay e teria sido totalmente inadequada para a tarefa de empurrar o cadáver de sua filha chaminé acima, como foi encontrado. Igualmente a natureza das feridas encontradas em seu próprio corpo inteiramente afastam a ideia de autodestruição. O morticínio foi então cometido por terceiros, e as vozes destes terceiros foram as que escutaram brigando. Deixe-me agora preveni-lo, não contra o testemunho inteiro no que respeita a essas vozes, mas quanto ao que era peculiar neste testemunho. Você observou alguma coisa particularmente estranha nele?
Observei que, ao passo que todas as testemunhas concordavam em supor que a voz grave fosse a de um francês, havia muita dissensão no que se referia à voz aguda, ou, como a denominou um dos indivíduos, a voz áspera.
Essa foi a evidência apresentada – disse Dupin. – Mas não foi essa a peculiaridade da evidência. Você não observou nada que lhe chamasse a atenção. Todavia, existia uma coisa que deveria ser observada. As testemunhas, como você declarou, concordaram a respeito da voz grave; aqui houve unanimidade. Mas com relação à voz aguda, a peculiaridade é a seguinte: de fato eles não discordaram, mas enquanto um italiano, um inglês, um espanhol, um holandês e um francês tentaram descrevê-la, cada um referiu-se a ela como sendo a voz de um estrangeiro.

Cada um deles tinha certeza de que a voz não era de algum compatriota seu. Cada um deles a descreve, não como a voz de um indivíduo de qualquer nação em cuja linguagem seja fluente, mas justamente o oposto. O francês supôs que era a voz de um espanhol e declarou que “poderia ter distinguido algumas palavras se soubesse falar espanhol; o holandês mantém que a voz falava francês, mas foi declarado que “como não falava francês, esta testemunha foi examinada através de um intérprete”. O inglês achava que era a voz de um alemão, mas não entende alemão. O espanhol “tem certeza” de que é a voz de um inglês, mas “julga totalmente pela entonação”, porque não tem conhecimento do inglês”. O italiano acredita ser a voz de um russo, porém “nunca conversou com um natural da Rússia”. Além disso, um segundo francês discorda do primeiro e afirma positivamente que a voz falava em italiano, porém, “não sendo conhecedor dessa língua”, convence-se, assim como o espanhol, “devido à entonação”. Agora, vejamos, como essa voz deve ser estranhamente incomum para que todas as testemunhas pudessem tê-la descrito dessa forma! Uma voz em cujos tons cidadãos de cinco das grandes divisões da Europa não podiam reconhecer nada de familiar! Você dirá que poderia ser a voz de um asiático, ou talvez de um africano. Nem asiáticos, nem africanos são abundantes em Paris; porém, sem negar esta inferência, chamarei agora sua atenção para três pontos. A voz é descrita por uma testemunha como sendo “mais áspera do que aguda”. É apresentada por duas outras como sendo “áspera e desigual”. E nenhuma palavra – nenhum som que lembrasse palavras – foi mencionado como tendo sido compreendido por qualquer das testemunhas.

Dupin continuou:
Não sei que impressão posso ter causado, por enquanto, sobre seu próprio entendimento, mas não hesito em dizer que deduções legítimas obtidas até mesmo dessa pequena parte do testemunho – a porção que se refere às vozes grave e aguda – são em si mesmas suficientes para engendrar uma suspeita que deve orientar todo o progresso futuro na investigação desse mistério. Falei em “deduções legítimas”, mas o que quero dizer não está perfeitamente expressado.
Pretendo implicar que essas deduções são as únicas adequadas; e que a suspeita surge inevitavelmente delas como o único resultado possível. Que suspeita é, entretanto, não direi de imediato. Meramente desejo que você conserve em mente que, para mim, foi uma suspeita forte o bastante para dar uma forma definida – uma tendência certa – para as investigações que fiz naquela sala. Vamos nos transportar em fantasia para aquele aposento. O que vamos procurar aqui em primeiro lugar? Naturalmente o meio de saída empregado pelos assassinos. Não é necessário dizer que nenhum de nós acredita em eventos sobrenaturais. Madame e Mademoiselle L’Espanay e não foram destruídas por espíritos. 

Os agentes do morticínio eram materiais e escaparam de forma material. Mas como? Felizmente, há somente uma maneira de raciocinar sobre este ponto, e esta maneira deve nos conduzir a uma decisão definida. Vamos examinar, um a um, os possíveis meios de escape. Está claro que os assassinos se achavam na sala em que Mademoiselle L’Espanay e foi encontrada, ou pelo menos no aposento adjacente, durante o espaço de tempo em que o grupo de salvadores subia as escadas. Deste modo, só precisamos procurar saídas destas duas peças. A polícia examinou minuciosamente os assoalhos, os forros e até mesmo o reboco das paredes, em todas as direções possíveis. Nenhuma saída secreta poderia escapar à sua vigilância. Porém, uma vez que eu não confiava nos olhos deles, fui examinar com os meus. E determinei, para minha própria satisfação, que não existia qualquer saída secreta. As duas portas que levavam das salas à passagem de acesso estavam trancadas com segurança e as chaves estavam do lado de dentro. Vamos olhar as chaminés. Estas, embora sejam da largura ordinária por uns dois metros e meio ou três metros acima das lareiras, não podem admitir, ao longo de todo o seu comprimento, sequer o corpo de um gato grande. Uma vez que a impossibilidade de fuga pelos meios já descritos é absoluta, restam somente as janelas. Ninguém poderia ter escapado através das janelas da sala dianteira sem ser percebido pela multidão que se havia aglomerado na rua. Os assassinos, deste modo, devem ter passado pelas janelas do quarto dos fundos. Agora que fomos trazidos a esta conclusão de uma forma tão inequívoca, não é nosso papel, como homens de raciocínio, rejeitá-la em virtude de sua aparente impossibilidade. O que nos resta é provar que estas “impossibilidades” aparentes, na realidade, são possíveis.

“Há duas janelas nessa peça. Uma delas não está obstruída pelo mobiliário e se acha inteiramente visível. A parte inferior da outra está escondida da vista pela parte superior daquele pesado estrado, que foi instalado bem perto dela. Quando a janela foi encontrada, estava perfeitamente trancada por dentro. Resistiu ao máximo à força daqueles que tentaram levantar a parte superior da guilhotina. Um grande buraco de verruma havia sido aberto na parte esquerda da armação e um prego muito grosso e forte fora introduzido nele, próximo à cabeceira da cama. Ao examinar a segunda janela, a polícia encontrou um prego semelhante encaixado da mesma maneira; uma vigorosa tentativa de erguer a parte superior desta janela de guilhotina também falhou. A polícia ficou agora totalmente convencida de que não teria sido possível sair através delas. E, portanto, acharam totalmente desnecessário remover os pregos e abrir as janelas.

“Meu próprio exame foi um tanto mais particular, pela própria razão que mencionei faz pouco – porque eu sabia que era aqui que todas as aparentes impossibilidades deveriam ser demonstradas como realmente possíveis. Prossegui pensando deste modo – a posteriori. Os assassinos realmente escaparam através de uma destas janelas. Sendo assim, não poderiam ter trancado os postigos por dentro, como foram encontrados – foi esta a consideração que interrompeu, por ser tão óbvia, o escrutínio da polícia nesta direção. De fato, os postigos estavam trancados. Eles deveriam, então, ser capazes de se trancarem sozinhos. Não havia como escapar a esta conclusão. Fui até a janela que não estava obstruída, retirei o prego com alguma dificuldade e tentei novamente erguer a parte superior. Esta resistiu a todos os meus esforços, como eu já havia antecipado. Agora eu sabia que deveria existir uma mola oculta; e esta corroboração de minha ideia me convenceu de que minhas premissas, pelo menos, estavam corretas, por mais misteriosas parecessem as circunstâncias ligadas aos pregos. Uma busca cuidadosa logo me mostrou a mola escondida. Apertei-a e, satisfeito com a descoberta, abstive- me de erguer a janela.

