domingo, 20 de fevereiro de 2022

O cinema e a propaganda na geopolítica

O cinema Chinês soou o clarim da guerra cultural

Renê Guedes

Com o colapso da União Soviética, os anos 90 prometiam um futuro promissor para os operadores políticos e militares do império. Foi uma época louca, de mudanças rápidas e brutais. O mundo parecia convergir para um ponto determinado, que aceitávamos sem maior reação. Aquilo que Fukuyama bradou como “O Fim da História” mudou a agenda política, social e econômica do mundo – em especial da esquerda ocidental.

O cinema industrial estadunidense, desobrigado das suas funções alienantes, desarmou – em partes – a mobilização de guerra criada na era Reagan. Não cabia mais rotular russos, em especial, como seres frios e desumanos. O Bêbado Yeltsin prostrava-se ante o ocidente, enquanto o império soviético ruía. Filmes estadunidenses do final dos anos 90 e começo dos 2000 apresentavam, então, russos quase infantis, tateando suas primeiras experiências capitalistas. Assistam o começo do filme “Náufrago (Cast Away)” – Ano 2000 | Dir.: Robert Zemeckis como exemplo acabado deste período.

O mundo geopolítico adormecera. A transição dos anos 90 para os 2000 prometia uma década de consumo e amenidades.

Mas tudo mudou com o 9/11. Passado o susto, os Estados Unidos se puseram em marcha. E seus grandes estúdios produziram, nos últimos 20 anos, uma infinidade de filmes comerciais, marcadamente oficiais, carregando nas tintas da nova ideologia americana, a “Guerra Contra o Terror”. Poucos filmes avaliaram criticamente este período. Com pouca resistência crítica de alguns realizadores e atores, Hollywood abraçou a militarização do seu cinema, sem muita precaução. Não, não esbarraram no pastiche patriótico de Rambos e Bradocks. Mas, ainda assim, o cinema estadunidense pôs-se em marcha.

Filmes como “Falcão Negro em Perigo (Black Hawk Down) – Ano 2001 | Dir.: Ridley Scott ou mesmo “Guerra ao terror (The Hurt Locker)” – Ano 2008 | Dir.: Kathryn Bigelow apresentaram as forças armadas como a reserva moral da nação. Discurso esse que se mostrou progressivamente perigoso, para o próprio sistema político estadunidense. Mas o desalento da ideologia americana vista através dos filmes é matéria para o outro texto.

O longo preâmbulo finalmente encontra o seu objetivo: lembrar o leitor da capacidade política e ideológica do cinema. E não precisamos nos lembrar de Eisenstein ou Leni Riefenstahl para entender o papel do cinema – e das artes, como um todo – complexo jogo geopolítico, e como se movimenta a indústria cultural dos países protagonistas. Ficou famosa a expressão “Soft Power” criada pelo acadêmico de Harvard, Joseph Nye. O intelectual descreve, em seu livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004)”, a forma como a política se apropria dos meios culturais – da indústria cultural propriamente dita – para o atingimento dos seus interesses específicos. O fenômeno, obviamente, não é novo. Mas, devidamente “fichado” por Nye, ele ganhou, nos últimos anos, contornos e empregos cada vez mais sofisticados. Toda uma nova forma de operar a política – interna e externa – foi ressignificada com o emprego dos estímulos culturais e potencializada pelas redes sociais. A primavera árabe, os levantes populares – jovens, na sua maioria – em países como Brasil, Turquia, Ucrânia, Hong-Kong…todos eles, insuflados, mais ou menos, por tecnologias ardilosas e por um sofisticado aparato cultural, composto por documentários, filmes, músicas ou qualquer outro estimulante cognitivo. Um verdadeiro arsenal psíquico, capaz de definir o sabor do vento da história em várias regiões e sociedades.

