Já vimos aqui Cerrado arado. Agora o Cerrado seco.
Perguntaram para Milton Santos (geógrafo): "Que destino você vê para a humanidade". A resposta: "Que humanidade?"
Cerrado já está mais quente e seco devido ao desmatamento. Cenário tende a piorar com aquecimento global e sem medidas para reverter destruição
Jéssica Maes & Lalo de Almeida, FSP, 29/05/2024
Mesmo durante a temporada de chuvas no cerrado, a vegetação é esparsa no maior núcleo de desertificação do país, em Gilbués, no extremo sul do Piauí. Reina o silêncio. O canto de alguns pássaros que se abrigam nas poucas árvores é quase encoberto pelo assobio do vento, que traz nuvens cinzentas.
“Aqui na seca fica tudo vermelho, tudo vermelho. Caem as folhas das árvores e fica tudo muito seco. Mas não desanima a gente, não”, diz Celi Aguiar, 63, professora da rede municipal de ensino da cidade, que fica a 766 km da capital, Teresina.
Os meses chuvosos, que normalmente vão de outubro a março, são considerados o “inverno” do bioma e ajudam a aplacar as altas temperaturas, inclementes no restante do ano. “O calor aumentou muito, muito, muito. Especialmente do ano passado para cá”, conta ela, que mora em Gilbués desde a infância.
“Antigamente o inverno era mais intenso e mais extenso. Mas este ano, por exemplo, nós passamos um aperto grande achando que não ia chover quase nada. Aí, de repente, teve uns 20 dias de chuva e foi bom, mas agora nós já estávamos com seca de novo -até que voltou a chover na semana passada”, diz.
A reportagem visitou a região no final de março, sob chuva. A água que desaba do céu transforma em lama a terra vermelha, que gruda na sola dos sapatos e faz deslizarem até mesmo carros tracionados.
Concentrada, a chuva também leva parte do solo da região, carregando nutrientes e formando imensas voçorocas. “Essas voçorocas dão muito prejuízo ao rio Parnaíba, porque os pequenos riachos levam as águas [cheias de barro] para o rio Gurgueia e o Gurgueia leva para o Parnaíba. Então, aterra tanto o rio Gurguéia, quanto o Parnaíba”, explica Aguiar. O rio Gurgueia é um dos principais afluentes do Parnaíba. “As águas ficam vermelhas. Você pode pegar água e vê que tem muita lama ali. É a terra que vai embora”, relata. “Falta [terra] aqui, sobra lá. E o Rio Parnaíba vai ficando aterrado”.
Chamadas de “malhadas”, as voçorocas marcam a paisagem do município. É no meio delas que a professora e o marido, Ubiratan Lemos, 64, têm um pequeno sítio, onde criam algumas galinhas e cabeças de gado, que pasta solto nas gramíneas nativas.
Pequenas propriedades, como a deles, pipocam aqui e ali no meio das malhadas, cultivando milho e capim de corte, para servir de alimento para os animais. Nas chapadas que rodeiam o município, no entanto, são as grandes fazendas de grãos que cobrem a paisagem. A chuva também pode ser enganosa, disfarçando o avanço do clima árido -caracterizado pelo aumento do calor e da secura- no município.
Segundo dados do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), no período de 1960 a 1990, o índice de aridez no município era de 0,66, equivalente ao clima sub úmido seco. Já entre 2010 e 2020, havia caído para 0,52, mais próximo do semiárido -quanto menor o indicador, mais seco e quente é o clima. “O índice de aridez ao longo dessas décadas tem indicado que [o clima em Gilbués] está se tornando um clima mais seco. Com um clima mais quente e seco, o processo de desertificação pode ser acelerado”, explica a física Ana Paula Cunha, do Cemaden.
A taxa é calculada analisando a relação entre a precipitação e a demanda de evaporação da atmosfera. Se o índice for menor do que 1, a demanda é maior do que a precipitação, como ocorre em biomas de clima mais seco, como a caatinga. Quando é maior que 1, a precipitação é suficiente para suprir a demanda de evaporação da atmosfera, como acontece, por exemplo, na amazônia.
Cunha foi uma das pesquisadoras responsáveis por uma análise feita no final do ano passado, em parceria com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que constatou o avanço das condições áridas pelo país. Uma parcela importante desse aumento se deu no cerrado.
A diminuição das chuvas na região anda de mãos dadas com o desmatamento. A remoção da vegetação nativa, além de prejudicar a recarga dos aquíferos no subsolo (de cima para baixo), reduz a quantidade de umidade que as plantas jogam na atmosfera (de baixo para cima). E o cerrado já perdeu 46% de sua cobertura original.
“Só essa mudança de uso da terra, com a conversão de campos, savanas e florestas [para pastagens e lavouras], já contribuiu para reduzir a evapotranspiração -ou seja, diminuiu a transferência de vapor de água da vegetação para a atmosfera, tornando a atmosfera mais seca- e já aumentou a temperatura superficial no cerrado em 0,9°C, quase 1°C”, explica Mercedes Bustamante, professora do departamento de ecologia da UnB (Universidade de Brasília).
“Isso significa que, sem contar o aquecimento global, só as mudanças de uso da terra já tornaram o cerrado mais quente e mais seco”, diz a especialista, que integra o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), vinculado à ONU e maior referência científica em clima do mundo. Ela se refere a um estudo de 2022 orientado por ela, que analisou o período de 2006 a 2019 e também apontou que a evapotranspiração anual no bioma teve redução de 10%. Mas isso é uma média.
