Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.
Carlos Drummond de Andrade
O Chefe das Relações Públicas, um
jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso
e olhos extremamente brilhantes,
ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de
leve na porta do Secretário do
Bem-Estar Público e Privado:
— Excelência?
O Secretário do Bem-Estar Público e
Privado pousou o copo de leite na mesa
e fez girar a poltrona de couro.
Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de
calva úmida e mãos acetinadas. Lançou
um olhar comprido para os próprios pés,
o direito calçado, o esquerdo metido
num grosso chinelo de lã com debrum de
pelúcia.
— Pode entrar — disse ao Chefe das
Relações Públicas que já espiava pela
fresta da porta. Entrelaçou as mãos na
altura do peito. — Então? Correu bem o
coquetel?
Tinha a voz branda, com um leve acento
lamurioso. O jovem empertigou-se.
Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto
bem escanhoado.
— Tudo perfeito, Excelência. Perfeito.
Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa
Excelência sabe. Poucas pessoas, só a
cúpula, ficou uma reunião assim
aconchegante, íntima, mas muito
agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e
— consultou o relógio — veja,
Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O
Assessor da Presidência da RATESP está
instalado na ala norte, vizinho do
Diretor das Classes Conservadoras
Armadas e Desarmadas, que está ocupando a
suíte cinzenta. Já a Delegação
Americana achei conveniente instalar na ala sul.
Por sinal, deixei-os há pouco na
piscina, o crepúsculo está deslumbrante,
Excelência, deslumbrante!
— O senhor disse que o Diretor das
Classes Conservadoras Armadas e
Desarmadas está ocupando a suíte
cinzenta. Por que cinzenta?
O jovem pediu licença para se sentar.
Puxou a cadeira, mas conservou uma
prudente distância da almofada onde o
Secretário pousara o pé metido no
chinelo. Pigarreou.
— Bueno, escolhi
as cores pensando nas pessoas — começou com certa
hesitação. Animou-se: — A suíte do
Delegado Americano, por exemplo, é rosaforte.
Eles gostam das cores vivas. Para a de
Vossa Excelência escolhi este azulpastel,
mais de uma vez vi Vossa Excelência de
gravata azul... Já para a suíte
norte me ocorreu o cinzento, Vossa
Excelência não gosta da cor cinzenta?
O Secretário moveu com dificuldade o
pé estendido na almofada. Levantou a
mão. Ficou olhando a mão.
— É a cor deles. Rattus
alexandrinus.
— Dos conservadores?
— Não, dos ratos. Mas enfim, não tem
importância, prossiga, por favor. O
senhor dizia que os americanos estão
na piscina, por que os? Veio mais de um?
— Pois com o Delegado de Massachusetts
veio também a secretária, uma
jovem. E veio ainda um ruivo de terno
xadrez, tipo um pouco de boxer, meio
calado, está sempre ao lado dos dois.
Suponho que é um guarda-costas, mas é
simples suposição, Excelência, o
cavalheiro em questão é uma incógnita. Só
falam inglês. Aproveitei para
conversar com eles, completei há pouco meu curso
de inglês para executivos. Se os
debates forem em inglês, conforme já foi
aventado, darei minha colaboração. Já
o castelhano eu domino perfeitamente,
enfim, Vossa Excelência sabe,
Santiago, Buenos Aires...
— Fui contra a indicação. Desse
americano — atalhou o Secretário num tom
suave mas infeliz. — Os ratos são
nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que
botar todo mundo a par das nossas
mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos
só mostrar o lado positivo não apenas
da sociedade mas da nossa família. De nós
mesmos — acrescentou apontando para o
pé em cima da almofada. — Por que
não apareci ainda, por quê? Porque
simplesmente não quero que me vejam
indisposto, de pé inchado, mancando.
Amanhã calço o sapato para a instalação,
de bom grado faço esse sacrifício. O
senhor, que é um candidato em potencial,
desde cedo precisa ir aprendendo essas
coisas, moço. Mostrar só o lado positivo,
só o que pode nos enaltecer. Esconder
nossos chinelos.
— Mas Vossa Excelência me permite,
esse americano é um técnico em
ratos, nos Estados Unidos também têm
muitos ratos, ele poderá nos trazer
sugestões preciosas. Aliás, estive
sabendo que é um expert em jornalismo
eletrônico.
