sábado, 26 de março de 2022

Benjamín Labatut, "Quando deixamos de entender o mundo"

Sonâmbulo.

Terceiro livro do chileno Benjamín Labatut é fascinante até para quem é “de humanas”

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 26 de março de 2022

Há gente que organiza sua biblioteca pelo nome dos autores, por gênero, idioma, país, soube até que pela cor da capa, mas por afinidades mais específicas ainda estou para ver. 

Imagine uma ou várias estantes dedicadas exclusivamente às obras de Borges, Roberto Bolaño, G.W. Sebald e outros alheios às fronteiras entre a ficção e a não ficção, por exemplo. É aí que teríamos de acomodar Quando Deixamos de Entender o Mundo, do chileno (nascido na Holanda) Benjamín Labatut, de 41 anos, que a editora Todavia traduziu diretamente do espanhol, sem contudo seguir o título original (Un Verdor Terrible), optando pela versão inglesa, extraída do último capítulo.

Bolaño, Alejandro Zambra, Gabriel Boric  – e agora, Labatut. Que fase boa vive o Chile. 

Nascido na Holanda, o escrito Benjamín Labatut é uma das vozes mais promissoras da literatura escrita em espanhol  Foto: Editora Todavia

 Sensação literária internacional, neste seu anômalo romance de não ficção sobre pessoas e ideias estranhas, todas, sem exceção, reais e abordadas sem xaveco, Labatut imbrica vidas e experiências de matemáticos, físicos e químicos geniais, atormentados, obsessivos e prometeicos com espantosa mestria. 

Resultado: uma obra inclassificável, perturbadora, fascinante até para quem é “de humanas” e potencialmente alheio às esferas da ciência, da matemática avançada, da mecânica quântica e da física nuclear.

Na medida em que descortina a origem de venenos e drogas (como o cianureto) utilizados para o bem do planeta (fertilizantes), da estética (azul da Prússia) e desgraça do inimigo (guerra bioquímica), o terceiro livro de Labatut ganhou incômoda atualidade com a atual crise do meio ambiente e o conflito Rússia-Ucrânia

Singular meditação sobre a guerra e o nazismo, seus heróis e vilões são cientistas mais (Einstein, Bohr, Heisenberg) e menos (Alexander Grothendieck, Karl Schwarzchild, Fritz Haber) conhecidos do público em geral, que inventaram prodígios e se meteram em experimentos de dois gumes, sem se darem conta de que nos arrastavam, qual sonâmbulos, rumo ao Apocalipse. “Os átomos que destruíram Hiroshima e Nagasaki  não foram separados pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações” – repete Labatut em duas oportunidades, citando um dos vilões arrependidos. 

Desde Os Anéis de Saturno, de Sebald (mencionado por Labatut nos agradecimentos), um livro não me pegava com tamanha facilidade e igual envolvimento. Com tantos fatos palpitantes e personagens assombrosos, por que o autor não fez um livro sem qualquer registro ficcional? “Porque há verdades que só a literatura consegue alcançar”, respondeu Labatut a um entrevistador de TV. O que, aliás, é outra verdade. 

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Quando deixamos de entender o mundo, Editora Todavia, 2021

Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de "O coração do coração", uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de "um quebra-cabeça cuja tampa se perdeu" ― para aproveitar a metáfora com que Labatut descreve o jovem Heisenberg brincando com as matrizes que o levarão a for mular a mecânica quântica. Protagonizado não somente por cientistas famosos como Einstein e Schrödinger, mas também por figuras menos conhecidas e igualmente fascinantes, o livro é uma investigação literária sobre homens que atingiram o "ponto de não retorno" do pensamento e nos revelaram em alguma medida o "núcleo escuro no centro das coisas".


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