sábado, 11 de maio de 2024

Enchentes no RGS e a politização

É preciso, sim, politizar a tragédia climática

Escolhas políticas estão na origem de eventos extremos, cada vez mais frequentes; discurso de não buscar culpados só ajuda a protegê-los

Por Bernardo Mello Franco, O Globo, 08/05/2024

Rua completamente alagada no bairro Navegantes, em Porto Alegre — Foto: Carlos Fabal/AFP

Não é hora de procurar culpados. Não se deve politizar a tragédia. Os chavões se repetem desde o início das enchentes no Rio Grande do Sul. Ajudam a encobrir erros, diluir responsabilidades, proteger quem se omitiu. Escolhas políticas estão na origem da emergência climática. Autoridades que negam a crise ajudam a agravá-la. Governantes que não investem em prevenção contribuem para ampliar os desastres.

O prefeito de Porto Alegre não aplicou um centavo no sistema contra enchentes em 2023. Sem manutenção, diques e comportas entraram em colapso. A água invadiu o centro histórico, tomou as ruas, deixou bairros submersos. No domingo, Sebastião Melo orientou os donos de casas de praia a se refugiarem no litoral. A sugestão não contemplou as famílias mais pobres, condenadas a buscar abrigos e entrar nas filas de doações.

O governador gaúcho patrocinou o desmonte da legislação ambiental do estado. Aprovadas em 2019, as mudanças afrouxaram as regras de licenciamento, liberaram o corte de árvores nativas, reduziram a proteção de rios e nascentes. Há menos de um mês, Eduardo Leite sancionou outra lei que permitiu a construção de barragens para o agronegócio em áreas de proteção permanente. Agora ele dá entrevistas de colete da Defesa Civil e pede um “Plano Marshall” para recuperar o que foi destruído.

O descaso com os riscos climáticos se estende à bancada federal do Rio Grande do Sul. Dos 34 congressistas gaúchos, só uma deputada destinou emendas para a prevenção de desastres este ano. O campeão de votos no estado pertence à bancada ruralista.

O momento é de resgatar e acolher as vítimas, mas medidas emergenciais não evitarão novos eventos extremos. As saídas, como sempre, dependem da política. E o discurso de não buscar culpados só ajuda a protegê-los.

Hoje os senadores devem votar um projeto que reduz de 80% para 50% a reserva legal na Amazônia. Se a boiada passar, os proprietários de terras poderão derrubar mais áreas de floresta. É uma receita certa para encomendar novas tragédias.


Leite mudou quase 500 normas ambientais em 2019; especialistas criticam gestão 

Governador do RS é apontado por ativistas como articulador do que chamam de desmonte; OUTRO LADO: gestão defende que alterações foram debatidas 

Jorge Abreu, FSP, 08/05/2024

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), alterou em torno de 480 normas do Código Ambiental do estado em seu primeiro ano de mandato, em 2019. A medida, sancionada em 2020, acompanhou o afrouxamento da política ambiental brasileira incentivada, à época, pelo então ministro Ricardo Salles, do MMA (Ministério de Meio Ambiente), no governo Bolsonaro.

Agora, em meio às enchentes no estado, ambientalistas criticam a gestão de Eduardo Leite e apontam o governador como o articulador, junto à Assembleia Legislativa, do que chamam de desmonte das leis estaduais de proteção ambiental.

Em nota, o governo do RS diz que a mudança do código teve, como base, discussões que envolveram sociedade e instituições, como a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). O Executivo afirma ainda que as catástrofes climáticas são uma tendência mundial, com ocorrências mais frequentes e intensas, sendo assim, não atribuíveis à atualização da lei. "A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação  aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável", diz, em nota.

O diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador.

Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa.

A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil. "O atual governador destruiu esse Código Ambiental. Nós pedimos debate com a sociedade, mas ele fugiu. Leite tem maioria na Assembleia Legislativa. O código era a maior obra-prima do consenso de um estado", critica o biólogo.

"No outro ano [2021], ele mudou a primeira lei de agrotóxicos do hemisfério sul do planeta [aprovada no começo dos anos 80]. Ele tirou o item mais importante dessa lei, que era o seguinte: nenhum agrotóxico pode ser licenciado no Rio Grande do Sul se não for licenciado no país de origem", ressalta.

Milanez critica também a sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais concentradas.

"O Rio Grande do Sul foi pioneiro na legislação ambiental e na própria luta em prol do meio ambiente no Brasil. E agora está fazendo o pior papel possível. Nesses últimos anos, nós estamos pagando a conta da destruição ambiental e ela se dá por várias formas."

Para Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de mais de cem organizações socioambientais, o desmonte vai além do governo estadual e da Assembleia Legislativa. Ele enfatiza a participação do Congresso Nacional no afrouxamento de políticas ambientais, com a contribuição de deputados federais e senadores eleitos pelo Rio Grande do Sul.

Astrini avalia que o Brasil vive duas ondas de prejuízos, uma delas na questão climática e a outra na mudança de legislação, que flexibiliza regras de proteção ambiental. Ele cita a liberação de construções em áreas que alagam e a eliminação de vegetação que poderia drenar a água e tornar o solo mais compacto. "Temos autoridades no país que estão trabalhando no sentido contrário àquilo que deveria ser feito. São pessoas que fazem projetos de lei para incentivar o desmatamento, para diminuir a capacidade de fiscalização e investimento, para reduzir operações de campo, para liberar cada vez mais áreas que beneficiam a grilagem de terras", afirma.

Astrini dá como exemplo o projeto de lei 3.729/2004, aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados, que flexibiliza normas e dispensa diversas atividades da obtenção do licenciamento ambiental, considerado um retrocesso por entidades ambientalistas. A proposta teve votação favorável de 22 parlamentares do Rio Grande do Sul, filiados aos partidos PL, PP, PDT, PSDB, MDB, Republicanos, Novo, MDB, Podemos e PSD.

"Existem projetos de lei de anistia para desmatadores e grileiros, projeto de lei que acaba com as demarcações de terras indígenas e coloca em revisão as já existentes no Brasil — lembrando que a terra indígena é a forma mais rápida de conter desmatamento. Existem PLs de liberação de mineração em unidades de conservação e para subverter o uso do Fundo Amazônia", enumera.

Para Astrini, com base em outros episódios climáticos recentes devastadores no Rio Grande do Sul, Eduardo Leite poderia ter sido exemplo na preparação para situações extremas, mas, na sua visão, ignorou os alertas de desastres e protagonizou a diminuição de proteção ambiental de áreas sensíveis.

"Se o governador não acreditar agora nessa questão de clima, eu não sei qual vai ser o momento. Porque o estado que ele governa sofreu em 2021 e 2022 duas secas extremamente severas, que trouxeram prejuízos bilionários para a produção agrícola. E agora está sofrendo um período de chuva desde setembro do ano passado, quando já teve a primeira enchente muito grande", afirma.

Veja fotos da inundação no Rio Grande do Sul nesta segunda-feira (6)

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