quinta-feira, 31 de março de 2022

Adão e Eva de Machado de Assis

UMA SENHORA de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e

tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas,

grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a

dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam

todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a

responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As

senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora,

que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da

casa, D. Leonor:

— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque

era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.

Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião;

porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que

está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral,

riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos

sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da

pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era

gravíssimo.

— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.

— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair

tudo com boa significação.

— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.

— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o

Sr. Veloso conhece outros livros...

— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce

que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam

o contrário.

— Vá lá, diga.

— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus

que criou o mundo, foi o Diabo...

— Cruz! exclamaram as senhoras.

— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.

— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.

— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu

no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou

atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da

salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o

Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No

segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os

furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro

dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto

nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém,

criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o

Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as

estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da

terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de

atenção.

Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.

Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo

depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar,

e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com

outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a

misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu,

investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor,

derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e

comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."

Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro,

admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os

bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos

de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro,

ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão

puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol

tinha para nenhuma outra parte as mesmas

torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos

primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. 

Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde

iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente

chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos.

Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia

ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor;

mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a

serpente. Chamou-a alvoroçado.

— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a

embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?

A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o

Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a

mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe

confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse

o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e

pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:

— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao

jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.

— Adão e Eva?

— Sim, Adão e Eva.

— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como

palmeiras?

— Justamente.

— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-

os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...

— É justamente para isso.

— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda,

dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva?

Morderei...

— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim

uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela,

nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles

ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, 

dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, 

tu insistirás, dizendo que é  bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida.

Vai, vai...

— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio

segredo da vida, não?

— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do

mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a

parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito

sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...

Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a

árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco,

caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que

ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a

peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, 

e, com a voz de mel, chamou-a.

Eva estremeceu.

— Quem me chama?

— Sou eu, estou comendo desta fruta...

— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!

— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.

Anda, come e terás um grande poder na terra.

— Não, pérfida!

— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que

te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido,

Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do

céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à

terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais

queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta

obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores

das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de

refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos

teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras,

comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra

as suas flores, tudo, tudo, tudo...

Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta

de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma

outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a

serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.

Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:

— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e

traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às

instigações do Tinhoso.

E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como

um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e

disse-lhes:

— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela

repulsa às instigações do Tinhoso.

Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência;

então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna,

onde miríades de anjos os esperavam, cantando:

— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso,

aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar

impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e

morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da

esperança e da piedade.

E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras,

que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação...

... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor

para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para

os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração

enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira

que falou: 

 — Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que

lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?

— Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.

E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:

— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor,

se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na

verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?

FIM


Adão e Eva, de Machado de Assis

Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.



Cora Coralina para educar

Professora usa Cora Coralina para educar

Ebe Lima Siqueira acredita que a força da poesia como arte pode ajudar a transformar o mund

Fernando Victorino, Especial para o Estadão, 28 de março de 2022

Professora de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Goiás, Ebe Lima Siqueira acredita na força da poesia como arte capaz de transformar o mundo. Uma das fundadoras da Associação Mulheres Coralinas, na cidade de Goiás, ela usa a obra de Cora Coralina para educar e promover a afirmação de mulheres. “A gente busca exemplos de resistência locais. Cora é o nosso maior capital cultural”, afirma. 

Na universidade, Ebe atua como mediadora de leitura há 40 anos, mas nos últimos oito sentiu necessidade de compartilhar esse conhecimento acumulado, principalmente sobre os escritos da poeta goiana, para além dos muros da academia. Tudo a serviço de uma causa que sempre julgou importante: o empoderamento feminino. 

Ebe é professora de Literatura e uma das fundadoras da Associação Mulheres Coralinas Foto: MARIANA DE LIMA

“A poesia de Cora tem o caráter formador, porque ela se modifica como pessoa no processo da própria escrita.” A professora conta que a vida da autora guarda semelhanças com a realidade de garis, lavadeiras, cozinheiras, entre outras frequentadoras da associação.

“A própria poesia dela é narrativa e autobiográfica. As mulheres da associação começaram a perceber que Cora havia passado pelas mesmas dificuldades que elas enfrentam”, conta a professora.

Aos 22 anos, Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, foi alvo de preconceito por estar grávida de um homem casado e bem mais velho do que ela. Sem abrir mão de sua paixão, ela se afastou de Goiás por 45 anos para viver no Estado de São Paulo. Foi dona de pensão e, após a perda do marido, teve loja de tecidos, cultivou milho e algodão e vendeu livros antes de publicar o seu primeiro, aos 75 anos.

Até hoje, cerca de 150 mulheres tomaram contato com a vida de Cora Coralina por meio da intersecção entre a escritora, a poeta e a personagem de suas histórias. “Em literatura, a gente chama isso de pacto autobiográfico, que é o que atrai essa leitora que não é iniciada. Elas começam a perceber: ‘Ah, essa menina feia da ponte da Lapa é ela?’”, diz.

Filha de pais ligados à terra e sem escolaridade, Ebe conta que ascendeu socialmente, chegando ao doutorado, “pela condição de leitora de literatura”. Ela também divide sua experiência de vida com as mulheres da associação, mas deixa claro que não é necessariamente o único caminho. “Já a Cora se fez à margem desse conhecimento formal. Frequentou três anos de uma escola multisseriada. Ela é conhecida por ter sido uma professora de humanidades.” Ebe frisa que o seu papel de mediadora é ajudar as mulheres da associação a tecer a própria trajetória.

No começo, só a professora lia poemas selecionados para a turma. Aos poucos, as frequentadoras também pediram para ter voz ativa nos encontros. Atualmente, algumas dessas mulheres, com idades que vão dos 16 aos 87 anos, vocalizam a poesia de Cora pela cidade goiana. “Elas são convidadas a abrir eventos, seminários, vão a universidades”, conta a professora.

Semanais, as reuniões da Associação Mulheres Coralinas são abertas e fechadas com a leitura de um texto. O repertório se estendeu a outras autoras, casos de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Leodegária de Jesus, goiana nascida em agosto de 1889, como Cora.

Na associação, que promove rodas de conversa entre as participantes, as mulheres também são incentivadas a desenvolver habilidades manuais, a fim de que possam ganhar autonomia financeira. Quatro grupos se revezam em atividades como bordado, gastronomia e cerâmica.

A iniciativa vale até para quem já trabalha em algum desses ofícios. “Às vezes, a pessoa é bordadeira, mas não tem onde vender a sua peça. Ou só borda um tipo de coisa. Se vem para o coletivo, a formação dela é ampliada e existe a chance de venda coletiva”, explica a professora.

Os versos de Cora estampam peças de artesanato, como bonecas de pano, artigos para casa e marcadores de livro. Na pandemia, foram parar em 6 mil máscaras. Em janeiro, a associação ganhou uma sede, erguida com tijolos de adobe amassados e assentados pelas mulheres. Os recursos vieram do Ministério Público do Trabalho de Goiás em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Quando não está na sede ou auxiliando alguém, Ebe é encontrada diante do computador, preparando novos projetos ou prestando contas de parcerias anteriores. Ela vê próximo o fim de seu ciclo de quatro décadas de magistério, mas sabe que ninguém deixa de ser professor. E quer que a universidade enxergue o papel da extensão como foco. “Só faz sentido fazer pesquisa se ela volta para a comunidade na forma de benefícios para mudar a qualidade de vida das pessoas.”

É mais fácil imaginarmos o fim do mundo que o fim do capitalismo

O MST no mercado financeiro

Paulo Ghiraldelli, 31/03/2022

Por e-mail me chegou o espanto junto da indignação: “professor, o senhor viu que o MST está no mercado financeiro?” “O que o senhor acha disso?”. Na época, não pude abordar o tema como gostaria. Queria saber mais sobre o ocorrido, para então falar sobre o assunto. Passado algum tempo, e tendo lido mais sobre o projeto a que o e-mail se referia, notei que o que eu temia desde o início havia acontecido: “é mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha que o banqueiro abandonar a lógica neoliberal”.

O autor da proeza de colocar o MST no mercado financeiro não poderia ser outro: Eduardo Moreira, um homem que, a caminho de Damásco, teve um ataque epilético e, uma vez no chão, perto das patas de seu cavalo, escutou a voz de uma profunda má consciência dizendo: “Moreira, Moreira, por que dá cursos de educação financeira enganando tanto gente? Tente fazer algo honesto”. Isso bateu no coração do rapaz!

Tendo escutado isso, esse moço passou uns tempos em acampamentos de pobres, para ver como de fato era ser alguém sem dinheiro. Saído de lá, voltou para casa e então disse a si mesmo no espelho: eu faria bem ao Brasil, agora que descobri que muitos brasileiros são pobres, se eu fosse ministro. E então criou uma igreja de nome “o conhecimento liberta”. Nada que Bolsonaro também não pudesse fazer, já que a frase do capitão é “conheceis a verdade e ela vos libertará”. Aliás, como essa gente da política gosta de igreja!

