terça-feira, 19 de abril de 2022

A ONU e a Ucrânia

APÓS ANOS DE SABOTAGEM DE TRUMP, ONU AFUNDA MAIS COM GUERRA DA UCRÂNIA
Paralisadas, Nações Unidas se limitam a obter ajuda humanitária para vítimas do conflito que não tiveram força para evitar 

Jamil Chade, 14 de abril de  2022

A data de 24 de fevereiro de 2022 entrará para os anais da história da ONU. Naquela madrugada de quinta-feira, diante do risco de uma guerra na Ucrânia, o Conselho de Segurança se reuniu de forma emergencial na esperança de pressionar a Rússia a abandonar a ideia de um conflito armado na Europa. Em discurso, o secretário-geral da ONU, António Guterres, implorou ao presidente russo, Vladimir Putin: “Em nome da humanidade, leve suas tropas de volta para a Rússia.” Enquanto as delegações se alternavam diante do microfone, as primeiras bombas começavam a ser lançadas. As nuvens impensáveis de uma guerra nuclear pareciam se formar no horizonte diante do alerta de Putin de que qualquer intervenção de outro governo acarretaria “consequências jamais vistas”.

 
Reunião emergencial do Conselho de Segurança da ONU em 24 de fevereiro para discutir a situação na Ucrânia – Crédito: UN Photo/Mark Garten

Durante aquele encontro, o embaixador da Ucrânia Sergiy Kyslytsya lamentava aos demais países que era “tarde demais” para falar em paz e cobrava de seu homólogo russo, Vassily Nebenzia, explicações sobre os anúncios que chegavam de Moscou. Em um diálogo surreal, o russo alegava que não iria acordar o chanceler de seu país para questioná-lo sobre o que estava ocorrendo. Ninguém dormiria naquela noite, nem em Moscou nem em Kiev. Para a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, ao escolher atacar a Ucrânia durante a reunião do Conselho de Segurança, Putin estava revelando seu desdém pela ONU.

O evento acabou se transformando, para alguns, em um dos dias mais tristes da história da ONU. “Era como se as bombas estivessem abafando os discursos que estavam sendo proferidos”, contou à coluna um diplomata que estava na sala naquele momento.

Mais de um mês depois, Guterres continua sem voz. Apesar de ele insistentemente pedir o fim da guerra e de se colocar à disposição para negociar um cessar-fogo, seu papel tem sido insignificante. Em seu gabinete, são claros os recados de que um envolvimento indesejado não funcionaria. Os últimos secretários-gerais que optaram por levantar a voz contra as grandes potências foram silenciados. Boutros-Boutros Ghali, por exemplo, teve um segundo mandato vetado pelo governo dos Estados Unidos por questionar a política externa da Casa Branca. Kofi Annan denunciou a “guerra ilegal” no Iraque, e a reação do governo de George W. Bush foi revelar suspeitas de corrupção na ONU e, assim, anular a influência de Annan. O secretário-geral chegou a perder literalmente sua voz durante seis meses, resultado de um impacto psicológico diante da pressão americana.

Guterres, ocupando o que é conhecido como “o emprego mais impossível do mundo”, tem se limitado a lançar alertas, como aconteceu na semana passada. Durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, o português indicou que a atual guerra representava “um dos maiores desafios” para o sistema multilateral desde sua criação, em 1945. Entre diplomatas, o cenário é qualificado como “dramático”. Ao invadir um país soberano, a Rússia rasgou a Carta das Nações Unidas. Ainda assim, quando o tema foi levado ao Conselho de Segurança, a própria Rússia simplesmente vetou uma ação do principal órgão de manutenção da paz no mundo. A alternativa do Ocidente foi ir à Assembleia Geral, onde 141 países votaram uma resolução condenando os russos. Uma vez mais, porém, Moscou esnobou o documento e manteve sua ofensiva. 

