- Batman, The Batman, 2022, Matt Reeves
- Fúria no Sangue, The Deadly Trackers, 1973, Barry Shear e Samuel Fuller
- O Parceiro do Diabo, Shoot Out, 1971, Henry Hathaway
- Trumbo - Lista Negra, Trumbo, 2015, Jay Roach
- Arenas Sangrentas, The Brave One, 1956, Inving Rapper
- Corbo, 2014, Mathieu Denis
- Adorável Vagabundo, Meet John Doe, 1941, Frank Capra
- Tabu, Tabu: A Story of the South Seas, 1931, F. W. Murnau
- A Legião dos Renegados, Legion of the Lawless, 1940, David Howard
- O Falcão Dourado,The Golden Hawk, 1952
- Summer of Soul (...ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada), Summer of Soul (...Or, When the Revolution Could Not Be Televised), 2021, Quetlove
- Spencer, 2021, Pablo Larrain
- No Ritmo do Coração, CODA, 2021, Sian Heder
- A Sereia dos Mares do Sul, Pearl of the South Pacific,1955, Allan Dwan
- Que Assim Seja, Trinity, Si può fare... amigo, 1972, Maurizio Lucidi
- Rio Acima, Up the River, 1930, John Ford
- Punhos de Campeão, The Set-Up, 1949, Robert Wise
- O Mundo os Condenou, The Damned, 1963, Joseph Losey
- O Homem solitário, The Solitaire Man, 1933, Jack Conway
- O Dia da Desforra, La resa dei conti, 1966, Sergio Sollima
- Segredos de Alcova, Diary of a Chambermaid, 1946, Jean Renoir
- O Homem do Rifle, The Rifleman, Série TV 1958 – 1963
- O Morto Desaparecido, Murder Is My Beat, 1955, Edgar G. Ulmer
- O Preço do Poder, Il prezzo del potere, 1969, Tonino Valerii
- As meninas, 1995, Emiliano Ribeiro
- Hans Staden, 1999, Luís Alberto Pereira
- Quelé do Pajeú, 1970, Ansemo Duarte
- Por uma Mulher Má, The Man Who Cheated Himself, 1950,
- Ruptura, Severance, Série de TV, 2022, Bem Stiller e Aoife McArdle
- As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972, Rainer Werner Fassibinder
- O Traidor, Il traditore, 2019, Marco Bellocchio
- O Casamento de Maria Braun, Die Ehe der Maria Braun, 1979, Rainer Werner Fassbinder
- Lili Marlene, Lili Marleen, 1981, Rainer Werner Fassbinder
4/3/22
Batman, The Batman, 2022, Matt Reeves
Finalmente um filme de super-herói não infestado de CGI (Computer Graphic Imagery) como em. Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, Spider-Man: No Way Home, 2021, Jon Watts.
The Batman
The Batman: noir investigativo de Matt Reeves é um dos melhores filmes do herói
Publicado por Por Ana Pisani | Culturadora | Colunista do Culturadoria em 3 de março de 2022 às 10:37
Por Ana Pisani | Culturadora
Depois de muita expectativa, The Batman finalmente chega às telonas. Dirigido por Matt Reeves, o filme traz o homem-morcego no segundo ano de atividade em Gotham, uma metrópole que está tomada por crime e corrupção. Nesse contexto, o serial killer Charada começa a agir. O vilão opera deixando pistas enigmáticas a cada assassinato. Com isso, o herói é obrigado a juntar peças de um quebra-cabeça que escancara os podres da elite.
Logo de início, Batman se apresenta com uma narração em off que imediatamente nos remete ao noir investigativo proposto pelo diretor. De fato, é o Batman detetive que ganha vida na narrativa. Nada mais justo vindo do super-herói que não tem superpoderes. A ambientação noir é composta por uma cidade chuvosa e pela violência das ruas. Sendo assim, o tom é sério e o visual é sombrio.
Enredo
Matt Reeves não se dá ao trabalho de contar, novamente, a origem de Bruce Wayne, já vista tantas vezes. Ao invés disso, ele explora as complexas relações de poder e camadas do crime que moldam a sociedade. Através desse cenário, o filme é capaz de mostrar a psique do vigilante. Ou seja, um jovem isolado e atormentado, que ainda é guiado pelo trauma da perda dos pais.
Em geral, trata-se de uma adaptação competente que deve agradar os fãs dos quadrinhos. Reeves evocou materiais dos anos 80, principalmente Batman – Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli. Além das HQs, fica claro a inspiração do diretor em clássicos do cinema dos anos 70, como Taxi Driver e Chinatown. É por essa identidade que The Batman se sobressai positivamente, meio a esteira de produção de tantos filmes de super-heróis atuais.
Elenco triunfal
Muitas sobrancelhas se levantaram quando Robert Pattinson foi confirmado no papel. Contudo, o ator se prova certeiro no personagem. Na verdade, todo o elenco é acertado. Zoë Kravitz domina a Mulher-Gato por completo, entregando uma performance magnética. Jeffrey Wright é um bom Jim Gordon, servindo como o companheiro ideal do Batman na polícia.
O Charada, interpretado por Paul Dano, vem à tona como um assassino calculista e aterrorizante. Ao deixar uma série de mensagens escondidas a cada ataque, o vilão reverbera filmes como o Zodíaco e Se7en. Suas motivações contra a alta sociedade corrupta são claras. Por isso, como um bom antagonista faz, ele acaba provocando questionamentos em noções de justiça e vingança que condizem também ao próprio herói.
Colin Farrell está irreconhecível como Pinguim. O personagem não é tão caricato, já que Matt Reeves está obviamente interessado em trazer um universo realista. Ou seja, o vilão não aparece de cartola e monóculo, mas como um mafioso que poderia ter saído de um filme do Scorsese. Aliás, está confirmado que o personagem será desenvolvido mais a fundo em uma série spin-off para o HBO Max.
De suma importância, a química entre Robert Pattinson e Zoë Kravitz funciona instantaneamente. Na mesma medida em que Batman e Mulher-Gato se conectam, Bruce Wayne e Selina Kyle trazem as realidades opostas de Gotham. De um lado, o bilionário que vive recluso em seu castelo e que luta por vingança. Do outro, a mulher que vive às margens do sistema e que desde cedo teve que lutar para sobreviver.
Entra para o pódio
Pode-se dizer que The Batman chega como um dos melhores filmes da história do homem-morcego. Apesar da longa duração de quase 3 horas, o filme é de uma qualidade que é fácil ser apreciada a todo momento. Em especial, devido aos aspectos técnicos. Um destaque vai para a trilha sonora de Michael Giacchino, que potencializa o clima do longa.
Contudo, é a fotografia de Greig Fraser o ponto alto. O modo em que se trabalha luz e sombra, onde o cavaleiro das trevas se esconde, cria a estética perfeita. As visões de diferentes personagens trazem ângulos interessantes. Além disso, a ação é eletrizante e ocorre na medida certa. Sem entrar em spoilers, há uma sequência de perseguição de carros que é de tirar o chapéu. Sendo assim, esse é o filme do Batman mais bonito visualmente.
Com o exemplo precursor de Joker, não seria chocante se o longa ganhasse reconhecimento nas premiações do ano que vem. Mas, por agora, fica uma especulação do que pode vir por aí. O diretor já afirmou interesse em uma sequência. Com certeza, o que não falta é potencial para uma nova franquia de sucesso. Afinal, The Batman marca um recomeço para o herói na telona.
Por Ana Pisani, Jornalista em formação. Fascinada pelo mundo do entretenimento, maratonista de séries e ouvinte de Lady Gaga
5/3/22
Fúria no Sangue, The Deadly Trackers, 1973, Barry Shear e Samuel Fuller (não creditado)
Filme no iutubi aqui
Sobre Isela Vega (1939–2021) https://www.imdb.com/name/nm0891835/?ref_=ttfc_fc_cl_t8
Sean Kilpatrick é um xerife de uma cidade do Texas que, cego pelo o ódio, emprega todas as suas energias para acabar com uns foragidos que tinham tomado como refém o seu filho e depois assassinado o menino e a sua esposa. Os criminosos fogem para o México, mas Kilpatrick está decidido a segui-los até ao fim do mundo...
9/3/22
O Parceiro do Diabo, Shoot Out, 1971, Henry Hathaway
O filme no iutubi aqui
Clay Lomax (Gregory Peck) é um assaltante de banco que foi traído e ferido por seu parceiro, e por isso foi condenado a oito anos de prisão. Ao sair, ele vai atrás de Sam Foley (James Gregory) para vingar-se. Para por seu plano em prática, Clay procura uma antiga namorada para receber dela uma quantia em dinheiro, mas descobre que a mulher esta morta e deixou uma filha de oito anos para trás. Com pena da menina e diante da possibilidade de ser pai dela, Clay a leva com ele. Enquanto isso, sabendo que seu ex-parceiro foi solto, Foley contrata três cruéis pistoleiros para seguirem Clay.
11/3/22
Trumbo - Lista Negra, Trumbo, 2015, Jay Roach
Filme no iutubi aqui
Hollywood blacklist
Lista negra de Hollywood
Dalton Trumbo (1905 – 1976)
Trumbo – Lista Negra / Trumbo
DE: JAY ROACH, EUA, 2015
Trumbo é um filmaço, uma beleza, uma maravilha. É cinema da mais alta qualidade – e é também um documento importantíssimo sobre o período mais negro, mais pavoroso de Hollywood, do cinema e da cultura americana como um todo, um dos períodos mais negros, mais pavorosos da História recente: os anos do macartismo, da caça às bruxas entre os profissionais do showbusiness, a partir do final dos anos 40 e atravessando todos os anos 50.
