O inferno é redondo
Francis apoiou Collor em 89, mas nunca escreveu uma linha a favor do golpe de 64
Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo, 12 de março de 2022
Vez por outra tenho cruzado com uma suposição (“Não será a Terra o Inferno de outro planeta?”) que, malgrado vetusta, parece ter sido ventilada pela primeira vez por um contemporâneo de nossa atual e global distopia. Muitos de nossos antepassados devem ter tido a mesma impressão durante as guerras, pandemias e ditaduras intermináveis que precisaram enfrentar, mas foi o desiludido intelectual Maurice Spandrell, personagem de Contraponto, de Aldous Huxley, quem deu à hipótese sua forma definitiva, quase um século atrás.
Huxley sempre me remete a Paulo Francis, que o admirava à beça e, já em sua primeira coletânea de ensaios, Opinião Pessoal, incluiu um texto sobre ele, motivado pela passagem do escritor pelo Rio, em 1959. Crítico contemplativo e inatuante, observador grã-fino, distante e entediado, “sem o fanatismo artisticamente realizado de Joyce, Eliot ou (D.H.) Lawrence” – com essas palavras Francis resumiu bem o autor de Admirável Mundo Novo.
Para falar de Francis prescindimos de Huxley, já que ele acumulou em vida profusão de admiradores e desafetos que não o deixam virar uma página virada de nossa cultura e nosso jornalismo. Não faz nem uma semana que um internauta levianamente acusou Francis de ter apoiado a ditadura militar. Francis apoiou Collor, na eleição de 1989, muito colaborou, assim como Millôr, para demonizar Lula, mas jamais escreveu uma linha a favor da quartelada de 64, da qual, aliás, foi vítima mais de uma vez, uma delas com direito a um “teje preso” no aeroporto Galeão e dois meses de cadeia na Vila Militar.
Embora me tenha dito, numa pachorrenta tarde no Pasquim, que estava de mudança para Nova York porque queria envelhecer “num país com quatro estações definidas por ano”, seu exílio teve motivação eminentemente política. Ele não se cansou apenas do “calor mata-zulu” carioca, mas também ou sobretudo da truculência verde-oliva, redobrada no início dos anos 1970.
Um aficionado duvidou recentemente que Cantando na Chuva, e não As Aventuras de Robin Hood, fosse o filme predileto de Francis. Mantenho a aposta no musical, de resto, bizantina, até porque desconfio que, no fundo, no fundo, seu xodó era mesmo My Fair Lady, por sinal inspirada em Bernard Shaw, para quem a Terra parecia não o inferno, mas o hospício de outro planeta.
Acredite: aquele confesso wagneriano não resistia à tentação de fechar noitadas com amigos a degustar canções de Lerner & Loewe. E na versão da Broadway, com Julie Andrews, não a do cinema, com Audrey Hepburn dublada por Marni Nixon.
De uma feita, acho que em 1983, Cacá Diegues e eu fomos visitar Francis em Nova York, e... sorry, meu espaço acabou. (Não continua na próxima semana.)
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