terça-feira, 8 de março de 2022

A energia como o mote para guerras

Ucrânia, 2022. Criméia, 2014. 

Guerra na Ucrânia: como dependência da Europa de gás russo financia invasão. Países do continente importam 40% de seu gás natural de Moscou, e isso é sua principal vulnerabilidade, diz especialista

Cecilia Barría, 6/3/2022, BBC News Brasil

Em meio à escalada do conflito militar na Ucrânia, os preços do gás natural dispararam à medida que Estados Unidos, Europa e demais países reforçam sanções econômicas contra Moscou. Cerca de 40% do gás natural importado pela Europa vem da Rússia, dependência que aumentou a preocupação dos governos no atual cenário de guerra.

A Ucrânia em Chamas - Documentário sobre a Revolução Colorida e a Guerra na Crimeia de Oliver Stone

Embora a Alemanha tenha suspendido a aprovação final do gasoduto Nord Stream 2, que permitiria aumentar as importações de gás da Rússia, os países europeus continuam comprando gás russo, enquanto intensificam as sanções financeiras contra Moscou. A escassez de suprimentos globais e a gigantesca onda de inflação que afeta o mundo deixaram os governos europeus "entre a cruz e a espada", segundo especialistas nesta área, especialmente a Alemanha, que tomou a decisão de reduzir suas fontes de energia nuclear.

Os mais importantes gasodutos da Europa

Fonte: Rede europeia de operadoras de sistema de transporte de gás BBC

"O gás russo é o calcanhar de Aquiles da Europa nesta guerra, essa é a sua grande vulnerabilidade, é isso que permite à Rússia capitalizar e financiar esse aventura", diz Ángel Saz-Carranza, diretor do Centro de Economia Global e Geopolítica da escola espanhola de negócios Esade e professor visitante da Georgetown University, nos Estados Unidos. Engenheiro aeronáutico pelo Imperial College de Londres e doutor em Ciências da Administração, Saz-Carranza é especialista em análise de risco político, governança, lobby e regulação. Confira abaixo os principais trechos da entrevista, concedida à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

BBC News Mundo - Quanto a Europa depende do gás natural russo para suprir sua demanda?

Ángel Saz-Carranza - A dependência é muito alta, como vemos agora, cerca de 40% da demanda de gás na Europa depende da oferta do gás russo.

E, na outra ponta, quanto a Rússia depende do mercado europeu para suas exportações de gás?

Isso é o que equilibra um pouco a situação, porque a dependência da Rússia do mercado europeu também é muito alta. De fato, sua capacidade de transportar gás para o Oriente é residual. À exceção do gás natural liquefeito, que pode ser exportado por meio de navios, quase todos os gasodutos da Rússia vêm para o Ocidente.

Qual é a probabilidade de o governo russo decidir fechar as torneiras de gás em resposta às sanções que a Europa e os Estados Unidos impuseram?

É uma possibilidade real, dado o momento em que estamos e dada a própria reação da Rússia. A Rússia está agindo sem racionalidade, um certo missionarismo excessivo por parte do presidente, algo messiânico.​ Portanto, estamos em um cenário um tanto desconhecido, a Rússia poderia fechar as torneiras. No entanto, neste momento, com as sanções e a pressão econômica que a Rússia está sofrendo, também é verdade que a única entrada de capital que ela tem é através do pagamento desse gás. A Rússia poderia cortar o gás e a Europa poderia aguentar dois ou três meses sem esse combustível, mas também é verdade que a Rússia perderia a única fonte de capital internacional que tem agora.

 'O gás russo é o calcanhar de Aquiles da Europa nesta guerra', argumenta Ángel Saz-Carranza - Ángel Saz/BBC News Brasil

Quanto da receita fiscal da Rússia depende das vendas de gás para a Europa?

As estimativas que vi recentemente são cerca de metade do orçamento público. Isso é muito, mas também é verdade que a Rússia tem atualmente uma dívida pública muito baixa, tem muitas reservas. Tudo indica que a Rússia se preparava há anos para que sua situação financeira permitisse ao país enfrentar qualquer ameaça externa, pelo menos por um tempo... A Rússia passou algum tempo saneando suas contas públicas, tanto reservas quanto dívidas, apesar das dificuldades econômicas do país e do sofrimento causado por sanções anteriores.

 É por isso que o país pode ter alguma margem de manobra. Mas agora não é conveniente para a Europa parar de comprar gás russo, temos que ver como as sanções continuam a ser definidas com o Swift [sigla para Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, sistema internacional de transferências financeiras].