E é fascinante ver que um filme tão bom e tão importante quanto este tem muito mais grandes nomes entre os personagens do que entre os atores e os realizadores. Além do roteirista Dalton Trumbo, são personagens do filme, entre tantos outros, Kirk Douglas, Otto Preminger, Edward G. Robinson, Louis B. Mayer. No elenco de Trumbo, os nomes mais conhecidos são os de Helen Mirren, Diane Lane, John Good e a jovem e promissora Elle Fanning, como a filha mais velha de Trumbo.
Tanto o roteirista John McNamara quanto o diretor Jay Roach não eram grandes nomes, de primeira grandeza. McNamara tinha quase duas dezenas de créditos de roteiros de séries para a TV. Jay Roach já havia dirigido uma dúzia de comédias, entre elas Entrando numa Fria e Entrando numa Fria Maior Ainda, de 2000 e 2004, e três daquelas bobagens com Mike Myers interpretando o agente Austin Powers. Antes deste Trumbo, havia feito apenas um drama, o ótimo Recontagem (2008), filme da HBO sobre as trapalhadas na contagem de votos na Flórida nas eleições presidenciais de 2000, aquelas em que George W. Bush derrotou por pouco Al Gore.
Bem, depois de Trumbo já não se pode dizer que John McNamara e Jay Roach não são grandes nomes do cinema americano.
Trumbo ganhou 7 prêmios e teve outras 43 indicações, inclusive uma ao Oscar, para Bryan Cranston, que faz o papel de Dalton Trumbo.
á foram feitos outros filmes sobre a caça às bruxas e a lista negra – e alguns são muito bons, como, só para dar dois exemplos, Testa-de-Ferro por Acaso/The Front (1976) e Culpado por Suspeita/Guilty by Suspicion (1991). Neste, dirigido por Irwin Winkler, Robert De Niro interpreta um diretor de cinema – um fictício David Merrill – que, nos anos 50, é chamado para prestar depoimento à HUAC, a sigla em inglês de Comitê da Casa de Representantes sobre Atividades Anti-Americanas, por suspeita de ser simpatizante do comunismo.
Em Testa-de-Ferro por Acaso, dirigido por Martin Ritt, Woody Allen faz o papel de Howard Prince, um sujeito comum, que trabalha num restaurante, e é procurado por roteiristas que tinham sido colocados na lista negra e ficavam, portanto, impedidos de trabalhar. Eles propõem que Prince passe a assinar seu nome nos roteiros que eles escrevem, em troca de uma porcentagem do pagamento. E da noite para o dia Howard Prince desponta como um grande roteirista. O filme tem um final emocionante, belíssimo – e, antes dos créditos finais, vemos letreiros indicando o ano em que pessoas que trabalharam nele entraram na lista negra: “Martin Ritt, blacklisted in …; Zero Mostel, blacklisted in…”
Apesar de ter Woody Allen como ator principal, é um drama sério, denso – um belo filme.
Bem mais recentemente, os irmãos Coen, que não têm respeito incondicional por causa alguma, e, ao contrário, adoram brincar com coisas sérias, transformaram a simpatia pelo comunismo entre gente de Hollywood nos anos 40 e 50 e a brutal reação a isso, com a caça às bruxas, a lista negra, em motivo de riso, no ótimo Ave, César!/Hail, Caesar! (2016). Na trama maluca criada pela imaginação iconoclasta dos irmãos Coen, um grande astro de Hollywood (intepretado por George Clooney) é sequestrado por um grupo de roteiristas comunistas, que exige do estúdio uma fortuna em troca da libertação do ator. O dinheiro, é claro, seria usado para a propagação dos ideais do Partido.
Serão sempre bem-vindos novos filmes sobre o macartismo, a lista negra, assim como serão sempre bem-vindos mais filmes sobre o nazismo, o holocausto: é preciso lembrar sempre dessas imensas tragédias para que a sociedade fique alerta, para evitar que elas possam se repetir.
Mas a verdade é que, assim como A Lista de Schindler (1993) de Steven Spielberg foi o filme definitivo sobre o holocausto, Trumbo é também o filme definitivo sobre a caça às bruxas do macartismo, a época da lista negra.
Em primeiro lugar, porque, ao contrário daqueles outros que citei, Trumbo não é uma história fictícia. É a reconstituição – e, ao que tudo indica, bastante fiel – de fatos reais, de eventos históricos. Todos os personagens são pessoas reais – e houve uma óbvia preocupação em encontrar atores parecidos fisicamente com as figuras ali representadas. Uma preocupação óbvia, e uma grande vitória: os atores são de fato bastante parecidos com as pessoas que interpretam.
O caso de Bryan Cranston, o ator principal, é absolutamente impressionante: ele está idêntico ao Dalton Trumbo da vida real. É incrível, é uma maravilha. Há uma sequência em que vemos um trecho de cinejornal da época, o verdadeiro Dalton Trumbo falando, em preto-e-branco, claro – e aí corta e vemos Bryan Cranston prosseguindo o que Dalton Trumbo estava dizendo. É chocante, é impressionante a semelhança.
Há apenas uma única exceção: Arlen Hird (o papel de Louis C.K.), que tem muita importância no filme, aparece ao longo de toda a narrativa, nunca existiu. Ele foi uma liberdade poética do roteirista do filme, John McNamara (que se baseou numa biografia de Dalton Trumbo escrita por Bruce Cook). McNamara colocou em Arlen Hird características de diversos roteiristas que foram postos na lista negra. Arlen Hird é um amálgama, um compósito.
Todos as demais pessoas que aparecem na tela são pessoas reais, em situações que de fato existiram.
Em segundo lugar, Trumbo me pareceu o filme definitivo sobre o tema porque o próprio escritor cuja história é retratada é uma das vítimas mais importantes, mais significativas do período da caça às bruxas, da lista negra. Dalton Trumbo era um dos roteiristas mais importantes de Hollywood em 1947, o ano em que a narrativa começa, se não o mais importante de todos. Era, como o filme mostra muito bem, o roteirista mais bem pago da indústria do cinema americano. Foi um dos nomes mais visados pelos membros do HUAC, o comitê da Câmara de Representantes. Foi um dos que foram condenados à prisão – sob a alegação de desacato ao comitê.
E acabaria sendo, como o filme mostra maravilhosamente bem, uma das peças principais para que, no começo dos anos 60, a lista negra fosse jogada no lugar certo, a lata de lixo.
Eu acrescentaria ainda um terceiro motivo pelo qual Trumbo é o filme definitivo sobre a lista negra: é o fato de que, sem possibilidade de dúvida alguma, Dalton Trumbo era, sim, membro do Partido Comunista dos Estados Unidos. Com carteirinha e tudo. Carteirinha de número 47187. Filiou-se em 1943, quando Estados Unidos e União Soviética eram aliados na guerra contra o nazismo.
Seguramente seria mais palatável para boa parte da população americana que o herói de um filme sobre a lista negra não fosse na verdade um comunista. Fosse apenas um simpatizante distante, injustamente perseguido, colocado na lista negra e portanto impedido de trabalhar, de ganhar dinheiro, de sustentar a família.
Mas não: Dalton Trumbo era comunista mesmo. Havia, sim, muitos comunistas em Hollywood – assim como no showbusiness em Nova York e outras grandes cidades americanas.
Trumbo diz isso com todas as letras, em letreiros que aparecem na tela logo após os logotipos das empresas produtoras – empresas menores, independentes. O filme sobre as entranhas de Hollywood não foi produzido por um dos grandes estúdios que dominavam a indústria naqueles anos 40 e 50 e continuam dominando até hoje.
Dizem os letreiros, com uma capacidade de síntese prodigiosa, extraordinária:
“Durante os anos 1930, em resposta à Grande Depressão e à ascensão do fascismo, milhares de americanos se filiaram ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Depois que os EUA se aliaram à União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, muitos mais se juntariam ao C.P.U.S.A. O roteirista Dalton Trumbo, um veterano defensor dos direitos dos trabalhadores, tornou-se membro do Partido em 1943. Mas a Guerra Fria lançou uma nova luz de suspeita sobre os comunistas americanos.”
A História caminha muitas vezes como um pêndulo – ora pende para um lado, ora pende o lado contrário, e há momentos em que dá para perceber isso a olhos nus. A História dos Estados Unidos no século XX é um desses momentos. O país conseguiu sair da Grande Depressão na segunda metade dos anos 30, com Franklin D. Roosevel, um presidente progressista, preocupado com políticas sociais, com as massas desfavorecidas. Como, ao contrário de todos os principais países desenvolvidos, não sofreu diretamente em seu solo os efeitos da Segunda Guerra (com exceção da base de Pearl Harbour, no Havaí, atacada de surpresa em dezembro de 1941 pelos japoneses), o país saiu do conflito, em 1945, como a maior economia do planeta.
Como o final da guerra na Europa marcou o início de uma outra, a Fria, a que opunha os até então aliados Estados Unidos e União Soviética, os ânimos foram se acirrando cada vez mais contra os partidários do regime agora inimigo.
E, sim, havia de fato comunistas no showbusiness. Roteiristas, atores, diretores, compositores, cantores, gente de rádio, que logo estaria também na nascente televisão. Comunistas, socialistas, esquerdistas de diversos matizes – pessoas que defendiam justiça social, melhor distribuição de riqueza.