Uma vez tornado “militante voluntário” do MST, Eduardo Moreira convenceu os produtores de um acampamento de que ele poderia resolver o problema do crédito, que eles dificilmente conseguiriam em bancos. Então, ele criou títulos de dívida do MST, com juros não maiores que os da caderneta de poupança, e procurou investidores. O mercado financeiro é regido pelo lucro relativamente imediato, claro. Desse modo, só ele próprio, Eduardo, e mais cinco amigos compraram os títulos. Ele mesmo confessa isso em entrevista https://theintercept.com/2021/12/16/vivemos-ditadura-sistema-financeiro-ex-banqueiro-trabalha-mst-eduardo-moreira/ de 2021, para o The Intercept. Depois, conseguiu mais pessoas, mas nada que pudesse ser significativo a ponto dele não dizer, ao final, que a questão toda depende da entrada, no negócio, de bancos públicos. E isso dependeria de um novo governo, ele sabe e disse. Em resumo, ele ensinou algo que só Leandro Banal Karnal conseguiria fazer de modo mais proveitoso e inédito: é preciso para o produtor rural o financiamento do Banco do Brasil, com política agrícola que não esta que está aí. Fan-tás-ti-co!

Desse modo, Eduardo Moreira deixou claro na entrevista algo que ele, ao longo dela, depois dessa confissão, tenta escamotear: banco é banco e capitalismo é capitalismo, e querer domar ambos não é coisa de banqueiro, arrependido ou não. Banqueiro serve ao capitalismo, ele é instrumento dele, mesmo quando abandona o cargo.

Ele teria feito melhor se usasse de filantropia. Ele e os amigos poderiam sustentar certos acampamentos por filantropia, e não pelo desvio de rota, através da compra de títulos. Isso não vinga de modo efetivo, pois no limite, como projeto de política, o Banco do Brasil – como ele confessa – tem de entrar na jogada. Além disso, utilizando da filantropia pura e simples (como o filósofo Peter Sloterdijk defende, chamando tal coisa de “uso inteligente do dinheiro”), ele evitaria enfiar a lógica do sistema financeiro no MST. Há centenas de Ongs maiores que todo o MST que vivem assim. Ele evitaria de fazer as pessoas do MST acreditarem no neoliberalismo. Mas, isso seria pedir muito ao Eduardo, ele próprio não conhece outra lógica. Mesmo quando critica o neoliberalismo, Eduardo o faz segundo a ótica de um banqueiro. O capitalismo é, para ele, intocável. “É mais fácil imaginarmos o fim do mundo que o fim do capitalismo” – eis a regra que dirige cada neurônio do Eduardo Moreira.

Mas, há mais motivos para Eduardo não ser filantropo e sim investidor. Como filantropo ele não estaria fazendo vingar o futuro que ele mesmo traçou para a sua vida. Agir como filantropo não o levaria a uma posição de destaque no MST, muito menos o colocaria diante de Lula, que semi-ironicamente não o chamou de pessoa inteligente, mas de “esperto”. Moreira precisava estar diante de Lula com algo na mão que não fosse dinheiro, mas uma ideia! Eduardo Moreira sabe – mesmo que negue até para si mesmo – que está se candidatando a algum cargo governamental. Afinal, o PT adora um banqueiro!

Moreira preferiu antes vender a lógica liberal para o MST que simplesmente fazer uma doação ou preparar um conjunto de doações. O importante era exibir um “projeto” em que o capitalismo financeiro aparecesse como que podendo ajudar as cooperativas e os pobres. Ora, o dinheiro da filantropia viria com bem menos compromissos. E não seria novidade!

O mais estranho disso tudo é que o PT já possuía projetos de “economia solidária”, vindos do socialista Paul Singer e equipe, bastante desenvolvidos. E estes não foram produzidos segundo o modelo de condescendência em relação à logica do capitalismo financeiro. Mas, tudo indica, o PT sempre será religioso (vício de origem?), e por isso nunca irá negar o que Jesus disse a respeito de si mesmo na avaliação do povo de sua Terra: “santo de casa não faz milagre”. Além do mais, a ideias de Singer tinham um defeito: não eram da ordem do milagre, que sempre atordoa porque se apresenta novidadeiro. Novidade é tudo que atrai políticos em campanha e o marketing de qualquer época.

Na verdade, só o capitalismo faz milagre, faz o dinheiro entrar no banco como cem reais e virar duzentos dentro do banco. Vender títulos do MST certamente é um milagre que irá não reverter em grande coisa para o MST, mas poderá certamente dar caminho para o Moreira em algum ministério. Isso vai depender de quanto havia de mais ou menos ironia na frase de Lula, que chamou o moço de “esperto”, e se negou de chamá-lo de inteligente.

Essa novela terá mais capítulos, vocês verão. Mas nenhum diferente do odor do sovaco de Margareth Thatcher.

Paulo Ghiraldelli, 65, filósofo, escritor, professor e jornalista.

A LÓGICA NEOLIBERAL PENETRA O MST [31/03/2022]


quarta-feira, 30 de março de 2022

5G mais rápido, mas gasta mais

Em testes, 5G é mais rápido, porém celular consome mais bateria que 4G 

Aurélio Araújo, Colaboração para Tilt, em São Paulo, 27/03/2022

O 5G, última novidade em tecnologia de internet móvel, pode ser até 20 vezes mais rápido que o 4G, https://www.uol.com.br/tilt/faq/o-que-e-5g-tire-suas-duvidas-sobre-a-quinta-geracao-da-telefonia.htm mas essa velocidade toda não vem de graça: ele também consome bem mais bateria. A repórter Nicole Nguyen, do jornal americano "The Wall Street Journal", conduziu alguns testes utilizando iPhones para mostrar as diferenças de gasto de energia.

Se, no Brasil, as frequências de rádio para o serviço de 5G foram leiloadas no ano passado e só devem chegar ao público em geral daqui a alguns meses (e ainda assim, em locais muito restritos), nos Estados Unidos, já é possível usar essa tecnologia. Mas, segundo Nguyen, mesmo lá ela ainda não está disponível em todo lugar.

Antes de tudo, é preciso lembrar que, para navegar no 5G, é preciso ter um smartphone ou tablet que ofereça o suporte para a tecnologia. Já há vários desses modelos no Brasil, e eles são predominantes entre os novos lançamentos. 

iPhone 13 Pro Imagem: Divulgação

O 5G é mesmo muito rápido

A repórter afirma que, ao andar pela cidade de San Francisco, na Califórnia, ela encontrou diferentes velocidades de 5G para download, que variam entre 160 e 361 Mbps (sigla para "megabits por segundo", unidade de medida de velocidade de internet). As velocidades estão muito acima do que Nguyen encontrou quando fez downloads em 4G, quando elas ficaram em torno de 55 a 144 Mbps. A rapidez é ainda mais impressionante quando se considera que a velocidade média da internet de todos os EUA foi de 99,3 Mbps ao longo de 2021.

Um detalhe: a variação na velocidade atestada pela jornalista se dá porque, ao andar, passamos por prédios altos, árvores e outros obstáculos que interferem no oferecimento do sinal. Todos nós já sentimos isso ao tentar usar o 4G, por exemplo, numa garagem subterrânea, onde o sinal chega de forma muito menos intensa. 

Mas a bateria sofre

A repórter então fez uma comparação entre o 5G e o 4G usando dispositivos diferentes, cada um configurado para utilizar uma dessas tecnologias de internet móvel. Para isso, colocou ambos para reproduzirem um vídeo longo no YouTube, de imagens relaxantes do oceano, com a qualidade de vídeo configurada em "Auto" no player. Esse é um detalhe importante: ao configurar a qualidade de vídeo para "Auto", o player do YouTube busca alguns fatores (como tipo de conexão e tamanho de tela) para encontrar a qualidade ideal de transmissão de vídeo ininterrupta, ou seja, sem ter que parar para carregar.

Os aparelhos escolhidos por Nguyen foram todos da Apple: no novo iPhone SE (2022) e no iPhone 13 Pro, ela fez o teste utilizando 4G e 5G oferecidos pela operadora T-Mobile. Já no iPhone 13 Mini e no novo iPad Air, ela fez o teste usando 4G e 5G de outra operadora, a Verizon. Assim, o iPhone SE durou uma hora a mais no 4G do que no 5G, enquanto o iPad Air e o iPhone 13 Mini duraram uma hora e meia a mais no 4G.

Mas fica uma ressalva: esse tipo de teste, como a própria Nguyen admite, não diz tanto sobre o tempo de duração da bateria, já que ninguém fica por horas com a tela ligada assistindo um único vídeo. Ele ajuda a evidenciar, porém, como o desempenho da bateria é mais exigida pelo 5G do que pelo 4G. 

O que fazer?

É claro que, para nós brasileiros, a preocupação com consumo de bateria no 5G ainda é uma questão de luxo — por aqui há apenas conexões 5G DSS, considerado um "5G de transição". Mas existe uma maneira de fazer com que seu telefone use menos bateria, alterando suas configurações. No menu sobre uso de dados móveis do smartphone, é possível colocá-lo para alternar entre 4G e 5G, dependendo da tarefa a ser executada. Nos aparelhos da Apple, por exemplo, isso é conhecido como "Smart Data Mode" (modo de dados inteligente). Assim, para baixar um filme, ou seja, uma tarefa pesada, o smartphone usará o 5G.