Em princípio, nem Rússia nem Europa devem fechar a torneira do gás. Quanto da receita fiscal da Rússia depende das vendas de gás para a Europa?

As estimativas que vi recentemente são cerca de metade do orçamento público. Isso é muito, mas também é verdade que a Rússia tem atualmente uma dívida pública muito baixa, tem muitas reservas. Tudo indica que a Rússia se preparava há anos para que sua situação financeira permitisse ao país enfrentar qualquer ameaça externa, pelo menos por um tempo...

A Rússia passou algum tempo saneando suas contas públicas, tanto reservas quanto dívidas, apesar das dificuldades econômicas do país e do sofrimento causado por sanções anteriores. É por isso que o país pode ter alguma margem de manobra. Mas agora não é conveniente para a Europa parar de comprar gás russo, temos que ver como as sanções continuam a ser definidas com o Swift [sigla para Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, sistema internacional de transferências financeiras].

Em princípio, nem Rússia nem Europa devem fechar a torneira do gás. Quanto da receita fiscal da Rússia depende das vendas de gás para a Europa?

As estimativas que vi recentemente são cerca de metade do orçamento público. Isso é muito, mas também é verdade que a Rússia tem atualmente uma dívida pública muito baixa, tem muitas reservas. Tudo indica que a Rússia se preparava há anos para que sua situação financeira permitisse ao país enfrentar qualquer ameaça externa, pelo menos por um tempo...

A Rússia passou algum tempo saneando suas contas públicas, tanto reservas quanto dívidas, apesar das dificuldades econômicas do país e do sofrimento causado por sanções anteriores. É por isso que o país pode ter alguma margem de manobra. Mas agora não é conveniente para a Europa parar de comprar gás russo, temos que ver como as sanções continuam a ser definidas com o Swift [sigla para Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais, sistema internacional de transferências financeiras].

Em princípio, nem Rússia nem Europa devem fechar a torneira do gás.Quais empresas vendem e quais empresas compram gás russo?

Na Rússia, o gás canalizado vem via Gazprom e o gás natural liquefeito, especialmente destinado à Ásia, é fornecido pela Rosnef, empresa petrolífera que também produz gás liquefeito. Na Europa, existem grandes empresas de gás que normalmente são empresas privadas, embora com importantes acionistas públicos. Assim, os governos sozinhos não podem parar de comprar gás da Rússia...

 Os países agora estão sob uma tremenda pressão que já tinham antes devido aos preços muito altos da eletricidade e da energia na Europa. Na Europa, os preços triplicaram até o momento neste ano. Diante dessa pressão, que já resulta em algum descontentamento social, você tem alguns líderes políticos que teriam que decidir não comprar.

Certamente já é tarde demais para reagir agora, então, o incentivo político é realmente o contrário, ou seja, o incentivo político é que por favor não aumentem os preços. É isso que pensam os líderes políticos da Europa. Como não aumentar os preços do gás no curto prazo? Bem, continuar comprando da Rússia. Deveríamos ter feito uma estratégia não só com incentivos públicos, mas até com direcionamento político, para orientar essas empresas privadas em uma direção ou outra.

O preço político a pagar agora, em meio à crise, pode ser muito alto. Como você vê isso?

Existem dois problemas. No curto prazo, o político tem o incentivo de continuar comprando gás o mais barato possível — que é o da Gazprom, atualmente. Por outro lado, há um problema na Europa: a influência estatal no mercado de energia por meio de empresas públicas é muito tímida.

[Uma intervenção estatal] poderia ser visto como uma ruptura do livre mercado e da livre concorrência entre empresas. Certamente agora, em uma situação de guerra, isso pode ser feito, mas também não é fácil fazê-lo a longo prazo. Neste momento, a barreira para as empresas de gás na Europa de capital misto pararem de comprar é que os preços disparariam, isso bloquearia [a atividade de] muitas indústrias e geraria um tremendo caos em um momento em que temos uma inflação muito alta na Europa e estamos tentando sair da crise da Covid.

Apesar das sanções financeiras, o governo de Vladimir Putin continua a vender gás para a Europa - Getty Images/BBC News Brasil

Então parar de comprar ou reduzir as compras de gás da Rússia é muito improvável devido aos custos políticos que tal decisão teria... Isso pode ser feito se a guerra continuar se intensificando muito, e a população europeia estiver disposta a arcar com esse custo. Claramente, veríamos uma duplicação do preço. Eles já triplicaram até agora este ano, então, seria uma situação muito, muito difícil, mas bem, talvez seja disso que se trata.