Hollywood, especifica e especialmente, sempre havia sido um lugar que acolheu bem gente de pensamento mais à esquerda em termos políticos e econômicos, mais liberais em termos comportamentais. Meca da indústria de cinema, Hollywood atraiu gente do mundo inteiro – e boa parte deles eram simpáticos ao socialismo da mesma forma como comportamentalmente progressistas, avançados. A rigor, a comunidade do cinema mundial reunida em Hollywood sempre esteve à frente (ou à esquerda, ou à margem, de acordo com o pensamento de cada um) do resto da sociedade americana.
Quando os políticos de direita passaram a ter voz mais alta no Congresso, e iniciaram a campanha que resultaria na caça às bruxas em todo o showbusiness americano, era apenas natural que boa parte de sua atenção se concentrasse na comunidade do cinema.
E quando a direita, em especial a extrema direita, começa a ter voz ativa, rapidamente parte da sociedade perde a calma, os bons modos, a inteligência, a racionalidade. Parte-se para a gritaria, a histeria, a loucura.
O macartismo levou os Estados Unidos a um estado de absoluta paranóia. Enxergavam-se comunistas em absolutamente todos os lugares – até embaixo das camas dos funcionários da Casa Branca.
Dá perfeitamente para qualquer brasileiro saber do que se está falando. Instalou-se fenômeno semelhante aqui a partir da posse de Jair e seus Bolsonaretes.
Poucos conseguiram reconstruir suas carreiras
A Wikipedia tem uma boa explanação sobre aqueles tempos absolutamente sombrios, apavorantes, no verbete “Hollywood blacklist”.
“A lista negra envolvia a prática de negar emprego a profissionais da indústria de entretenimento que se acreditava serem ou terem sido comunistas ou simpatizantes. Não apenas atores, mas roteiristas, diretores, músicos e outrpos professionais americanos do entretenimento foram impedidos de trabalhar pelos estúdios. Isso era feito em geral com base no fato de terem sido membros, ou alegadamente terem sido membros, ou até mesmo terem tido simpatia pelo Partido Comunista dos Estados Unidos, ou com base em sua recusa de ajudar as investigações do Congresso sobre as atividades do partido. Mesmo durante o período de sua aplicação mais estrita, do final dos anos 1940 até o final dos anos 1950, a lista negra raramente se fazia explícita ou verificável, mas ela rápida e diretamente prejudicou ou encerrou as carreiras e o sustente de um grande número de indivíduos que trabalhavam na indústria de cinema.”
Insisto no bom texto da enciclopédia colaborativa sobre a “Hollywood blacklist”.
Acho que é importante registrar aqui mais um parágrafo do texto – tem tudo a ver com o que o filme retrata:
“Em 1947, o comitê (o HUAC já citado, o House of Un-American Activities Committee) realizou nove dias de audiências sobre a alegada propaganda e influência comunista na indústria cinematográfica de Hollywood. Depois de condenação por desacato ao Congresso por recusa de respoonder a algumas perguntas feitas por membros do comitê, ‘Os Dez de Hollywood’ foram colocados na lista negra pela indústria. Eventualente, mais de 300 artistas – incluindo diretores, comentaristas de rádio, atores e especialmente roteiristas – foram boicotados pelos estúdios. Alguns, como Charlie Chaplin, Orson Welles, Alan Lomax, Paul Robeson e Yip Harburg deixaram os Estados Unidos ou se refugiaram nas sombras para achar trabalho. Outros, como Dalton Trumbo, escreveram sob pseudônimos ou usando o nome de colegas. Apenas cerca de 10 por cento conseguiram reconstruir suas carreiras dentro da indústria de entretenimento.”
Trumbo para o Duke: “Nós dois temos o direito de errar”
A primeira cena que vemos em Trumbo, logo depois daquele intróito que coloca o contexto para o espectador, é de uma paisagem idílica, uma bela fazenda verdejante. Um letreiro informa que estamos ao Norte de Los Angeles, em 1947. Dalton Trumbo, comunista de carteirinha e ao mesmo tempo o roteirista mais bem pago de Hollywood e portanto do mundo, vive com a família em uma esplêndida pequena fazenda, com a bela mulher Cleo (o papel de uma Diane Lane mais simpática do que em todos os filmes anteriores que vi dela) e seus três filhos, Nikola, Chris e Mitzi.
O filme nos apresenta um Dalton Trumbo comunista de carteirinha, bom marido e bom pai de três pequenas crianças. Não tem nada, absolutamente nada de sujeito que come criancinhas – ao contrário do que sempre disseram e continuam dizendo até hoje, depois que o comunismo virou passado, os radicais, os paranóicos xiitas de direita.
Rapidamente, com talento e habilidade, o roteiro nos mostra que Trumbo é um líder entre o grupo de roteiristas comunistas ou simpatizantes do comunismo. E nos apresenta a outra face da moeda, as pessoas ligadas à Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Americanos.
John Wayne foi um dos criadores da Aliança e, em 1949, foi eleito seu presidente. Bem no início ainda, o filme mostra um diálogo entre John Wayne (interpretado por David James Elliott) e Dalton Trumbo; este último tinha ido, com companheiros roteiristas, ver uma reunião dos membros da Aliança e, ao fim, tentam distribuir alguns panfletos.
Wayne: – “Você não vai encontrar gente querendo esses papéis. Não aqui, pelo menos.”
Trumbo: – “Por que isso? Tudo o que ele diz que é que o Congresso não tem tem direito de investigar como nós votamos ou onde nós rezamos, o que nós pensamos, dizemos ou fazemos filmes. Olá, eu seu Dalton Trumbo.”
E, ao se apresentar, estende a mão para o Duke. O grandalhão se recusa a pegar na mão do comunista.
Wayne: – “O Congresso tem o direito de ir atrás de qualquer coisa que eles achem que é uma ameaça.”
Trumbo: – “Bem, é aqui que discordamos, e esse é o ponto. Nós dois temos o direito de estarmos errados.”
A colunista ameaça o chefão da Metro
Como é um filme sobre a vida de um escritor, um homem das palavras, Trumbo é cheio de maravilhosos diálogos. Há um diálogo impressionante entre o produtor Louis B. Mayer, o chefão da Metro-Goldwyn-Mayer (interpretado por Richard Portnow), e Hedda Hopper, uma das duas mais famosas colunistas de Hollywood naqueles anos 40. (A outra, que não aparece nem é citada no filme, é Louella Parsons.) Hedda Hopper, que aparece bastante ao longo da narrativa, é interpretada por Helen Mirren de uma tal forma que o espectador tem imediatamente uma imensa antipatia por ela. É mostrada como uma mulher tremendamente vaidosa, egoista, egocêntrica, soberba – e uma direitista radical, virulenta. Louis B. Mayer, como outros chefões e diretores dos grandes estúdios de Hollywood, era judeu – e, no diálogo, Hedda mostrará um nojento anti-semitismo.
Ela visita Mayer em sua sala nos estúdios da MGM. Primeiro o agrada, faz elogios, puxa o saco. Depois exige que ele demita Dalton Trumbo, que ele acabara de contratar pelo mais alto salário já pago a um roteirista.
Hedda: – “Quarenta anos atrás você estava passando fome em algum shtetl. (Shtetl é a palavra para denominar cidade pequena de judeus na Europa Oriental; Mayer nasceu na Ucrânia, em 1884.) O maior país do mundo abrigou você, deu a você riqueza, poder, mas no momento em que nós precisamos de você, você não faz nada. E é exatamente isso que meus leitores esperam de um negócio dirigio por kikes.” (Kikes é uma gíria americana – ofensiva – para judeus.)
Mayer: – “Saia daqui!”
Hedda: – “Sabe, L.B., eu gosto de você. Alguns dos meus anos mais alegres passei aqui neste estúdio. Não em seu escritório, é claro. Você estava sempre tentando me foder no sofá. E eu tentando manter a minha virtude. Quase. Mas os tempos mudam. Agora eu foderia você alegremente.”
Não podia assinar os roteiros – mas eles ganhavam Oscars
Não demora muito, no entanto, para Dalton Trumbo perder o emprego na Metro, e em seguida ser preso, por desacato ao comitê da Câmara dos Representantes.
Foi depois de cumprir a pena que ele escreveu o roteiro de Roman Holiday, que no Brasil se chamaria A Princesa e o Plebeu, e pediu ao amigo Ian McLellan Hunter (Alan Tudyk) que o apresentasse aos estúdios como obra dele. Se o roteiro fosse aceito, Hunter – que ainda não estava na lista negra – daria uma parte do salário a Trumbo.
A Paramount comprou o roteiro, que William Wyler transformou naquela maravilha de filme, um absoluto clássico, com Gregory Peck e Audrey Hepburn, lançado em 1953.
Mas, mesmo recorrendo a esse esquema de trabalhar usando fronts, testas-de-ferro, para assinar os roteiros, naturalmente as coisas foram ficando mais e mais difíceis para a família. E os Trumbo, casal e três filhos, vendem a bela fazenda e se muda para uma casa em Los Angeles.
Entra na história Frank King, uma figura absolutamente fascinante da qual eu jamais tinha ouvido falar. Com seu irmão Hymie King, ele criou a King Brothers Productions, uma produtora de filmes baratos, tipo B, sem preocupação alguma a não ser dar muito dinheiro nas bilheterias. Frank King é interpretado pelo ótimo John Goodman, cada vez mais gordo, e seu irmão Hymie, por Stephen Root. O irmão é menos arrojado, mais tenso, mas Frank demonstra não dar a mínima importância para política, lista negra, coisa alguma. Quando Dalton Trumbo vai procurar os dois, e se oferecer para escrever roteiros usando pseudônimo, Frank responde: – “Eu faço filmes de merda. Você é bom demais e caro demais para escrever para mim.”
