quinta-feira, 31 de março de 2022

Adão e Eva de Machado de Assis

UMA SENHORA de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e

tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas,

grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a

dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam

todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a

responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As

senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora,

que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da

casa, D. Leonor:

— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque

era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.

Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião;

porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que

está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral,

riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos

sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da

pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era

gravíssimo.

— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.

— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair

tudo com boa significação.

— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.

— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o

Sr. Veloso conhece outros livros...

— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce

que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam

o contrário.

— Vá lá, diga.

— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus

que criou o mundo, foi o Diabo...

— Cruz! exclamaram as senhoras.

— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.

— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.

— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu

no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou

atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da

salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o

Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No

segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os

furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro

dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto

nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém,

criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o

Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as

estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da

terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de

atenção.

Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.

Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo

depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar,

e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com

outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a

misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu,

investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor,

derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e

comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."

Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro,

admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os

bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos

de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro,

ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão

puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol

tinha para nenhuma outra parte as mesmas

torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos

primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. 

Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde

iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente

chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos.

Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia

ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor;

mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a

serpente. Chamou-a alvoroçado.

— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a

embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?

A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o

Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a

mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe

confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse

o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e

pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:

— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao

jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.

— Adão e Eva?

— Sim, Adão e Eva.

— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como

palmeiras?

— Justamente.

— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-

os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...

— É justamente para isso.

— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda,

dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva?

Morderei...

— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim

uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela,

nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles

ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, 

dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, 

tu insistirás, dizendo que é  bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida.

Vai, vai...

— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio

segredo da vida, não?

— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do

mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a

parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito

sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...

Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a

árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco,

caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que

ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a

peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, 

e, com a voz de mel, chamou-a.

Eva estremeceu.

— Quem me chama?

— Sou eu, estou comendo desta fruta...

— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!

— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.

Anda, come e terás um grande poder na terra.

— Não, pérfida!

— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que

te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido,

Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do

céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à

terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais

queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta

obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores

das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de

refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos

teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras,

comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra

as suas flores, tudo, tudo, tudo...

Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta

de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma

outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a

serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.

Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:

— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e

traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às

instigações do Tinhoso.

E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como

um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e

disse-lhes:

— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela

repulsa às instigações do Tinhoso.

Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência;

então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna,

onde miríades de anjos os esperavam, cantando:

— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso,

aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar

impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e

morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da

esperança e da piedade.

E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras,

que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação...

... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor

para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para

os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração

enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira

que falou: 

 — Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que

lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?

— Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.

E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:

— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor,

se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na

verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?

FIM


Adão e Eva, de Machado de Assis

Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.



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