Então recoloquei o prego e contemplei-o com atenção. Uma pessoa que atravessasse esta janela, poderia ter fechado novamente a parte superior e a mola teria trancado o conjunto – mas o prego não poderia ter sido recolocado. A conclusão era simples e novamente estreitava o campo de minhas investigações. Os assassinos deveriam ter escapado através da outra janela.
Supondo então que as molas em cada caixilho eram iguais, como era provável, tinha de ser encontrada uma diferença entre os pregos, ou pelos menos uma diferença na maneira segundo a qual tinham sido afixados. Subindo na enxerga do estrado, olhei minuciosamente através da cabeceira para a segunda janela. Passando minha mão por trás da tábua, rapidamente descobri e apertei a mola, que era, como eu havia suposto, idêntica em confecção à sua vizinha. Olhei agora para o prego. Parecia tão forte como o outro e aparentemente tinha sido afixado da mesma maneira – martelado quase até a cabeça.

“Você poderá dizer que fiquei confuso, mas, se pensar assim, é porque não entendeu a natureza de minhas induções. Para usar uma expressão esportiva, eu não tinha “cometido nenhuma falta”. Não havia perdido a pista nem por um instante. Não havia falha em nenhum elo de minha cadeia de raciocínio. Tinha retraçado o segredo até seu derradeiro resultado – e esse resultado era o prego. Devo dizer que apresentava, sob todos os aspectos, a mesma aparência de seu companheiro que estava cravado na outra janela. Mas este fato era absolutamente nulo (por mais conclusivo que parecesse) quando comparado com a consideração de que, justamente neste ponto, terminava a pista. “Deve haver alguma coisa errada” – pensei eu – “com esse prego”. Segurei-o; e a cabeça, com mais ou menos um centímetro da haste, saiu entre meus dedos. O resto da haste permaneceu no buraco da verruma, dentro do qual havia sido quebrada. A fratura era muito antiga (porque as beiradas já estavam incrustadas de ferrugem) e aparentemente tinha sido provocada por um golpe de martelo, que tinha parcialmente embutido na parte de cima da porção móvel da guilhotina a parte do prego que ficava junto à cabeça.
Cuidadosamente recoloquei a porção da cabeça dentro da indentação de que a havia retirado e a
semelhança com um prego inteiro continuava completa – o lugar em que estava quebrado era perfeitamente invisível. Apertando a mola, gentilmente levantei a janela por alguns centímetros; a cabeça do prego subiu com o caixilho, permanecendo afixada em seu buraco. Fechei novamente a janela e a aparência do prego era outra vez perfeita.
“Até este ponto, já havia decifrado a adivinhação. O assassino tinha escapado através da janela que ficava por cima da cama. Tendo caído sozinha depois que fora atravessada (ou talvez tendo sido fechada por fora de propósito) havia sido trancada pela mola; era a retenção desta mola que havia sido confundida pela polícia como produzida pelo prego – e não acreditaram ser necessário inquirir mais nada com relação às janelas.

“A questão que se apresentou a seguir foi o modo de descida. Quanto a este ponto, eu já havia satisfeito minha curiosidade quando caminhei com você ao redor do edifício. A mais ou menos um metro e setenta da janela mencionada foi instalado um para-raios. Partindo desta vara de metal, teria sido impossível para uma pessoa atingir a própria janela, muito menos entrar por ela. Observei, todavia, que os postigos do quarto andar eram de um tipo particular que os carpinteiros parisienses chamam de ferrades – um tipo raramente empregado hoje em dia, mas frequentemente visto em mansões muito antigas em Ly ons e Bordeaux. Têm o formato de uma porta comum (de folha única, não dupla), exceto que a parte superior é treliçada, ou seja, formada por uma rede de ripas cruzadas, deixando entre si espaços em forma de losangos, o que permite um excelente apoio para as mãos. No caso presente, estes postigos têm mais de um metro de largura. Quando nós os observamos, olhando da parte traseira da casa, vimos que ambos estavam semiabertos, isto é, encontravam-se em ângulos retos com a parede. É provável que a polícia tenha examinado o prédio por trás, do mesmo jeito que eu; mas, se o fizeram, ao
olharem para esses ferrades, viram os postigos ao longo da espessura (que era o que estava
voltado para fora) e não perceberam seu grande comprimento; ou, mesmo que tenham percebido, não o tomaram na devida consideração. De fato, uma vez que desde o começo tinham certeza de que ninguém poderia ter saído pelas janelas, naturalmente o exame externo foi apenas perfunctório. Para mim, entretanto, estava claro que o postigo pertencente à janela que ficava por cima da cama, se fosse aberto em toda a sua extensão e colocado junto à parede, chegaria a um meio metro do para-raios. Era também evidente que, desde que a pessoa em questão tivesse um grau bastante elevado de agilidade e coragem, poderia ter entrado pela janela subindo pela vara de metal e passando através do postigo. Cruzando uma distância de mais ou menos setenta e cinco centímetros (supondo que o postigo estivesse inteiramente aberto), um ladrão poderia agarrar-se firmemente à treliça. Soltando-se então da vara de metal do para - raios, colocando os pés firmemente contra a parede e dando um impulso firme com eles, ele poderia balançar o postigo de modo a fechá-lo; e, se imaginarmos que a janela estivesse aberta nessa ocasião, poderia lançar-se para dentro do quarto pelo mesmo impulso.

“Quero que você mantenha especialmente em seu raciocínio que estou falando de um grau muito incomum de habilidade como um pré-requisito para o sucesso em uma façanha tão perigosa e difícil. Meu projeto é demonstrar-lhe, primeiro, que há uma possibilidade de que a coisa pudesse ser feita; mas, em segundo lugar e principalmente, quero causar uma firme impressão em seu intelecto sobre a natureza muito extraordinária, quase sobrenatural da agilidade necessária para realizar esse feito.
“Você vai dizer, sem dúvida, usando a linguagem jurídica que, ‘para estabelecer meu caso’, eu deveria antes subestimar do que insistir sobre um cálculo completo da habilidade requerida para realizar esta proeza. Esta pode ser a prática dos tribunais, mas não é a maneira como se emprega a razão. Meu alvo final é somente a verdade. Meu propósito imediato é conduzi-lo a realizar a justaposição entre esta agilidade assaz incomum que acabei de descrever e aquela voz tão peculiar, aguda (ou áspera) e desigual, sobre cuja nacionalidade não se pôde encontrar duas pessoas que concordassem e em cuja entonação nenhuma sílaba pôde realmente ser detectada.”

Ao ouvir estas palavras, uma concepção vaga e ainda meio disforme do significado pretendido por Dupin passou pela minha cabeça. Parecia-me estar à beira da compreensão, sem a capacidade necessária para poder de fato compreender – da mesma forma que as pessoas, por vezes, se acham a ponto de lembrar alguma coisa, sem realmente conseguirem recordar. Meu amigo prosseguiu com seu discurso:
Você deve ter percebido – disse ele – que transferi a questão do modo de saída para o modo de entrada. Minha intenção era a de transmitir a ideia de que ambas foram efetuadas da mesma maneira e através do mesmo lugar. Vamos retornar ao interior do quarto. Vamos inspecionar as aparências encontradas aqui. As gavetas da cômoda, conforme foi dito, tinham sido revistadas, embora muitos objetos de vestuário ainda permanecessem dentro delas. Esta conclusão é absurda. É apenas uma adivinhação – bastante boba, aliás –, nada mais do que isso. Como podemos saber que os artigos encontrados nas gavetas não eram todo o conteúdo original delas? Madame L’Espanay e e sua filha viviam uma vida extremamente retirada, não recebiam visitas, raramente saíam, portanto tinham pouco uso para numerosas trocas de roupa. As peças encontradas eram de uma qualidade tão boa quanto era provável encontrar na posse dessas senhoras. Se um ladrão tinha levado alguma coisa, por que não pegou o melhor, por que não ficou com tudo? Em uma palavra, por que ele abandonou quatro mil francos em ouro ao mesmo tempo que ia se sobrecarregar com uma trouxa de roupas de linho? O ouro foi deixado intacto. Praticamente a soma inteira mencionada por Monsieur Mignaud, o banqueiro, foi descoberta no assoalho, nas próprias bolsas em que havia sido transportada. Quero que você, portanto, descarte de seus pensamentos a ideia errônea de um motivo, criada nos cérebros da polícia com base
naquela porção da evidência que fala do dinheiro entregue à porta da casa. Coincidências dez vezes mais notáveis do que esta (a entrega do dinheiro e o assassinato cometido três dias depois que o destinatário o havia recebido) acontecem conosco a cada hora de nossas vidas, sem chamar atenção nem por um momento. Coincidências, em geral, são grandes pedras de tropeço no caminho daquela classe de pensadores que foi educada sem conhecer nada da teoria das probabilidades – aquela teoria à qual os assuntos mais importantes da pesquisa humana estão profundamente endividados, pois dela receberam suas mais gloriosas ilustrações. No caso presente, se o dinheiro tivesse sido roubado, o fato de ter sido entregue três dias antes teria sido muito mais que uma simples coincidência. Teria corroborado a ideia de que o roubo era o verdadeiro motivo. Mas, sob as circunstâncias reais do caso, se supusermos que o ouro era o motivo por trás da carnificina, devemos também imaginar que o perpetrador era um idiota vacilante por haver abandonado ouro e motivo juntos.

