Vai ter guerra na Amazônia
Claudio Angelo, 21 de Fevereiro de 2022
No fim do ano passado tive o privilégio duvidoso de passar quase 20 dias viajando pela Amazônia. Desci a BR-163 de Santarém até Castelo dos Sonhos, no Pará, e na volta percorri a Transamazônica de Itaituba, a capital brasileira do ouro ilegal, até Altamira. Estava acompanhado de Tasso Azevedo, um dos arquitetos das políticas que levaram à queda do desmatamento entre 2005 e 2012 e, em alguns trechos, da jornalista Giovana Girardi, que cobre meio ambiente há mais tempo do que ela gosta de admitir.
Em todos os lugares, mas especialmente no sul do Pará, me senti no famigerado putsch de 7 de setembro na Esplanada. Em Novo Progresso, cidade que come, bebe e respira crime ambiental, era difícil encontrar um estabelecimento comercial ou uma porteira de fazenda sem uma bandeira do Brasil na fachada. Adesivos do “mito” adornavam carros. Uma loja de caça e pesca exibia orgulhosa banners de “não é pelas armas, é pela liberdade”. Para andar sozinho sem despertar suspeitas, colei um adesivo de “Bozo 2022” na mochila, mas na porta do hotel Tasso logo me avisou da futilidade do esforço: “Você é a única pessoa de máscara na cidade, todo mundo vai saber que você é de fora”.
Novo Progresso está vivendo seu grande momento. Em seus restaurantes lotados, onde uma pizza é vendida a 130 reais, em suas concessionárias de pás carregadeiras e lojas de motosserras, em seus silos e frigoríficos, tudo recende a um lugar onde está correndo dinheiro. Dinheiro de garimpo clandestino, de venda de terra grilada, de gado criado dentro de uma área protegida vizinha à cidade, de soja colhida onde antes era o gado e antes do gado era o grilo e antes do grilo era a mata. Novo Progresso e as vizinhas Castelo dos Sonhos (um distrito de Altamira), Trairão e Itaituba reelegerão Jair Messias Bolsonaro por larga margem em outubro deste ano.
Bolsonaro deu a essas e outras cidades amazônicas exatamente o que prometera na campanha e o que elas sempre desejaram: liberdade total. Seu governo arrancou o superego do chamado “setor produtivo” ao assegurar que o Estado, na forma do Ibama, da Polícia Federal, da Agência Nacional de Mineração e outras, não mais perturbaria o trabalho honesto e suado dessas pessoas de bem. Em janeiro deste ano, gabou-se do serviço bem feito ao dizer que “reduzimos em 80% (sic) as multagens (sic)” no campo.
Embora a redução não tenha sido de 80% (por que Bolsonaro não mentiria sobre isso também?), todos os indicadores de desempenho do Ibama em sua gestão, ano após ano, são os piores das últimas duas décadas. O governo disponibiliza dinheiro para a fiscalização ambiental como um decoy. Enquanto a imprensa e John Kerry perseguem o fetiche dos recursos, o governo os disponibiliza, mas garante que eles não servirão para nada. O homem amazônico da fronteira ganhou segurança para fazer o que faz de melhor desde a década de 1970: privatizar terras públicas, incorporando sua madeira, os nutrientes de seu solo e seus minérios.
À primeira vista, Novo Progresso é a própria realização da visão de Paulo Guedes de um mundo onde o setor privado opera sem travas, sem regulações e sem o dedo do Estado. Quem chegar primeiro leva, escolhe-se entre ter emprego e ter direitos e frequentemente “meritocracia” se mede pela quantidade de balas no revólver. O problema é que, como toda utopia anarcocapitalista, essa também tem muito de “anarco” e pouco de “capitalista”. A economia da fronteira amazônica só prospera porque é enormemente subsidiada. A terra é de graça; os nutrientes do capim que engorda o boi são de graça; e os efeitos climáticos do desmatamento, a mãe de todas as falhas de mercado, não são abatidos do preço da arroba de carne nem da saca de soja. A conta quem paga é você a cada enchente em Itabuna, cada deslizamento em Franco da Rocha e cada seca que esgota a energia das hidrelétricas do Centro-Sul. Para os homens (porque são quase sempre homens) de bem da Amazônia, the mamata never ends. E a teta nunca foi tão generosa quanto na era Bolsonaro. E é por isso que em 2023, não se engane, a floresta vai entrar em guerra.
