quarta-feira, 29 de maio de 2024

Cerrado seco

Já vimos aqui Cerrado arado. Agora o Cerrado seco.

Perguntaram para Milton Santos (geógrafo): "Que destino você vê para a humanidade". A resposta: "Que humanidade?"

Cerrado já está mais quente e seco devido ao desmatamento. Cenário tende a piorar com aquecimento global e sem medidas para reverter destruição

Jéssica Maes & Lalo de Almeida, FSP, 29/05/2024

Mesmo durante a temporada de chuvas no cerrado, a vegetação é esparsa no maior núcleo de desertificação do país, em Gilbués, no extremo sul do Piauí. Reina o silêncio. O canto de alguns pássaros que se abrigam nas poucas árvores é quase encoberto pelo assobio do vento, que traz nuvens cinzentas.

“Aqui na seca fica tudo vermelho, tudo vermelho. Caem as folhas das árvores e fica tudo muito seco. Mas não desanima a gente, não”, diz Celi Aguiar, 63, professora da rede municipal de ensino da cidade, que fica a 766 km da capital, Teresina.

Vista de núcleo de desertificação em Gilbués, no extremo sul do Piauí. Imensas voçorocas cercam o sítio de Celi Aguiar e do marido, Ubiratan Lemos - Lalo de Almeida/Folhapress

Os meses chuvosos, que normalmente vão de outubro a março, são considerados o “inverno” do bioma e ajudam a aplacar as altas temperaturas, inclementes no restante do ano. “O calor aumentou muito, muito, muito. Especialmente do ano passado para cá”, conta ela, que mora em Gilbués desde a infância.

“Antigamente o inverno era mais intenso e mais extenso. Mas este ano, por exemplo, nós passamos um aperto grande achando que não ia chover quase nada. Aí, de repente, teve uns 20 dias de chuva e foi bom, mas agora nós já estávamos com seca de novo -até que voltou a chover na semana passada”, diz.

A reportagem visitou a região no final de março, sob chuva. A água que desaba do céu transforma em lama a terra vermelha, que gruda na sola dos sapatos e faz deslizarem até mesmo carros tracionados.

Concentrada, a chuva também leva parte do solo da região, carregando nutrientes e formando imensas voçorocas. “Essas voçorocas dão muito prejuízo ao rio Parnaíba, porque os pequenos riachos levam as águas [cheias de barro] para o rio Gurgueia e o Gurgueia leva para o Parnaíba. Então, aterra tanto o rio Gurguéia, quanto o Parnaíba”, explica Aguiar. O rio Gurgueia é um dos principais afluentes do Parnaíba. “As águas ficam vermelhas. Você pode pegar água e vê que tem muita lama ali. É a terra que vai embora”, relata. “Falta [terra] aqui, sobra lá. E o Rio Parnaíba vai ficando aterrado”.

Chamadas de “malhadas”, as voçorocas marcam a paisagem do município. É no meio delas que a professora e o marido, Ubiratan Lemos, 64, têm um pequeno sítio, onde criam algumas galinhas e cabeças de gado, que pasta solto nas gramíneas nativas. 

Ubiratan Lemos, 64, toca o gado em meio às malhadas, como é conhecida a região repleta de voçorocas em Gilbués (PI) - Lalo de Almeida/Folhapress

Pequenas propriedades, como a deles, pipocam aqui e ali no meio das malhadas, cultivando milho e capim de corte, para servir de alimento para os animais. Nas chapadas que rodeiam o município, no entanto, são as grandes fazendas de grãos que cobrem a paisagem. A chuva também pode ser enganosa, disfarçando o avanço do clima árido -caracterizado pelo aumento do calor e da secura- no município.

Segundo dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), no período de 1960 a 1990, o índice de aridez no município era de 0,66, equivalente ao clima sub úmido seco. Já entre 2010 e 2020, havia caído para 0,52, mais próximo do semiárido -quanto menor o indicador, mais seco e quente é o clima. “O índice de aridez ao longo dessas décadas tem indicado que [o clima em Gilbués] está se tornando um clima mais seco. Com um clima mais quente e seco, o processo de desertificação pode ser acelerado”, explica a física Ana Paula Cunha, do Cemaden.