Se a impotência impressiona, ela não é nova. Por mais de uma década, a guerra na Síria serviu como uma mancha de vergonha na ONU. Desde 2011, Moscou vetou dezessete resoluções do Conselho de Segurança que ordenavam o fim do conflito. O mesmo ocorreu em 2014, quando o Conselho se reuniu de forma emergencial para tentar condenar a anexação da Crimeia pelos russos. Moscou, uma vez mais, vetou a resolução. Em dezenas de outros assuntos, os diferentes países foram obrigados a suavizar a linguagem das decisões para evitar o veto de um ou outro país. Isso ocorreu, por exemplo, diante do golpe militar em Mianmar.

Desta vez, porém, a guerra aprofunda a percepção de que o sistema simplesmente não funciona, para o desespero dos ucranianos.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, usou sua participação no Conselho de Segurança na semana passada para pedir uma reforma da ONU a fim de impedir o veto da Rússia. O projeto, porém, não agrada nenhuma das grandes potências que, de forma sucessiva, têm usado justamente o instrumento do veto para frear qualquer condenação contra suas ações ou impedir uma ação multilateral em zonas de sua influência. Um dos governos que não apreciam a ideia de limitar o uso do veto é o dos Estados Unidos, que sequer aderiu ao compromisso proposto há poucos anos pela França de não usar o instrumento em casos de genocídio e crimes contra a humanidade.

Nos primeiros anos da ONU, foi a antiga URSS que vetou o maior número de resoluções, principalmente para bloquear a admissão de um novo estado membro. Ao longo dos anos, a URSS e depois a Rússia lançaram 143 vetos, quase metade do total de vetos. No caso americano, foram 83 vetos. Mas, desde os anos 1970, a Casa Branca é quem mais usa esse expediente, especialmente para bloquear decisões que considera prejudiciais aos interesses de Israel. O Reino Unido utilizou o veto 32 vezes, sendo que a primeira delas ocorreu em 1956 durante a crise do Suez.

O final da Guerra Fria abriu a esperança de que a tendência mudaria. França e Reino Unido não usam o instrumento desde 1989, quando, ao lado dos Estados Unidos, impediram a condenação da invasão americana ao Panamá. Diplomatas consultados pela piauí admitem que a ideia dos ucranianos não passa de “ar e ilusão”. Todos, porém, reconhecem que a guerra revela os limites da ONU e que um fortalecimento da instituição seria necessário. Internamente, porém, o temor é de que a guerra na Ucrânia vá exatamente no sentido contrário. No lugar de fazer eclodir uma vontade por reforma, ela aceleraria o processo de irrelevância da agência.

Em mais de um mês de conflito, a única ação concreta foi o isolamento ainda maior da Rússia, com sua suspensão do Conselho de Direitos Humanos e a interrupção, em solo russo, de programas de entidades como a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Mas, para experientes diplomatas, tais medidas não garantem a paz e ameaçam enfraquecer o sistema multilateral.

Decisivo foi o fato de que, nos últimos anos, o governo de Donald Trump e seus aliados no Brasil e em outros locais se lançaram em um esforço concreto para desmontar a legitimidade da ONU. Se o discurso “antiglobalista” dava o tom das participações de Trump, Bolsonaro e o húngaro Viktor Orbán na tribuna da ONU, a ação de desmonte liderada por esses governos representou um abalo no multilateralismo. O ex-presidente americano chegou a exigir de Guterres a realização de uma reforma administrativa para que a Casa Branca mantivesse sua contribuição anual. Nem assim o compromisso de Washington foi assegurado. Trump saiu do Acordo do Clima, se afastou da Unesco, deixou o acordo de migrações, cortou dinheiro para a Unicef, abandonou o Conselho de Direitos Humanos e ainda passou a ameaçar os funcionários do Tribunal Penal Internacional. 

Em 2020, em plena pandemia, a Casa Branca rompeu com a Organização Mundial da Saúde quando o mundo mais precisava da instituição, além de cortar o envio de dinheiro para os programas da ONU de ajuda aos refugiados palestinos. Outra ação de desmonte do governo americano foi pressionar por uma redução substancial das operações de paz. Ainda em 2017, ao desembarcar em seu assento na ONU, a embaixadora dos Estados Unidos, Nikki Haley, anunciou que iria “se desfazer de tudo o que fosse obsoleto”. O projeto inicial era reduzir em 1 bilhão de dólares a contribuição americana para operações de paz pelo mundo. 

