UMA SENHORA de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e
tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas,
grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a
dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam
todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a
responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As
senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora,
que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da
casa, D. Leonor:
— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque
era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião;
porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que
está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral,
riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos
sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da
pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era
gravíssimo.
— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.
— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair
tudo com boa significação.
— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.
— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o
Sr. Veloso conhece outros livros...
— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce
que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam
o contrário.
— Vá lá, diga.
— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus
que criou o mundo, foi o Diabo...
— Cruz! exclamaram as senhoras.
— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.
— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.
— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu
no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou
atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da
salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o
Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No
segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os
furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro
dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto
nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém,
criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o
Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as
estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da
terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de
atenção.
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.
Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo
depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar,
e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com
outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a
misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu,
investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor,
derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e
comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro,
admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os
bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos
de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro,
ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão
puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol
tinha para nenhuma outra parte as mesmas
torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos
primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo.
Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde
iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente
chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia
ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor;
mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a
serpente. Chamou-a alvoroçado.
— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a
embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o
Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a
mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe
confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse
o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e
pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:
— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao
jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.
— Adão e Eva?
— Sim, Adão e Eva.
— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como
palmeiras?
— Justamente.
— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-
os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...
— É justamente para isso.
— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda,
dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva?
Morderei...
— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim
uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela,
nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles
ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe,
dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não,
tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida.
Vai, vai...
— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio
segredo da vida, não?
— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do
mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a
parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito
sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...
Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a
árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco,
caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que
ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a
peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso,
e, com a voz de mel, chamou-a.
Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.
Anda, come e terás um grande poder na terra.
— Não, pérfida!
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que
te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido,
Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do
céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à
terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais
queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta
obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores
das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de
refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos
teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras,
comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra
as suas flores, tudo, tudo, tudo...
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta
de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma
outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a
serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e
traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às
instigações do Tinhoso.
E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como
um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e
disse-lhes:
— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela
repulsa às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência;
então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna,
onde miríades de anjos os esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso,
aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar
impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e
morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da
esperança e da piedade.
E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras,
que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação...
... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor
para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para
os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração
enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira
que falou:
— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que
lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?
— Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:
— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor,
se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na
verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?
FIM
Adão e Eva, de Machado de Assis
Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.