— Pior ainda. Vai sair buzinando por
aí — suspirou o Secretário, tentando
mudar a posição do pé. — Enfim, não
tem importância. Prossiga, prossiga,
queria que me informasse sobre a
repercussão. Na imprensa, é óbvio.
O Chefe das Relações Públicas
pigarreou discretamente, murmurou um
bueno e apalpou
os bolsos. Pediu licença para fumar.
— Bueno, é do conhecimento de
Vossa Excelência que causou espécie o fato
de termos escolhido este local. Por
que instalar o VII Seminário dos Roedores
numa casa de campo, completamente
isolada? Essa a primeira indagação geral.
A segunda é que gastamos demais para
tornar esta mansão habitável, um
desperdício quando podíamos dispor de
outros locais já prontos. O noticiarista de
um vespertino, marquei bem a cara
dele, Excelência, esse chegou a ser insolente
quando rosnou que tem tanto edifício
em disponibilidade, que as implosões até já
se multiplicam para corrigir o
excesso. E nós gastando milhões para restaurar
esta ruína...
O Secretário passou o lenço na calva e
procurou se sentar mais
confortavelmente. Começou um gesto que
não se completou.
— Gastando milhões? Bilhões estão
consumindo esses demônios, por acaso
ele ignora as estatísticas? Estou
apostando como é da esquerda, estou apostando.
Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não
tem importância, prossiga por favor.
— Mas são essas as críticas mais
severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e
aquela eterna tecla que não cansam de
bater, que já estamos no VII Seminário e
até agora, nada de objetivo, que a
população ratal já se multiplicou sete mil vezes
depois do I Seminário, que temos agora
cem ratos para cada habitante, que nas
favelas não são as Marias mas as
ratazanas que andam de lata d’água na cabeça
— acrescentou contendo uma risadinha.
— O de sempre... Não se conformam é
de nos reunirmos em local retirado,
que devíamos estar lá no Centro, dentro do
problema. Nosso Assessor de Imprensa
já esclareceu o óbvio, que este
Seminário é o Quartel-General de uma
verdadeira batalha! E que traçar as
coordenadas de uma ação conjunta deste
porte exige meditação. Lucidez. Onde
poderiam os senhores trabalhar senão
aqui, respirando um ar que só o campo
pode oferecer? Nesta bendita solidão,
em contato íntimo com a natureza... O
Delegado de Massachusetts achou genial
essa ideia do encontro em pleno campo.
Um moço muito gentil, tão simples.
Achou excelente nossa piscina térmica,
Vossa Excelência sabia? Foi campeão de
nado de peito, está lá se divertindo,
adorou nossa água-de-coco! Contou-me
uma coisa curiosa, que os ratos do Polo
Norte têm pelos deste tamanho para
aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se
guarnecem de peliças, os marotos.
Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!
O Secretário parecia pensar em outra
coisa quando murmurou evasivamente
um “enfim”. Levantou o dedo pedindo
silêncio. Olhou com desconfiança para o
tapete. Para o teto.
— Que barulho é esse?
— Barulho?
— Um barulho esquisito, não está
ouvindo?
O Chefe das Relações Públicas voltou a
cabeça, concentrado.
— Não estou ouvindo nada...
— Já está diminuindo — disse o
Secretário, baixando o dedo almofadado. —
Agora parou. Mas o senhor não ouviu?
Um barulho tão esquisito, como se viesse
do fundo da terra, subiu depois para o
teto... Não ouviu mesmo?
O jovem arregalou os olhos de um azul
inocente.
— Absolutamente nada, Excelência. Mas
foi aqui no quarto?
— Ou lá fora, não sei. Como se
alguém... — Tirou o lenço, limpou a boca e
suspirou profundamente. — Não me
espantaria nada se cismassem de instalar
aqui algum gravador. O senhor se
lembra? Esse Delegado americano...
— Mas, Excelência, ele é convidado do
Diretor das Classes Conservadoras
Armadas e Desarmadas!
— Não confio em ninguém. Em quase
ninguém — corrigiu o Secretário num
sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na
mesa. Nos baldaquins azuis da cama. —
Onde essa gente está, tem sempre essa
praga de gravador. Enfim, não tem
importância, prossiga, por favor. E o
Assessor de Imprensa?