Mas Trumbo insiste, diz que topa trabalhar pelo salário que os irmãos King pagam a seus roteiristas. E a partir daí não apenas passa a produzir roteiros em escala industrial para a King Brothers Productions como leva vários de seus amigos que estavam também na lista negra para trabalhar lá também.
Lá pelas tantas, entre a reescrita de um roteiro ruim e de um outro pior para os irmãos King, Trumbo teve a idéia de fazer um filme sobre um garotinho mexicano que luta para que seu touro de estimação não seja morto nas touradas. Quando entrega para os King o roteiro datilografado, diz: – “Há um problema, no entanto.” Hymie King pergunta: – “Caro?” E Trumbo, com um sorriso maroto: – “Pior. É bom.”
O filme, Arenas Sangrentas/The Brave One, foi lançado em 1956, com o roteiro atribuído a um nome totalmente desconhecido pela comunidade de Hollywood, um tal Robert Rich.
Tanto A Princesa e o Plebeu quanto Arenas Sangrentas ganharam os Oscars de melhor roteiro. Enquanto era proibido de trabalhar – ou, no mínimo, de assinar seu trabalho –, Dalton Trumbo ganhou dois Oscars. Anos e anos após o fim do macartismo, da caça às bruxas, da lista negra, a Academia reconheceria oficialmente que ele foi o autor dos dois roteiros premiados.
A comunidade de Hollywood se dividiu ao meio
Trumbo mostra poucas personalidades de Hollywood como sendo líderes da direita, do anti-comunismo. Além de John Wayne e Hedda Hopper, creio que o filme realça apenas o diretor Sam Wood (interpretado por John Getz), de Uma Noite na Ópera (1935), Em Cada Coração um Pecado (1942), Por Quem os Sinos Dobram (1943).
Duas personalidades são mostradas no filme como sendo corajosas, independentes, dispostas a remar contra a maré, a desafiar o status quo e a romper com a lista negra, quando os anos 50 vão chegando ao fim: o diretor e produtor Otto Preminger e o ator e produtor Kirk Douglas. (Os dois são interpretados, respectivamente, por Christian Berkel e Dean O’Gorman.)
Preminger – um sujeito que sempre desafiou os padrões, a caretice e os limites impostos pelo Código Hays, como no extraordinário Anatomia de um Crime – foi à casa de Trumbo pedindo que ele transformasse Exodus, o best-seller de Leon Uris sobre a fundação do Estado de Israel, imenso, de umas 600 páginas, num bom roteiro. E prometeu que, caso ele conseguisse fazer um roteiro de fato bom, ele, Otto Preminger (o ator que o interpreta fala com um sotaque carregado de quem tem o alemão como língua mãe), botaria o nome do autor no filme.
E Kirk Douglas, belo, poderoso, cheio de si, no auge da carreira, aparece tamhém na casa de Trumbo, na mesma época de Preminger, pedindo para que ele desse um jeito no roteiro da superprodução que ele estava estrelando e produzindo, Spartacus.
Ao ouvir os boatos de que o roteiro da grande produção dirigida por Stanley Kubrick estava sendo reescrito por Trumbo, Hedda Hopper procura Kirk Douglas. Há um ótimo diálogo entre os dois que termina assim:
Hedda: – “Somos amigos há tanto tempo. Quando foi que você virou esse bastardo?”
Dougas: – “Sempre fui um bastardo. Você é que não tinha notado.”
O ator Edward G. Robinson (interpretado por Michael Stuhlbarg) é mostrado inicialmente como um grande simpatizante do comunismo; é amigo de Dalton Trumbo e de outros roteiristas comunistas ou de esquerda. Mas, depois de algum tempo, aceita comparecer ao Comitê sobre Atividades Anti-Americanas para oferecer seu testemunho e dar os nomes de quem ele sabia que pertencia ao Partido Comunista.
Dar nomes. Entregar nomes. Dedurar. Naqueles anos de profundo negror, a comunidade de Hollywood se dividiu ao meio – e cada uma das metades tinha absoluto ódio da outra. De um lado, os que davam nomes, os dedo-duros. Do outro lado, os que não cederam à baixeza, à vileza do Comitê. De um lado, os que foram contra os sagrados direitos da liberdade de pensamento. Do outro, os que defenderam a democracia.
“Não havia heróis nem vilões – só vítimas”
O passar dos anos, das décadas, não fez desaparecer esse apartheid entre os dois grupos. Em 1999, mais de 40 anos depois do fim do macartismo, da caça às bruxas, da lista negra, a Academia premiou Elia Kazan com um Oscar honorário “em apreciação por uma carreira longa, diferenciada e sem paralelo, durante a qual influenciou a própria natureza da produção de filmes através da criação de obras-primas cinematográficas”. Elia Kazan havia colaborado com o Comitê, e, por isso, houve protestos diante do teatro, antes do início da cerimônia – e, lá dentro, diversos artistas não aplaudiram nem ficaram de pé quando Martin Scorsese e Robert De Niro entregaram a honraria para o grande realizador, um dos maiores que já houve na História.
Dalton Trumbo não viveu para testemunhar aquele espetáculo triste – artistas, diretores, roteiristas, gente do cinema não aplaudindo Elia Kazan porque nos anos 50 ele foi contra os antigos companheiros de ideologia. Trumbo morreria em 1976, unanimememnte reconhecido como um dos melhores roteristas da História do cinema americano.
Foi já nos anos 70, ao receber uma honraria do Screen Writers Guild, o sindicado dos roteiristas, que Trumbo fez o discurso que encerra o filme. Uma lição de coragem, de humanismo, de vida:
– “A lista negra foi um tempo da maldade. Ninguém que sobreviveu a ela saiu sem ter sido tocado pela maldade. Fomos pegos numa situação que passava além do controle de meros indivíduos. Cada pessoa reagiu conforme sua natureza, suas necessidades, suas convicções e suas circunstâncias particulares o levaram a reagir.
– “Era um tempo de medo. E ninguém era dispensado. Centenas de pessoas perderam seus lares. Suas famílias se desintegraram. Alguns chegaram a perder suas vidas. Mas, quando você olha para aquele tempo negro, como eu acho que você deveria volta e meia olhar, não fará nenhum bem se procurar por heróis ou vilões. Eles não estavam lá. Só havia vítimas. Vítimas, porque cada um de nós se sentia compelido a dizer ou fazer coisas que em outras circunstâncias não faríamos. (…) Vejo minha família ali, e compreendo que a fiz passar por tanta coisa ruim. Não é justo.”
Não houve, naqueles tempos sombrios, heróis ou vilões – só houve vítimas.
Será que algum dia um estadista conseguirá mostrar aos brasileiros que era isso que acontecia quando sucessivos desgovernos nos dividiram entre nós x eles?
11/3/22
Arenas Sangrentas, The Brave One, 1956, Inving Rapper
Sessão de Cinema: Arenas Sangrentas (1956), fevereiro 12, 2020 Memória Cinematográfica
Durante muitos anos as touradas foram um divertimento muito popular. Embora de extrema crueldade, conquistavam legiões de fãs pelo mundo inteiro. Até mesmo Hollywood produziu inúmeros filmes que enalteciam a figura do toureiro, tais como Sangue e Areia (Blood and Sand, versões em 1922 e 1941), Os Amores de Carmen (The Loves of Carmen, 1948), Paixão de Toureiro (Bullfighter and the Lady, 1951) e Touros Bravos (The Brave Bulls, 1951), entre outros.
Os próprios toureiros da vida real ganharam papéis em filmes, como Luis Miguel Dominguín: ele atuou em filmes como A Volta ao Mundo em 80 Dias (Around the World in Eighty Days, 1956) e O Testamento de Orfeu (Le testament d'Orphée, ou Ne me demandez pas pourquoi!, 1960). O astro toureiro namorou várias estrelas de cinema, entre elas a atriz mexicana Mirolsava (uma das protagonistas de Touros Bravos). Ao ser trocada pela atriz norte-americana Ava Gardner no coração do “matador”, cometeu suicídio.
Um estúdio menor, a RKO Radio Pictures, também aderiu aos filmes de touradas, mas com um enfoque diferente. Arenas Sangrentas (The Brave One, 1956) mostrava o amor de um menino por um touro de 375 quilos, seu fiel animal de estimação. Leonardo é filho de um pobre camponês, empregado de uma grande fazenda. Seu pai socorre a sobrinha do patrão, e de recompensa ganha uma vaca, a mais velha do rebanho da fazenda e já sem serventia. O capataz, porém, descobre que o animal estava prenhe ao ser doado, e exige que a família devolva a vaca e seu futuro bezerro.
A vaca morre ao dar à luz o novilho, e o pequeno Leonardo resgata o bezerro, que batiza de Gitano, por ele ter sido “abandonado à noite na chuva à própria sorte, como um cigano”. Criado a leite de cabra, único animal leiteiro da família pobre, Gitano cresce forte e valente, e chama atenção dos donos da fazenda, que confiscam o animal. Leonardo, o único alfabetizado de sua família, escreve uma carta para Don Alejandro Videgray, o proprietário da fazenda, que mora na capital. Comovido, o “patrão” entrega a posse definitiva de Gitano a seu amigo.
Mas Don Alejandro morre em um acidente de carro, e Gitano, como todos os seus outros bens vão a leilão, e ele é comprado para ser usado em uma tourada. “Por que você os obedece como um cachorro medroso?” indaga o menino ao pai, que humilde responde “eu apenas faço o que mandam, não posso ir contra a lei”. O menino foge para a Cidade do México, a fim de salvar seu amigo de morrer na arena sangrenta, e chega ao palácio do governo, onde pede (em cena emocionante) clemência para seu melhor amigo. As cenas finais da tourada são angustiantes, e foram filmadas com Fermín Rivera, premiado toureiro mexicano. Embora o filme já tenha sessenta anos, não serei eu que revelarei o final (spoiler não!).