A taxa é calculada analisando a relação entre a precipitação e a demanda de evaporação da atmosfera. Se o índice for menor do que 1, a demanda é maior do que a precipitação, como ocorre em biomas de clima mais seco, como a caatinga. Quando é maior que 1, a precipitação é suficiente para suprir a demanda de evaporação da atmosfera, como acontece, por exemplo, na amazônia.

Cunha foi uma das pesquisadoras responsáveis por uma análise feita no final do ano passado, em parceria com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que constatou o avanço das condições áridas pelo país. Uma parcela importante desse aumento se deu no cerrado.

A diminuição das chuvas na região anda de mãos dadas com o desmatamento. A remoção da vegetação nativa, além de prejudicar a recarga dos aquíferos no subsolo (de cima para baixo), reduz a quantidade de umidade que as plantas jogam na atmosfera (de baixo para cima). E o cerrado já perdeu 46% de sua cobertura original.

Canal de irrigação atravessa uma lavoura de soja em fazenda na zona rural de Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia - Lalo de Almeida/Folhapress

“Só essa mudança de uso da terra, com a conversão de campos, savanas e florestas [para pastagens e lavouras], já contribuiu para reduzir a evapotranspiração -ou seja, diminuiu a transferência de vapor de água da vegetação para a atmosfera, tornando a atmosfera mais seca- e já aumentou a temperatura superficial no cerrado em 0,9°C, quase 1°C”, explica Mercedes Bustamante, professora do departamento de ecologia da UnB (Universidade de Brasília).

“Isso significa que, sem contar o aquecimento global, só as mudanças de uso da terra já tornaram o cerrado mais quente e mais seco”, diz a especialista, que integra o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), vinculado à ONU e maior referência científica em clima do mundo. Ela se refere a um estudo de 2022 orientado por ela, que analisou o período de 2006 a 2019 e também apontou que a evapotranspiração anual no bioma teve redução de 10%. Mas isso é uma média.

Analisando isoladamente diferentes tipos de vegetação do cerrado, os números são ainda maiores. O desmate em regiões florestais para substituição por cultivos já levou a um aumento de temperatura de 3,5°C e reduziu a evapotranspiração em cerca de 44%, enquanto a conversão de savanas em lavouras elevou a temperatura em 1,9°C e diminuiu a evapotranspiração em 27%.

Plantação de soja em uma fazenda no município de Formosa do Rio Preto (BA), no Matopiba - Lalo de Almeida/Folhapress

A evapotranspiração é importante porque é um dos fatores que dispara a chuva no bioma início do período chuvoso. “O cerrado recebe massas de ar úmido que vêm da amazônia e carregam umidade. Mas se elas encontram uma massa de ar muito seca e quente, a precipitação não acontece”, ressalta Bustamante.

“As espécies de plantas do cerrado, que têm raízes profundas, começam a colocar umidade na atmosfera antes de começar a chover. É como se elas estivessem preparando as condições atmosféricas para permitir que essas massas úmidas que vêm da região norte do Brasil possam se transformar em chuva ali”, diz.

A professora, destaca, ainda, que o cenário é mais crítico no Matopiba, região onde se encontram os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Simultaneamente, a área abriga as maiores porções de cerrado conservado e é considerada a mais recente fronteira do agronegócio, concentrando 72% dos 11 mil km² derrubados no bioma em 2023.

É no centro do Matopiba que fica Gilbués, assim como o município baiano de Correntina, onde os relatos de aumento do calor e da falta de chuva se repetem. “A gente já viveu aqui 40 dias e 40 noites de chuva. Você não conseguia secar uma roupa. Hoje em dia, não. Chuva é passageira. O que prevalece aqui para nós é o sol, sempre sol”, afirma Aliene Barbosa e Silva, 43.

Ela é filha de agricultores, mas teve que abandonar o cultivo devido à imprevisibilidade do clima e à diminuição da vazão dos rios que passam pela propriedade.