“Mantendo agora firmemente em sua memória os pontos para que lhe chamei a atenção – aquela voz peculiar, a agilidade incomum e essa espantosa ausência de motivo para um assassínio tão singularmente atroz como este –, vamos dar uma olhada no próprio processo da carnificina. Temos aqui uma mulher estrangulada apenas com a força das mãos e depois empurrada pelo cano de uma chaminé, com a cabeça para baixo. Os matadores comuns simplesmente não empregam este modo de operação. Pelo menos, eles não dispõem dos assassinados desta maneira. Na forma como o corpo foi empurrado pelo cano da chaminé você admitirá que havia alguma coisa excessivamente outré – alguma coisa totalmente irreconciliável com nossas noções sobre o procedimento comum dos seres humanos, mesmo que suponhamos que os atores foram os mais depravados dos homens. Pense, também, em como deve ter sido grande a força necessária para empurrar um cadáver para cima, através de uma abertura tão estreita, apertá-lo de tal maneira que o esforço unido de diversas pessoas quase não foi suficiente para puxá-lo para baixo!

“Vamos voltar-nos agora para outras indicações do emprego de um vigor realmente maravilhoso. Na parte de baixo da lareira haviam mechas grossas – mechas muito grossas – de cabelo humano grisalho. Estas madeixas tinham sido arrancadas pelas raízes. Você percebe muito bem a grande força necessária para arrancar de sua cabeça até vinte ou trinta cabelos juntos. Você viu as mechas em questão do mesmo modo que eu. Suas raízes (uma visão horrível!) estavam ainda presas a fragmentos da pele do couro cabeludo – um sinal garantido da energia prodigiosa que tinha sido exercida para arrancar talvez meio milhão de fios de cabelo ao mesmo tempo. A garganta da velha senhora não tinha sido meramente cortada, mas a cabeça totalmente separada do corpo: o instrumento encontrado era apenas uma navalha. Gostaria também que você observasse a ferocidade brutal destes atos. Nem sequer falo dos hematomas encontrados no corpo de Madame L’Espanay e. Monsieur Dumas e seu digno coadjutor, Monsieur Etienne, pronunciaram que eles foram infligidos por algum instrumento contundente; nesse ponto, estes cavalheiros estão perfeitamente corretos. O objeto contundente, está claro, foi
o pavimento de pedra do pátio, sobre o qual a vítima caiu, lançada pela janela que fica por cima do leito. Esta ideia, por mais simples que possa ser, escapou da polícia pela mesma razão que o comprimento dos postigos não lhes chamou a atenção – porque, devido à questão dos pregos, sua percepção foi hermeticamente selada contra a possibilidade de que as janelas pudessem ter sido abertas durante qualquer momento no decorrer da ação.

“Se agora, em adição a todas estas coisas, você já refletiu sobre a estranha desordem em que foi encontrado o aposento, chegou ao ponto de combinar as ideias de uma agilidade espantosa, uma força sobre-humana, uma ferocidade brutal, uma carnificina sem motivo, uma grotesquerie de horror totalmente alheia à humanidade e uma voz que parecia emitida em uma língua estrangeira aos ouvidos de homens de muitas nações, completamente desprovida de toda silabação distinta e inteligível. Que resultado surgiu, então? Que impressão causei sobre sua imaginação?”
Senti minha carne arrepiar-se enquanto Dupin me fazia estas perguntas.
Um doido – disse eu – praticou essa ação. Um louco furioso, fugido de alguma Maison de Santé das proximidades.
Em alguns respeitos – ele replicou – sua ideia não é irrelevante. Mas as vozes dos alienados, mesmo em seus paroxismos mais ferozes, nunca combinarão com aquela voz peculiar que foi escutada das escadas. Os loucos sempre pertencem a alguma nacionalidade; e sua linguagem, por mais incoerente que seja, tem sempre elementos de silabação. Além disso, o cabelo de um doido não é igual a este que tenho na mão. Retirei este pequeno tufo dos dedos rigidamente fechados de Madame L’Espanay e. Diga-me o que acha dele.
Dupin! – exclamei, completamente fora de controle. – Este cabelo é muito estranho – este cabelo não é humano!

Não afirmei que fosse – disse ele. – Mas antes de decidirmos este ponto, quero que você dê uma olhada no pequeno esboço que tracei sobre este papel. É um desenho em fac-simile do
que foi descrito em uma parte dos depoimentos como “manchas escuras e indentações profundas de unhas”, encontradas na garganta de Mademoiselle L’Espanay e; e em outra (a parte em que os senhores Dumas e Etienne depuseram) como “uma série de manchas lívidas, evidentemente as impressões de dedos”. Você perceberá – continuou meu amigo, abrindo o papel sobre a mesa diante de nós – que este desenho dá a ideia de um apoio firme e fixo. Aparentemente, os dedos não escorregaram. Cada dedo reteve – possivelmente até a morte da vítima – a pressão assustadora por meio da qual originalmente se cravou na carne. Tente, agora, colocar todos os seus dedos, ao mesmo tempo, nas impressões respectivas que você está vendo.
Fiz a tentativa, mas em vão.
É possível que não estejamos fazendo a experiência da maneira mais justa – disse ele. – O papel está estendido sobre uma superfície plana, enquanto a garganta humana é cilíndrica. Aqui está um toco de madeira, cuja circunferência é aproximadamente a mesma de um pescoço.
Enrole o desenho em volta dele e experimente de novo.
Foi o que fiz, mas a dificuldade era ainda mais óbvia do que antes.
Esta marca – afirmei – não foi feita por mão humana!
Leia agora – replicou Dupin – esta passagem de Cuvier.[16]

Era uma descrição anatômica minuciosa do grande Orangotango amarelado das ilhas das Índias Orientais. A estatura gigantesca, a força e habilidade prodigiosas, a ferocidade bestial e a capacidade imitativa destes mamíferos são suficientemente bem-conhecidas por todos. Entendi imediatamente o completo horror dos assassinatos.
A descrição dos dedos – disse eu, quando acabei de ler – concorda exatamente com este desenho. Posso ver que nenhum animal, exceto um orangotango da espécie aqui mencionada, poderia ter causado as marcas da maneira como você as copiou. Este tufo de pelos castanho- amarelados, também, é de caráter idêntico aos da besta descrita por Cuvier. Mas não posso de maneira alguma compreender os detalhes deste mistério assombroso. Além disso, foram escutadas duas vozes discutindo e uma delas era inquestionavelmente a voz de um francês.