A RKO era um estúdio que produzia filmes de baixo orçamento. Mesmo assim produziu alguns dos maiores clássicos do cinema, como King Kong (Idem, 1933), Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e Psicose (Psycho, 1960). Aparentemente, a RKO era contra touradas, já que anos antes produzira a animação O Touro Ferdinando (Ferdinand, 1938), filme sobre um touro que preferia cheirar margaridas a duelar na arena, produzido por Walt Disney, antes dele ter o seu próprio estúdio.
O elenco de Arenas Sangrentas conta com muitos atores mexicanos de longa carreira, como Elsa Cárdenas (que interpreta Maria, irmã de Leonardo), que atua no cinema até hoje. Entre atores e atrizes pouco conhecidos do grande público, talvez o nome mais conhecido seja a bela loira platinada Joi Lansing, que interpreta uma turista americana que é contra as touradas.
Mas o maior destaque do filme é sem dúvida o menino Michael Ray, na época com 12 anos, que interpreta Leonardo. Michael Ray era filho de um diplomata brasileiro, e hoje é um dos homens mais ricos do mundo. (leia mais sobre ele aqui).
Michel Ray in The Brave One (1956)Peter O'Toole, Omar Sharif, John Dimech, I.S. Johar, and Michel Ray (de Arenas Sangrentas) in Lawrence of Arabia (1962)
Em 1957, Arenas Sangrentas foi indicado a 3 Oscars: melhor edição, melhor mixagem de som e melhor roteiro para Robert Rich, roteirista estreante que nada a tinha a ver com a indústria do cinema, a não ser o fato de ser sobrinho dos produtores
Rich foi o vencedor do Oscar daquele ano, porém, ninguém subiu ao palco para reclamar o prêmio (foi a primeira vez que isto aconteceu) e o presidente do sindicato dos roteiristas recebeu a estatueta. O fato aumentou as suspeitas de que Robert Rich não existia. E era verdade.
Trumbo e Walter Mirisch
Robert Rich foi um dos muitos pseudônimos usados por Dalton Trumbo. Brilhante roteirista em Hollywood, teve a carreira destruída por se recusar a dedurar colegas durante a caça às bruxas promovidas pelo senador McCarthy. Foi um período negro da história do cinema, conhecido por McChartismo, e que obrigou muitos artistas, como Charlie Chaplin, a fugirem de Hollywood.
Trumbo foi para o México, onde escreveu Arenas Sangrentas.
O nome de Trumbo só voltaria a ser creditado em um filme quando, em 1960, o diretor Otto Preminger exigiu que seu nome verdadeiro aparecesse como autor do roteiro de Exodus (Idem, 1960). Em seguida, o ator Kirk Douglas revelou que ele era o verdadeiro autor do roteiro de Spartacus (idem, 1960). Seu nome finalmente saiu da lista negra, e ele foi reintegrado ao sindicato dos roteiristas americanos, passando a ser creditado em todos os seus filmes seguintes. Em 1971 ele adaptou e dirigiu Johnny Vai a Guerra! (Johnny Got His Gun, 1971), baseado em um de seus primeiros romances, de mesmo nome, um clássico pacifista sobre um soldado desfigurado na Primeira Guerra Mundial. Foi sua única incursão como diretor.
Dalton Trumbo finalmente recebeu seu Oscar em 2 de maio de 1975, das mãos do então diretor da Academia Walter Mirisch. Na estatueta ainda constava o nome Robert Rich. Ele faleceu no ano seguinte, em 10 de setembro de 1976, aos 70 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Em 1993 a Academia lhe concedeu outro Oscar, póstumo, pelo roteiro de A Princesa e o Plebeu (Roman Holliday, 1953). O roteirista Ian McLellan Hunter, que assinou o roteiro no lugar de Trumbo, aceitou dar o cachê do filme ao verdadeiro autor, mas se recusou a creditar o prêmio a ele. Quando enfim Cleo, a viúva de Trumbo, recebeu a honraria, entregaram a ela uma segunda estatueta: os herdeiros de Ian McLellan Hunter se recusaram a devolver o prêmio. Ironicamente, Ian também foi incluído na lista negra pouco tempo depois.
14/3/22
Corbo, 2014, Mathieu Denis
Filme no iutubi aqui
SINOPSE
Montreal. Primavera de 1966. Jean Corbo (Anthony Therrien), de 16 anos, filho de uma mãe canadense e pai italiano, está dividido entre duas lealdades. Depois de fazer amizade com dois jovens militantes da extrema esquerda, ele entra para o Front de Libération du Québec, um grupo radical subterrâneo. Jean marcha em direção a seu destino, evoluindo pró-independência ativista até terrorista radical
CHAPTER 3: DATA COLLECTED
3.7 Corbo (2014)
The last film studied for this thesis is Corbo (dir. Mathieu Denis, 2014), a feature film based on a true story. In the spring of 1966, Jean, a young student, joins the team of the Front de libération du Québec (FLQ) journal, La Cognée. He starts as a distributer of the journal before being introduced to the revolutionary leaders of the group. Jean decides to become more involved in their revolutionary actions. He ends up volunteering to set a bomb in a textile factory. Tragically, he dies setting up the attack because of a malfunction of the bomb in July 1966.
This drama was featured in the Toronto International Film Festival during the fall 2014, and later was listed among the best 10 movies of Canada of 2015 (Brownstein 2015). It was screened at the Toronto and Berlin festivals and in some thirty other festivals around the world.
It won three Canadian Screen Awards nominations (including Best Picture) and obtained ten Jutra Awards nominations (including Best Film, Best Direction and Best Screenplay) (Corbo n.d.). According to the film producer Félize Frappier, the motive behind showing a historical event decades after it has occurred is partly a will (Duchesne 2013, par. 9). In the process of writing the script, director Mathieu Denis faced many problems as he was unable to find historical documents about the decade. In an interview, he argues that the history of the beginning of the Quiet Revolution and even the 1970 October crisis were documented, but there was not enough material about the events between, as it was forgotten or wanted to be forgotten (Hervé 2015).
In an interview with La Presse after screening Corbo in public, Denis states:
Québec people have no future except in the affirmation of their own existence. In the refusal to do so, one is doomed to a slow, but inevitable disappearance. I did not want to make a film
that tells people what to think. I wanted it to represent, with some accuracy, the complexity of these issues, political commitment, recourse to violence, (Cloutier 2015, par. 13).
In 2016 he started a project as a co-director again with Simon Lavoie entitled Ceux qui which also is about the radical oppression of the Québec youth and their revolutionary idea of freedom (Guy 2017).
Yet, Mathieu Denis does not call himself a militant or a radical director but a separatist (Brownstein 2015).
The political dimension of the movie appears at multiple levels. I identified 42 scenes in this movie directly referring to political issues. The importance of French language as a part of Québécois identity is emphasized throughout the movie. At the very start of the movie it is language of the workplace (...)
18/03/22
Adorável Vagabundo, Meet John Doe, 1941, Frank Capra
Filme no iutubi aqui
Quando Henry Connell (James Gleason), seu editor, a demite, Ann Mitchell (Barbara Stanwyck), uma jornalista, publica sua última matéria, uma carta criada por ela e assinada por John Doe comunicando que cometerá suicídio no Natal em protesto contra corrupção e a pobreza, que invadem o país. Isto gera várias reportagens, nas quais Ann denuncia as injustiças sociais. Tal fato leva o jornal a procurar alguém para representar John Doe e o escolhido é Long John Willoughby (Gary Cooper), um vagabundo. Mas a popularidade de John cresce de tal maneira que os fatos saem do controle.
Adorável Vagabundo / Meet John Doe
O cinema de Frank Capra é tão otimista, tão esperançoso, tão believer, de um humanismo tão amplo, tão positivo, tão generoso, que, ao rever Adorável Vagabundo/Meet John Doe agora, nestes nossos tempos tão sórdidos, desesperançados, desalentados, cheguei a achar, por alguns momentos, que o filme era ingênuo, bobinho, tolo. Naïf, como as pinturinhas.
Não é, não. O filme é lindo. Ruins, imprestáveis, horrorosos, pavorosos são estes tempos em que vivemos, que nos fazem confundir fé, crença, esperança com bobagem, tolice, ingenuidade.
Meet John Doe, na verdade, é também de um tempo tenebroso. Foi lançado em maio de 1941 – pouco tempo depois de os Estados Unidos saírem de sua hora mais negra, a Grande Depressão dos anos 30, e quando a Europa vivia exatamente a sua hora mais tenebrosa, com a Alemanha nazista dominando quase todo o Velho Continente.
Quando Meet John Doe foi lançado, o nazismo já havia botado suas patas horrendas sobre Checoslováquia, Polônia, Dinamarca, Noruega. Bélgica, Holanda, França – e os Estados Unidos da América ainda eram um país neutro, como se nada estivesse acontecendo. Só viriam a abandonar a neutralidade depois que o Japão atacou de surpresa a base de Pearl Harbour, no Havai, destruindo vários navios de guerra e matando cerca de 2.500 americanos.
O biliardário do filme pretende ver o totalitarismo implantado nos EUA
Há em Meet John Doe uma frase que faz referência específica ao que estava acontecendo. Quem vê o filme hoje pode até não prestar muita atenção, mas o bilionário da história, o sujeito todo-poderoso, o representante do mal em si, D. B. Norton (mais um dos papéis do gorducho Edward Arnold como o grão-capitalista em filme de Capra), diz a seguinte frase:
– “What the American people need is an iron hand!”