Mas, para tarefas mais leves do dia a dia, como o envio de uma mensagem ou a checagem de um e-mail, o smartphone automaticamente busca usar o sinal 4G, que resolve o problema sem muito gasto de energia. Agora, é claro, existe uma opção muito mais simples: desligar o 5G por conta própria e só ativá-lo quando for necessário. Seja como for, por enquanto, essa ainda não é uma preocupação em nosso país.


5G vem aí: entenda por que o leilão do Brasil foi o maior do mundo

De Tilt, em São Paulo* 07/11/2021

O leilão para a exploração e oferta do 5G no Brasil terminou na sexta-feira (5) definindo quais empresas poderão levar a internet móvel de última geração aos brasileiros a partir de 2022. Ao todo, o certame rendeu R$ 46,790 bilhões. Trata-se do maior leilão de faixas de frequência da história do país —para se ter uma ideia, a venda das faixas do 3G rendeu R$ 7 bilhões; do 4G movimentou R$ 12 bi; e a privatização da Telebras, R$ 22 bi. Para analistas, incluindo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento) foi também o maior leilão de 5G do mundo.

O motivo para esse sucesso tem a ver com a quantidade de faixas de radiofrequência e o tamanho de cada uma. Foram vendidas quatro bandas: 700 MHz; 2,3 GHz; 26 GHz e 3,5 GHz —esta última, que é a mais usada pelo 5G no mundo, teve mais de 400 Mhz de largura de espectro em oferta. 

O bolo do 5G

Calma que a gente explica. Pense no 5G como um bolo, em que cada uma dessas faixas de frequência é representada por uma camada de recheio. A Claro, por exemplo, abocanhou uma fatia com três camadas: a de 3,5 GHz; a de 2,3 GHz; e a de 26 GHz. Já a novata Brisanet pegou uma fatia só com 3,5 GHz e 2,3 GHz. Embora as duas tenham levado para casa um pedaço da camada de 3,5 GHz, o tamanho da fatia foi menor para cada uma. A Claro levou uma fatia larga, de 100 Mhz, enquanto a Brisanet ficou só com um corte de 80 Mhz, destinado especificamente ao Nordeste e ao Centro-Oeste do Brasil.

O que importa, porém, é o tamanho do bolo, que permitiu não só que empresas mais tradicionais como Claro, Vivo e Tim participassem, mas deu espaço também para a entrada de novas operadoras que até agora não forneciam internet móvel para tantas regiões do país. 

Ao todo, o "bolo" do 5G tinha 3,7 GHz em diâmetro de capacidade espectral: 400 MHz nos 3,5 GHz; 20 MHz nos 700 MHz; 90 MHz nos 2,3 GHz; 3,26 GHz nos 26 GHz. 

"Nunca vi tanto espectro sendo leiloado assim de uma única vez", comentou Francisco Soares, então vice-presidente de relações governamentais da Qualcomm, maior fabricante de processadores para celulares do mundo, em entrevista concedida a Tilt em 2020.

"Se você somar as frequências que as operadoras têm em uso com 2G, 3G e 4G dá uns 600 MHz. O leilão trará mais de seis vezes o que a gente tem em operação hoje", acrescentou Tiago Machado, então diretor de relações institucionais da Ericsson, que fabrica equipamentos de telecomunicação, na mesma ocasião.

Serão ofertadas 4 faixas de frequência:

Quatro leilões em um Vale lembrar que o leilão do 5G não foi só do 5G. Segundo Leonardo Euler Morais, que terminou seu mandato como presidente da Anatel no primeiro dia do leilão, foram "quatro leilões em um", considerando o número de faixas disponíveis. Além disso, partes das frequências que foram vendidas serão usadas, a princípio, para o 4G e são uma espécie de "sobra" de outra licitação. É o caso da faixa de 700 MHz. Em 2014, Tim, Claro e Vivo arremataram porções do espectro que já estão sendo usadas para oferecer 4G com maior alcance —o modelo inicial adotado no país era o que operava na faixa dos 2,5 GHz. Dessa vez, quem levou os 700 MHz foi a startup Winity, de São. 

Para o 5G comercial serão usadas as faixas do 3,5 GHz e do 26 GHz. Esta última é chamada de faixa milimétrica e oferece alta capacidade de transmissão, o que inclui também maior velocidade. Vivo e Claro, que arremataram a parcela nacional do 26 GHz, em contrapartida terão que levar internet de qualidade para escolas públicas. Mas muitos lotes dessa faixa não chegaram a ser vendidos para ninguém. Segundo Abraão Balbino, presidente da Comissão de Licitação do Leilão das frequências do 5G, isso aconteceu porque a faixa se refere a uma iniciativa exploratória. Com isso, existem incertezas por parte das empresas de como a tecnologia poderá ser implementada.

"A gente disponibilizou muito espectro para ver até onde ia. Obviamente há incertezas e eu entendo que isso faz com que haja um desejo um pouco menor nessa faixa do que em outras. Mas isso é esperado. Todo leilão tem sobras de espectro", explicou durante entrevista coletiva após o leilão, na sexta. 

*Com reportagens de Helton Simões Gomes, Abinoan Santiago e Letícia Naísa.

Em tempo:

O nó górdio do século 

Velocidade de internet no Brasil está abaixo da média e expõe desigualdade 

5G, o edital no Brasil 


terça-feira, 29 de março de 2022

Oscar 2022

Oscar 22: deu a roliudi de sempre. Com três honrosas exceções. A premiação de melhor documentário para 'Summer of soul' (maravilhoso). Como melhor filme internacional: 'Drive my car" (filme espetacular). E por fim melhor direção para Jane Campion do filme 'Ataque dos cães', o filme mais injustiçado da noite. 

Vencedores do Oscar 2022, Lara Deus

MELHOR FILME

Belfast

No Ritmo do Coração - VENCEDOR

Não Olhe para Cima

Drive My Car

Duna    

King Richard: Criando Campeãs

 Licorice Pizza

 O Beco do Pesadelo 

Ataque dos Cães

Amor, Sublime Amor

MELHOR DIRETOR

Kenneth Branagh (Belfast)
Ryûsuke Hamaguchi (Drive My Car)
Paul Thomas Anderson (Licorice Pizza)
Jane Campion (Ataque dos Cães) - VENCEDORA
Steven Spielberg (Amor, Sublime Amor)

MELHOR ATRIZ

Jessica Chastain (Os Olhos de Tammy Faye) - VENCEDORA
Olivia Colman (A Filha Perdida)
Penelope Cruz (Mães Paralelas)
Nicole Kidman (Apresentando os Ricardos)
Kristen Stewart (Spencer)

MELHOR ATOR

Javier Bardem (Apresentando os Ricardos)
Benedict Cumberbatch (Ataque dos Cães)
Will Smith (King Richard: Criando Campeãs) - VENCEDOR
Denzel Washington (A Tragédia de Macbeth) 

Andrew Garfield (Tick, Tick... Boom!)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE

Jessie Buckley (A Filha Perdida)
Judi Dench (Belfast)
Kirsten Dunst (Ataque dos Cães)
Aunjanue Ellis (King Richard: Criando Campeãs)
Ariana DeBose (Amor, Sublime Amor) - VENCEDORA

MELHOR ATOR COADJUVANTE

Ciarán Hinds (Belfast)
Kodi Smit-McPhee (Ataque dos Cães)
Troy Kotsur (No Ritmo do Coração) - VENCEDOR
J.K. Simmons (Apresentado os Ricardos)
Jesse Plemons (Ataque dos Cães)

MELHOR ROTEIRO ORIGINAL

Belfast - VENCEDOR

Não Olhe para Cima
King Richard: Criando Campeãs
Licorice Pizza
A Pior Pessoa do Mundo

MELHOR ROTEIRO ADAPTADO

No Ritmo do Coração - VENCEDOR
Drive My Car
Duna
A Filha Perdida
Ataque dos Cães

MELHOR FILME INTERNACIONAL

Drive my Car (Japão) - VENCEDOR

Flee (Dinamarca)
A Mão de Deus (Itália)
A Pior Pessoa do Mundo (Noruega)
A Felicidade das Pequenas Coisas (Butão)

MELHOR ANIMAÇÃO

Encanto - VENCEDOR
Flee
Luca
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas
Raya e o Último Dragão

MELHOR DOCUMENTÁRIO

Ascensão
Attica
Flee
Summer of Soul (...Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada) - VENCEDOR

Escrevendo com Fogo

MELHOR MONTAGEM

Não Olhe para Cima
Duna - VENCEDOR
King Richard: Criando Campeãs
Ataque dos Cães
Tick, Tick... Boom!