É verdade. E você há de lembrar uma expressão atribuída quase unanimemente pelos depoimentos a esta voz – a interjeição “mon Dieu!” Esta, dentro das circunstâncias, foi justamente caracterizada por uma das testemunhas (Montani, o confeiteiro) como expressada em um tom de repreensão ou de reprovação. Foi sobre estas duas palavras, portanto, que construí minhas maiores esperanças de uma solução completa do mistério. Um francês teve conhecimento dos assassinatos. É possível – de fato, mais do que provável – que ele esteja inocente de toda participação nas sangrentas transações que ocorreram. O orangotango pode ter fugido dele. Ele pode ter encontrado sua pista e chegado até o mesmo aposento; porém, sob as circunstâncias agitadas que se seguiram, ele provavelmente não conseguiu recapturá-lo. Ainda deve estar à solta. Não vou prosseguir nesta linha de adivinhações – por enquanto não tenho o direito de chamá-las de nada mais que isto –, uma vez que as linhas de raciocínio sobre as quais estão embasadas dificilmente têm uma profundidade suficiente para serem apreciadas por meu próprio intelecto. Desse modo, não posso pretender torná-las inteligíveis à compreensão dos outros. Vamos chamar estas ideias simplesmente de adivinhações e tratá-las como tal. Se o francês em questão for, como suponho, inocente desta atrocidade, este anúncio, que eu deixei a noite passada, antes que voltássemos para casa, no escritório do Le Monde (um jornal dedicado a interesses marítimos, bastante lido pelos marinheiros), vai trazê-lo à nossa residência.
Entregou-me um jornal, onde li o seguinte:

”CAPTURADO – No Bois de Boulogne, no princípio da manhã de — do corrente (justamente na manhã após os assassinatos), um orangotango muito grande, de pelagem castanho- amarelada e da espécie de Bornéu. O proprietário (que sabemos ser um marinheiro de um barco maltês) poderá retomar posse do animal, mediante uma identificação satisfatória e o pagamento de algumas taxas por sua captura e manutenção. Procurar na Rua — nº —, Faubourg St.- Germain, no Terceiro Distrito de Paris.” Como foi possível – indaguei – que você soubesse que o homem era marinheiro e, além disso, estava engajado em um barco maltês?
Na verdade, eu não sei – disse Dupin. – Eu não tenho certeza. Todavia, tenho aqui este pedacinho de fita, que, pelo seu formato e aparência um tanto ensebada, evidentemente foi usado para atar o cabelo em uma dessas longas queues[17] de que os marinheiros parecem gostar tanto. Além disso, este nó é de marinheiro, poucas outras pessoas sabem atá-lo; e este, em particular, é característico dos marinheiros de Malta. Eu apanhei a fita ao pé do para-raios. Não podia ter pertencido a qualquer uma das defuntas. 

Agora, se no final das contas eu estiver errado em minha indução a partir da fita, isto é, que o francês mencionado fosse um marinheiro engajado em um navio maltês, mesmo assim não causei mal algum ao escrever o que coloquei no anúncio. Se eu estiver errado, o proprietário simplesmente pensará que eu fui desorientado por algumas circunstâncias que ele não se dará ao trabalho de investigar. Mas se eu estiver certo, já obtive grande vantagem. Uma vez que participou do assassinato, embora seja inocente, o francês naturalmente hesitará em responder ao anúncio para reclamar o orangotango. Ele vai raciocinar assim: “Eu sou inocente, sou pobre, meu orangotango vale muito – para alguém em minhas condições, vale uma fortuna –; por que eu deveria perdê-lo somente por imaginar que existe algum perigo? Ele está aqui mesmo, ao alcance de meus dedos. Foi encontrado no Bois de Boulogne – a uma vasta distância da cena dos assassinatos. Quem jamais vai suspeitar que foi um animal o responsável pelo crime? A polícia não sabe nada; não acharam a mínima pista. Mesmo que pudessem ter reconhecido e acompanhado a pista do animal, seria impossível provar que tenho conhecimento dos assassinatos, muito menos julgar-me culpado em virtude desse conhecimento. Além de tudo, eu já sou conhecido. O anunciante me designa claramente como o possuidor da fera. Não tenho certeza até que ponto vai o seu conhecimento. Se eu deixar de reclamar uma propriedade de tão grande valor, que é de conhecimento público que me pertence, despertarei suspeitas, no mínimo, contra o animal. Não é meu interesse atrair atenção nem para mim, nem para a fera. Vou responder ao anúncio, apanhar o orangotango e mantê-lo encerrado até que este assunto seja esquecido”.
Nesse momento, escutamos passos na escada que levava à rua.
Esteja preparado – disse Dupin – para usar as pistolas, mas não atire, nem mostre que está com elas até que lhe faça um sinal.

A porta da frente tinha sido deixada aberta e o visitante havia entrado, sem puxar a corda da campainha e avançado diversos passos pela escada. Todavia, agora ele parecia hesitar. Em seguida, escutamos seus passos enquanto descia. Dupin estava se movendo rapidamente para a porta da sala, quando o escutamos de novo subindo. Desta vez, ele não recuou, mas subiu com decisão e bateu à porta do aposento em que nos achávamos.
Pode entrar – disse Dupin, com uma voz alegre e calorosa.
Um homem entrou. Evidentemente, era um marinheiro – um homem alto, robusto, musculoso, com uma certa expressão de desafio no rosto, que não era totalmente desagradável. Sua face estava profundamente bronzeada e mais da metade dela oculta pela barba e o mustachio.[18] Trazia consigo um grande bastão de carvalho, mas não parecia possuir outras armas. Curvou-se desajeitadamente e nos desejou “boa noite” em francês, em um sotaque que, embora lembrasse o de Neufchâtel, era ainda assim bastante indicativo de sua origem parisiense.
Sente-se, meu amigo – disse Dupin. – Suponho que veio nos visitar por causa do orangotango. Dou-lhe minha palavra que quase o invejo pela posse de tão belo animal; um animal realmente notável e, sem dúvida, muito valioso. Que idade o senhor pensa que ele tem?

O marinheiro respirou fundo, com o ar de alguém finalmente livre de uma carga intolerável, e então replicou, em um tom cheio de segurança:
Na verdade, não posso dizer, mas não deve ter mais de quatro ou cinco anos. Ele está aqui em sua casa?
Claro que não, não temos acomodações para mantê-lo aqui. Encontra-se em um estábulo na rua Dubourg, bem perto daqui. Você poderá retirá-lo pela manhã. Naturalmente, está preparado para identificar a propriedade?
Claro que estou, senhor.
Lamentarei muito me separar dele – disse Dupin.
Não vou dizer que o senhor se deu a todo esse trabalho por nada, senhor – disse o homem.
Nem pensar nisso. Estou perfeitamente disposto a pagar uma recompensa pela descoberta do animal. Quero dizer, qualquer coisa razoável.
Bem – replicou meu amigo –, isso é muito justo, sem a menor dúvida. Vamos pensar! Quanto devo pedir? Ah, já sei! Minha recompensa será a seguinte: você vai-me dar todas as informações que tiver sobre aqueles assassínios que ocorreram na rua Morgue.

Dupin pronunciou as últimas palavras em um tom muito baixo e tranquilo. Sem se apressar, ele caminhou até a porta, trancou-a e colocou a chave no bolso. Então tirou uma pistola de dentro do casaco e colocou-a, descansadamente e sem o menor alarde, sobre a mesa.
O rosto do marinheiro ficou tão vermelho como se estivesse sendo estrangulado. Ergueu-se de repente e agarrou seu porrete; porém, no momento seguinte, caiu de volta na cadeira, tremendo violentamente; seu rosto parecia o de um defunto. Não falou uma palavra. Apiedei-me dele do fundo de meu coração.

Meu amigo – disse Dupin, em um tom bondoso e gentil. – Está alarmando a si mesmo desnecessariamente, sem a menor dúvida. Não pretendemos fazer-lhe mal algum. Eu lhe prometo, por minha honra de cavalheiro, por minha honra de francês, que não temos a intenção de lhe causar a menor injúria. Sei perfeitamente que você é inocente das atrocidades cometidas na rua Morgue. Entretanto, não adiantará nada negar que você está de certo modo implicado nelas. A partir do que eu já disse, você deve saber que tenho meios de informação a respeito desse assunto – meios com que você nem sequer sonha. Agora, o negócio é o seguinte: você não fez nada que pudesse ter evitado – certamente nada que o torne culpado do que aconteceu. Você nem ao menos é culpado de roubo, quando poderia ter roubado com impunidade. Você não tem nada a esconder. Não tem razão alguma para esconder nada. Por outro lado, todos os princípios da honra o obrigam a confessar tudo quanto sabe. Um homem inocente está agora preso, acusado de um crime cujo perpetrador somente você pode apontar.