Isso teria um alto custo para a Europa, essa decisão não é gratuita. É por isso que as sanções isentaram o petróleo e o gás, incluindo as sanções americanas, porque as sanções americanas dependem do preço do petróleo. Sancionar a Rússia geraria alguns problemas domésticos muito relevantes no nível político para [o presidente americano Joe] Biden.

Sem gás russo, a Europa não se apaga amanhã, mas precisaríamos repensar muitas coisas.

Quais são as outras fontes de gás natural a que a Europa pode recorrer?

Há uma parcela que poderia ser substituída, por exemplo, queimando mais carvão, embora isso não seja muito positivo para as políticas climáticas. Também [poderia haver substituição] com um pouco mais de produção própria [de gás natural], que é muito pouca. Poderia aumentar um pouco, não muito, o que vem da Argélia e o que vem da Noruega. Claro, o que [a Europa] teria que fazer seria tentar comprar o máximo de embarques de gás natural liquefeito entregue por navios.

Mas é claro que não há gás liquefeito suficiente disponível sem ter sido previamente contratado no mercado para fornecer os 40% de gás que a Europa compra da Rússia. Teríamos que ir para outros tipos de fontes e depois tentar aumentar a [oferta das] fontes que já temos em mãos, que são a Noruega e a Argélia, e finalmente a alternativa de gás natural liquefeito. Embora o gás natural liquefeito tenha suas próprias dificuldades...

Tem a dificuldade que as usinas de regaseificação na Europa não são distribuídas de forma otimizada. Há problemas logísticos aí. Portanto, ter um ano de demanda de gás coberta na Europa sem gás russo é muito difícil de acontecer. Além disso, entraríamos em uma guerra de preços com a Ásia, na qual já estivemos envolvidos em certa medida para o gás liquefeito e acho que teria que ser feita uma gestão da demanda, ou seja, racionalização do consumo.

A Europa estava fazendo campanha para avançar em direção às energias renováveis, mas parece que será difícil avançar nesse caminho com o conflito atual. Qual é a sua opinião?

A Europa tentou diversificar-se na última década com energias renováveis e também com projetos como o gasoduto que nos liga ao Azerbaijão via Turquia, mas por outro lado, as empresas se aproximaram do gás russo. Portanto, houve uma dissonância entre vontade política e empresarial. Os incentivos não foram bem calibrados.

Coisas curiosas também aconteceram. Para além do fato de a Gazprom ter jogado suas cartas e conseguido atrair empresas europeias, também vimos que é muito difícil fazer a transição energética e afastar-se do carvão, fechar centrais nucleares e diversificar da [dependência da] Rússia. Fazer tudo isso é muito difícil. A Rússia também fez grandes alianças com o Oriente Médio, com os Emirados, por exemplo, e outras partes dos países do Golfo.

Pode-se dizer então que a dependência do gás russo é como o calcanhar de Aquiles da Europa no momento?

Sem dúvida, o gás russo é o calcanhar de Aquiles da Europa nesta guerra, essa é a sua grande vulnerabilidade, é isso que permite à Rússia capitalizar e financiar essa aventura. O alto preço do petróleo e do gás permite que a Rússia viva relativamente bem e se financie dessa forma.

O senhor acha que uma possível decisão da Europa de não comprar gás da Rússia vai além de considerações econômicas e geopolíticas? Pergunto porque também pode haver um dilema ético. Isto é, em que medida o fato de a Europa continuar a comprar gás da Rússia implica que está ajudando indiretamente a financiar a campanha militar de Putin?

 Completamente. A Europa está financiando os caprichos de Putin. Isso é algo que a Europa deve começar a considerar, ou seja, deve considerar como alinhar seu setor privado. Não o fez durante esta década, não conseguiu diversificar o suficiente. A lição aqui é que, no futuro, temos que ser mais inteligentes para orientar o setor empresarial em direção a esses objetivos políticos.

A Europa conseguiria viver sem o gás russo?

BBC, 28 março 2014

A Europa consome 70% do petróleo e 65% do gás exportado pela Rússia, país que se tornou uma dor de cabeça para o líderes do continente desde o início da crise na península da Crimeia, na Ucrânia. A região aprovou em um referendo sua anexação à Federação Russa - que, por meio de um tratado assinado pelo seu presidente, Vladimir Putin, aceitou incorporar a região autônoma, até então parte do território ucraniano.