O povo americano precisa é de uma mão de ferro.
Ao rever Meet John Doe agora, tanto tempo passado, fica claro demais: Francesco Rosario Capra – o imigrante italiano que tinha tanto talento que conseguiu transformar um estúdio menor, a Columbia, em um dos grandes de Hollywood, de tanto fazer sucessos de bilheteria, o primeiro cara a conquistar os 5 Oscars das categorias principais – estava falando, em seu filme de 1941, da ameaça do totalitarismo.
O biliardário D. B. Norton usa o John Doe do título e a jornalista que se julga muito esperta, Ann Mitchell – os papéis de Gary Cooper e Barbara Stanwyck – não apenas para aumentar o seu poder: ele pretende meter uma mão de ferro no país. Ele quer ver o totalitarismo implantado também nos United States of America.
Um filme extremamente ambicioso, que quer fazer vários estudos. Faço essa interpretação algumas horas após ter revisto o filme – e, repito, ao ver o filme, cheguei a ficar bastante zonzo, tonto.
Frank Capra fez muitos filmes metidos, presunçosos, que queriam dizer coisas extremamente complexas. Mas me pareceu agora que este Meet John Doe exagera no exagero da ambição de Capra.
São elementos demais que ele apresenta para o público. E é tudo muito complexo.
“Juan Nadie es, sobre todo, ambiciosa. Intenta ser dos películas a la vezs – uma triunfante y outra derrotista – y, como en gran parte del cine de Capra, los esfuerzos optimistas, a veces, estan forzados.”
É o que diz Donald C. Willis em seu livro Frank Capra, de 1974, que tenho na edição espanhola – e só essa frase do livro abre algumas janelas.
Sim: Meet John Doe na França é L’Homme de la Rue, em Portugal, Um João Ninguém e, na Espanha e países de língua espanhola, teve o título de Juan Nadie. Todos eles bons títulos, que têm tudo a ver com o original: John Doe corresponde exatamente a João da Silva, João Ninguém, João Nada, o homem da rua.
E, sim: é um filme sobretudo ambicioso.
Ambicioso demais. Quer fazer, em um único filme, diversos estudos de sociologia, antropologia, ciências sociais, política.
Ah, sim: e quer discorrer sobre jornalismo. Os diferentes tipos de jornalismo.
Uma máquina vai quebrando a frase que defende a liberdade de imprensa
O filme começa com um operário com uma máquina de quebrar concreto que vai arrancando uma a uma as letras esculpidas em pedra que dizem: “Uma imprensa livre significa um povo livre”.
Uau!
Sou atacado por uma vontade imensa de falar sobre o PT e sua eterna mania eterna de promover a “regulação da mídia” – mas deixa pra lá.
Frank Capra começa Meet John Doe mostrando uma espécie de placa de granito, com letras esculpidas na pedra, que diz: “The Bullitin – Est 1862 – A free press means a free people.”
(Interessante: o jornal fictício de Capra foi estabelecido, criado, em 1862 – apenas 13 anos antes da fundação do Estadão, O Estado de S. Paulo, established 1875, a base da empresa que possibilitou que eu pagasse minhas contas durante a maior parte da vida.)
Com a máquina de quebrar concreto, o sujeito vai apagando aquelas palavras que formam a frase “uma imprensa livre significa um povo livre”.
No lugar em que havia aquela placa em homenagem à imprensa livre, colocam uma nova placa: “The New Bullitin – Um jornal para uma nova era”.
Um grande empresário, um capitalista biliardário – D. B. Norton, ficaremos sabendo em breve – havia comprado o velho jornal.
O Bullitin – o espectador compreende de cara – era um jornal sério. O New Bullitin será um jornal sensacionalista.
Tomadas com um tom cômico mostram que o novo editor-chefe do jornal, Henry Connell (James Gleason), um pau-mandado de D. B. Norton, está demitindo dezenas de profissionais.
Veteranos profissionais aceitam sem murmurar uma palavra a notícia de que estão desempregados. Uma jovem colunista, Ann Mitchell – o papel da maravilhosa Barbara Stanwyck –, no entanto, protesta. Vai à sala do novo editor, diz que aceita ter seu salário cortado, que faz o que o editor mandar ela fazer, mas não pode ser demitida, ela é que paga as contas da casa, tem duas irmãs mais novas que ainda não trabalham.
Cornell não dá ouvidos às súplicas da moça. Só ordena que ela entregue logo sua última coluna, e depois dê o fora.
Na sua última coluna, a jovem jornalista inventa o João Ninguém
Abalada, chocada, enfurecida, Ann tem um idéia.
Cornell, o novo editor, havia dito que agora o jornal iria vender mais? Mudaria o tom, viraria sensacionalista?
Pois então ela resolve fazer sensacionalismo na sua última coluna.
Inventa que recebeu de um sujeito que se assinava John Doe uma carta, que passava a transcrever. Na carta, John Doe reclamava que estava sem emprego, protestava contra as injustiças todas do mundo, e anunciava que, no dia de Natal, em protesto contra o estado de coisas reinante, iria se matar pulando do último andar do prédio da prefeitura.
A coluna de Ann provoca um rebuliço fantástico, imenso, jupiteriano. Uma comoção ampla, geral e irrestrita. O prefeito recebe milhares de telefonemas de leitores indignados. Os assessores do governador dizem que é um ataque do biliardário D. B. Norton à administração dele.
Dezenas de homens pobres, maltrapilhos, destituídos, os deserdados do Sonho Americano, aglomeram-se às portas da redação do New Bullitin, cada um deles dizendo que é o John Doe que escreveu a carta.
O jornal concorrente diz que aquilo tudo é falso, é invenção, não existe John Doe algum.
O editor Cornell põe todo mundo na redação à procura de Ann Mitchell.
Ela surge na sala dele para dizer que a carta não existe, não existe John Doe – e ela tem na bolsa um documento de próprio punho atestando tudo isso. Mas que não divulgará o documento caso Cornell a readmita e pague mil dólares a título de bônus.
E dá a Cornell a idéia de escolher um daqueles miseráveis ali e transformá-lo em John Doe, podendo assim desmentir o jornal concorrente – e ter matérias diárias, até o Natal, sobre John Doe, sua história de vida.
Cornell não é bobo – e topa o plano de Ann.
O desfile de destituídos pela sala do editor-chefe do jornal, para que ele e a esperta Ann Mitchell escolham quem será transformado no John Doe autor da carta, é uma sequência primorosa, preciosa, antológica. Frank Capra puro, na veia.
Quando um sujeito chamado John Willoughby entra na sala – um sujeito altão e belo como um deus grego, já que vem na pele de Gary Cooper –, Ann, o editor Cornell e o espectador não têm dúvida nenhuma de que o homem que o jornal procurava foi encontrado.
O discurso que Ann escreve é o Evangelho Segundo Frank Capra
John Willoughby, Long John para os amigos, é o homem comum, o americano médio, típico. Tem o coração gigantesco, bom caráter, bons sentimentos – mas é bastante ingênuo, e não conhece nada de malícia, maldade, esquema, sacanagem.
As “reportagens” de Ann sobre John Doe, enfeitadas com fotos de Long John, fazem furor na cidade, no Estado inteiro. Ele protesta “contra o colapso da decência no mundo”, “contra os políticos corruptos”, “contra a corrupção do Estado”, “contra os hospitais que fecham as portas aos necessitados”.
O biliardário D. B. Norton percebe logo o potencial daquilo – da esperteza de Ann Mitchell e da atração que John Doe exerce sobre seus semelhantes, os homens e mulheres comuns. Tira Cornell do meio, e exige que Ann passe a falar diretamente com ele. Programam um discurso de John Doe a ser transmitido por uma rádio pertencente ao próprio Norton, mas aberto para todas as emissoras que quiserem participar.
Ann se enrola na hora de escrever o discurso. Fica sem idéia, sem inspiração. Sua mãe – interpretada por outra atriz sempre presente nos filmes de Capra, a simpática Spring Byington – aparece na hora certa e com as sugestões certas. Diz a Ann que o discurso não deve falar de política:
– “Há tantos discursos reclamando da política… As pessoas estão cansadas de ouvir sobre desgraça, desespero. Elas gostariam de ouvir algo simples e verdadeiro, algo que desse esperança.”
Algo como seu marido, o falecido pai de Ann, costumava escrever no seu diário – e então a senhora Mitchell oferece a ela o diário.
Ann transcreve algumas das palavras do pai no discurso que John Doe fará no rádio.
As palavras do falecido pai são a essência do pensamento de Frank Capra, o Evangelho Segundo Capra: amem uns aos outros. Ame seu vizinho como a si mesmo. Seja solidário, ajude os outros, que quando você precisar de ajuda você terá. Estamos no mundo para nos amar, e não para competir uns com os outros. A solidariedade é um dos maiores valores que podem haver. Dinheiro não compra o amor, os bens materiais não valem nada, o que vale é a amizade. A felicidade é para todos os que amam, ajudam, são solidários.
Nos filmes de Capra, os pecadores sempre têm a chance de se redimir
Há um problema grave em Meet John Doe: essa personagem Ann Mitchell é a incoerência ambulante.
A mulher que escreve os belos textos, o Evangelho Segundo Capra, os sermões que o apóstolo John Doe lerá para o mundo… está fazendo tudo isso por dinheiro! E está servindo ao grão-capitalista, o retrato do mal em si!