O marinheiro já havia recobrado em grande parte sua presença de espírito, enquanto Dupin pronunciava estas palavras, mas sua audácia e ousadia originais tinham desaparecido.
Deus me ajude – disse ele, após uma breve pausa. – Eu vou lhe contar tudo o que sei sobre esse negócio. Mas não espero que acredite na metade do que eu disser – seria uma grande tolice de minha parte esperar que me acreditassem. Mesmo assim, eu sou inocente e vou descarregar minha consciência, mesmo que tenha de morrer por isso.

Em resumo, o que ele declarou foi o seguinte: recentemente tinha feito uma viagem pelo
Arquipélago das Índias. Uma expedição, de que ele fazia parte, desembarcara em Bornéu e dirigira-se ao interior em uma excursão turística. Ele e mais um companheiro tinham capturado o orangotango. Como este companheiro morrera durante a viagem, o animal tornou-se sua propriedade exclusiva. Depois de muitas dificuldades, ocasionadas pela ferocidade intratável de seu cativo durante a viagem de retorno, ele finalmente conseguiu alojá-lo com segurança em sua própria residência de Paris, na qual, para não atrair a curiosidade desagradável de seus vizinhos, o manteve cuidadosamente escondido, até que se recuperasse de uma ferida no pé, provocada por uma farpa de madeira a bordo do navio. Seu propósito final era vender a fera.

Retornando para casa depois de um divertimento noturno de marinheiros, na manhã ou, de fato, na madrugada dos assassinatos, descobriu que o animal ocupava seu próprio quarto, tendo arrombado a porta de um quartinho adjacente, onde ele pensara que estivesse seguramente confinado. Com uma navalha na mão e o rosto coberto de espuma, ele estava sentado frente a um espelho, tentando a operação de barbear-se, que, sem a menor dúvida, observara previamente ser executada por seu dono através do buraco da fechadura do quartinho.

Apavorado com a visão de uma arma tão perigosa nas mãos de um animal assim feroz e tão bem-adaptado para usá-la, o homem, durante alguns momentos, ficou sem saber o que fazer. Tinha se acostumado, entretanto, a acalmar a criatura, mesmo quando estava em sua disposição mais selvagem, através do uso de um chicote, e a este recorreu naquele momento. Mas assim que enxergou a chibata, o orangotango saltou pela porta do quarto, desceu as escadas e, do patamar inferior, esgueirou-se para a rua através de uma janela, que, infelizmente, fora deixada aberta.

O francês seguiu a besta desesperadamente, mas o macaco, ainda com a navalha na mão, parava apenas ocasionalmente para olhar e gesticular, como se troçasse de seu perseguidor, até que este quase conseguia alcançá-lo. Então, recomeçava a fuga. Desta maneira, a perseguição continuou por longo tempo. As ruas se achavam profundamente quietas, já que eram quase três da manhã. Ao passar por um beco que ficava por trás da rua Morgue, a atenção do fugitivo foi atraída por uma luz que brilhava através da janela aberta da residência de Madame L’Espanay e, no quarto andar de sua casa. Correndo em direção ao edifício, ele percebeu o para-raios, trepou por ele com agilidade inconcebível, agarrou o postigo, que estava completamente aberto e encostado à parede e, por meio dele, saltou diretamente para a cabeceira da cama. A façanha inteira não durou um minuto. O postigo foi aberto novamente com um pontapé do orangotango, no momento em que entrou no quarto.

O marinheiro, enquanto isso, estava ao mesmo tempo jubiloso e perplexo. Tinha agora fortes esperanças de recapturar o bicho, porque dificilmente poderia escapar da armadilha em que se metera voluntariamente, a não ser pela vara de metal do para-raios, ocasião em que poderia ser interceptado ao tentar descer. Por outro lado, surgiu-lhe uma grande ansiedade em relação ao que ele poderia fazer dentro da casa. Foi esta última reflexão que acicatou o homem para seguir o fugitivo, mesmo nessas condições. Um para-raios pode ser galgado sem dificuldades, especialmente por um marinheiro; porém, quando ele chegou à altura da janela, que ficava bem à sua esquerda, seu caminho foi interrompido; o mais que ele podia fazer era esticar-se até obter uma visão do interior da peça. A visão que se lhe deparou quase o fez cair de seu poleiro, de tão horrível que era. Foi nesse momento que os horrendos gritos se projetaram através da noite, despertando do sono todos os habitantes da rua Morgue. Madame L’Espanay e e sua filha, em seus trajes de dormir, aparentemente estavam arrumando alguns papéis no cofre de ferro que já foi mencionado, o qual tinha rodas e fora assim trazido para o meio do quarto. Este estava aberto e seu conteúdo espalhado pelo chão. As vítimas deviam estar sentadas de costas para a janela; julgando pelo tempo decorrido entre o ingresso da fera e os gritos, parece provável que esta não tenha sido percebida de imediato. A batida do postigo teria sido naturalmente atribuída à ação do vento.

No momento em que o marinheiro olhou para dentro, o animal gigantesco tinha agarrado Madame L’Espanay e pelos cabelos (que estavam soltos, porque ela os estivera penteando) e estava fazendo floreios com a navalha diante de seu rosto, em imitação dos movimentos de um barbeiro. A filha tinha desmaiado e estava deitada e imóvel. Os gritos e a luta da velha senhora (durante a qual os cabelos foram arrancados de sua cabeça) tiveram o efeito de transformar a intenção provavelmente pacífica do orangotango em um acesso de raiva. Com um golpe determinado de seu braço musculoso, ele quase separou-lhe a cabeça do corpo com a navalha. A vista do sangue inflamou-lhe a cólera a um frenesi. Rangendo os dentes e com os olhos brilhando como se estivessem em fogo, lançou-se sobre o corpo da moça e cravou-lhe as unhas temíveis na garganta, mantendo o aperto até que ela expirou. Seu olhar errante e selvagem caiu nesse momento sobre a cabeceira da cama, através da qual era apenas discernível o rosto de seu amo, rígido de horror. A fúria da besta, que sem dúvida ainda se lembrava do temido chicote, foi instantaneamente convertida em medo. Sabendo que era merecedor de um castigo, o animal parecia querer esconder seus feitos sanguinolentos e ficou pulando pelo quarto em uma agitação nervosa, derrubando e quebrando o mobiliário enquanto se movia, e arrancando o colchão de cima do estrado. Em conclusão, pegou primeiro o cadáver da filha e empurrou-o chaminé acima, da maneira como foi encontrado; então, agarrou o cadáver da velha senhora, que imediatamente lançou pela janela, também de cabeça para baixo.

No momento em que o macaco se aproximou da janela com sua carga mutilada, o marinheiro encolheu-se apavorado na direção do para-raios; e mais escorregando do que descendo por ele, fugiu de imediato para casa – temendo as consequências do massacre e abandonando com prazer, em seu terror, todas as considerações pelo destino do orangotango. As palavras escutadas pelo grupo que subira as escadas eram as exclamações de medo e horror do francês, misturadas aos balbucios diabólicos da fera.
Resta muito pouco a acrescentar. O orangotango deve ter escapado do quarto pelo próprio para-raios, momentos antes que a porta fosse arrombada. Deve ter fechado a janela acidentalmente enquanto passava por ela. Subsequentemente, ele foi capturado pelo próprio dono, que obteve por ele uma soma importante no Jardin des Plantes. Le Bon foi imediatamente libertado, assim que nosso depoimento com a narrativa das circunstâncias (mais alguns comentários de Dupin) foi prestado no gabinete do chefe de polícia. Este funcionário, embora apresentasse bastante boa disposição com relação a meu amigo, não pôde esconder totalmente seu desapontamento perante a feição que o caso tinha assumido e chegou mesmo a proferir uma ou duas frases sarcásticas sobre a necessidade de todas as pessoas tratarem somente de seus próprios negócios.