MELHOR FOTOGRAFIA

Duna - VENCEDOR
O Beco do Pesadelo
Ataque dos Cães
A Tragédia de Macbeth
Amor, Sublime Amor

MELHOR DIREÇÃO DE ARTE

Duna - VENCEDOR
O Beco do Pesadelo
Ataque dos Cães
A Tragédia de Macbeth
Amor, Sublime Amor

MELHOR FIGURINO

Cruella - VENCEDOR
Cyrano
Duna
O Beco do Pesadelo
Amor, Sublime Amor

MELHOR CABELO E MAQUIAGEM

Um Principe em Nova York 2
Cruella
Duna
Os Olhos de Tammy Faye - VENCEDOR
Casa Gucci

MELHOR EFEITOS VISUAIS

Duna - VENCEDOR
Free Guy
007: Sem Tempo para Morrer
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Aneis -
Homem-Aranha: Sem Volta para Casa

MELHOR SOM

Belfast
Duna - VENCEDOR
007: Sem Tempo para Morrer
Ataque dos Cães
Amor, Sublime Amor

MELHOR TRILHA SONORA

Não Olhe para CIma
Duna - VENCEDOR
Encanto
Mães Paralelas
Ataque dos Cães

MELHOR CANÇÃO

“Down To Joy” (Belfast)
“Dos Oruguitas” (Encanto)
“Somehow You Do” (Quatro Dias com Ela)
“Be Alive” (King Richard: Criando Campeãs)
“No Time To Die” (007: Sem Tempo para Morrer) - VENCEDOR

MELHOR CURTA METRAGEM

Ala Kachuu - Take and Run
The Dress
The Long Goodbye - VENCEDOR
On My Mind
Please Hold

MELHOR DOCUMENTÁRIO EM CURTA METRAGEM

Audible
Onde Eu Moro
The Queen of Basketbal - VENCEDOR
Três Canções para Benazir
When We Were Bullies

MELHOR CURTA ANIMADO

Affairs of the Art
Bestia
Boxballet
A Sabiá Sabiazinha
The Windshield Wiper - VENCEDOR

domingo, 27 de março de 2022

Irací Hassler, a prefeita de Santiago do Chile

Filha de brasileira e fã de Elis Regina, prefeita de Santiago propõe gestão feminista. Irací Hassler afirma que fará de tudo para que manifestações não sejam mais reprimidas com brutalidade na capital

Sylvia Colombo, FSP, 26 de março de 2022

Santiago - É em bom português que a nova prefeita de Santiago, Irací Hassler, 31, conta que é fã de MPB e adora Elis Regina. "O idioma está na minha vida pela música e pelos parentes a quem sempre visito no Brasil", conta. Com a família por parte de mãe saída do Piauí e hoje morando no Rio, ela tem raiz brasileira também no primeiro nome, de origem tupi-guarani.

Hassler assumiu a prefeitura da principal comuna do país há oito meses — a capital é dividida nesses subgrupos, e o de Santiago corresponde ao centro histórico e aos principais bairros —, filiada a uma das legendas da base de apoio do presidente Gabriel Boric, o Partido Comunista.

Irací Hassler, nova prefeita da comuna de Santiago, no Chile - Reprodução do Instagram @iracixstgo

Ela conta que começou na militância por volta de 2011, época das intensas manifestações estudantis  que levariam à política vários dos colegas de sua geração, incluindo o recém-empossado mandatário e os agora ministros Camila Vallejo e Giorgio Jackson.

No último dia 19, Hassler foi a um evento especial para ela: no Teatro Municipal, pela primeira vez a Orquestra Filarmônica de Santiago foi dirigida por uma mulher, Alejandra Urrutia, 46. "O feminismo está na minha gestão de modo transversal, da área de segurança até a de cultura. Não é apenas mais um setor do governo. Essa é uma gestão feminista em todas as áreas", disse à Folha.

Como é sua relação com o Brasil? Minha mãe nasceu no Piauí e se mudou para o Rio de Janeiro. Quando conheceu meu pai, que é chileno, veio para o Chile e aqui nascemos eu e meus irmãos. Mas eles até hoje sonham em voltar. Toda a família da minha mãe continua no Rio. Além de falar português sempre com ela, tenho uma relação intensa com a cultura. Adoro MPB, Chico Buarque, Caetano Veloso, e recentemente descobri Os Mutantes. É uma forma de manter o idioma sempre na minha cabeça também. De todos os artistas, acho que uma das que mais gosto é Elis Regina, pela música e por sua potência, sua energia.

Como a sra. define sua formação política? Começou com o movimento estudantil. Entrei na Universidade do Chile quando aquilo estava fervilhando e passei a me envolver de modo muito ativo. Primeiro no curso, no modo como se ensinava economia, depois com os temas da sociedade. Acho que, para a minha geração, o movimento estudantil foi definidor, mesmo para aqueles que depois decidiram não entrar na política. Foi algo de massas, aguçava nossa vontade de refletir sobre o mundo em que vivemos. E como é sair disso para a realidade de estar no escritório da prefeitura, administrando Santiago? Somos uma geração que tem bastante consciência da responsabilidade. Estamos muito felizes, é claro, com esse momento histórico que nos deu a chance de chegar onde estamos. Mas somos conscientes do que foi feito para que tivéssemos essa oportunidade, dos que lutaram pelo fim da ditadura, pela democracia. É como se fôssemos parte de uma realidade muito maior. Dirigir a principal comuna de Santiago, com Boric na Presidência, gera grande expectativa. O Chile é um país de desigualdades profundas. De uma falta de acesso de grande faixa da população a direitos elementares. De um grande desrespeito a nossos recursos naturais.

A sra. começou no cargo antes do presidente, há oito meses. Quais foram os principais desafios até aqui? Eu gostaria que isso fosse um projeto de cogestão com a população. Mas isso é difícil realizar de uma só vez. Encontrei uma precariedade muito grande no que diz respeito a essa relação e à estrutura do governo local. Acho que uma das principais preocupações dos cidadãos é recuperar os empregos que se perderam. Mas se nós, como nova geração política, apenas entregarmos os empregos, não estaremos fazendo as coisas bem. Queremos entregar um novo tipo de emprego, com um novo tipo de participação trabalhista. Da minha parte, já começamos um trabalho de recuperação da área verde, de dar vida a esses espaços, um pouco para sinalizar a importância que damos a isso para o país. Para isso, precisamos de mais espaços públicos. Espero que agora, com a saída de Sebastián Piñera e a chegada de Boric, possamos contar mais com o apoio do governo nacional.

Na prefeitura, a sra. tem de lidar com as consequências da crise migratória. Como tem sido isso? A comuna de Santiago é muito diversa, multicultural, assim como o país. Mas aqui estamos recebendo uma cifra enorme de imigração. A crise migratória do norte do país desemboca aqui. Creio que faltam políticas públicas e, nesse sentido, também espero poder trabalhar melhor com Boric do que foi com Piñera. Quero que Santiago seja uma comuna de acolhimento. Para isso é preciso construir albergues — e um que estamos construindo não vai ser suficiente para a quantidade de gente que precisa —, mas não é só isso. Queremos que essas pessoas tenham direitos sociais respeitados, possam buscar empregos, ser cidadãos independentemente de seus locais de origem. E é preciso que isso caminhe com as políticas nacionais para regulamentar a imigração. Vamos apoiar e acompanhar o que decida o presidente.

Ainda há muitas barracas no centro da cidade, ocupadas por imigrantes que não têm onde dormir. 

Sim, é um problema que ainda não conseguimos resolver, mas que, como eu dizia, depende de vários fatores, várias políticas. Estamos estabelecendo parcerias com ONGs de direitos humanos, mas precisamos de um papel mais ativo do Ministério de Desenvolvimento Social, do governo em seu conjunto.

Como economista, como vê a situação do Chile? A inflação está alta (7,7% ao ano), o Congresso debaterá uma nova retirada de fundos das pensões privadas. É um cenário alentador? Não. Precisamos que o Chile funde um novo modelo de desenvolvimento, baseado não apenas no extrativismo de nossos recursos naturais, mas na criação de valor de nossa economia. Precisamos fortalecer o emprego decente no Chile, porque isso se deteriorou muito durante a pandemia. Sobre o "quinto retiro", é importante que o governo apresente uma proposta mais estrutural em relação a como enfrentar os problemas, para evitar que se chegue a isso. Uma nova retirada [dos fundos] debilitaria ainda mais nossa economia e aumentaria os preços. É por isso que é necessário construir alternativas, espero que o governo possa colocá-las sobre a mesa a tempo.

A prefeita de Santiago, Irací Hassler, e o novo presidente do Chile, Gabriel Boric - 10.mar.22/Presidência do Chile via AFP

A repressão aos protestos de 2019 foi brutal. Hoje, como autoridade local, como vê a necessidade de, por exemplo, deter um protesto com gás lacrimogêneo, como ocorreu no dia da posse de Boric? Em primeiro lugar, é preciso resguardar o direito à expressão sem abusar do uso da força. O governo Piñera fracassou nisso, porque tomou más decisões e porque tinha uma perspectiva tremendamente autoritária. Declarou guerra ao povo do Chile por causa das manifestações. Hoje espero que o Ministério do Interior possa ter um trabalho distinto, acompanhar os protestos com respeito aos direitos humanos e cuidar da ordem pública. Sempre fui crítica das bombas de gás lacrimogêneo, porque afetam muito a saúde das pessoas. Há que se buscar melhores mecanismos. O fundamental é evitar a violação dos direitos humanos e resguardar que os atos permitam que a vida cotidiana continue. Ainda não encontramos o mecanismo ideal para esse desafio, mas o direito à manifestação estará garantido nessa gestão, ele é essencial numa democracia. [Na sexta, 25, um estudante foi baleado no tórax por um policial num ato na capital que pedia a revisão do valor do vale-alimentação. A ministra do Interior classificou o fato como gravíssimo.]