Com a possibilidade felizmente cada vez mais plausível de o facínora perder a eleição, o próximo presidente vai precisar fazer uma escolha muito difícil sobre a Amazônia. Pode deixar tudo como está, com a economia de metade do território entregue ao crime organizado. Ou pode intervir. E aí o bicho vai pegar.
Porque qualquer intervenção que se faça para conter o ecocídio e o etnocídio em curso na Amazônia necessariamente terá de envolver a volta do Estado por meio de ações pesadas de comando e controle. As grandes investigações do Ibama e da PF, com prisões de funcionários públicos, apreensão de gado, embargo de fazenda de deputado e queima de equipamento de amigo de senador, terão de voltar a ser rotina. O finado Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, que vigorou de 2004 a 2019, vai ter de fazer um retorno triunfal. E o “setor produtivo” vai precisar voltar a ter medo de satélite.
Se o eleito for Luiz Inácio Lula da Silva, essa responsabilidade será redobrada. Em seu governo começaram a ser adotadas as medidas que levaram à queda do desmatamento (que ele próprio passou a torpedear depois, mas essa é outra história). Lula, que andou visitando os chefes de governo climaticamente conscienciosos da Europa, sabe que um choque de gestão ambiental com drástica redução do desmatamento é a primeira medida a ser adotada para que o Brasil seja novamente aceito à mesa da comunidade internacional.
Nada disso vai acontecer com o Exército gastando meio bilhão de reais para distribuir panfletos educativos aos bandidos ou com o governo pedindo moderação à turma da motosserra. Há três anos eles estão com a chave da adega e um passe livre no Bahamas; não serão simplesmente persuadidos a ficar sóbrios e castos só porque o filme do Brasil está queimado e o planeta está tostando. Haverá, anote, bloqueios de rodovia, passeatas, atentados a escritórios do Ibama, veículos queimados, agentes alvejados. O helicóptero do órgão ambiental incendiado dentro de um aeroclube em Manaus em janeiro foi só um aperitivo do que vem por aí. Para citar apenas um exemplo, há um CAC (clube de atiradores, esse instrumento da milicianização oficial do país) sendo construído no meio do nada numa fazenda em Castelo dos Sonhos a 40 quilômetros de uma terra indígena. Ninguém faz uma coisa dessas num lugar desses para treinar atletas para a Olimpíada de Paris.
Haverá pressão total de prefeitos e parlamentares locais sobre governadores recém-eleitos e do Centrão sobre o Planalto para um enorme “deixa disso”, um acordo “com Supremo, com tudo” para mudar a legislação ambiental e “pacificar de vez” o campo. Foi esse o papo usado em 2010 para mudar o Código Florestal, em 2012, o que não apenas não pacificou coisa alguma como pôs fim ao ciclo virtuoso de queda na devastação da Amazônia.
O próximo ocupante do Palácio do Planalto terá de chegar a Brasília em janeiro com tampões no ouvido e amarrado ao mastro para não sucumbir ao canto de sereia da flexibilização das leis. Ao mesmo tempo, terá de estar preparado para uma reação violenta de patriotas armados a qualquer plano sistemático para reduzir as taxas de desmatamento. Bolsonaro pode até ir embora, mas o bolsonarismo criou raízes na floresta e não vai largar o osso fácil. Dois mil e vinte e três será um ano tenso, ruidoso e possivelmente sangrento na Amazônia.
.............
Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.