Deixe que ele fale – disse Dupin, que não se tinha dado ao trabalho de responder. – Deixe que ele faça o seu discurso, vai aliviar-lhe a consciência. Estou satisfeito porque consegui derrotá-lo em seu próprio castelo. Não obstante, o fato de que ele falhou na solução deste mistério não é em absoluto um motivo para tanto espanto como ele supõe, porque, na realidade, nosso amigo, o chefe de polícia, é um pouco esperto demais para ser profundo. Não existe vigor em sua sabedoria. Não passa de uma cabeça sem corpo, como as representações da Deusa Laverna; ou, no máximo, cabeça e ombros, como um bacalhau. Mas, apesar de tudo, ele é um bom sujeito. Gosto dele especialmente por um golpe de mestre de hipocrisia, através do qual ele adquiriu sua reputação de engenhosidade. Refiro-me ao hábito que ele tem “de nier ce qui est, et d’expliquer ce qui n’est pas”.[19]



[1]. Pesquisado, elaborado, sofisticado. Em francês no original. (N.T.)
[2]. Edmund Hoy le escreveu A Short Treatise on Whist (Um curto tratado sobre o Whist), em 1742. (N.T.)
[3]. Em um certo momento, outrora, antigamente. Em latim no original. (N.T.)
[4]. E todos os de seu gênero. Em latim no original. (N.T.)
[5]. Atomia, a teoria de que o Universo é formado por pequenas partículas, foi um termo introduzido em 159l. Mas não se atribui a Epicuro. Este filósofo grego, 341-270 a. C., ensinava que o prazer era o máximo bem, referindo-se à cultura do espírito e à prática da virtude. A falsa interpretação ligou o termo à busca dos prazeres materiais. Foi Demócrito (460-370 a. C.) que considerou a matéria composta por uma infinidade de átomos, ao passo que preconizava a busca da felicidade pela moderação dos desejos. (N.T.)
[6]. Órion ou Orionte foi um caçador de grande beleza, morto por Diana e transformado na grande constelação localizada no equador celeste, que pode ser vista igualmente nos dois hemisférios. A nebulosa de Órion foi avistada pela primeira vez em 1659 e contém seis grandes estrelas encerradas em uma vasta luminosidade. (N.T.)
[7]. "Perdeu, desde a antiguidade, o som da primeira letra." Em latim no original. (N.T.)
[8]. Moeda francesa de prata no valor de cinco francos. Mais adiante, o Metal de Argel referido é a alpaca, também chamado de Metal Branco, usado para talheres e objetos de arte. (N.T.) [9]. “Sagrado” (no sentido blasfemo de “maldito”), “diabo” e “meu Deus”. Em francês no original. (N.T.)
[10]. A inicial “M” que aparece no texto várias vezes antes de sobrenomes franceses é simplesmente abreviatura de “Monsieur”. (N.T.)
[11]. M. Jourdain é o principal personagem de O burguês gentilhomem de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), negociante enriquecido que se demonstra cada vez mais ridículo em seu desejo de elevar-se socialmente. Na cena em questão, ele manda buscar seu roupão “para escutar melhor a música”. (N.T.)
[12]. François Vidocq, 1775-1857, ex-condenado a trabalhos forçados, chegou a ser chefe de polícia de Paris. Suas Memórias inspiraram o personagem Vautrin, de Honoré de Balzac, 1799- 1850. (N.T.)
[13]. Alojamento de porteiro. Em francês no original. (N.T.)
[14]. Eu os administrava (ou seja, aceitava e me adaptava a eles). Em francês no original. (N.T.) [15]. Exagerado, excessivo, bizarro. Em francês no original. (N.T.)
[16]. Georges, barão de Cuvier, 1769-1832, cientista francês, pioneiro da antropologia e da paleontologia. (N.T.)
[17]. Tranças. Em francês no original. (N.T.) [18]. Bigode. Em italiano no original. (N.T.)
[19]. Rousseau – Nouvelle Héloise. (N.A.) O texto francês significa “de negar o que é e explicar o que não é”. Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778, escritor, compositor, filósofo e moralista francês. (N.T.)

Cronologia Edgar Allan Poe

1809 Boston. Nascido a 19 de janeiro.
1811 Richmond, Virginia. A mãe de Poe morre em dezembro, deixando três filhos pequenos aos cuidados de amigos. Edgar Poe é levado para a casa de John Allan, um comerciante de Richmond.
1815-1820 Londres. Frequenta academias clássicas na Inglaterra, enquanto Allan cuida de seus interesses comerciais.
1820-1825 Richmond. Os Allan retornam aos Estados Unidos em 1820. Poe é matriculado em duas academias de Richmond, onde se destaca em línguas, esportes e travessuras. Compõe diversas sátiras em verso, no formato de dísticos ou parelhas, todas perdidas atualmente, à exceção de “O, Tempora! O, Mores!” (Que tempos! Que costumes!).
1826 Charlottesville. Ingressa na Universidade de Virginia e se destaca em Línguas Românicas antigas e modernas (neolatinas). Perde dois mil dólares no jogo; Allan se recusa a pagar a dívida e retira Poe da universidade.
1827-1828 Boston e Charleston. Engaja-se no exército dos Estados Unidos sob o pseudônimo de “Edgar A. Perry ”, sendo designado para Fort Independence no porto de Boston. Nesse verão, vê impresso seu primeiro livro – um pequeno volume de menos de doze peças poéticas, Tamerlane and Other Poems, escritos “Por um Bostoniano”, o qual, além do trabalho que lhe dá o título, inclui poemas como “Dreams” (Sonhos), “Visit of the Dead” (A visita dos mortos), “Evening Star” (Estrela vespertina) e “Imitation” (Imitação), revisado como “A Dream Within a Dream” (Um sonho dentro de um sonho). Em novembro de 1827, a unidade de Poe é transferida para o sul dos Estados Unidos.
1829 Richmond, Filadélfia, e Baltimore. Em abril, algumas semanas após a morte da senhora Allan, Poe dá baixa do exército. Encontra um editor para uma edição levemente aumentada de seus poemas em Baltimore, onde vive por algum tempo com parentes. Em dezembro, Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems aparece, com o acréscimo de meia dúzia de novos trabalhos às versões revisadas dos poemas de Tamerlane, incluindo o irônico “Sonnet – To Science” (Soneto à ciência), o burlesco “Fairy -Land” (O país das fadas) e um “Preface” em verso (que posteriormente foi expandido para originar uma “Introduction” meio séria, meio cômica para a edição de 1831 dos poemas; e, ainda mais tarde, reduzido para “Romance”).
1830 West Point. Ingressa na Academia Militar de West Point. Novamente se destaca em línguas. Torna-se conhecido entre os cadetes por seus versos cômicos a respeito dos oficiais. Enquanto isso, John Allan se casa novamente e descobre uma carta em que Poe comenta que “O sr. A. não se encontra muito frequentemente sóbrio” (datada de 3 de maio de 1830), que serve de motivo para que corte relações com Poe.
1831 Nova York e Baltimore. Não recebendo mais a mesada de Allan, Poe dá um jeito de “desobedecer ordens” (aparentemente sem envolver nada mais sério que faltar a aulas ou deixar de ir aos serviços religiosos) e deste modo obtém baixa do exército. Poems: Second Edition, agora sob o nome de “Edgar A. Poe” é publicado em Nova York nessa primavera. Inclui extensas revisões de “Tamerlane”, “Al Aaraaf” e outros de seus primeiros poemas, do mesmo modo que meia dúzia de composições novas: “To Helen”, “Israfel”, “The Doomed City ” (A cidade condenada) que foi posteriormente revisado como “The City in the Sea” (A cidade do mar), “Irene” (posteriormente revisado como “The Sleeper” – A adormecida), “A Paean” (revisado como “Lenore”) e “The Valley Nis” (revisado como “The Valley of Unrest” – O vale da inquietação). O volume também inclui uma introdução em prosa, intitulada “Letter to Mr. -”, que expõe uma visão da arte altamente romântica. Passa a viver com sua tia, Maria Clemm, e sua prima, Virginia, em Baltimore. Submete vários contos a um concurso anunciado pelo jornal Philadelphia Saturday Courier.
1832 Baltimore. O Courier publica cinco de seus contos satíricos ou burlescos a intervalos regulares, entre janeiro e dezembro: “Metzengerstein”, “The Duke de L’Omelette”, “A Tale of Jerusalem”, “A Decided Loss” (Uma perda inegável), primeira versão de “Loss of Breath” (Perda de respiração); e “The Bargain Lost” (O negócio gorado), primeira versão de “Bon-Bon”.
1833-1834 Baltimore. No verão de 1833, Poe apresenta outro conjunto de contos em um concurso patrocinado pelo Baltimore Saturday Visiter; estes são a primeira série de uma coleção de paródias que nunca chegou a ser publicada. Poe pretendia intitulá-la The Tales of the Folio Club, que nesta ocasião incluíam, além das cinco histórias publicadas no Courier, “Some Passages in the Life of a Lion” (depois “Lionizing”) (Algumas passagens da vida de um leão – depois Celebridade); “The Visionary ” (depois revisado como “The Assignation” – A atribuição); “Shadow” (Sombra); “Epimanes” (depois “Four Beasts in One” – Quatro feras em uma); “Siope” (mais tarde, “Silence”); e “MS. Found in a Bottle” (Manuscrito encontrado em uma garrafa). Este último ganha o primeiro prêmio de cinquenta dólares, enquanto “The Coliseum” recebe o segundo lugar na competição de poesia; ambos são impressos pelo Visiter em outubro de 1833. Vende “The Visionary ” para a revista Godey’s Lady’s Book, onde aparece em janeiro de 1834, sendo a primeira publicação de Poe em uma revista de ampla circulação. Em março de 1834, morre John Allan, omitindo qualquer menção a Poe em seu testamento.
1835 Richmond. Passa a colaborar no jornal Messenger em março; envia grande número de trabalhos para suas páginas durante esse ano: diversos poemas, a primeira parte de um drama em versos, Politian; e cinco contos novos, o gótico “Morella”, o gótico-burlesco “Berenice”, o cômico “Hans Phaal”, o satírico “King Pest” e o pseudogótico “Shadow” (Sombra). Além disso, escreve uma coluna sobre eventos literários correntes e faz mais de trinta revisões de livros. Entre as revisões, encontra-se uma demolição da novela Norman Leslie, de autoria de Theodore S. Fay . Estas revisões, combinadas a seus ataques constantes às “cliques literárias” nortistas, começaram a granjear para Poe o título de “Tomahawk Man” (O homem da machadinha). A circulação do Messenger subiu dramaticamente. Enquanto isso, de Baltimore, Maria Clemm sugere que Virginia pode passar a morar com um de seus primos e Poe prontamente escreve para pedir a mão de Virginia em casamento. Em setembro, ele retorna a Baltimore, ocasião em que pode ter casado secretamente com ela. Em outubro, Poe traz Maria Clemm e Virginia para Richmond. Em dezembro, White, o proprietário do jornal, oferece a Poe o cargo de editor do Messenger, que agora goza de plena prosperidade.
1836 Richmond. Em maio, Poe casa-se publicamente com Virginia Clemm, que ainda não completou quatorze anos. Seu trabalho constante para tornar o Messenger uma das mais importantes publicações de crítica literária é indicado pelo grande número de revisões que ele escreve para serem publicadas nele – mais de oitenta. Entre estas se encontra outra sátira flamejante, a revisão da novela Paul Ulric, de Morris Matson; outras revisões incluem, além de ataques contra escritores presentemente esquecidos, duas revisões louvando os primeiros trabalhos de Dickens, além de exercícios sobre definição crítica.