A sra. instalou uma seção na prefeitura apenas para temas de gênero. Como isso vem funcionando? Essa será uma gestão feminista de modo transversal, haverá um olhar de gênero em todas as áreas. Fazemos acompanhamento nas áreas da educação, cultura, segurança, realizamos capacitação com quase todos os servidores. A ideia é que funcionários capacitados estejam em todas as áreas de atenção ao público, dos trabalhadores administrativos aos carabineros [policiais].

A sra. mantém contato com figuras políticas do Brasil? Pude conhecer Anielle Franco, irmã de Marielle [esteve na posse de Boric como convidada], e nos demos muito bem. Tenho enorme interesse nas lutas da comunidade negra do Brasil e quero aprender mais sobre isso, daí a vontade de fortalecer esse vínculo.

Raio-X | Irací Hassler, 31

Nascida em 6 de novembro de 1990, é prefeita da comuna de Santiago desde junho de 2021. Ex-vereadora, foi porta-voz da campanha presidencial de Gabriel Boric. Estudou economia e engenharia na Universidade do Chile.


Documentários no Oscar 2022

Sobre Woodstock, ‘Summer of Soul’ é favorito a levar o Oscar de melhor documentário
Produção concorre com o brasileiro 'Onde Eu Moro', de Pedro Kos

Luiz Carlos Merten, Especial para o Estadão, 26 de março de 2022

Não é só o casal de cineastas indianos Rintu Thomas e Sashmit Ghosh que está fazendo história no Oscar de documentário, inscrevendo a Índia, pela primeira vez, na disputa do prêmio da categoria, com Escrevendo com Fogo. Independentemente de ganhar, ou não, o dinamarquês Jonas Poher Rasmussen já conseguiu um feito nunca visto na história da Academia. Seu longa Flee – A Fuga conta, em primeira pessoa, a história de um refugiado. A excepcionalidade de Flee liga-se ao fato de que foi selecionado em três categorias, concorrendo como melhor documentário, melhor animação e melhor filme internacional. 

Cinéfilo de carteirinha já sabe, talvez já tenha visto. Flee integrou a programação do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade no ano passado. Será distribuído no Brasil pela Diamond. Ainda sem data de exibição, a distribuidora só informa que não se chamará A Fuga. Os demais documentários indicados são o belíssimo.

Summer of Soul, de Questlove, que resgata o festival de música afro-americana que se realizou simultaneamente com o de Woodstock, em 1969; Ascension, de Jessica Kingdon, que investiga a divisão de classes na sociedade chinesa; e Attica, de Stanley Nelson e Traci A. Curry, sobre a chacina de presos na penitenciária norte-americana, em 1971.

A tragédia de Attica já teve versões ficcionais por John Frankenheimer e Marvin Chomsky. A nova versão utiliza material inédito de arquivo, somado a entrevistas com os últimos sobreviventes ainda vivos. Summer of Soul é um daqueles achados raros. Os registros filmados do Harlem Cultural Festival de 1969 foram localizados num porão, em estado precário. Integrante do grupo de hip-hop The Roots, Questlove – multi-instrumentista, produtor e jornalista musical, além de DJ – recuperou o material e assina a realização. O filme vai além do registro da música e documenta as mudanças comportamentais da população negra, à luz do movimento por direitos nos anos 1960. 

Será o provável vencedor – embora Flee também esteja cotado. Não na categoria de longa, mas de curta, o Brasil concorre ao Oscar de documentário com Onde Eu Moro, de Pedro Kos, sobre a luta por moradia. O curta, ótimo, está na carteira da Netflix.

Summer of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) | Trailer Oficial

Attica Official Trailer (2021) | SHOWTIME Documentary Film

Cineasta brasileiro concorre ao Oscar com curta-metragem "Onde Eu Moro"

Writing With Fire
(Escrevendo com fogo)

Fuga – Nenhum Lugar Para Chamar De Lar” (“Flee”)

Ascension Trailer | MTV Entertainment Studios


sábado, 26 de março de 2022

Benjamín Labatut, "Quando deixamos de entender o mundo"

Sonâmbulo.

Terceiro livro do chileno Benjamín Labatut é fascinante até para quem é “de humanas”

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 26 de março de 2022

Há gente que organiza sua biblioteca pelo nome dos autores, por gênero, idioma, país, soube até que pela cor da capa, mas por afinidades mais específicas ainda estou para ver. 

Imagine uma ou várias estantes dedicadas exclusivamente às obras de Borges, Roberto Bolaño, G.W. Sebald e outros alheios às fronteiras entre a ficção e a não ficção, por exemplo. É aí que teríamos de acomodar Quando Deixamos de Entender o Mundo, do chileno (nascido na Holanda) Benjamín Labatut, de 41 anos, que a editora Todavia traduziu diretamente do espanhol, sem contudo seguir o título original (Un Verdor Terrible), optando pela versão inglesa, extraída do último capítulo.

Bolaño, Alejandro Zambra, Gabriel Boric  – e agora, Labatut. Que fase boa vive o Chile. 

Nascido na Holanda, o escrito Benjamín Labatut é uma das vozes mais promissoras da literatura escrita em espanhol  Foto: Editora Todavia

 Sensação literária internacional, neste seu anômalo romance de não ficção sobre pessoas e ideias estranhas, todas, sem exceção, reais e abordadas sem xaveco, Labatut imbrica vidas e experiências de matemáticos, físicos e químicos geniais, atormentados, obsessivos e prometeicos com espantosa mestria. 

Resultado: uma obra inclassificável, perturbadora, fascinante até para quem é “de humanas” e potencialmente alheio às esferas da ciência, da matemática avançada, da mecânica quântica e da física nuclear.

Na medida em que descortina a origem de venenos e drogas (como o cianureto) utilizados para o bem do planeta (fertilizantes), da estética (azul da Prússia) e desgraça do inimigo (guerra bioquímica), o terceiro livro de Labatut ganhou incômoda atualidade com a atual crise do meio ambiente e o conflito Rússia-Ucrânia

Singular meditação sobre a guerra e o nazismo, seus heróis e vilões são cientistas mais (Einstein, Bohr, Heisenberg) e menos (Alexander Grothendieck, Karl Schwarzchild, Fritz Haber) conhecidos do público em geral, que inventaram prodígios e se meteram em experimentos de dois gumes, sem se darem conta de que nos arrastavam, qual sonâmbulos, rumo ao Apocalipse. “Os átomos que destruíram Hiroshima e Nagasaki  não foram separados pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações” – repete Labatut em duas oportunidades, citando um dos vilões arrependidos. 

Desde Os Anéis de Saturno, de Sebald (mencionado por Labatut nos agradecimentos), um livro não me pegava com tamanha facilidade e igual envolvimento. Com tantos fatos palpitantes e personagens assombrosos, por que o autor não fez um livro sem qualquer registro ficcional? “Porque há verdades que só a literatura consegue alcançar”, respondeu Labatut a um entrevistador de TV. O que, aliás, é outra verdade. 

...................

Quando deixamos de entender o mundo, Editora Todavia, 2021

Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de "O coração do coração", uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de "um quebra-cabeça cuja tampa se perdeu" ― para aproveitar a metáfora com que Labatut descreve o jovem Heisenberg brincando com as matrizes que o levarão a for mular a mecânica quântica. Protagonizado não somente por cientistas famosos como Einstein e Schrödinger, mas também por figuras menos conhecidas e igualmente fascinantes, o livro é uma investigação literária sobre homens que atingiram o "ponto de não retorno" do pensamento e nos revelaram em alguma medida o "núcleo escuro no centro das coisas".


quarta-feira, 23 de março de 2022

A arte de escutar bonito na pandemia

Pequenas epifanias dos amigos e livros que salvaram a minha vida

Mirian Goldenberg, FSP, 23/03/2022

Desde que a pandemia começou, tive (e continuo tendo) várias fases de depressão, pânico, ansiedade, desespero, tristeza e desesperança. Ainda não consegui encontrar uma saída da concha ou da caverna escura em que me escondi nos últimos dois anos.

Foram os meus amigos e os meus livros que me ajudaram a sobreviver física e emocionalmente nos piores momentos. Decidi relembrar aqui algumas lições que aprendi em meio a essa tragédia para ajudar quem está precisando de um colete salva vidas ou de um abraço carinhoso, como eu ainda preciso.

Viktor Frankl me desafiou a construir uma vida com significado. Apesar das circunstâncias dramáticas, ninguém pode destruir a liberdade que temos de escolher a melhor atitude para enfrentar o sofrimento inevitável. Simone de Beauvoir https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/biografia-mostra-que-o-grande-sonho-de-simone-de-beauvoir-era-a-liberdade.shtml e Jean-Paul Sartre me mostraram que não importa o que a vida fez de nós: o que importa é o fazemos com o que a vida fez de nós, quais são os nossos propósitos e projetos de vida.