É claro que, na hora do pega-pra-capar, na hora H, na hora de escolher a quem servir – pois não dá para servir a dois senhores, não dá para servir a Deus e ao diabo –, ela escolherá o lado certo. Afinal de contas, ela é a heroína da história, junto com o belo, puro, inocente Long John Willoughby.
Mas que, durante uns 115 dos 122 minutos de duração do filme, Ann serve ao diabo, lá isso é verdade.
Isso, no entanto, não é raro na obra desse que é o cineasta mais believer, mais esperançoso da história do cinema. Nos filmes de Capra, assim como na Bíblia, os pecadores sempre têm a chance de se redimir. Os maus têm a oportunidade de mudar, de abandonar o mal.
Em Meet John Doe, até o editor Henry Connell, o homem que chegou no jornal demitindo meio mundo e parecendo ter imenso prazer nisso, o cara que jogou fora décadas de jornalismo sério e transformou o Bullitin num pasquim sensacionalista, tem sua chance de redenção.
E se redime, numa sequência linda e ao mesmo tempo quase patética, em que enche a cara de uísque para ter a coragem de contar um monte de verdades para o inocente Long John.
“Meet John Doe é ao mesmo tempo o ponto culminante e a pedra no caminho do discurso ideológico de Capra”, define o crítico e estudioso francês Michel Cieutat no seu livro Frank Capra, Editions Rivages, 1988. “Liberado de seu contrato com a Columbia, tendo criado com Robert Riskin sua própria produtora, nosso cineasta queria fazer um filme ambicioso. A Europa estava em guerra. O perigo do fascismo era sentido na América. Hollywood já havia feito vários filmes denunciando os riscos da tomada do poder na América, como Washington Masquerade e Washington Merry-Go-Round em 1933 ou The President Vanishes em 1934. Capra e Riskin se impuseram o dever de fazer o melhor filme nesse registro, sem no entanto abandonar o tipo de dramaturgia que até então tinha dado a eles diversos sucessos.”
O livro de Michel Cieutat relata que, quando as filmagens começaram, Robert Riskin ainda não tinha terminado de escrever o roteiro. Gary Cooper havia aceitado o papel por confiar em Capra – os dois haviam feito juntos O Galante Mr. Deeds/Mr. Deeds Goes to Town, de 1936, e o filme tinha sido um grande sucesso.
“Ao final das filmagens, Capra não sabia ainda como terminar sua história. É necessário lembrar que ele filmou quatro fins diferentes, todos insatisfatórios para ele, que testou simultaneamente com diferentes públicos. Depois ele recebeu uma carta de um admirador, que o aconselhou (a fazer um outro fim diferente, um quinto final, que acabou sendo o escolhido).”
Estranhamente, Barbara Stanwyck não foi a primeira opção para o papel
Segundo o IMDb, a primeira opção de Capra para interpretar Ann Mitchell era Ann Sheridan. A Warner, que faria a distribuição do filme, vetou a atriz. Ainda segundo o IMDb, o papel chegou a ser oferecido a Ann Sheridan, que não aceitou.
Acho isso estranho, porque Barbara Stanwyck parece a atriz ideal para o papel. Era tão bela quanto talentosa, acostumada a interpretar mulheres fortes, poderosas, porretas. E já havia trabalhado com Capra em A Mulher Miraculosa/The Miracle Woman (1931) e O Último Chá do General Yen (1932). Nesse filme, a maravilhosa atriz interpreta um papel estranho, esquisito – e ousado: ela faz Megan, uma jovem americana noiva de um missionário religioso na China que se apaixona por um senhor da guerra chinês, um assassino cruel, que a manterá subjugada num cativeiro de luxo.
Naquele mesmo ano de 1941, Gary Cooper e Barbara Stanwyck estrelaram um filme que não poderia ser mais diferente deste drama político-social pesado, denso, complexo: em Bola de Fogo/Ball of Fire, uma deliciosa comédia de Howard Hawks, Cooper interpreta um circunspecto, compenetrado linguista, que está – juntamente com um grupo de cientistas, todos bem velhinhos – trancafiado numa grande casa em Nova York escrevendo os verbetes de uma enciclopédia. Por algum motivo qualquer, vai parar na casa dos cientistas uma safadíssima dançarina de boate, amante de um gângster – um papel perfeito para Barbara Stanwyck brilhar, e, de quebra, mostrar as pernas maravilhosas.
“Capra queria advertir os americanos sobre as poderosas influências fascistas”
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Longo mas interessante comentário social, com o ingênuo Cooper empregado para encabeçar um movimento nacional de boa vontade que beneficiaria o corrupto Arnold. O idealismo palavroso não consegue enterrar boas caracterizações; há os usuais toques de Capra exaltando o populismo.”
Maltin usou mal, com toda certeza, a palavra populismo. O que os usuais toques de Capra exaltam é o humanismo, os bons sentimentos, a solidariedade.
Pauline Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira do livro 1001 Noites no Cinema:
“Filme estranho, de preocupação social, dirigido por Frank Capra, com Gary Cooper e Barbara Stanwyck, sobre um sujeito que tenta suicidar-se a fim de chamar a atenção para uma conspiração de direita. Para dar um happy end que mantivesse Gary Cooper vivo, as intenções foram tão distorcidas que os autores originais entraram com um processo. O filme começa da maneira confiante de Capra, mas com um tom mais sombrio; no fim, nos sentimos confusos e tapeados.”
Não vi em nenhum outro lugar menção a um processo judicial movido pelos autores da história original. E todo mundo tem direito à sua opinião – mas dame Pauline Kael é sobretudo uma chata.
O CineBooks’ Motion Picture Guide deu 5 estrelas em 5: “Sentimental, otimista, moralista, com uma mensagem para o bem do hom em comum, Meet John Doe é outro filme de boa vontade de Frank Capra soberbo em cada nível, embora seu final pareça esquisito.
'O Cinebooks' faz uma sinopse da história bastante longa e detalhada. Depois, sintetiza que o filme é uma “obra-prima brilhante”. Diz que “o final de Meet John Doe tem sido acusado por alguns críticos de ter sido alinhavado para fornecer um final feliz”, e acrescenta que, de fato, Capra mexeu na sequência final – para não fazer um absoluto spoiler, pulo os detalhes que o guia dá, e passo para o final do raciocínio sobre o fim do filme: “Foi uma pequena concessão numa obra-prima brilhante.”
O guia faz elogios superlativos às atuações de Gary Cooper, Barbara Stanwyck, Edward Arnold e aos diversos “maravilhosos atores, o sustentáculo de qualquer produção de Capra: James Gleason, Walter Brennan, Regis Toomey, Ann Doran, J. Farrell MacDonald, Rod La Rocque, Spring Byington, Gene Lockhart e Holloway”.
E prossegue: “Capra queria advertir os americanos sobre as poderosas influências fascistas, e o fez poderosamente. (…) Juntamente com Mr. Smith Goes to Washington (1936) e It’s a Wonderful Life (1946), este filme personifica os princípios democráticos de Capra.”
O longo texto do Cinebooks não pára de dar informações. Ele transcreve uma frase de Barbara Stanwyck que está na biografia dela, Stanwyck, escrita por Jane Ellen Wayne:
“Não existe ninguém como Frank Capra. É uma alegria vê-lo trabalhar. A gente faz outros filmes para viver, mas a gente vive para fazer um filme de Capra.”
Uau! Que maravilha!
E, finalmente, o guia resume de maneira perfeita uma informação que aparece de forma confusa no IMDb: embora o filme tenha rendido à Frank Capra Productions US$ 900 mil, no lançamento inicial, os proprietários, ele mesmo e o roteirista Robert Riskin, tiveram que pagar uma quantia tão colossal de impostos que resolveram fechar a empresa poucos meses depois.
Fantástico, delicioso: o cineasta que defendia a democracia com vigor, maestria, talento, mas pregava um capitalismo mais social, mais humano, mais solidário, não se deu nada bem como empresário.
Definitivamente, Frank Capra não dava pra essa coisa de ser patrão. O negócio dele era fazer belos filmes defendendo os John Does, os Zé Ninguéns, o Zé Povinho.
19/03/22
Entre a Loura e a Morena, The Gang's All Here, 1943, Busby Berkeley
Filme no iutubi aqui
Carmen Miranda in The Gang's All Here (1943)
ENTRE A LOURA E A MORENA
O musical, assim como o western, é um gênero cinematográfico genuinamente americano. Ele surgiu no início dos anos 1930 e tinha, essencialmente, dois objetivos: fazer uso da nova tecnologia, o som, que encantava o público; bem como transportar o glamour dos espetáculos da Broadway para o cinema. Busby Berkely foi o primeiro grande diretor de musicais de Hollywood. Entre a Loura e a Morena, de 1943, é considerado sua obra-prima e é, seguramente, o melhor filme estrelado por Carmem Miranda. O roteiro, escrito por Walter Bullock, tem por base uma história criada por Nancy Wintner, George Root Jr. e Tom Bridges. Na trama, a corista Edie (a loura Alice Faye), se envolve com o soldado Andy (James Ellison). Na verdade, ele é rico e deve se casar com outra garota que é do agrado de sua família. Entra em cena Dorita (a morena Carmem Miranda), para ajudar o casal. Berkeley tinha um estilo exuberante para exibir suas intricadas e originais coreografias. E Entre a Loura e a Morena, com seus números musicais antológicos, é perfeito em sua forma e conteúdo. De quebra, temos aqui a famosa cena que mostra Carmem Miranda cantando e dançando com um enorme chapéu de frutas a clássica The Lady With the Tutti Frutti Hat. Se você é fã do gênero, vai adorar. Se não é, veja assim mesmo. Nem que seja por curiosidade. (Cinemarden)
The Lady In The Tutti Frutti Hat
20/03/22
O Último Grande Duelo, Il grande duelo, 1972, Giancarlo Santi
Filme no iutubi aqui
Atirador torna-se protetor de um rapaz acusado de ter assassinado importante líder sindical. Um grande mistério envolve o rapaz, seu advogado e o verdadeiro assassino. A verdade, surpreendente, obriga-o a tomar uma difícil posição.
