Quando o livro vai além da literatura. O conflito fez Kiev levantar suas barricadas com pesados volumes
Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 19 de março de 2022
Na paz ou na guerra, livros são armas de instrução em massa. Aos primeiros sinais de invasão da Ucrânia pelo exército de Putin, outra serventia lhes deram. Com livros, ucranianos de Kiev montaram barricadas em suas janelas para se proteger da artilharia russa, atualizando a máxima de Monteiro Lobato: uma nação não só se faz mas também se defende com homens e livros.
Sabíamos que livros podem salvar vidas de variadas maneiras, inclusive se transformados em lenha para aquecer quem corre o risco de morrer congelado, como se viu no filme O Dia Depois de Amanhã. Barricada é novidade. Estimulados à leitura durante a pandemia, em parte porque liam muito pouco (média anual de um volume per capita) e também porque o governo passou a contemplar quem se vacinasse contra o covid com descontos em salas de espetáculos e livrarias, o que os ucranianos mais tinham em casa para resistir aos ataques russos eram livros. Não necessariamente lidos ou sequer perlustrados.
Aos primeiros disparos de mísseis, em 24 de fevereiro, a população de Kiev vedou suas janelas com montes de livros, arrumadinhos, cuidando para que as lombadas ficassem para o lado de dentro.
Numa das pilhas, porém, um jornalista britânico identificou o catálogo das obras do pintor e filósofo Ilya Glazunov (1930-2017). Glazunov, cujas memórias foram aqui traduzidas pela Civilização Brasileira nos anos 1960, exaltou em seus quadros a “grandeza da Rússia” e achegou-se a Putin. Que um calhamaço com suas criações tenha sido usado pelo povo de Kiev para amortecer balas e bombas do exército russo foi de uma ironia sem paralelos nesta guerra estapafúrdia, que só um filho da terra, Nicolai Gogol, talvez soubesse retratar com a necessária verve.
Alguns pontos me parecem indiscutíveis. Foi uma colossal mancada estratégica da parte de Putin. Não há como negar que a Rússia violou as leis internacionais ao invadir o território ucraniano. De todo modo, equiparar Putin a Hitler é uma hipérbole; afinal, a Rússia não mantém em atividade campos de extermínio. Mais sentido faria compará-lo ao Bush, que invadiu o Iraque atrás de armas de destruição em massa que nunca existiram. Kelensky, por sua vez, não é o Garibaldi dos Cárpatos celebrado pela mídia internacional, nem o Engelbert Dollfuss eslavo difamado por seus adversários políticos.
A guerra em curso não começou em 2014, como por aí também se diz, mas em 1996, com Bill Clinton ampliando a área de cobertura da Otan de forma acintosa, embora não mais houvesse motivo para sua manutenção. Há 23 anos no poder e coadjuvado por uma camarilha de oligarcas ultracorruptos, Putin é um populista de direita, autoritário, xenófobo e nostálgico do império czarista. Não é um Romanov, mas periga virar o Pirro do Kremlin.
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