Mirian Goldenberg e o amigo José Guedes, 98, que liga para ela todos os dias desde o início da pandemia - Arquivo pessoal

Epicteto me mostrou que a nossa felicidade e liberdade começam com a compreensão de um princípio básico: algumas coisas estão sob nosso controle e outras, não. Devemos sempre fazer o máximo e o melhor que estiver ao nosso alcance. Cada obstáculo pode ser encarado como uma oportunidade para descobrirmos a nossa coragem desconhecida e para encontrarmos o nosso potencial escondido. As provações que suportamos podem revelar quais são as nossas forças e fraquezas. Conquistamos a liberdade aprendendo a distinguir o que depende de nós e o que não depende.

Clarice Lispector me mostrou que os nossos piores defeitos podem estar sustentando o edifício inteiro. Ao aceitar as nossas limitações, em vez de lutar contra elas, nos tornamos livres. Com Clarice, desisti de lutar contra as minhas angústias, ansiedades, inseguranças, vergonhas, culpas, obsessões, medos e tristezas, e passei a olhar com mais carinho para a Olívia Palito que se escondia no armário para fugir da violência, gritos e surras do pai e irmãos.

A minha história familiar me tornou a mulher que escreve compulsivamente para, como Clarice, salvar as vidas dos meus amores e salvar a minha própria vida. Quem eu seria hoje se não tivesse sobrevivido como uma formiguinha com medo de ser esmagada?

Rubem Alves me revelou que ostras felizes não fazem pérolas: é a ostra triste que, para se proteger do grão de areia que machuca, produz as mais belas pérolas. Ele também me ensinou "a arte de escutar bonito", uma arte que só valorizamos em meio ao sofrimento, dor e angústia existencial.

Já contei aqui que o meu maior arrependimento é não ter aprendido a "escutar bonito" meus pais para compreender melhor a minha própria história. Tento compensar esse vazio existencial "escutando bonito" meus amigos nonagenários. Aprendo diariamente com eles a transformar a minha tristeza em beleza.

Caio Fernando Abreu me presenteou com o meu mantra pandêmico: "Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso, e fui". Descobri que cuidar dos meus amigos é o que mais alimenta a minha alma e o meu coração de amor, aprendizado e alegria.

Meu melhor amigo Guedes, de 98 anos, me ensinou: "Tem que ter coragem, Mirian, coragem". Ele nunca me deixa desistir quando me sinto impotente, apavorada e sem força para continuar. Sem ele, eu não teria conseguido enfrentar a depressão, o desespero e o pânico que senti em vários momentos.

Todos os dias às 18h30, desde o primeiro dia da pandemia, ele telefona para mim: conversamos, rimos, lemos, cantamos, brincamos com as palavras e aprendemos juntos a "escutar bonito". A nossa amizade é o mais belo presente que ganhei da vida, um tesouro que nenhum egoísta, vampiro ou odiador de plantão conseguirá destruir.

São essas pequenas doses de amor que me dão coragem para continuar escrevendo, estudando e escutando bonito. São essas pequenas epifanias que me socorrem nos momentos em que, como escreveu Clarice, eu acho que tudo o que eu faço com tanta paixão "é pouco, é muito pouco".


segunda-feira, 21 de março de 2022

Menino 23

Sinopse: O professor de História Sidney Aguilar descobre durante uma aula, por intermédio de uma aluna, algo assustador: tijolos marcados com a suástica, o símbolo nazista, em uma fazenda da região. Determinado a descobrir a verdade por trás das peças, Sidney investiga e busca pistas para entender a fundo o que aconteceu naquele lugar. (7 de julho de 2016, AdoroCinema)


O menino 23 (Infâncias perdidas) - o documentário

Menino 23: documentário retrata infância roubada em fazenda nazista no interior de São Paulo

28/12/2016, por Cecilia Garcia

“A minha infância foi roubada.” Seu Aloísio, no filme Menino 23

A história do filme “Menino 23 – infâncias perdidas do Brasil”, que concorre a uma vaga para disputa do Oscar 2017 de melhor documentário, começa com tijolos escondidos no matagal de uma fazenda antiga. A escolha não é casual.

Em 2005, o historiador Sidney Aguilar Filho escutou de uma de suas alunas um relato sobre tijolos marcados pela suástica nazista na fazenda Santa Albertina, próxima do município de Campina de Monte Alegre, no interior de São Paulo. O docente da Universidade Salesiana (Unisal) se interessou pelo assunto. Em um primeiro momento, pensou investigar as heranças de movimentos nacionalistas, correlacionadas com o cenário fascista e entre guerras que o mundo vivia nas décadas de 1940 e 1950. Ainda não sabia que durante os anos de feitura de sua tese de doutorado, ele estaria mexendo em um vespeiro sobre a infância marginalizada do Brasil.

Cena do documentário Menino 23. (Crédito: Divulgação)

Entre documentos que se esfarelavam, Sidney conheceu a história de 50 meninos de 9 a 11 anos que trabalharam na fazenda Santa Albertina na década de 1930. Pobres e negros, eles cresceram no orfanato carioca Romão de Mattos Duarte, até que a chegada de um homem com balas no bolso alterou seus destinos. Selecionados por causa de sua astúcia e disposição para pegar doces jogados na quadra, as crianças foram levadas à fazenda para trabalhar em regime de escravidão: eles capinaram, cuidaram do gado e cavalos, e serviram à família Rocha Miranda, que mantinha ligações com a Câmara dos Quarenta da Ação Integralista Brasileira, movimento simpatizante do fascismo. A pele dos animais ali criados era marcada com suásticas nazistas.

Memória viva

A investigação da história das crianças deu origem tanto à tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância no Brasil (1930-1945)”, apresentada em 2011 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), quanto ao documentário “Menino 23”, do diretor Belisario Franca e da produtora Giros.

Sidney divide a pesquisa em duas frentes distintas que se complementam entre papel e audiovisual. “Na tese, 70% provém da leitura de documentos e 30% da memória viva, a contada. No documentário, acontece o inverso; a maior parte dele é feita dos fragmentos dessa memória valiosa e dolorosa de personagens que concordaram em cedê-la ao público”, explica o pesquisador.

Sidney Aguilar Filho (Crédito: Divulgação/Menino 23)

As memórias preciosas e feridas são as de Seu Aloísio, Seu Argemiro e da família de José Alves de Almeida. Seu Aloísio – o Menino 23, porque não davam nome aos meninos trabalhadores – é um corpo vergado pela falta de infância. Um homem que percorre os labirintos de sua revolta, de não ter como responsabilizar quem fez dele “um homem sem futuro”.

Seu Argemiro foi o único dos meninos que conseguiu fugir da fazenda. Mas a fazenda não saiu de sua vida. Por muito tempo, ele foi morador de rua. José Alves, o Dois, vive nas lembranças de sua esposa e filhos; foi empregado doméstico na fazenda Santa Albertina e, embora acreditasse em situação melhor, cresceu com cicatrizes e tristezas persistentes.

Marcas na pele

“Posso dizer, depois dessa experiência, que me considero um historiador de traumas. A pesquisa da memória foi um processo doloroso, tanto para mim quanto para eles, e me considero um privilegiado de poder ter ouvido suas histórias e construído uma relação de mútuo respeito”, diz Sidney. “Isso só aconteceu porque tivemos a honestidade de assumir: nossa maior preocupação não é a história de vocês, e sim, a contemporânea, com o futuro de uma infância marginalizada, que precisa que suas memórias sejam de domínio público para que não se repitam.”

Outro processo intenso da feitura, tanto da tese quanto do filme, foi estar ante de um campo teórico que ele descreve como não “menos angustiante”. Porque a história de abuso do Menino 23 mostra que a cronologia do Brasil não ficou imune às influências de movimentos totalitaristas exteriores, nem aos abismos criados por uma colonização escravocrata e racista.

Entre a suástica e a palmatória  

“Foi muito dolorido descobrir que o que aconteceu com os 50 meninos, uma escravidão contemporânea, não foi só respaldado legalmente como também socialmente aceito. Encontrar legisladores brasileiros defendendo práticas racistas e segregacionistas foi bem pesado.” Sidney complementa que isso se reflete na própria repercussão do filme: muitos espectadores chegaram até ele ou foram atraídos não pela discussão sobre trabalho infantil, e sim pela temática polêmica do inusitado nazismo brasileiro.

História sem desfecho

Entre depoimentos de especialistas e narrativas sofridas de Seu Aloísio e de seu Argemiro, o filme é entrecortado por delicadas criações ficcionais que mostram meninos trabalhando entre capim e gado. O que se desenha no documentário “Menino 23” é uma história que ainda não encontrou desfecho.
“Continuamos a ser, como há 40, há 200 anos, um país da negação. Não somos racistas, mas somos racistas. Somos um país cheio de gente pacífica, mas muito violento. Temos umas das melhores legislações para proteger as crianças, e como sociedade, violamos assustadoramente nossa juventude, principalmente a pobre, negra e periférica”, conclui o historiador. “Quando a gente percebe na sociedade essa brutalidade seletiva, temos de nos envergonhar individual e coletivamente por ela persistir.” Para o diretor, a importância do filme está justamente em causar reflexões.
Pouco antes de morrer de velhice em Campina de Monte Alegre, cidade da fazenda onde roubaram sua infância, Aloísio pôde ver o filme e dar a aprovação de que seu relato se tornasse público. Já Seu Argemiro, que com 90 anos divulga o documentário, fica orgulhoso quando o vê sendo exibido ou ao falar com jornalistas.