Isso levou a Europa e os Estados Unidos a aplicarem sanções comerciais e econômicas ao governo de Putin, e entre elas está a redução da importação de recursos energéticos. Em teoria, a Rússia poderia retaliar com a interrupção completa do fornecimento de gás e petróleo aos países do bloco europeu, mesmo que isso signifique perder 54% das receitas com exportações do país. Hoje, estas exportações financiam pouco menos da metade de todo o orçamento anual federal russo.

Mesmo que essa medida seja improvável, a crise já levou a Europa a buscar alternativas à Rússia. A BBC Mundo lista algumas delas:

Gás de xisto dos Estados Unidos

Em sua passagem por Bruxelas, na última quarta-feira, o presidente americano, Barack Obama, ofereceu ao continente um tratado comercial que permita a exportação de gás de xisto para substituir o gás fornecido pela Rússia. Estima-se que os EUA se tornarão, em 2020, o principal produtor de gás de xisto do mundo e, assim, poderia exportar esses recursos ao continente sem dificuldades.

Mesmo assim, Obama advertiu: "A Europa tem que usar melhor seus recursos naturais para não depender de ninguém". Um dos problemas com essa alternativa é a técnica de produção deste tipo de gás e petróleo, conhecida como "fracking", que é condenada por ambientalistas por usar produtos químicos para sua extração das rochas, o que poderia afetar o subsolo.

Em janeiro, a Comissão Europeia recomendou, por meio de uma resolução, que os países-membros do bloco legislem sobre a questão. Na Europa, mas de fora do bloco, o Reino Unido parece já ter tomado sua decisão. Na última quinta-feira, o primeiro-ministro britânico David Cameron disse que "a extração de gás de xisto deve se tornar o ponto número um da agenda energética" do país, mas esclareceu que a ilha não depende do gás russo

Gás e petróleo da Argélia e do Catar

Os dois países tinham, até agora, um papel importante no mapa energético europeu, mas não eram seus protagonistas. Hoje, a Argélia é o terceiro maior fornecedor de gás para a Europa. Na Espanha, 36% do consumo é abastecido pelo país africano. Além disso, a Argélia tem uma vantagem: o produto do país é conhecido como gás natural líquido, ou GNL, que não sofre a resistência ambiental do combustível obtido por meio do "fracking".

O Catar está na mesma posição vantajosa, porque é o maior produtor mundial de GNL e hoje é um importante parceiro da Europa. Mas o Catar tem um sério empecilho: um de seus principais gasodutos passa pela Síria e foi afetado pela guerra no país árabe. "O problema de depender de países de fora do continente é que não temos influência sobre sua situação política, que muitas vezes é volátil, como é o caso atual da Síria, Argélia e de outros países do Oriente Médio", afirmou Jacopo Moccia, diretor de assuntos políticos da Associação Europeia de Energia Eólica (EWEA).

Energia eólica

Segundo dados da EWEA (The European Wind Energy Association), espera-se que até 2030 cerca de 30% da energia consumida no continente venha do vento. Mas há um problema: a energia eólica só serve, até o momento, para ser transformada em energia elétrica. "Somos uma tecnologia barata, madura e competitiva na Europa", disse à Moccia. "Ainda assim, é fundamental que se deixe de importar combustíveis fósseis como gás e petróleo para desenvolver ainda mais essa fonte de energia."

Hoje, 8% da eletricidade da Europa vem da energia eólica, mas isso varia bastante no continente: enquanto a Dinamarca obtém 30% da sua energia elétrica desta forma, Malta não a usa. "Os países precisam diversificar suas fontes de energia. Essa crise é uma oportunidade para isso", agregou Moccia.

Energia nuclear

A Rússia é o principal produtor de urânio enriquecido, que é fundamental na produção de energia nuclear, e também o principal fornecedor desta matéria-prima para a Europa, onde hoje 132 reatores nucleares produzem um terço da energia do continente.

A Rússia já fez uma ameaça quanto a isso. "Tendo em vista as medidas tomadas contra o governo russo, os contratos atuais poderiam ser cancelados", afirmou o presidente da empresa estatal nuclear russa Rosatom, Sergei Kiriyenko. Além disso, após o desastre nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011, cidadãos de diversos países europeus protestaram pedindo o fechamento de reatores. A Alemanha, por exemplo, fechou diversas centrais nucleares.

 

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