1837-1838 Nova York e Filadélfia. Disputa com White por considerar baixo o seu salário, em janeiro de 1837; pede demissão do Messenger e leva sua pequena família para Nova York. Passa os dois anos seguintes como contribuidor independente em Nova York e Filadélfia, antes de conseguir outro cargo de editor. Publica poemas e contos, incluindo a história cômica “Von Jung the My stic”, o conto gótico “Ligeia” e as duas histórias satíricas que formam um conjunto, “How to Write a Blackwood Article” (Como escrever um artigo de Blackwood)[1] e “The Scy the of Time” (A foice do tempo), mais tarde reintitulada “A Predicament” (Uma situação embaraçosa). Em julho de 1838, sua única novela, O relato de Arthur Gordon Pym,[2] que tinha sido publicada em forma de seriado no Messenger, durante o ano de 1837, agora é publicada em Nova York, sob formato de livro.
1839 Filadélfia. Relaciona-se com William Burton e, em maio, torna-se editor associado da revista Burton’s Gentleman’s Magazine, contribuindo com um artigo assinado por mês, além de escrever a maior parte das revisões de livros. Suas primeiras contribuições incluem o conto satírico “The Man That Was Used Up” (O homem que foi consumido) e os contos góticos “The Fall of the House of Usher” e “William Wilson” (ambos publicados neste volume). Envolveu-se na redação de um livro-texto de caráter duvidoso, The Conchologist’s First Book (O primeiro livro do conquiliologista), de autoria de Richard James Wy att.
Começa sua primeira série de soluções de criptogramas na revista Alexander’s Weekly Messenger.
1840 Filadélfia. Publica Tales of the Grotesque and Arabesque, reimpressão de vinte e quatro de seus contos, com a adição de uma história cômica ainda não publicada, “Why the Little Frenchman Wears his Hand in a Sling?” (Por que o francesinho usa uma tipoia?). Discute com William Burton e é demitido. Em um esforço para fundar sua própria revista literária, ele distribui uma circular denominada “Prospectus for The Penn Magazine”, mas não obtém apoio financeiro suficiente. Publica “Sonnet – Silence”, o conto satírico “The Businessman” (O comerciante) e o texto apócrifo que intitulou “The Journal (O diário) of Julius Rodman”. Em novembro, Burton vende sua revista para George Graham, que a unifica com sua própria revista, The Casket (O ataúde) para formar a Graham’s Magazine. Apesar de sua discussão com Poe no início do ano, aparentemente Burton o recomenda a Graham e, em dezembro, Poe contribui com o conto gótico “The Man in the Crowd” (O homem da multidão) para o primeiro número da “nova” revista.
1841 Filadélfia. Torna-se editor associado de Graham’s. Contribui com a história de raciocínio detetivesco, “The Murders in the Rue Morgue” (Os assassinatos da rua Morgue); a aventura gótica “A Descent into the Maelström” (Descida ao redemoinho ou Descida ao Maelström); o idílio soturno “The Island of the Fay ” (A ilha da fada); o irônico “Colloquy of Monos and Una”; e o satírico “Never Bet the Devil Your Head” (Nunca aposte sua cabeça com o Diabo). Continua a publicar em outras revistas, notadamente “Eleonora”, em The Gift, ao passo que, em um artigo publicado pelo Saturday Evening Post, prediz com acurácia o desfecho de Barnaby Rudge, novela de Dickens, a partir do primeiro capítulo.
1842 Filadélfia. Em janeiro, Virgínia sofre uma hemorragia, primeiro sinal sério de uma doença que levará sua vida cinco anos depois. Poe encontra-se com Dickens. Demite-se da revista Graham’s depois de uma disputa sobre privilégios editoriais. Trabalha em uma nova coleção de histórias em dois volumes, em que obras cômicas são cuidadosamente alternadas com trabalhos sérios, a ser intitulada Phantasy-Pieces, em imitação do livro alemão Phantasiestücke, que nunca chega a ser publicado.[3] No outono, publica “The Pit and the Pendulum” (O poço e o pêndulo); “The Landscape Garden” (O jardim formal) e “The My stery of Marie Roget”.
1843 Filadélfia. Passa a colaborar na nova revista de James Russell Lowell, The Pioneer (O pioneiro), publicando em suas páginas “Lenore”, “The Tell-Tale Heart” (O coração denunciador) e um ensaio sobre versos ingleses (que mais tarde se torna “The Rationale of Verse” – Os fundamentos lógicos do verso). Todavia, a revista só publica três números e Poe novamente tenta estabelecer uma revista independente, que desta vez se deveria chamar The Stylus, e falha de novo. Em junho, “The Gold Bug” (O escaravelho de ouro) ganha um prêmio de cem dólares oferecido pelo Dollar Newspaper, de Filadélfia, que é amplamente reimpresso. Encorajado pelo sucesso imediato dessa história, Graham começa a “publicação em partes” de The Prose Romances of Edgar A. Poe, cujo primeiro número apresenta o conto sério “The Murders in the Rue Morgue” juntamente com o cômico “The Man That Was Used Up”. No outono, o conto gótico “The Black Cat” (O gato preto) é seguido pelas histórias cômicas “The Elk” (O alce) e “Diddling Considered As One of the Exact Sciences” (A trapaça considerada como uma ciência exata). Começa um circuito de conferências em novembro, com o tema “Poets and Poetry in America”.
1844 Filadélfia e Nova York. Continua suas conferências sobre a poesia americana, ao mesmo tempo que contribui para grande variedade de revistas. Notáveis são a história cômica “The Spectacles” (Os óculos) e o conto de ocultismo “The Tale of the Ragged Mountains” (Conto das montanhas escarpadas). Consegue um emprego como redator no New York Evening Mirror e transfere sua família para Nova York, notabilizando sua chegada com uma fraude jornalística que alcança pleno sucesso no New York Sun, sobre uma pretensa viagem de balão através do Atlântico. Continua a publicar prolificamente em grande variedade de revistas e jornais as histórias tragicômicas: “The Premature Burial” (O funeral prematuro); “Mesmeric Revelation” (Revelação hipnótica) e “The Oblong Box” (A caixa comprida) e a sátira cômica “The Angel of the Odd” (O anjo da estranheza), que são seguidas pela peça de raciocínio “The Purloined Letter” (A carta roubada), seguida, por sua vez, por “Thou Art the Man” (Tu és o homem), uma paródia do gênero das histórias de detetive que ele tinha popularizado, se é que não foi seu inventor, durante os últimos três anos. Veio depois “The Literary Life of Thingum Bob”, uma sátira sobre Graham e outros editores. Em dezembro, ele começou a coluna Marginalia (Notas à margem) na Democratic Review, uma série contínua de comentários breves e aleatórios sobre leitura, escrita e os caprichos da vida.