Exemplos? No documentário “Capacetes Brancos ( The White Helmets)” – Ano: 2016 | Dir.: Orlando von Einsiedel, seus realizadores mostram o cotidiano do pelotão de resgate sírio nas áreas ocupadas pelas forças insurgentes e contrárias à Damasco. Bem…eles são treinados na Turquia, esbravejam contra os ataques da força aérea russa – que apoia Assad – e verbalizam discursos de liberdade, em meio ao bravo serviço de resgate das áreas afetadas. O Filme ganhou o Oscar de melhor documentário daquele ano. Numa determinada cena do documentário, a câmera capta uma aeronave Russa mergulhando para atacar seu alvo. Ao fundo, escutamos os locais esbravejaram: “Covardes”. O apelo civil contra o horror dos ataques aéreos nos comove desde Guernica. Nada é mais violento e covarde do que o emprego de sofisticado engenho para atacar imprecisamente um alvo civil. É a pura lógica do horror selvagem.
Os versados em semiótica, comunicação e psicologia de massas, da engenharia social, poderiam escrever páginas e páginas sobre esse tema. Não me compete e não cabe aqui.

Voltemos ao cinema.

Russos e Chineses (em especial os primeiros), alvos presentes de caracterização rasteira dos filmes de ação do ocidente, organizam-se. Usam do vigor do seu aparato audiovisual para disputar o campo das narrativas nos mercados audiovisuais globais. Os Russos já colocaram seu arsenal fílmico em marcha, produzindo especialmente filmes de guerra, que exortam o sacrifício do povo russo na guerra patriótica (1940-1945). Produzem em escala semelhante à soviética, ainda que a qualidade dos mesmos não seja uniforme. Existem, no entanto, bons filmes, que podemos tratar por aqui oportunamente.
Mas o texto quer discutir a resposta chinesa, no mesmo nível das caracterizações ocidentais, superlativa e barulhenta. A China, discreta no campo geopolítico, a grande beneficiária da lógica de produção pós-queda do muro de Berlim, sempre evitou o conflito. O seu cinema médio – dedicado para o público interno e externo – centrava-se em grandes épicos e dramas históricos. Destaco Zhang Yimou (Lanternas Vermelhas; Herói; O Clã das Adagas Voadoras; Shadows etc) como um autor símbolo deste cinema. Existe também um cinema mais urbano, moderno, voltado para a China atual. Crítico quando possível. Cineastas como Wang Xiaoshuai (Bicicletas de Pequim; Sonhos com Xangai; Até Logo, meu filho etc)

E dentro deste ambiente cultural que expande sua influência – o mercado audiovisual Chinês já é o maior do mundo, superando o estadunidense, arrecadando cifras próximas a US$ 3 bilhões – existe um entendimento cada vez maior da elite política chinesa sobre o potencial do cinema como peça importante na complexa engrenagem das disputas globais.
E ai chegamos ao filme “A Batalha do Lago Changjin” (2021), a maior bilheteria de 2021, com uma arrecadação próxima ao Bilhão de dólar. O Filme apresenta uma leitura – oficial – muito particular e enviesada da participação Chinesa na Guerra da Coreia (1950-1953).

Com um orçamento próximo a US$ 200 milhões de dólares, a superprodução chinesa contou com o apoio oficial do PC Chinês – logística, apoio técnico, investimento. O Lançamento do filme se deu em meio às festividades do aniversário de cem anos do PC Chinês, e vários oficiais políticos e militares compareceram ao lançamento.

E o lançamento do filme se dá num momento de aumento de fervura dos canais diplomáticos e por uma verdadeira disputa de xadrez nos Oceanos Indico e Pacífico, onde as armadas chinesas – que cresce e dá saltos operacionais que assustam os estrategistas ocidentais – e estadunidenses se estudam em intrincados e perigosos jogos e simulações de poder militar.
O filme, em si, não traz nada de novo. Na verdade, apoia-se em efeitos especiais em demasia, que tornam o filme, em alguns momentos, pra lá de artificial. Ainda que o valor de produção seja facilmente percebido, a muleta da digitalização afeta a entrega da obra, ao menos no seu realismo e brutalidade, típicos de um filme de guerra contemporâneo. O filme é realizado pelos conhecidos cineastas Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam e estrelado pelo muito popular ator, Wu Jing.