— Bueno, ontem à noite ele
sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência
sabe como anda o nosso trânsito! Teve
que engessar um braço. Só pode chegar
amanhã, já providenciei o jatinho —
acrescentou o jovem com energia. — Na
retaguarda fica toda uma equipe armada
para a cobertura. Nosso Assessor vai
pingando o noticiário por telefone,
criando suspense até o encerramento, quando
virão todos num jato especial,
fotógrafos, canais de televisão, correspondentes
estrangeiros, uma apoteose. Finis
coronat opus, o fim coroa a obra!
— Só sei que ele já deveria estar
aqui, começa mal — lamentou o Secretário
inclinando-se para o copo de leite.
Tomou um gole e teve uma expressão
desaprovadora. — Enfim, o que me
preocupava muito é ficarmos
incomunicáveis. Não sei mesmo se essa
ideia do Assessor da Presidência da
RATESP vai funcionar, isso de
deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas
dúvidas.
— Vossa Excelência vai me perdoar, mas
penso que a cúpula se valoriza
ficando assim inacessível. Aliás, é
sabido que uma certa distância, um certo
mistério excita mais do que o contato
diário com os meios de comunicação.
Nossa única fonte vai soltando
notícias discretas, influindo sem alarde até o
encerramento, quando abriremos as
baterias! Não é uma boa tática?
Com dedos tamborilantes, o Secretário
percorreu vagamente os botões do
colete. Entrelaçou as mãos e ficou
olhando as unhas polidas.
— Boa tática, meu jovem, é influenciar
no começo e no fim todos os meios
de comunicação do país. Esse é o
objetivo. Que já está prejudicado com esse
assessor de perna quebrada.
— Braço, Excelência. O antebraço, mais
precisamente.
O Secretário moveu penosamente o corpo
para a direita e para a esquerda.
Enxugou a testa. Os dedos. Ficou
olhando para o pé em cima da almofada.
— Hoje mesmo o senhor poderia lhe
telefonar para dizer que
estrategicamente os ratos já se
encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize
apenas isto, que os ratos já estão sob
inteiro controle. A ligação é demorada?
— Bueno, cerca de meia hora.
Peço já, Excelência?
O Secretário foi levantando o dedo.
Abriu a boca. Girou a cadeira em direção
da janela. Com o mesmo gesto lento,
foi se voltando para a lareira.
— Está ouvindo? Está ouvindo? O
barulho. Ficou mais forte agora!
O jovem levou a mão à concha da
orelha. A testa ruborizou-se no esforço da
concentração. Levantou-se e andou na
ponta dos pés.
— Vem daqui, Excelência? Não consigo
perceber nada!
— Aumenta e diminui. Olha aí, em
ondas, como um mar... Agora parece um
vulcão respirando, aqui perto e ao
mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha
aí... Tombou para o espaldar da
poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. —
Quer dizer que o senhor não ouviu
nada?
O Chefe das Relações Públicas arqueou
as sobrancelhas perplexas. Espiou
dentro da lareira. Atrás da poltrona.
Levantou a cortina da janela e olhou para o
jardim.
— Tem dois empregados lá no gramado,
motoristas, creio... Ei, vocês aí!... —
chamou, estendendo o braço para fora.
Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam
agitados, talvez discutissem, mas
suponho que nada tenham a ver com o barulho.
Não ouvi coisa alguma, Excelência.
Escuto tão mal deste ouvido!
— Pois eu escuto demais, devo ter um
ouvido suplementar. Tão fino. Quando
fiz a Revolução de 32 e depois, no
Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a
pressentir qualquer anormalidade. O
primeiro! Lembro que uma noite avisei
meus companheiros, O inimigo está aqui
com a gente, e eles riram, Bobagem,
você bebeu demais, tínhamos tomado no
jantar um vinho delicioso. Pois quando
saímos para dormir, estávamos
cercados.
O Chefe das Relações Públicas teve um
olhar de suspeita para a estatueta de
bronze em cima da lareira, uma
opulenta mulher de olhos vendados,
empunhando a espada e a balança.
Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo
num dos pratos empoeirados. Olhou o
dedo e limpou-o com um gesto furtivo no
espaldar da poltrona.