Longe da Ucrânia, pense Amazônia
Farra bolsonarista com armas de fogo municia batalhão Azov da floresta
Marcelo Leite, 26/02/2022
O Estado perderá de vez o controle de metade de seu território, assim como cedeu o domínio dos morros e periferias para traficantes ou milícias. Saldo vergonhoso para a chusma de militares que tomou Brasília e passara décadas fantasiando a perda de soberania sobre a Amazônia para potências estrangeiras.
O mundo está de olho na Ucrânia, e com razão. Mas a ex-república soviética invadida a mando do ex-KGB Vladimir Putin fica muito distante, e aqui mesmo há um conflito em gestação no ovo de serpente deitado por militares brasileiros na Amazônia. O alarme foi acionado por Claudio Angelo, jornalista que mais entende de clima e floresta amazônica, no artigo "Vai ter Guerra na Amazônia". E o clima na floresta amazônica é mesmo de confronto.
Não de hoje, claro. Quem já passou por Novo Progresso (PA), na BR-163, como este colunista sete anos atrás, sabe que a atmosfera lá sempre foi irrespirável para agentes do Ibama, ambientalistas e repórteres, com a fumaça do desmatamento e o cheiro de chumbo no ar.
Angelo andou pela região no final de 2021. Assim descreve o ambiente: "[Na] cidade que come, bebe e respira crime ambiental, era difícil encontrar um estabelecimento comercial ou uma porteira de fazenda sem uma bandeira do Brasil na fachada".
Na mesma época circulei por áreas de cerrado e de transição desse bioma com a Amazônia. Na entrada de cada latifúndio pendia um pavilhão nacional, a testemunhar que o prestígio de Jair Bolsonaro segue alto no ogronegócio. Já se disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Atualizando a máxima, seria o caso de dizer que no Brasil, hoje, é o derradeiro reduto dos canalhas armados.
Ninguém ignora que ruralistas figuram entre os interessados na esbórnia em que Bolsonaro transformou o acesso a armas e munições, assim como seu controle pelo Estado. Com a cumplicidade do Exército, que faz vista grossa diante da proliferação de arsenais particulares, alguns deles a abastecer o crime organizado. Fazendeiros gostam de posar de vigilantes e caçadores, álibi para acumular armas de fogo. E se acostumaram ao vale-tudo fundiário e ambiental fomentado pelo presidente que enverga gravata com fuzis e seu comparsa Ricardo "Boiada" Salles.
Qualquer presidente que se escolha em 2022 (e não seja Bolsonaro) terá
de retomar o estado de direito nessa metade do Brasil em que garimpeiros
são tolerados quando invadem terras indígenas, enlameiam o mais lindo
rio amazônico (Tapajós) e incendeiam helicópteros do governo federal. Mais dia, menos dia, Brasília terá de reciclar medidas como as que derrubaram as taxas de desmatamento entre 2005 e 2012, nos governos Lula e Dilma, após explosão nos anos iniciais da primeira administração petista.
Listas de municípios campeões de devastação, restrição de crédito, embargo de propriedades, moratória de produtos oriundos de áreas desmatadas — o que for. Caso contrário, o Estado perderá de vez o controle de metade de seu território, assim como cedeu o domínio dos morros e periferias para traficantes ou milícias. Saldo vergonhoso para a chusma de militares que tomou Brasília e passara décadas fantasiando a perda de soberania sobre a Amazônia para potências estrangeiras.
A soberania já era, e quem a açambarcou foi o inimigo interno. Não os comunistas que Bolsonaro e caterva apontam debaixo de camas de casal, carteiras escolares e escrivaninhas de postos de vacina, mas os extremistas impunes que ousaram sitiar o Supremo Tribunal Federal com suas carretas de grãos.
Pensando bem, são os inimigos internos só do país, não dos militares agachados diante de Bolsonaro. Destes seriam mais bem descritos como aliados — o batalhão Azov do cafundó, que não parece disposto a tolerar invasão de suas terras pela lei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário