terça-feira, 1 de março de 2022

A guerra

Por que a guerra? Parece que sem destruir não conseguimos brigar por alianças e identidade

Maria Homem, FSP, 27/02/2022

Uma vez a humanidade assistiu atônita a um grande massacre de corpos e coisas. Assistiu porque tinha ferramentas melhores para assistir e matou porque tinha tecnologia melhor para matar. Ela tinha inventado a fotografia e depois o cinema para ampliar seu olhar e sua memória. E tinha criado aviões, tanques, submarinos e inéditos gases tóxicos para dizimar mais. Por ar, terra e mar. Pasmem, o nome do jogo era "corrida armamentista". Imagens traziam para dentro das casas pedaços de braços, pernas, troncos e crânios esbugalhados.

O horror da Primeira Grande Guerra foi tal que se pensou: não é possível que tenhamos, nós, seres tão inteligentes, feito uma coisa tão estúpida. Vamos refazer o pacto social: somos uma só espécie humana num único planeta. Formou-se assim, em 1919, a Liga das Nações (base da ONU). Vamos pensar melhor como viver menos mal com todos os outros? A Liga criou em 1922 a Comissão Internacional de Cooperação Intelectual (matriz da Unesco). [Um século depois, neste clima anticooperação, antiintelecto, anticivilização, sento e choro.]

A Comissão chama Einstein para debater um tema relevante para o mundo. Einstein convida Freud para refletir sobre a paz e a guerra e assim dois dos maiores gênios da época trocam cartas que foram publicadas com o título desta coluna.

Einstein elenca uma série de pontos "lógicos" para que nos organizemos em nossas demandas e saibamos negociar com o outro com método. Quem sabe no futuro com algum algoritmo a formular o acordo menos doído para todas as partes.

Freud é mais cético. Ele já tinha teorizado a pulsão de morte e sabe que, grosso modo, civilização é impulso e recalque e, portanto, inelutável mal-estar. Mesmo assim, termina sua troca com Einstein se perguntando sobre a possibilidade de encaminhar conflitos e pulsões — tanto destrutivas quanto eróticas e massificantes — pelo simbólico e não pela força. "E quanto tempo teremos que esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista?"

Era 1932 e sabemos o resto da história. Freud conseguiu escapar de sua Viena em 1938 para morrer em Londres e os parentes foram pros campos de extermínio. Einstein e outros grandes cérebros trabalharam direta ou indiretamente para a bomba atômica. O mundo se devastou mais uma vez, numa carnificina ainda pior e com requintes de desvario mental.

Hoje, seja por dinheiro, território, reposicionamento no grupo (nome técnico: geopolítica), por narcisismo grandioso ou ressentimento, a guerra bate à porta. Parece que sem destruir não conseguimos brigar por dinheiro, território, alianças e identidade.

E continuamos evoluindo nas técnicas de destruição. Mas também nas ciências psíquicas. Sabemos que a ambivalência é estrutural e que os conflitos internos são angustiantes: é difícil amar e odiar ao mesmo tempo uma coisa. A gente inveja e odeia o "Ocidente". Faz discursos a favor da nossa tradição enquanto passeia de iate, compra bolsa e manda os filhos estudar fora, tudo no famoso Ocidente. Ou sonha esse sonho proibido e inatingível. A melhor estratégia é expulsar de si uma dessas partes, demonizá-la e odiar até matar.

Sabemos que nossa cultura aprofunda o gozo do olhar, tanto na via exibicionista quanto na voyeurista, até o obsceno —na literal palma da mão de um smartphone, muito inteligente.

Sabemos também que as narrativas fálicas — Grande Mãe tal ou Great Nação tal ou Grupo Eleito tal— são construções imaginárias para fazer a maioria trabalhar e morrer para o lucro de alguns. A maioria chama povo, o "alguns" chama elite e o esquema chama nacionalismo ou imperialismo, a depender da trama.

Sabemos também que está ficando cada vez mais difícil enganar pessoas, sobretudo jovens, para entrar nessa roubada.

Quanto tempo teremos que esperar?
Muito.

A guerra é feita pelos homens?

 Equiparar masculinidade e guerra é errar o alvo da paz

Vera Iaconelli, FSP, 28/02/2022

A confusão está feita quando pênis, homem, masculinidade e falo são colocados indiscriminadamente no mesmo balaio. Até aqui todas as culturas, em todas as épocas privilegiaram sujeitos nascidos com pênis. E que me desculpem as feministas que defendem um período no qual as mulheres teriam estado em posição igualitária ou superior a dos homens: não há provas que corroborem essa hipótese. O que é notória é a diferença brutal entre formas de opressão de gênero a depender do povo e do momento histórico.

Na maioria dos casos, os nascidos com pênis são assimilados ao grupo dos homens, diferenciado do grupo das mulheres (pessoas nascidas com vulva, útero). Maioria não significa totalidade dos casos, porque temos inúmeros relatos de comunidades nas quais sujeitos intersexo (com genitália ambígua ao nascer) ou que se identificam com o gênero não esperado podem ser assimilados ao outro grupo. Sobre o tema vale ler o livro "Existe Índio Gay?: a Colonização das Sexualidades Indígenas no Brasil" (Editora Prismas, 2017), de Estevão Fernandes, para ver como as sociedades modernas são lanterninhas na aceitação das transidentidades.

Ao adentrar no grupo dos homens, a educação do sujeito é voltada no sentido da identificação com as insígnias do poder, sua conquista e manutenção, uma vez que elas são apresentadas como um direito de nascença.

A masculinidade diz respeito ao conjunto de ideais e pressupostos que cada grupo associa aos homens, que varia imensamente a depender da época e localidade. Para os gregos a grande virtude masculina seria a capacidade de dialogar e ocupar um lugar como verdadeiro cidadão. As figuras mais proeminentes da atualidade, contudo, se vangloriam de portar fuzis. Por sinal, não existe imagem melhor para introduzir a fantasia de que o pênis chancelaria a masculinidade do que um fuzil ereto. Na falta de uma garantia última do que seria a masculinidade —afinal, se trata de uma convenção— procura-se um ícone imaginário. É nessa hora que essa parte pendurada do corpo, com a gloriosa capacidade de entumecer, é confundida com o falo.

O falo é de outra ordem pois, ao contrário do órgão genital, nunca brocha, mas tampouco se materializa em qualquer parte, pois trata-se daquilo que queremos crer que preencheria nossas faltas. Missão impossível, claro. Qualquer coisa pode ser colocada no lugar fálico: filho, dinheiro, aparência, poder, pênis, enfim, qualquer objeto que supomos causar o brilho no olhar do outro, quando ele nos vê possuidor desse objeto. A fantasia de ter o falo permite crer que, na competição com o outro, saímos ganhando.

Tudo isso para dizer que mulheres, quando se identificam com a lógica fálica (obter poder sobre o outro por meio de ícones supervalorizados) também podem fazer a guerra e outras idiotices. Só é menos comum porque somos educadas a evitar o confronto e temos menos oportunidade de estar em posição de deflagrar uma guerra. Mas lembremos de Cleópatra ou Margaret Thatcher, só pra citar dois grandes exemplos.

O falo é uma miragem que sempre fará parte de nossas vidas, com o qual temos que lidar para não ficarmos siderados, ignorando nossos desejos em busca de quimeras.

A guerra é uma das piores versões do uso do poder. Enquanto continuarmos associando virilidade a destruição, acúmulo de bens e poder, haverá gente considerando Putin, Trump e Bolsonaro grandes homens.

De minha parte, só confio e respeito homens com desejo e coragem de amar acima de tudo. Tenham pênis ou não.


PSICANÁLISE E GUERRA. VERA ICONELLI E MARIA HOMEM


Insurgentes 

O estadunidense John Reed em seu livro “México Insurgente” (Boitempo, 2010) relata sua passagem pela revolução mexicana, como jornalista. Reed passou quatro meses no México a serviço de um jornal de Nova Iorque. Retrata o povo mexicano em luta e em especial, Pancho Villa.
Reproduzo aqui (p. 67) (John Reed) um diálogo com revolucionários mexicanos.

- Estamos lutando – disse Isidoro Amaya – pela libertad.

- Que quer dizer libertad?

- Libertad é quando eu posso fazer o que eu quero!

- Mas suponha que isso prejudique alguém.

Respondeu-me com a grande frase de Benito Juarez:

- O respeito pelo direito alheio é a paz!

Eu não estava preparado para isso. Surpreendeu-me tal conceito de liberdade de um mestizo descalço. Considero-o a única definição correta de liberdade – fazer o que quiser! Os norte-americanos apontaram-no com ar de triunfo como um exemplo de irresponsabilidade mexicana. Creio, porém, que é uma definição melhor do que a nossa: “Liberdade é o direito de fazer o que ordena a Corte de Justiça”. Todo menino mexicano em idade escolar conhece a definição de paz e parece compreender o que ela significa. Mas nos Estados Unidos dizem: os mexicanos não querem a paz. Isso é uma mentira estúpida. Deem-se os americanos o trabalho de fazer um inquérito no exército maderista, perguntando se querem a paz ou não! O povo está cansado da guerra.

Contudo, para ser justo, devo informar o que Juan Sanchez expressou:

- Há guerra agora nos Estados Unidos? – perguntou.
- Não – contestei, mentindo.
- Não há guerra, de nenhuma espécie? – ele pensou um pouco.  – Como vocês passam o tempo, então?
 

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