sexta-feira, 11 de março de 2022

Amor vira-lata

Os vira-latas são os que fazem sucesso e quanto mais esquisitos – pelos desordenados, cor de olhos indefinida, o sorriso de alívio por terem sido adotados – mais chamam a atenção.

Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo, 11 de fevereiro de 2022 

Por alguns meses, virei tutor de um vira-lata, Nestor. É o cachorro mais simpático e maluco que conheci. Passei a andar com ele pelo bairro e conhecer o universo tão particular, o de pessoas passeando com seus cachorros. Informações são trocadas, enquanto os cães se cumprimentam.

Cachorro abandonado próximo à Rodovia Raposo Tavares, em 1999. Foto: KATHIA TAMANAHA/AE

Esqueça o belo e altivo golden, que não sai de moda, ou o brincalhão labrador. Esqueça a raça do Tintin, Máscara, Asterix, Artista, Man in Black, porque é assim que algumas pessoas se referem a seus cães, aquele da raça da personagem tal. Que entram e saem de moda de acordo com Hollywood; foi assim com pastor alemão, dálmatas.

Os vira-latas são os que fazem sucesso e quanto mais esquisitos – pelos desordenados, cor de olhos indefinida, o sorriso de alívio por terem sido adotados, depois de uma infância que, com certeza, foi repleta de dificuldades, fome e perseguições – mais chamam a atenção.

O vira-lata ou híbrido é desengonçado, desproporcional, engraçado, parece mais alegre que cães normais, mais dócil e sociável. Nestor tinha mullets, olhos esbugalhados, um sorriso estampado, orelhas tortas (nunca levantava as duas) e nunca atendia pelo nome. O quadril e as pernas traseiras eram arqueados, de vaqueiro. 

Nos primeiros dias, não fazia suas necessidades nas calçadas, só em casa, num tapete próprio. Tímido. Dormia enrolado no mesmo cobertor, no mesmo canto. Não latia e, incrivelmente, ficava sempre do meu lado direito no passeio, não ameaçava outros cachorros, atravessava na faixa, no mesmo ritmo que eu. Me alertaram que sua infância num abrigo foi terrível. Como terá sido? Aos poucos, ele foi se soltando. Como tem cachorros latindo em varandas de prédios vizinhos, ele passou a latir junto, num longo papo.

Um dia, sem cerimônia, deu uma mijada de litros, só que no meio da calçada movimentada, não num poste, árvore ou matinho. Não levantou a patinha. Parou, entortou o quadril e mirou o jato para o lado. Não consegui impedir. Ele, enfim, voltou para a dona. Mas foi feliz conosco.

Vira-latas são mais saudáveis pelas necessidades da infância. Os SRD (Sem Raça Definida), ou Crand (Cachorro de Raça Não Definida), quando jovens e adultos, ficam mais resistentes. Em vários estudos, como o de G.J. Patronek e D.J. Waters (Comparative Longevity of Pet Dogs and Humans), ficou provada maior longevidade do que cães de raças definidas.

O vira-lata (ou rafeiro, rapé, ralé, cusco, pé-duro) é, antes de tudo, um forte e vive em média 1,8 ano a mais do que os de raça. No mais, nenhum vira-lata é na aparência igual ao outro. O seu será sempre único.

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