— Vossa Excelência quer que eu vá
fazer uma sondagem?
O Secretário estendeu doloridamente a
perna. Suspirou.
— Enfim, não tem importância. Nestas
minhas crises sou capaz de ouvir
alguém riscando um fósforo na sala.
Entre consternado e tímido, o jovem
apontou para o pé enfermo.
— É algo... grave?
— A gota.
— E dói, Excelência?
— Muito.
— Pode ser a gota d’água! Pode ser
a gota d’água! — cantarolou ele,
ampliando o sorriso que logo esmoreceu
no silêncio taciturno que se seguiu à sua
intervenção musical. Pigarreou.
Ajustou o nó da gravata. — Bueno, é uma
canção que o povo canta por aí.
— O povo, o povo — disse o Secretário
do Bem-Estar Público, entrelaçando
as mãos. A voz ficou um brando
queixume. — Só se fala em povo e no entanto o
povo não passa de uma abstração.
— Abstração, Excelência?
— Que se transforma em realidade
quando os ratos começam a expulsar os
favelados de suas casas. Ou a roer os
pés das crianças da periferia, então, sim, o
povo passa a
existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa
marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada
às bombas dos subversivos, não
esquecer esses bastardos que parecem
ratos — suspirou o Secretário,
percorrendo languidamente os botões do
colete. Desabotoou o último. — No
Egito Antigo resolveram esse problema
aumentando o número de gatos. Não sei
por que aqui não se exige mais da
iniciativa privada, se cada família tivesse em
casa um ou dois gatos esfaimados...
— Mas Excelência, não sobrou nenhum
gato na cidade, já faz tempo que a
população comeu tudo. Ouvi dizer que
dava um ótimo cozido!
— Enfim — sussurrou o Secretário
esboçando um gesto que não completou.
— Está escurecendo, não?
O jovem levantou-se para acender as
luzes. Seus olhos sorriam intensamente.
— E à noite, todos os gatos são
pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas,
Excelência! O jantar será servido às
oito, a mesa decorada só com orquídeas e
frutas. A mais fina cor local,
encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as
lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe
ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão
grandes. Bueno, eu tinha
pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima
qualidade, diga-se de passagem, mas me
veio um certo receio: e se der alguma
dor de cabeça? Por um desses azares,
Vossa Excelência já imaginou? Então
achei prudente encomendar vinho
chileno.
— De que safra?
— De Pinochet, naturalmente.
O Secretário do Bem-Estar Público e
Privado baixou o olhar ressentido para o
próprio pé.
— Para mim um caldo sem sal, uma
canjinha rala. Mais tarde talvez um... —
Emudeceu. A cara pasmada foi-se
voltando para o jovem: — Está ouvindo
agora? Está mais forte, ouviu isso?
Fortíssimo!
O Chefe das Relações Públicas
levantou-se de um salto. Apertou entre as
mãos a cara ruborizada.
— Mas claro, Excelência, está
repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está
tremendo! Mas o que é isso?!
— Eu não disse, eu não disse? —
perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: —
Nunca me enganei, nunca! Já faz horas
que estou ouvindo coisas, mas não queria
dizer nada, podiam pensar que fosse
delírio. Olha aí agora! Parece até que
estamos em zona vulcânica, como se um
vulcão fosse irromper aqui embaixo...
— Vulcão?
— Ou uma bomba, têm bombas que antes
de explodir dão avisos!
— Meu Deus — exclamou o jovem. Correu
para a porta. — Vou verificar
imediatamente, Excelência. Não se
preocupe, não há de ser nada, com licença,
volto logo. Meu Deus, zona
vulcânica?!...
Quando fechou a porta atrás de si,
abriu-se a porta em frente e pela abertura
introduziu-se uma carinha louramente
risonha. Os cabelos estavam presos no alto
por um laçarote de bolinhas amarelas.
— What is that?
— Perhaps nothing... perhaps
something... — respondeu ele, abrindo o sorriso
automático. Acenou-lhe com um frêmito
de dedos imitando asas. — Supper at
eight, Miss
Gloria!
Apressou o passo quando viu o Diretor
das Classes Conservadoras Armadas e
Desarmadas que vinha com seu chambre
de veludo verde. Encolheu-se para lhe
dar passagem, fez uma mesura,
“Excelência” e quis prosseguir mas teve a
passagem barrada pela montanha
veludosa.