Das histórias desses meninos sem nome, uma mensagem resiste: que crianças nunca sejam apenas números, e que histórias como essa não mais se repitam.
Muitos dos espectadores do documentário “Menino 23 – infâncias perdidas no Brasil” chegaram até o filme atraídos pela temática do nazismo, e não pela discussão de uma herança escravocrata ou do trabalho infantil. Para Marco Santana de Oliveira, coordenador da UneAfro Brasil, isso retrata um desconhecimento estratégico da história do país: se um espectador brasileiro se choca com o nazismo, mas encara a escravidão como um processo histórico e não a critica, ele não consegue fazer a associação de quão danosos foram os processos formativos do Brasil como nação para grande parte de sua população, principalmente a negra.

Para que essa alienação ocorra, a educação escolar e a mídia têm um papel fundamental, como mostrado no próprio documentário em cenas de jornais e programas que reforçam estereótipos raciais. “O Brasil atual não conhece a sua história porque ela é maquiada no ensino propositalmente. É óbvio que conhecemos mais de Adolf Hitler e Benito Mussolini que Zumbi dos Palmares e Luis da Gama. O Brasil tem como data histórica a invasão de 1500, 516 anos de existência onde 388 foram de escravidão, assassinato, tortura, estupro, mas conhecemos e estudamos mais os 12 anos de Holocausto do nazismo”, afirma. “Temos leis como a 10.639/10 que obriga as escolas a ensinar história e culturas africanas e indígenas no currículo escolar, mas por crença religiosa, conservadorismo politico e falta de acompanhamento, isso não acontece”, explica o historiador.

Marco acrescenta ser importante que produções audiovisuais como “Menino 23” alcancem o maior público possível e ajudem a criar uma mídia disposta a contar a verdadeira história do Brasil. “Consumimos muita informação televisiva de grandes grupos familiares e do mercado cinematográfico norte-americano. Qualquer forma de proliferação do conhecimento, principalmente da história efetiva do Brasil, é extremamente importante. Temos de ocupar espaços. Não acredito que viveremos tão cedo uma evolução de igualdade racial, social e de gênero, mas acredito na formação de base como principal forma de combate ao racismo estrutural.”


“Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”


COPEHE - Exibição e debate do filme Menino 23: infâncias perdidas no Brasil
- debate

Metrópolis: Menino 23

Cresce o número de neonazistas no Brasil - Lili Schwarcz - 21 de março de 2022


SP tomba fazenda conhecida porabrigar símbolos nazistas

 Fabrício de Castro, UOL, 20/03/2022

O governo do estado de São Paulo promoveu o tombamento, como Patrimônio Histórico e Cultural, da Fazenda Cruzeiro do Sul, em Itaí, e do Conjunto da Estação Ferroviária Engenheiro Hermillo, em Campina do Monte Alegre. A fazenda ficou conhecida por abrigar símbolos nazistas em tijolos e documentos que remontam às décadas de 1930 e 1940. No local, houve ainda exploração de trabalho infantil de crianças negras. O tombamento, aprovado em fevereiro deste ano, foi publicado na última sexta-feira (18/03/2022) no Diário Oficial do estado. A decisão teve como base um estudo feito pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), ligado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do estado.

Na decisão, o estado considerou que o tombamento busca preservar a história dos locais e constitui uma "reparação simbólica do estado acerca da exploração de mão de obra de pessoas negras no século XX".

 "A Fazenda Cruzeiro do Sul é exemplar representativo de um pensamento autoritário e higienista da sociedade brasileira das décadas de 1930 e 1940, onde se cruzaram pensamentos segregacionistas e preconceituosos comuns à época". (Trecho da resolução sobre o tombamento)

Trabalho infantil e tijolos com a suástica 

14.jan.2013 - Tijolo com suástica nazista na fazenda Cruzeiro do Sul, no interior de São Paulo Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Localizada em Itaí, no interior de São Paulo, a Fazenda Cruzeiro do Sul foi adquirida por uma família de simpatizantes do integralismo na década de 1920. Movimento com origens no fascismo europeu, o integralismo foi uma vertente política de extrema-direita que ganhou espaço no Brasil na década de 1930. Seus integrantes demonstravam alinhamento a ideias do nazismo alemão. De acordo com Deborah Neves, historiadora e técnica da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, após acordo com um orfanato no Rio de Janeiro os proprietários da fazenda conseguiram a tutela de 50 meninos negros, entre 8 e 10 anos. As crianças foram transportadas em 1933 do Rio de Janeiro para Campina do Monte Alegre, onde desembarcaram na Estação Ferroviária Engenheiro Hermillo.

"É por isso que a estação também foi tombada. Porque ela cria um nexo entre o Rio de Janeiro e a fazenda", explica Deborah Neves, uma das responsáveis pelo estudo que embasou o tombamento. "Estes meninos não foram adotados. Eles tinham a tutela. A família oferecia casa, escola, comida e trabalho, mas só ofertaram escola até a quarta serie, até os 10 anos. Entre os 10 e os 18 anos, estes meninos só trabalharam."

Na fazenda, havia símbolos do nazismo —como a suástica— estampados em bandeiras, em tijolos usados na construção de galpões e outros prédios, na marcação do gado e em documentos. Conforme Deborah Neves, isso foi identificado pelo historiador Sidney Aguilar Filho, que iniciou estudo sobre o local e fez pedido de tombamento em 2012. A história dos meninos foi contada no documentário "Menino 23 — Infâncias perdidas no Brasil", lançado em 2016, que retrata a pesquisa de Aguilar Filho. Nos anos seguintes, com a fazenda já nas mãos de outros proprietários, surgiram indícios de destruição do patrimônio histórico.

"Em 2016, em vistoria para finalizar o processo de tombamento, verificamos que boa parte das construções havia sido derrubada. Havia mesmo uma tentativa de apagamento desta memória", explica Deborah Neves. Com o tombamento, a intenção é preservar a história do lugar.

Visibilidade aos abusos cometidos

Deborah Neves afirma que o tombamento contribui para dar visibilidade aos abusos cometidos nestes locais, como a exploração do trabalho infantil.

“A apresentação dos lugares de "memórias difíceis" pode, em um primeiro momento, parecer controversa. Por exemplo, quando se faz o tombamento do Deops [Departamento Estadual de Ordem Política e Social], onde hoje funciona o Memorial da Resistência, surge a crítica de que estaria sendo preservada a memória da ditadura. Mas o que estamos preservando são os lugares onde ocorreram violações de direitos humanos. A partir do conhecimento dos lugares, criamos políticas de prevenção." Deborah Neves, historiadora


Jose Hamilton Ribeiro

O perfil do Zé Hamilton

Paulistano, nascido em 1935, o repórter José Hamilton Ribeiro ganhou sete prêmios Esso de Jornalismo. Ingressou na Globo nos anos 1980. Fez reportagens marcantes para o Globo Rural e o Globo Repórter. Trabalhou na emissora até novembro de 2021.

José Hamilton Ribeiro nasceu na cidadezinha paulista de Santa Rosa de Viterbo em 29 de agosto, “mês do cachorro louco”, como gosta de frisar. Seu pai era um pequeno produtor rural e sua mãe, de prendas domésticas, como se dizia na época. Estudou em escola pública e na Faculdade Cásper Líbero, a primeira escola de jornalismo do Brasil, fundada em 1947, de onde foi expulso no último ano por causa de uma greve e para onde voltou anos mais tarde como professor. Na primeira reunião da congregação falou: “Tenho o dever de avisar vocês de que fui expulso. Revejam o que estão fazendo”. 

José Hamilton Ribeiro: conheça a história do "repórter do século" (2017)

Lecionou na escola por um bom tempo. Depois, já como jornalista, fez graduação em Direito, em Uberaba (MG) para cumprir um compromisso assumido com a mãe, que não achava jornalismo uma profissão séria. Nunca exerceu a profissão de advogado. Em compensação, tornou-se uma lenda no jornalismo.

Começou como “repórter iniciante”, em 1954, no jornal O Tempo, criado por jornalistas que se demitiram da Folha de S. Paulo quando essa foi vendida. Em 1956, atendendo a um anúncio da Folha – “Você quer ser jornalista? Se você quiser ligue para o número…” – ligou e foi entrevistado por telefone. Em seguida, foi convidado a ir ao jornal, onde lhe perguntaram por que queria ser jornalista, lhe pediram para escrever uma história e o mandaram esperar em casa. Alguns dias depois, recebeu um telegrama: “Compareça hoje à Folha”. Ao chegar lá, disseram: “Você começa agora”.

Em 1962, já como repórter da Folha, foi convidado para trabalhar na revista Quatro Rodas, de uma editora desconhecida, que estava lançando no Brasil uma coleção de livros infantis, principalmente de desenhos de Walt Disney. Quatro Rodas, conta José Hamilton, foi a primeira revista da Editora Abril feita por jornalistas brasileiros com criação própria. Apesar das opiniões contrárias dos colegas de trabalho, aceitou o convite. Chegou a ser editor-chefe de Quatro Rodas e ganhou seu primeiro Prêmio Esso de Jornalismo em 1963 e outro em 1964.
“No Brasil, a Abril foi um laboratório de jornalismo, do qual participei”.