O que chama atenção da obra é maneira caricata e panfletária como retrata os estadunidenses. As falas dos atores americanos soam artificiais, idem para as suas ações. O filme retrata os militares estadunidenses como arrogantes, apoiados pelo seu extraordinário aparato bélico. Em especial, seus aviões, que assumem uma forma quase monstruosa, dilacerando soldados chineses com fúria demoníaca. Poucas vezes os estadunidenses foram retratados de uma forma tão caricata. São retratados como vilões frios e arrogantes. E nós, aqui ao sul do Equador, não temos como esboçar um sorriso contido, como se estivéssemos assistindo uma travessura.

E aqui, entendemos o julgamento moral que o filme faz. A Tropa Chinesa, enviada por Mao para proteger a fronteira Chinesa – e o norte Coreano – de uma investida norte-americana, é a quintessência do soldado abnegado: pobre, orgulhoso, motivado e ciente da sua causa. As carências materiais dos soldados chineses são apresentadas com inconfesso orgulho. Soldados totais, que vencem qualquer obstáculo, quando tomados pelo senso patriótico. Numa cena, os chineses estão famintos e sob uma terrível tempestade de neve. Eles vão compartilhando suas poucas batatas. Sobe a trilha sonora que oferece um quadro sentimental e épico à cena. Corte para o acampamento americano, onde o soldados se empanturram de carne e cerveja.

Essa comparação de realidades reflete a moral da guerra moderna, onde o uso de aparatos tecnológicos para matar o inimigo, sem nenhuma chance de reação, e com poucos riscos, define a guerra assimétrica típica das últimas décadas. O filme não quer refletir densamente o tema, mas se utiliza, habilmente, dos códigos visuais aqui mencionados para estabelecer a superioridade moral do soldado chinês frente ao americano, crente na sua fé inabalável na guerra mecânica e asséptica.

Esse diálogo imagético, carregado de simbolismo, não é novo no cinema, obviamente. O roteiro, assinado por Jianxin Huang e Xiaolong Lan, é apoiado por quase todos os estereótipos dos filmes de guerra. Eles não estão interessados em questionar a racionalidade da Guerra, como Kubrick, ou a solidão existencial do soldado, como Fuller. Longe disso. O Filme é uma peça de propaganda política, envolta em ares de super produção, cheia de efeitos visuais e barulho entorpecente.

O Público chinês amou. Transformou o filme na maior bilheteria do cinema mundial 2021. Pouca importa a verossimilhança histórica.
O filme mostra, ao menos por hora, que o público médio chinês, não está interessado em críticas ao seu modelo político-econômico, ou aos personagens recentes da sua história. Por isso, a timidez de Hollywood para criticar a China. Nos anos 80, o encantamento com o modelo chinês , que contrastava com a depressão soviética, fez da China um lugar convidativo aos olhos e paladares ocidentais. Filmes como “O último Imperador”, de Bertolucci ou “O Império do Sol”, de Spielberg, retrataram a China em seus filmes como um lugar caótico e belo.

A ofensiva cultural chinesa foi posta em marcha. E a influência desse cinema de resposta e exaltação cresce na influência para além dos bastiões chineses no sul da Ásia.

Cada vez mais assistiremos a filmes assim. O Campo cultural também sentirá o peso da tensão geopolítica e, do seu modo, oferecerá respostas na mesma moeda, na longa batalha pela construção da narrativa que vai definir o curso do século XXI.

Publicado por Renê Guedes
Graduado em engenharia pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), pós-graduado em economia pela FEA-FIPE (USP), especialista em planejamento e execução estratégica pela Universidade de Grenoble e London Business School, cinéfilo por vocação e crítico de cinema. Vem ministrando aulas de Cultura Fílmica no Instituto de Cinema de São Paulo desde 2012, onde também atuou na organização e preparação de editais, além do envolvimento na produção de projetos audiovisuais e fundou o blog de crítica o “O beco do cinema”. Também estruturou cursos sobre cinema no SESC de São Paulo Ver todos os posts por Renê Guedes



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