— Que barulho é esse?
— Bueno, também não sei dizer,
Excelência, é o que vou verificar. Volto num
instante. Não é mesmo estranho? Tão
forte!
O Diretor das Classes Conservadoras
Armadas e Desarmadas farejou o ar:
— E esse cheiro? O barulho diminuiu,
mas não está sentindo um cheiro? —
Franziu a cara. — Uma maçada! Cheiros,
barulhos e o telefone que não
funciona... Por que o telefone não
está funcionando? Preciso me comunicar com
a Presidência e não consigo, o
telefone está mudo!
— Mudo? Mas fiz dezenas de ligações
hoje cedo... Vossa Excelência já
experimentou o do Salão Azul?
— Venho de lá. Também está mudo, uma
maçada! Procure meu motorista,
veja se o telefone do meu carro está
funcionando, tenho que fazer essa ligação
urgente.
— Fique tranquilo, Excelência. Vou
tomar providências e volto em seguida.
Com licença, sim? — fez o jovem,
esgueirando-se numa mesura rápida.
Enveredou pela escada. Parou no
primeiro lance: — Mas o que significa isso?
Pode me dizer o que significa isso?
Esbaforido, sem o gorro e com o
avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio
correndo pelo saguão. O jovem fez um
gesto enérgico e precipitou-se ao seu
encontro.
— Como é que o senhor entra aqui neste
estado?
O homem limpou no peito as mãos sujas
de suco de tomate.
— Aconteceu uma coisa horrível,
doutor! Uma coisa horrível!
— Não grita, o senhor está gritando,
calma — e o jovem tomou o Cozinheiro-
Chefe pelo braço, arrastou-o a um
canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem
gritar, não quero histerismo, vamos,
calma, o que foi?
— As lagostas, as galinhas, as
batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou
nem um grão de arroz na panela.
Comeram tudo e o que não tiveram tempo de
comer levaram embora!
— Mas quem comeu tudo? Quem?
— Os ratos, doutor, os ratos!
— Ratos?!... Que ratos?
O Cozinheiro-Chefe tirou o avental,
embolou-o nas mãos.
— Vou-me embora, não fico aqui nem
mais um minuto. Acho que a gente
está no mundo deles. Pela alma da
minha mãe, quase morri de susto quando
entrou aquela nuvem pela porta, pela
janela, pelo teto, só faltou me levar e mais
a Euclídea! Até os panos de prato eles
comeram. Só respeitaram a geladeira que
estava fechada, mas a cozinha ficou
limpa, limpa!
— Ainda estão lá?
— Não, assim como entrou saiu tudo
guinchando feito doido. Eu já estava
ouvindo fazia um tempinho aquele
barulho, me representou um veio d’água
correndo forte debaixo do chão, depois
martelou, assobiou, a Euclídea que estava
batendo maionese pensou que fosse um
fantasma quando começou aquela
tremedeira e na mesma hora entrou
aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve
lugar que a gente olhasse que não
desse com o monte deles guinchando! E cada
ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea
pulou em cima do fogão, eu pulei em
cima da mesa, ainda quis arrancar uma
galinha que um deles ia levando assim
no meu nariz, taquei o vidro de suco
de tomate com toda força e ele botou a
galinha de lado, ficou de pé na pata
traseira e me enfrentou feito um homem.
Pela alma da minha mãe, doutor, me
representou um homem vestido de rato!
— Meu Deus, que loucura... E o
jantar?!
— Jantar? O senhor disse jantar?!
Não ficou nem uma cebola! Uma trempe
deles virou o caldeirão de lagostas e
a lagostada se espalhou no chão, foi aquela
festa, não sei como não se queimaram
na água fervendo. Cruz-credo, vou me
embora e é já!
— Espera, calma! E os empregados?
Ficaram sabendo?
— Empregados, doutor? Empregados? Todo
mundo já foi embora, ninguém é
louco! E se eu fosse vocês, também me
mandava, viu? Não fico aqui nem que
me matem!
— Um momento, espera! O importante é
não perder a cabeça, está me
compreendendo? O senhor volta lá, abre
as latas, que as latas ainda ficaram, não
ficaram? A geladeira não estava
fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare
um jantar com o que puder, evidente!