1845 Nova York. Em janeiro, aparece “The Raven” (O corvo) no Evening Mirror. Continua sua turnê de conferências. Publica as histórias satíricas “The Thousand and Second Tale of Scheherazade” (A milésima-segunda história de Scheherazade) e “Some Words with a Mummy ” (Algumas palavras com uma múmia), seguidas pelo conto “filosófico”, “The Power of Words” (O poder das palavras) e o tragicômico “Imp of the Perverse” (O demônio da perversidade, neste volume). Passa a colaborar com a Broadway Journal. Reimprime nela muitos de seus poemas e contos, do mesmo modo que contribui com mais de sessenta revisões ou ensaios literários. Começa a “Little Longfellow War” (A pequena guerra com Longfellow), uma série de cinco artigos em que acusa de plágio Longfellow, uma das figuras literárias mais populares em sua época. Em junho, Evert Duy ckinck escolhe doze das histórias de Poe e as publica através da firma nova-iorquina Wiley and Putnam, sob o título de Tales. Em outubro, continuando suas conferências e leituras ao público, Poe lê “Al Aaraaf”, no Liceu de Boston, apresentando a peça, por brincadeira, como sendo de outro autor. Enquanto isto, os editores da Broadway Journal tinham se desentendido, o que levou Poe a pedir grandes somas emprestadas a seus amigos, de modo que, finalmente, se bem que por um período breve, se torna proprietário e editor de sua própria revista. Continua a publicar em diversas outras revistas; notavelmente, “The Sy stem of Dr. Tarr and Prof. Fether” e o tragicômico “Facts in the Case of M. Valdemar” (Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar). No final desse ano, Wiley and Putnam publicam The Raven and Other Poems (O corvo e outros poemas).
1846 Nova York. Durante o inverno, uma doença força Poe a interromper a publicação da Broadway Journal, que havia sofrido prejuízos durante o ano de 1845. Contribui com o conto tragicômico “The Sphinx” (A esfinge) e o ensaio semissarcástico “Philosophy of Composition” para outras revistas. Começa em maio “The Literati of New York City ” na Godey’s, uma série de esboços levemente satíricos de escritores nova-iorquinos
bem-conceituados, inclusive Thomas Dunn English, que publica uma réplica encolerizada no Evening Mirror. Poe faz a tréplica em julho e, ao mesmo tempo, processa o Mirror, que havia impresso diversos outros ataques à sua pessoa. Embora ele vença o processo de difamação em fevereiro seguinte, Godey encerra a coluna após seu sexto artigo, publicado em novembro. Poe conclui o ano com “The Cask of Amontillado” (O barril de amontillado).
1847 Nova York. Em janeiro, morre Virginia, o que introduz o ano menos produtivo de Poe, durante o qual ele sofre de profunda depressão e busca socorro na embriaguez. Tudo quanto ele completa, além de versões atualizadas da revisão da obra de Hawthorne, publicada anteriormente em 1842, e de “The Landscape Garden”, são dois poemas: um deles “M. L. S.”, dedicado a Marie Louise Shew, a mulher que cuidou de Virginia nos últimos estágios de sua doença; e o outro, “Ulalume”, publicado em dezembro.
1848 Nova York. Em fevereiro, faz uma conferência intitulada “The Universe”, na New York Society Library , um ensaio sobre o princípio da morte e da aniquilação como parte dos desígnios do Universo, que ele revisa para publicação em formato de livro no mês de julho como Eureka. Tenta uma série de ligações românticas: com Marie Louise Shew no princípio do ano; com Annie Richmond, na metade; e com Sarah Helen Whitman, no final do ano. A sra. Whitman, uma viúva, noiva com Poe durante um breve período, mas logo rompe o noivado. No outono, em profunda depressão, ele pode ter tomado uma grande dose de láudano. Enquanto isso, “The Rationale of Verse” é publicado, juntamente com um segundo poema, “To Helen” (dedicado a Helen Whitman). Em dezembro, ele lê “The Poetic Principle” como uma conferência em Providence.
1849 Nova York, Richmond e Baltimore. Embora ele continue a contribuir para grande variedade de revistas, neste período seu principal publicador é o Flag of Our Union, de Boston, um semanário bastante popular. Ali ele publica três poemas, de março a julho, incluindo o irônico “Eldorado” e “For Annie”. Também publica quatro contos, o tragicômico “Hop-Frog” (publicado neste volume); a falsa reportagem sobre a Corrida do Ouro, “Von Kempelen and His Discovery ”; a sátira “X-ing a Paragrab”; e o idílico “Landor’s Cottage” (A cabana de Landor). No verão, passa dois meses em Richmond, onde propõe casamento a Sarah Elmira Roy ster Shelton, sua namorada de infância (agora viúva) e aparentemente é aceito. Vai a Baltimore no final de setembro, onde parece ter se entregado a uma bebedeira contínua. Foi encontrado semiconsciente em frente ao local em que funcionava uma seção eleitoral, no dia três de outubro. Morre na manhã de domingo, dia sete de outubro, de “congestão cerebral” – uma lesão do cérebro, talvez complicada por uma inflamação intestinal, um coração enfraquecido e diabetes. Sua morte é seguida pelo afrontoso e ofensivo aviso de óbito, escrito por Griswold, e pela publicação de dois de seus mais belos poemas, ambos tratando do triunfo final da morte: “Annabel Lee”, no dia nove de outubro, e “The Bells” (Os sinos), no princípio de novembro


[1]. Refere-se a William Blackwood, 1776-1834, editor escocês. (N.T.) [2]. Publicada sob o nº 7 da Coleção L& PM Pocket. (N.T.)
[3]. Peças de fantasia ou Peças fantásticas. (N.T.)

Texto de acordo com a nova da ortografia.

Título original: Murders in the Rue Morgue and other stories Tradução: William Lagos
Capa:Ivan Pinheiro Machado Revisão: Jó Saldanha e Renato Deitos
P743a

Poe, Edgar Allan, 1809-1849.
Assassinatos na rua Morgue e outras histórias/ Edgar Allan Poe; tradução de William Lagos. – Porto Alegre : L& PM, 2011.

ISBN 978-85-254-2265-1

1.Ficção norte-americana-contos policiais. I.Título. II.Série CDD 813.872
CDU 820(73)-312.4
Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329.

© da tradução, L& PM Editores, 2002

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Os Assassinos da Rua Morgue (1932)




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