Sistema tradicional de captação de água utilizada para irrigação na propriedade da família de Aliene Barbosa e Silva, 43, em Correntina (BA) - Lalo de Almeida/Folhapress

“Fica difícil ter produção, mesmo plantando aqui no alto, com água encanada. Devido ao calor, ao sol ser muito quente, não há uma produção 100%", conta. “Tem um pessoal [da região] que planta legumes, hortaliças, e todas as roças deles são cobertas por um sombrite, porque o sol sapeca tudo”.

O mais recente relatório do IPCC, publicado em 2021, aponta que as temperaturas médias aumentaram em toda a América do Sul e prevê que seguirão esquentando a taxas maiores do que a média global.

O documento também projeta que as temporadas de chuvas na região serão atrasadas ao longo do século 21 e, em cenários de aquecimento global igual ou maior do que 2°C, as secas e o clima propício para incêndios florestais devem aumentar. No patamar atual de emissões de gases de efeito estufa, o mundo está na rota para aquecer de 2,4°C a 2,6°C. “A gente está vivendo as mudanças climáticas no dia a dia. E isso afeta diretamente quem mora na zona rural, quem produz, quem está na roça trabalhando”, diz Silva.

“Para quem mora na cidade, a consequência vai ser o preço [dos alimentos], que vai ser bem alto. Mas para quem mora aqui na roça é no cultivar mesmo, que vai ser bem difícil. Até pra trabalhar né? Porque num sol desses aí você bater a enxada o dia todo… Quando chega a noite, a pele está toda sapecada”.

Caso o desmatamento continue avançando sobre o cerrado, as condições climáticas devem piorar -e muito. É o que apontam as projeções para o meio do século do estudo de Bustamante.

Solo seco e rachado ao lado de plantação de soja, em Correntina (BA) - Lalo de Almeida/Folhapress

As pesquisadoras analisaram três cenários distintos para 2050: de colapso do cerrado, com aceleração do desmatamento legal e ilegal; do cerrado sob dificuldades, com o desmate de toda a área permitida por lei; e de recuperação do cerrado, com desmatamento zero, somado à ações de restauração da vegetação.

“Nesse primeiro cenário, em que se acelera o desmatamento legal e ilegal, tende a acentuar esse aumento de temperatura e redução da evapotranspiração. O Matopiba vai se tornar inviável para produção de grãos”, afirma a pesquisadora. “E se as culturas sentem o impacto da temperatura, os trabalhadores da agricultura também sentem. Então temos que pensar que, como atividade econômica, essa força de trabalho vai sentir as implicações do estresse térmico”, aponta.

Mesmo o segundo cenário, que considera apenas o desmate do cerrado permitido pelo Código Florestal, indica redução da evapotranspiração e, sobretudo, aumento da temperatura. “É por isso que na discussão sobre o cerrado a gente não deve adjetivar o desmatamento legal ou ilegal. Não importa. É preciso parar o desmatamento”, destaca a especialista.

Área em processo de desertificação em Gilbués (PI) - Lalo de Almeida/Folhapress

Já o terceiro cenário, que soma o fim do desmatamento à restauração do cerrado, é o único que apresenta melhora. “Você consegue reverter pelo menos a perda de umidade, e então voltar a ter áreas mais úmidas e de temperaturas um pouco mais baixas”, diz Bustamante. “O futuro da conservação de cerrado vai depender exatamente de você conseguir zerar o desmatamento.”

Mesmo com a perspectiva de um futuro climático desanimador, Aliene Silva não tem vontade de deixar o lugar onde vive. Rodeada por verde e lavando o rosto nas águas do rio Arrojado, que passa dentro da propriedade da família, ela descreve o local como um paraíso.

“Eu tenho três filhos, criei meus filhos aqui e já tenho um neto. Quero que meu neto permaneça aqui onde a gente mora”, afirma. “Nós não temos para onde ir, para onde a gente iria? Nascemos aqui, nos criamos aqui… a gente vai entupir a cidade? É permanecer nos territórios e enfrentar as dificuldades”.

Estacionamento de carretas usadas para o transporte de grãos da Bunge Alimentos em Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia - Lalo de Almeida/Folhapress







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