— Não, não! Não fico nem que me matem!
— Espera, eu estou falando: o senhor
vai voltar e cumprir sua obrigação. O
importante é que os convidados não
fiquem sabendo de nada, disso me incumbo
eu, está me compreendendo? Vou já até
a cidade, trago um estoque de alimentos
e uma escolta de homens armados até os
dentes, quero ver se vai entrar um
mísero camundongo nesta casa, quero
ver!
— Mas o senhor vai como? Só se for a
pé, doutor.
O Chefe das Relações Públicas
empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.
Apertou os olhinhos e fechou os punhos
para soquear a parede, mas interrompeu
o gesto quando ouviu vozes no andar
superior. Falou quase entredentes.
— Covardes, miseráveis! Quer dizer que
os empregados levaram todos os
carros? Foi isso, levaram os carros?
— Levaram nada, fugiram a pé mesmo,
nenhum carro está funcionando. O
José experimentou um por um, viu? Os
fios foram comidos, comeram também
os fios. Vocês fiquem aí que eu vou
pegar a estrada e é já!
O jovem encostou-se na parede, a cara
agora estava lívida. “Quer dizer que o
telefone...”, murmurou e cravou o
olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-
Chefe largou no chão. As vozes no
andar superior começaram a se cruzar. Uma
porta bateu com força. Encolheu-se
mais no canto quando ouviu seu nome: era
chamado aos gritos. Com olhar
silencioso foi acompanhando um chinelo de
debrum de pelúcia que passou a alguns
passos do avental embolado no tapete: o
chinelo deslizava, a sola voltada para
cima, rápido como se tivesse rodinhas ou
fosse puxado por algum fio invisível.
Foi a última coisa que viu, porque nesse
instante a casa foi sacudida nos seus
alicerces. As luzes se apagaram. Então, deuse
a invasão, espessa como se um saco de
pedras borrachosas tivesse sido
despejado em cima do telhado e agora
saltasse por todos os lados numa treva
dura de músculos, guinchos e centenas
de olhos luzindo negríssimos. Quando a
primeira dentada lhe arrancou um
pedaço da calça, ele correu sobre o chão
enovelado, entrou na cozinha com os
ratos despencando na sua cabeça e abriu a
geladeira. Arrancou as prateleiras que
foi encontrando na escuridão, jogou a
lataria para o ar, esgrimou com uma
garrafa contra dois olhinhos que já corriam
no vasilhame de verduras, expulsou-os
e num salto, pulou lá dentro. Fechou a
porta, mas deixou o dedo na fresta,
que a porta não batesse. Quando sentiu a
primeira agulhada na ponta do dedo que
ficou de fora, substituiu o dedo pela
gravata.
No rigoroso inquérito que se processou
para apurar os acontecimentos
daquela noite, o Chefe das Relações
Públicas jamais pôde precisar quanto tempo
teria ficado dentro da geladeira,
enrodilhado como um feto, a água gelada
pingando na cabeça, as mãos
endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo
vão da porta que de vez em quando
algum focinho tentava forcejar. Lembravase,
isso sim, de um súbito silêncio que se
fez no casarão: nenhum som, nenhum
movimento. Nada. Lembrava-se de ter
aberto a porta da geladeira. Espiou. Um
tênue raio de luar era a única
presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela
casa completamente oca, nem móveis,
nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes.
E a escuridão. Começou então um
murmurejo secreto, rascante, que parecia vir
da Sala de Debates e teve a intuição
de que estavam todos reunidos ali, de portas
fechadas. Não se lembrava sequer de
como conseguiu chegar até o campo, não
poderia jamais reconstituir a corrida,
correu quilômetros. Quando olhou para
trás, o
casarão estava todo iluminado.
LIVROS DE LYGIA FAGUNDES TELLES
PUBLICADOS PELA COMPANHIA DAS LETRAS
Ciranda de Pedra 1954, 2009
Antes do Baile Verde 1970, 2009
As Meninas 1973, 2009
Seminário dos Ratos 1977, 2009
A Noite Escura e Mais Eu 1995, 2009
Invenção e Memória 2000, 2009
https://lelivros.love/parceiros/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=link
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