segunda-feira, 4 de abril de 2022

Seminário dos ratos, Lygia Fagundes Telles

Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.

Carlos Drummond de Andrade

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso

e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de

leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

— Excelência?

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa

e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de

calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés,

o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de

pelúcia.

— Pode entrar — disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela

fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito. — Então? Correu bem o

coquetel?

Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se.

Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.

— Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa

Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim

aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e

— consultou o relógio — veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O

Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do

Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a

suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul.

Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante,

Excelência, deslumbrante!

— O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e

Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma

prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no

chinelo. Pigarreou.

— Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas — começou com certa

hesitação. Animou-se: — A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosaforte.

Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência escolhi este azulpastel,

mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul... Já para a suíte

norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a

mão. Ficou olhando a mão.

— É a cor deles. Rattus alexandrinus.

— Dos conservadores?

— Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O

senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

— Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma

jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio

calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é

simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só

falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso

de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi

aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente,

enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires...

— Fui contra a indicação. Desse americano — atalhou o Secretário num tom

suave mas infeliz. — Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que

botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos

só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós

mesmos — acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. — Por que

não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam

indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação,

de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial,

desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo,

só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

— Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em

ratos, nos Estados Unidos também têm muitos ratos, ele poderá nos trazer

sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo

eletrônico.

— Pior ainda. Vai sair buzinando por aí — suspirou o Secretário, tentando

mudar a posição do pé. — Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga,

queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um

bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato

de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores

numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral.

A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um

desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de

um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente

quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já

se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar

esta ruína...

O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais

confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.

— Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso

ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando.

Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.

— Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e

aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e

até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes

depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas

favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça

— acrescentou contendo uma risadinha. — O de sempre... Não se conformam é

de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do

problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este

Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as

coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde

poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo

pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza... O

Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo.

Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica,

Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo,

adorou nossa água-de-coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo

Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se

guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!

O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente

um “enfim”. Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o

tapete. Para o teto.

— Que barulho é esse?

— Barulho?

— Um barulho esquisito, não está ouvindo?

O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça, concentrado.

— Não estou ouvindo nada...

— Já está diminuindo — disse o Secretário, baixando o dedo almofadado. —

Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse

do fundo da terra, subiu depois para o teto... Não ouviu mesmo?

O jovem arregalou os olhos de um azul inocente.

— Absolutamente nada, Excelência. Mas foi aqui no quarto?

— Ou lá fora, não sei. Como se alguém... — Tirou o lenço, limpou a boca e

suspirou profundamente. — Não me espantaria nada se cismassem de instalar

aqui algum gravador. O senhor se lembra? Esse Delegado americano...

— Mas, Excelência, ele é convidado do Diretor das Classes Conservadoras

Armadas e Desarmadas!

— Não confio em ninguém. Em quase ninguém — corrigiu o Secretário num

sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa. Nos baldaquins azuis da cama. —

Onde essa gente está, tem sempre essa praga de gravador. Enfim, não tem

importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?

Bueno, ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência

sabe como anda o nosso trânsito! Teve que engessar um braço. Só pode chegar

amanhã, já providenciei o jatinho — acrescentou o jovem com energia. — Na

retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura. Nosso Assessor vai

pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando

virão todos num jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes

estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!

— Só sei que ele já deveria estar aqui, começa mal — lamentou o Secretário

inclinando-se para o copo de leite. Tomou um gole e teve uma expressão

desaprovadora. — Enfim, o que me preocupava muito é ficarmos

incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da

RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas

dúvidas.

— Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza

ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo

mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação.

Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o

encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

Com dedos tamborilantes, o Secretário percorreu vagamente os botões do

colete. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas.

— Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios

de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse

assessor de perna quebrada.

— Braço, Excelência. O antebraço, mais precisamente.

O Secretário moveu penosamente o corpo para a direita e para a esquerda.

Enxugou a testa. Os dedos. Ficou olhando para o pé em cima da almofada.

— Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que

estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize

apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. A ligação é demorada?

Bueno, cerca de meia hora. Peço já, Excelência?

O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção

da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.

— Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou mais forte agora!

O jovem levou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da

concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés.

— Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!

— Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um

vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha

aí... Tombou para o espaldar da poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. —

Quer dizer que o senhor não ouviu nada?

O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou

dentro da lareira. Atrás da poltrona. Levantou a cortina da janela e olhou para o

jardim.

— Tem dois empregados lá no gramado, motoristas, creio... Ei, vocês aí!... —

chamou, estendendo o braço para fora. Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam

agitados, talvez discutissem, mas suponho que nada tenham a ver com o barulho.

Não ouvi coisa alguma, Excelência. Escuto tão mal deste ouvido!

— Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando

fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a

pressentir qualquer anormalidade. O primeiro! Lembro que uma noite avisei

meus companheiros, O inimigo está aqui com a gente, e eles riram, Bobagem,

você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando

saímos para dormir, estávamos cercados.

O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de

bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados,

empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo

num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no

espaldar da poltrona.

— Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem?

O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou.

— Enfim, não tem importância. Nestas minhas crises sou capaz de ouvir

alguém riscando um fósforo na sala.

Entre consternado e tímido, o jovem apontou para o pé enfermo.

— É algo... grave?

— A gota.

— E dói, Excelência?

— Muito.

Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água! — cantarolou ele,

ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua

intervenção musical. Pigarreou. Ajustou o nó da gravata. — Bueno, é uma

canção que o povo canta por aí.

— O povo, o povo — disse o Secretário do Bem-Estar Público, entrelaçando

as mãos. A voz ficou um brando queixume. — Só se fala em povo e no entanto o

povo não passa de uma abstração.

— Abstração, Excelência?

— Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os

favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o

povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa

marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não

esquecer esses bastardos que parecem ratos — suspirou o Secretário,

percorrendo languidamente os botões do colete. Desabotoou o último. — No

Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos. Não sei

por que aqui não se exige mais da iniciativa privada, se cada família tivesse em

casa um ou dois gatos esfaimados...

— Mas Excelência, não sobrou nenhum gato na cidade, já faz tempo que a

população comeu tudo. Ouvi dizer que dava um ótimo cozido!

— Enfim — sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou.

— Está escurecendo, não?

O jovem levantou-se para acender as luzes. Seus olhos sorriam intensamente.

— E à noite, todos os gatos são pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas,

Excelência! O jantar será servido às oito, a mesa decorada só com orquídeas e

frutas. A mais fina cor local, encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as

lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão

grandes. Bueno, eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima

qualidade, diga-se de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma

dor de cabeça? Por um desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então

achei prudente encomendar vinho chileno.

— De que safra?

— De Pinochet, naturalmente.

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o

próprio pé.

— Para mim um caldo sem sal, uma canjinha rala. Mais tarde talvez um... —

Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando para o jovem: — Está ouvindo

agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!

O Chefe das Relações Públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as

mãos a cara ruborizada.

— Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está

tremendo! Mas o que é isso?!

— Eu não disse, eu não disse? — perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: —

Nunca me enganei, nunca! Já faz horas que estou ouvindo coisas, mas não queria

dizer nada, podiam pensar que fosse delírio. Olha aí agora! Parece até que

estamos em zona vulcânica, como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo...

— Vulcão?

— Ou uma bomba, têm bombas que antes de explodir dão avisos!

— Meu Deus — exclamou o jovem. Correu para a porta. — Vou verificar

imediatamente, Excelência. Não se preocupe, não há de ser nada, com licença,

volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!...

Quando fechou a porta atrás de si, abriu-se a porta em frente e pela abertura

introduziu-se uma carinha louramente risonha. Os cabelos estavam presos no alto

por um laçarote de bolinhas amarelas.

What is that?

Perhaps nothing... perhaps something... — respondeu ele, abrindo o sorriso

automático. Acenou-lhe com um frêmito de dedos imitando asas. — Supper at

eight, Miss Gloria!

Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e

Desarmadas que vinha com seu chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe

dar passagem, fez uma mesura, “Excelência” e quis prosseguir mas teve a

passagem barrada pela montanha veludosa.

— Que barulho é esse?

Bueno, também não sei dizer, Excelência, é o que vou verificar. Volto num

instante. Não é mesmo estranho? Tão forte!