Depois de um longo processo de negociações e do compromisso da Europa de cobrir parte dos custos, a ONU chegou a um acordo para reduzir em 600 milhões de dólares os recursos para as tropas. No final de 2019, a crise orçamentária já era de tal proporção na ONU que, em seu edifício em Genebra, luzes de corredores, escadas rolantes e elevadores foram desligados para economizar dinheiro. Naquele momento, até os banheiros deixaram de ser limpos todos os dias.
Sob a gestão de Joe Biden, o governo americano fez um movimento para voltar a fortalecer o multilateralismo e a ONU. Mas, para negociadores diplomáticos, a confiança no sistema e a capacidade de diálogo entre as potências já tinham sido minadas. Hoje, sem um papel político central, coube à ONU garantir a assistência humanitária às vítimas de uma guerra na Ucrânia que ela fracassou em parar. Em pouco mais de um mês, ela reuniu 60% do 1,7 bilhão de dólares necessários para socorrer 18 milhões de ucranianos, dentro e fora do país.

Hoje, a cada segundo, a guerra força uma pessoa a fugir pelas fronteiras da Ucrânia. “Esta é a crise de deslocamento mais rápida que testemunhei em meus 35 anos como trabalhador humanitário”, disse Jan Egeland, secretário-geral do Conselho Norueguês para Refugiados (NRC) e ex-chefe da ONU para Assuntos Humanitários. O temor dele, porém, é de que a guerra leve os doadores internacionais a destinar recursos para a Ucrânia e esvaziar o financiamento das dezenas de outras crises pelo mundo. “Apelamos aos doadores para cavar fundo em seus bolsos para encontrar novos financiamentos para as pessoas afetadas pelo conflito armado na Ucrânia, mas não retirar recursos de outras crises. O sofrimento humano está em níveis sem precedentes em todo o mundo – do Afeganistão ao Sahel Central – e a Ucrânia é a última de uma longa lista de crises com necessidades humanitárias recordes”, disse Egeland.

Se o trabalho humanitário da ONU é fundamental, ele é visto também como uma deturpação de seu papel original, que era justamente o de impedir a eclosão de conflitos armados. E não de fornecer esparadrapos para as vítimas. Os mais céticos, porém, insistem que todo esse cenário era previsível e que, nos últimos anos, a cúpula da ONU veio alertando os governos sobre o desmonte da confiança no cenário internacional. Guterres, por exemplo, advertiu em 2019 que a relação entre a China, a Rússia e os Estados Unidos “nunca foi tão disfuncional” como naquele momento. Ele indicou que o “mundo nunca esteve tão ameaçado ou tão dividido” e pediu que governos “acordassem” diante dos riscos.

Dois anos depois, no mesmo palanque da ONU, ele já acionava o alerta do desespero. “Estamos à beira de um abismo”, disse Guterres ao abrir a Assembleia Geral. “Enfrentamos a maior cascata de crises em nossas vidas.” “As pessoas que servimos e representamos podem perder a fé não apenas em seus governos e instituições, mas nos valores que têm animado o trabalho das Nações Unidas por mais de 75 anos”, advertiu Guterres. O eco de suas palavras até hoje atormenta os negociadores.
“O multilateralismo está no leito de morte esta noite”, lamentou o embaixador do Quênia nas Nações Unidas, Martin Kimani, enquanto discursava em fevereiro no Conselho de Segurança, sob o som das bombas na Ucrânia. A pergunta que todos fazem é se o multilateralismo e a própria ONU voltarão a se levantar depois que os canhões tenham sido silenciados.

Jamil Chade
É colunista na Europa e, desde 2000, tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Publicou sete livros, três dos quais foram finalistas do Jabuti. Em 2022, publicou Luto - reflexões sobre a reinvenção do futuro, pela Editora Contracorrente.

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