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José Hamilton Ribeiro – 60 Anos de Reportagem – Série Repórter (2015), 4 de abril de 2016

Em 2015, o evento Série Repórter recebeu como homenageado o repórter José Hamilton Ribeiro, que foi entrevistado coletivamente para contar suas experiências e suas histórias acumuladas ao longo de 60 anos no jornalismo. Com mediação de Eliane Brum, Ribeiro conversa com Carlos Moraes, Clóvis Rossi, Lúcio Flávio Pinto e Ricardo Kotscho.
Com curadoria da jornalista Eliane Brum, o evento foi realizado em setembro de 2015, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP.
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REFERÊNCIAS NA IMPRENSA

Desse laboratório, saíram as pessoas que fizeram o Jornal da Tarde, um marco no jornalismo dos anos 1960 em São Paulo, e a revista Realidade, também da Editora Abril, a mais importante revista brasileira daquele tempo. Em 1966, José Hamilton Ribeiro foi para a Realidade.

“As grandes mudanças que a Realidade fez foram a forma de tratar a pauta, o assunto e as condições de trabalho do repórter”, diz José Hamilton. “As pautas eram voltadas para a vivência pessoal. Como se tratava de uma revista mensal, eram feitas grandes reportagens, com profundidade ambiciosa. Só escrevíamos depois de ter vivenciado uma situação pessoal. Às vezes, o repórter trabalhava três ou quatro meses numa pauta, algo que nunca tinha sido feito no Brasil. A empresa oferecia as condições para o repórter trabalhar todo aquele tempo.” Para fazer uma matéria sobre preconceito racial no Brasil, José Hamilton foi orientado a ficar preto. Bem que tentou. Tomou remédio para estimular a produção de melamina sob supervisão de um professor de dermatologia e banhos de imersão com permanganato de potássio, mas continuou branco. Quando sugeriram maquiagem, desistiu: não queria passar pelo vexame de ser descoberto na rua como falso negro, nem ir contra a orientação da revista.

TRAGÉDIA NO VIETNÃ

Em função do governo militar, diz José Hamilton, muitos jornalistas ficaram sem espaço em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Rio Grande do Sul e Recife.

“A grande imprensa brasileira, ou por bem ou por mal, se acomodou com a censura. Quem tentou reagir por mal levou pancada e se enquadrou. Dessa forma, de 1975 a 1980, deixei a grande imprensa escrita e fui trabalhar em jornais do interior”.

Globo Rural: Vietnam 1995

Seu raciocínio era: “Já que não podemos fazer nada do ponto de vista do conteúdo na imprensa, vamos mexer com a forma, vamos fazer a reforma dos jornais do interior”. Para não perder o costume, ganhou outro Prêmio Esso de Jornalismo, dessa vez como diretor do jornal Dia e Noite, de Rio Preto (SP), em 1977.

Se a matéria do preconceito quase vira farsa, a tentativa de cobrir a guerra do Vietnã se transformou em tragédia: com 20 dias de Vietnã, José Hamilton pisou numa mina e teve a perna esquerda estraçalhada. Mas não perdeu a matéria. Uma foto dele ferido no campo de batalha foi para a capa da Realidade e entrou para a história. 

Em 1969, escreveu um livro sobre a cobertura, O Gosto da Guerra, e ganhou outro Prêmio Esso. Ficou na Realidade por sete anos, chegou a ser editor-chefe e por três vezes ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1967, 1968 e 1973. De 1973 a 1975, foi repórter da revista Veja. 

ENTRADA NA GLOBO

O primeiro trabalho de José Hamilton para a Globo foi como freelancer, uma reportagem sobre o Pantanal, região pouco vista na televisão brasileira de então, exibida pelo Globo Rural na comemoração de seu primeiro ano de existência, em 1981. José Hamilton já tinha escrito um livro sobre o Pantanal e foi chamado para participar do programa como repórter convidado. “A reportagem deu muito certo, foi muito comentada, e eu fiquei com uma boa cotação dentro da Globo. Tempos depois, fui chamado pela emissora para trabalhar no programa Globo Repórter, no Rio”.

Na época, o programa era gravado em filme de 16 mm, com narração em off, sem a imagem do repórter. A primeira gravação em videoteipe foi justamente uma reportagem de José Hamilton Ribeiro sobre o garimpo de Serra Pelada, no Pará, exibida em 10 de junho de 1982. Era também a primeira vez que o repórter aparecia no vídeo.

Um episódio ocorrido durante a gravação dessa matéria mostra, segundo José Hamilton, que uma das condições para ser repórter de televisão é a vocação, para o profissional não correr o risco de escolher a profissão errada. Para conversar com as famílias dos garimpeiros, que moravam no Maranhão, a equipe pegou um avião até Imperatriz e de lá seguiu de carro até onde a estrada acabava. 

Globo Repórter: Garimpo de Serra Pelada (1982) - parte 1

Globo Repórter: Garimpo de Serra Pelada (1982) - parte 2

Dali em diante, só a pé ou em lombo de burro, opção escolhida porque havia muito material a transportar. Na hora de montar, o cameraman reagiu: “Eu ganho para fazer reportagem de avião ou de carro, mas de burro, não. Eu não vou”. José Hamilton retrucou: “Tenho duas opções. Uma delas é ligar para a chefia, no Rio, e dizer que você não quer fazer a reportagem, o que provavelmente resultará no envio de outro cameraman e na sua demissão, mas isso eu não vou fazer. A segunda hipótese é trazer a casa do garimpeiro até aqui para você filmar. Vai ser assim”.

Trouxeram a mulher do garimpeiro, as crianças, a tia e a avó, arranjaram uma casa parecida com a da família do garimpeiro e filmaram. Algum tempo depois, José Hamilton soube que o cameraman passara a ser chefe de departamento de um shopping center, e pensou: “Pronto! Essa é a vocação dele”.

GLOBO RURAL

Ainda em 1982, José Hamilton passou a integrar a equipe do Globo Rural. Nascia assim o que muitos consideram a parceria perfeita: um dos repórteres brasileiros com um dos melhores programas da televisão brasileira. Dessa parceria, nasceram reportagens maravilhosas. Na Trilha da Onça foi uma delas. A caçada foi real, até o momento em que o animal, cansado e acuado pelos cachorros, se refugia numa árvore, pronto para ser abatido.


Sr. Zé Bilico no Globo Rural


“A caçada de onça é uma covardia, embora, infelizmente, ainda hoje isso aconteça”, diz José Hamilton. “Quando a onça subiu na árvore, mandamos os cães e os caçadores embora. Ficou somente o cameraman, que filmou o animal apavorado. Mas, ele logo recobrou a confiança, desceu da árvore e foi embora”.

De volta ao Vietnã, em 1995, para fazer uma reportagem sobre a paz para o programa Contagem Regressiva, comemorativo dos 30 anos da Globo, José Hamilton aproveitou para “abordar um prato vietnamita típico”, numa matéria para o Globo Rural. Na primeira tentativa, miolo de macaco vivo: “Não dá pra comer nem fazer reportagem”. Na segunda, carne de cachorro: “Não passo nem perto!”. Só lhe restou comer costelinhas de cobra fritas: “Para mim, se assemelhou à carne de peixe”. Ao começar a comer, perguntou ao cozinheiro se aquela cobra era venenosa: “Quando ele disse que sim, eu brinquei, dizendo: ‘então, não preciso de pimenta’”.

História e a Dança da ENXADA - 07 Agosto 2005

Outra reportagem memorável foi a série sobre o ciclo do tropeirismo. “Toda a fase do ouro no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, foi movimentada pelos muares, porque não havia caminhão, trem ou estrada. Tudo foi feito no lombo das mulas”, conta José Hamilton. “Foi uma pauta jornalística muito importante, que resultou numa série de 12 reportagens, transmitida em 12 domingos seguidos – o que considero um dos maiores acontecimentos jornalísticos do Brasil”.

Em novembro de 1996, mostrou o trabalho dos índios bakairis, que constroem canoas com a casca de jatobá. Em 1999, foi até Portugal reportar o trabalho no campo, como a produção de azeitonas e a criação de cavalos. Em 2002, acompanhou uma investigação científica no Rio Paraguai com pesquisadores da Embrapa. Em 2003, fez uma série de reportagens sobre a música caipira.


Globo Rural Especial Ze Paraquedas: Uma arte quase esquecida

Em 2006, recebeu o Prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia, um dos mais importantes prêmios do jornalismo nos Estados Unidos. Ele foi um dos vencedores na categoria Outstanding on Latin America, que homenageia profissionais que demonstraram comprometimento com a liberdade de imprensa e a compreensão das relações interamericanas.

Globo Rural conta a história da música caipira e sertaneja

Trabalhou na TV Globo até novembro de 2021. Em mais de 60 anos de jornalismo, José Hamilton Ribeiro diz que aprendeu três coisas:

“Primeiro, azeitona preta é tingida; segundo, nos banheiros, em geral, a torneira quente é a da esquerda; terceiro, de ovo de cobra, não sai canarinho. O resto eu aprendo todo o dia”.

Reportagem Cavalo pantaneiro - José Hamilton Ribeiro, Globo Rural