O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:

— E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? —

Franziu a cara. — Uma maçada! Cheiros, barulhos e o telefone que não

funciona... Por que o telefone não está funcionando? Preciso me comunicar com

a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!

— Mudo? Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo... Vossa Excelência já

experimentou o do Salão Azul?

— Venho de lá. Também está mudo, uma maçada! Procure meu motorista,

veja se o telefone do meu carro está funcionando, tenho que fazer essa ligação

urgente.

— Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar providências e volto em seguida.

Com licença, sim? — fez o jovem, esgueirando-se numa mesura rápida.

Enveredou pela escada. Parou no primeiro lance: — Mas o que significa isso?

Pode me dizer o que significa isso?

Esbaforido, sem o gorro e com o avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio

correndo pelo saguão. O jovem fez um gesto enérgico e precipitou-se ao seu

encontro.

— Como é que o senhor entra aqui neste estado?

O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate.

— Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!

— Não grita, o senhor está gritando, calma — e o jovem tomou o Cozinheiro-

Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem

gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?

— As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou

nem um grão de arroz na panela. Comeram tudo e o que não tiveram tempo de

comer levaram embora!

— Mas quem comeu tudo? Quem?

— Os ratos, doutor, os ratos!

— Ratos?!... Que ratos?

O Cozinheiro-Chefe tirou o avental, embolou-o nas mãos.

— Vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto. Acho que a gente

está no mundo deles. Pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando

entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais

a Euclídea! Até os panos de prato eles comeram. Só respeitaram a geladeira que

estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!

— Ainda estão lá?

— Não, assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido. Eu já estava

ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d’água

correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava

batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela

tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve

lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando! E cada

ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em

cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim

no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a

galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem.

Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!

— Meu Deus, que loucura... E o jantar?!

— Jantar? O senhor disse jantar?! Não ficou nem uma cebola! Uma trempe

deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela

festa, não sei como não se queimaram na água fervendo. Cruz-credo, vou me

embora e é já!

— Espera, calma! E os empregados? Ficaram sabendo?

— Empregados, doutor? Empregados? Todo mundo já foi embora, ninguém é

louco! E se eu fosse vocês, também me mandava, viu? Não fico aqui nem que

me matem!

— Um momento, espera! O importante é não perder a cabeça, está me

compreendendo? O senhor volta lá, abre as latas, que as latas ainda ficaram, não

ficaram? A geladeira não estava fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare

um jantar com o que puder, evidente!

— Não, não! Não fico nem que me matem!

— Espera, eu estou falando: o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação. O

importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada, disso me incumbo

eu, está me compreendendo? Vou já até a cidade, trago um estoque de alimentos

e uma escolta de homens armados até os dentes, quero ver se vai entrar um

mísero camundongo nesta casa, quero ver!

— Mas o senhor vai como? Só se for a pé, doutor.

O Chefe das Relações Públicas empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.

Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede, mas interrompeu

o gesto quando ouviu vozes no andar superior. Falou quase entredentes.

— Covardes, miseráveis! Quer dizer que os empregados levaram todos os

carros? Foi isso, levaram os carros?

— Levaram nada, fugiram a pé mesmo, nenhum carro está funcionando. O

José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também

os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já!

O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. “Quer dizer que o

telefone...”, murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-

Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma

porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era

chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de

debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o

chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou

fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu, porque nesse

instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então, deuse

a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido

despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva

dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos. Quando a

primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão

enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a

geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a

lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam

no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a

porta, mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a

primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela

gravata.

No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos

daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo

teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada

pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo

vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembravase,

isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum

movimento. Nada. Lembrava-se de ter aberto a porta da geladeira. Espiou. Um

tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela

casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes.

E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir

da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas

fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não

poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para

trás, o casarão estava todo iluminado.


LIVROS DE LYGIA FAGUNDES TELLES

PUBLICADOS PELA COMPANHIA DAS LETRAS

Ciranda de Pedra 1954, 2009

Antes do Baile Verde 1970, 2009

As Meninas 1973, 2009

Seminário dos Ratos 1977, 2009

A Noite Escura e Mais Eu 1995, 2009

Invenção e Memória 2000, 2009


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