Analisando isoladamente diferentes tipos de vegetação do cerrado, os números são ainda maiores. O desmate em regiões florestais para substituição por cultivos já levou a um aumento de temperatura de 3,5°C e reduziu a evapotranspiração em cerca de 44%, enquanto a conversão de savanas em lavouras elevou a temperatura em 1,9°C e diminuiu a evapotranspiração em 27%.
A evapotranspiração é importante porque é um dos fatores que dispara a chuva no bioma início do período chuvoso. “O cerrado recebe massas de ar úmido que vêm da amazônia e carregam umidade. Mas se elas encontram uma massa de ar muito seca e quente, a precipitação não acontece”, ressalta Bustamante.
“As espécies de plantas do cerrado, que têm raízes profundas, começam a colocar umidade na atmosfera antes de começar a chover. É como se elas estivessem preparando as condições atmosféricas para permitir que essas massas úmidas que vêm da região norte do Brasil possam se transformar em chuva ali”, diz.
A professora, destaca, ainda, que o cenário é mais crítico no Matopiba, região onde se encontram os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Simultaneamente, a área abriga as maiores porções de cerrado conservado e é considerada a mais recente fronteira do agronegócio, concentrando 72% dos 11 mil km² derrubados no bioma em 2023.
É no centro do Matopiba que fica Gilbués, assim como o município baiano de Correntina, onde os relatos de aumento do calor e da falta de chuva se repetem. “A gente já viveu aqui 40 dias e 40 noites de chuva. Você não conseguia secar uma roupa. Hoje em dia, não. Chuva é passageira. O que prevalece aqui para nós é o sol, sempre sol”, afirma Aliene Barbosa e Silva, 43.
Ela é filha de agricultores, mas teve que abandonar o cultivo devido à imprevisibilidade do clima e à diminuição da vazão dos rios que passam pela propriedade.
“Fica difícil ter produção, mesmo plantando aqui no alto, com água encanada. Devido ao calor, ao sol ser muito quente, não há uma produção 100%", conta. “Tem um pessoal [da região] que planta legumes, hortaliças, e todas as roças deles são cobertas por um sombrite, porque o sol sapeca tudo”.
O mais recente relatório do IPCC, publicado em 2021, aponta que as temperaturas médias aumentaram em toda a América do Sul e prevê que seguirão esquentando a taxas maiores do que a média global.
O documento também projeta que as temporadas de chuvas na região serão atrasadas ao longo do século 21 e, em cenários de aquecimento global igual ou maior do que 2°C, as secas e o clima propício para incêndios florestais devem aumentar. No patamar atual de emissões de gases de efeito estufa, o mundo está na rota para aquecer de 2,4°C a 2,6°C. “A gente está vivendo as mudanças climáticas no dia a dia. E isso afeta diretamente quem mora na zona rural, quem produz, quem está na roça trabalhando”, diz Silva.
“Para quem mora na cidade, a consequência vai ser o preço [dos alimentos], que vai ser bem alto. Mas para quem mora aqui na roça é no cultivar mesmo, que vai ser bem difícil. Até pra trabalhar né? Porque num sol desses aí você bater a enxada o dia todo… Quando chega a noite, a pele está toda sapecada”.
Caso o desmatamento continue avançando sobre o cerrado, as condições climáticas devem piorar -e muito. É o que apontam as projeções para o meio do século do estudo de Bustamante.
As pesquisadoras analisaram três cenários distintos para 2050: de colapso do cerrado, com aceleração do desmatamento legal e ilegal; do cerrado sob dificuldades, com o desmate de toda a área permitida por lei; e de recuperação do cerrado, com desmatamento zero, somado à ações de restauração da vegetação.
“Nesse primeiro cenário, em que se acelera o desmatamento legal e ilegal, tende a acentuar esse aumento de temperatura e redução da evapotranspiração. O Matopiba vai se tornar inviável para produção de grãos”, afirma a pesquisadora. “E se as culturas sentem o impacto da temperatura, os trabalhadores da agricultura também sentem. Então temos que pensar que, como atividade econômica, essa força de trabalho vai sentir as implicações do estresse térmico”, aponta.
Mesmo o segundo cenário, que considera apenas o desmate do cerrado permitido pelo Código Florestal, indica redução da evapotranspiração e, sobretudo, aumento da temperatura. “É por isso que na discussão sobre o cerrado a gente não deve adjetivar o desmatamento legal ou ilegal. Não importa. É preciso parar o desmatamento”, destaca a especialista.
Já o terceiro cenário, que soma o fim do desmatamento à restauração do cerrado, é o único que apresenta melhora. “Você consegue reverter pelo menos a perda de umidade, e então voltar a ter áreas mais úmidas e de temperaturas um pouco mais baixas”, diz Bustamante. “O futuro da conservação de cerrado vai depender exatamente de você conseguir zerar o desmatamento.”
Mesmo com a perspectiva de um futuro climático desanimador, Aliene Silva não tem vontade de deixar o lugar onde vive. Rodeada por verde e lavando o rosto nas águas do rio Arrojado, que passa dentro da propriedade da família, ela descreve o local como um paraíso.
“Eu tenho três filhos, criei meus filhos aqui e já tenho um neto. Quero que meu neto permaneça aqui onde a gente mora”, afirma. “Nós não temos para onde ir, para onde a gente iria? Nascemos aqui, nos criamos aqui… a gente vai entupir a cidade? É permanecer nos territórios e enfrentar as dificuldades”.
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