Helder Gomes, 18/02/2022
Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).
Desde que começaram as inundações e os deslizamentos, provocados pelas chuvas dos últimos meses, em várias partes do mundo, me incomodo com a frequência dos comentários acerca da ação humana sobre o meio ambiente. Digo, de antemão, que não integro nenhuma das várias alas de céticos/as do clima, muito ao contrário, tenho me preocupado muito com as mudanças climáticas que posso observar, mas, penso que temos que ter cuidado no uso da temática sobre o Antropoceno.
Usei o termo como descritor na Internet e cheguei a um artigo do doutor em Demografia, José Eustáquio Diniz Alves, publicado na revista EcoDebate, em 10/01/2020, a partir do qual pude perceber a gravidade da difusão da ideia de que “O egoísmo, a gula e a ganância humana provocam danos irreparáveis e um ecocídio generalizado, que pode se transformar em suicídio”.
Chamo a atenção neste breve texto para dois descuidos, ou artifícios, dependendo da origem, muito comuns no tratamento desse tema: o uso de análises baseadas no comportamento observável de um indivíduo egoísta e ganancioso isolado e/ou o uso de um ser humano genérico devastador por sua própria natureza. O que fica de lado nessas duas concepções, ou métodos de análise, tem sido exatamente o que é essencial, qual seja, que a devastação ecológica tem sido fruto da ganância capitalista, portanto, determinada historicamente num modo de produção predatório.
É interessante, inclusive, que o artigo citado acima mostra dados que motivam o autor a afirmar que “O Antropoceno é uma Era sincrônica à modernidade urbano-industrial”. Mas, mesmo assim, me parece que a análise que ele oferece não aponta o que é fundamental, ou seja, que não há saída, dentro da ordem do capital, para as ameaças apontadas no texto. Dito de outra forma, se houver alguma chance de reverter o colapso ambiental que o autor afirma ser iminente, certamente ela pressuporá a superação do capitalismo por uma forma superior de sociabilidade.
Identifico essa limitação na forma generalizante que Diniz Alves parece colher de Paul Crutzen (Prêmio Nobel de Química de 1995), o qual, na virada para o século XXI, afirmava que os indicadores sobre o efeito destrutivo das “atividades humanas sobre a natureza” o levavam à conclusão de que a terra estaria numa nova era geológica: o Antropoceno.
Qual o risco dessas generalizações acerca da “ação humana”? Dois trechos do texto de Diniz Alves podem ilustrar o meu argumento. De um lado, o autor afirma que “A solução mais simples e barata para evitar o aquecimento global seria o aumento da cobertura vegetal do mundo para funcionar como absorvedores de carbono” e, de outro, conclui que “não é despropositado supor que o Antropoceno – época da dominação antrópica – possa ser também o começo do fim da Era humana”.
Se ao contrário de tratar o fenômeno como “dominação antrópica”, o autor o concebesse como dominação capitalista, poderia refletir melhor sobre as motivações que efetivamente estão por trás da devastação ecológica, ao contrário de simplesmente denunciar “que os seres humanos estão destruindo 15 bilhões de árvores por ano, enquanto o aparecimento de novas árvores e o reflorestamento é de somente 5 bilhões de unidades”.
A dominação capitalista possui um comando, cada vez mais centralizado e de caráter autoritário. Basta ver quantos são os/as convidados/as para o Fórum Econômico Mundial de Davos. Se existe um déficit de 10 bilhões de árvores por ano, este não pode ser atribuído nem ao egoísmo, nem à gula e muito menos à ganância de quem compõe o 99% dos aproximadamente 7,8 bilhões de seres humanos existentes no planeta hoje. Esse contingente não participa de qualquer decisão relevante e se apropria de uma mísera parcela dos resultados da lógica de acumulação de riquezas vigente.
Não se discute anualmente em Davos como os bravos e responsáveis proprietários e gerentes do capital acabarão com a fome que se alastra sem controle pelo mundo, portanto, o crescente número de famílias famintas não pode ser responsabilizado pelo desmatamento desenfreado que assola o planeta, em favor da expansão da produção de gado, de soja, de eucalipto, de minérios de todo tipo etc. etc.
É preciso compreender melhor o momento em que vivemos. Estamos numa era do desespero, em que a ganância capitalista encontra graves dificuldades de legitimação ante a crise econômica mundial, que se estende por mais de 5 décadas, exigindo a retomada, agora em larga escala, das marcas herdadas do antigo regime de acumulação violenta, aquele mesmo que vigorou no Antigo Regime Colonial. Ao contrário do que pregam as agências difusoras da propaganda em torno da Economia Verde, a ação efetiva do capital em crise sobre o meio ambiente está impondo a retomada da grilagem de terras, impondo a desregulação das normas de proteção ambiental e, também, de proteção social das comunidades tradicionais, continuamente expulsas das terras ancestrais, assim como das famílias segregadas nas favelas, ambas vítimas prioritárias do processo de genocídio em curso em várias partes do mundo.
Parece nítido que o papo aqui é uma questão de método, mas, não se trata apenas de propor uma forma alternativa de interpretar o mundo e, sim, de refletir sobre as condições objetivas de efetivamente transformá-lo, o que requer evitarmos as armadilhas que nos mantêm presos à mera contemplação.
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