21/03/22
Tabu, Tabu: A Story of the South Seas, 1931, F. W. Murnau
Escrito por F.W. Murnau, Robert J. Flaherty e Edgar G. Ulmer (não creditado)
Sobre F.W. Murnau (1888–1931)
Anne Chevalier and Matahi in Tabu: A Story of the South Seas (1931)
Papo de cinema
Sinopse
No sul do Pacífico, na ilha de Bora Bora, o amor de um jovem casal está ameaçado. Os problemas começaram quando um chefe de uma tribo canibal declarou a garota uma virgem sagrada.
Vindo da Alemanha já sob o inconteste status de mestre do cinema, F. W. Murnau desembarcou nos Estados Unidos em 1926, realizando três longas, dentre os quais o sublime Aurora (1927). A experiência americana, contudo, não foi inteiramente agradável para o cineasta, que entrou em constantes conflitos com executivos de estúdio pelo controle de seus trabalhos, especialmente no caso de O Pão Nosso de Cada Dia (1930). A insatisfação com as regras do jogo da indústria hollywoodiana levou Murnau a romper com o sistema, partindo para a Polinésia Francesa em uma jornada libertadora ao lado do renomado documentarista Robert Flaherty. Assim surgiu Tabu, longa rodado nas ilhas do Taiti e Bora Bora, que trata do romance entre os jovens nativos Matahi e Reri.
Um romance proibido, pois Reri é escolhida por Fanuma, senhor das ilhas dos mares do sul, como substituta da virgem sagrada dos deuses, tornando-se um Tabu: uma mulher proibida aos desejos, e mesmo aos olhares, dos homens. Enviado por Fanuma, o guerreiro ancião Hitu chega para levar Reri, porém, na calada da noite, Matahi a resgata e os dois fogem para uma ilha distante. Através da saga do casal que luta pela manutenção de seu amor imaculado, Murnau propõe uma busca pelo que há de mais primordial nos sentimentos e na forma cinematográfica. Razão pela qual, mesmo com o advento do cinema falado, realiza um filme mudo, utilizando apenas habitantes locais num elenco não profissional. A escolha revela também a influência documental de Flaherty, cuja participação, que inicialmente seria maior, acabou restrita ao registro das cenas de abertura.
A sequência, que se inicia com Matahi e outros nativos pescando com arpões, passando a uma cachoeira onde encontram as mulheres se banhando, evidencia a beleza e a fisicalidade dos corpos que se movimentam sobre as águas límpidas refletindo os raios solares. Tais imagens sintetizam a expressão máxima da pureza almejada por Murnau, estendida também ao amor de Matahi e Reri. Contudo, o anúncio da chegada da embarcação que traz Hitu abala essa comunhão perfeita, com toda a população local se pondo ao mar em suas canoas, numa cena grandiosa e hipnótica captada pelas lentes do diretor de fotografia Floyd Crosby. Os rituais que se seguem, com Matahi tomando o espaço na dança com Reri, prenunciam uma mudança drástica e dolorosa. Ao se despedir da mãe, a jovem virgem também se despede do Paraíso – título do primeiro capítulo, que então se encerra, do longa.
O adeus ao lar marca ainda o adeus à inocência do casal, que chega a um novo local já dominado pela civilização moderna e seus valores deturpados, o Paraíso Perdido – como é denominado o segundo capítulo. O poder do dinheiro, a ganância e a corrupção, aos poucos, exercem seus efeitos sobre os dois, mesmo que não tenham uma noção plena desses conceitos “desenvolvidos”. Com isso, Murnau faz uma referência ao seu desgosto em relação à Hollywood, onde a intervenção dos executivos impedia a manifestação pura de sua arte. Assim como as leis de mercado e dos estúdios se punham no caminho do alemão, as leis dos homens, do capital, se tornam obstáculos para Matahi e Reri, já que as dívidas contraídas com os gastos de uma festa impedem que comprem as passagens de navio para fugir novamente.
O dilema leva Matahi – que na nova ilha ganha a vida com a extração de pérolas, se valendo de sua exímia habilidade como mergulhador – a arriscar a vida mergulhando em um local – guardado por um mortal tubarão – considerado sagrado pelos nativos. Ali se apresenta o segundo tabu – uma placa com a inscrição é colocada como aviso aos mergulhadores – a ser quebrado por Matahi, porém, não sem consequências. Murnau oferece uma visão trágica de um mundo que não permite mais espaço à inocência, dominado por normas – modernas e ancestrais – implacáveis, materializadas na figura sombria de Hitu. Nas aparições noturnas do ancião, que assombram Reri, o diretor lhe confere uma aura quase sobrenatural, instaurando brevemente a dúvida entre o real e o fantástico. Fantasia assumida plenamente na belíssima sequência do sonho de Matahi, marcada por inventivas fusões de imagens.
Assombrosa também é a fluidez narrativa de Murnau, calcada em uma simplicidade cortante, que habilmente abre mão das cartelas de transição tradicionais dos filmes mudos, utilizando elementos de cena, como os pergaminhos trazidos por Hitu e os relatórios do policial, para detalhar os elementos mais complexos da trama. O mesmo artifício é usado com o tocante bilhete escrito por Reri, no qual se despede aceitando seu destino em nome da vida do amado, enquanto ele luta com o tubarão em busca de um tesouro inestimável: a pérola negra. No entanto, na visão fatídica do cineasta, nem mesmo o maior dos tesouros pode trazer a felicidade a Matahi, pois não há como vencer a mão do destino. A mão de Hitu, que fecha o alçapão confinando Reri em seu desconsolo, que corta a corda quando o jovem apaixonado está prestes a subir no navio, deixando-o ser engolido pela imensidão das águas que antes dominara.
A mão de um destino irônico, pois, assim como o casal impedido de vivenciar a plenitude de seu amor, Murnau também não pôde desfrutar o resultado de seu trabalho, vindo a falecer, aos 42 anos, em um acidente automobilístico dias antes do lançamento de Tabu, o testamento da beleza monumental de seu cinema.
Leonardo Ribeiro
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
21/03/22
A Legião dos Renegados, Legion of the Lawless, 1940, David Howard
Filme no iutubi aqui
No 13º filme dos 17 B-westerns feito por George O'Brien em 1937-1940 para RKO, (que iria refazer "Legion of the Lawless" dois anos depois como "Piratas da Pradaria" com Tim Holt), O'Brien, como o advogado Jeff Toland pendura sua telha em Ivestown, mas é ordenado por um grupo de vigilantes liderado por Les Harper. Os vigilantes são apenas um manto sob o qual o bando de foras-da-lei liderados por Harper opera para aterrorizar e controlar a cidade. Quando se soube que a nova pesquisa ferroviária leva os trilhos através de East Ivestown em vez de Ivestown, a gangue planeja expulsar os fazendeiros e fazendeiros por muito tempo o direito de passagem e arquivar a terra eles mesmos. Jeff lidera a luta pelas vítimas intencionais contra a gangue. (Filmow)
23/3/22
O Falcão Dourado,The Golden Hawk, 1952
Filme no iutubi
aqui As aventuras marítimas do corsário francês Kit 'The Hawk' Gerardo durante a guerra franco-espanhola-inglesa do século XVII.
26/3/22
Summer of Soul (...ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada), Summer of Soul (...Or, When the Revolution Could Not Be Televised), 2021, Ahmir "Questlove" Thompson
Summer of Soul é parte filme musical, parte registro histórico criado em torno de um evento épico que celebrou a história, cultura e moda negra. Ao longo de seis semanas no verão de 1969, a apenas 160 quilômetros ao sul de Woodstock, o Harlem Cultural Festival foi filmado no Mount Morris Park (agora Marcus Garvey Park). O filme captura um empolgante momento cultural nos Estados Unidos, embora subestimado historicamente. Entrevistas com artistas que participaram do evento são intercaladas com apresentações de shows nunca antes vistos de Stevie Wonder, Nina Simone, Sly and the Family Stone, Gladys Knight and the Pips, Mahalia Jackson, B.B. King, The 5th Dimension e muito outros. O lendário Festival Cultural Harlem 1969, celebrou a música e a cultura afro-americana e promoveu o orgulho e a unidade negra, naquele momento do país. (Adorocinema) https://www.adorocinema.com/filmes/filme-289621/
SUMMER OF SOUL | Official Teaser
'Summer of Soul' pode levar o Oscar ao resgatar festival negro de 1969
Documentário mostra evento que foi ofuscado por Woodstock, mesmo com estrelas como Stevie Wonder e Nina Simone
Teté Ribeiro 13/01/2022, FSP
Feito em grande parte com imagens lindamente restauradas a partir de filmes que ficaram apodrecendo num porão durante 50 anos, o documentário "Summer of Soul" apresenta uma versão resumida e arrebatadora do Harlem Cultural Festival. O diretor Ahmir "Questlove" Thompson fez um enorme trabalho de pesquisa e entrevistas com artistas e pessoas que assistiram aos shows ao vivo naquele verão nova-iorquino do fim da década de 1960.
Mas o ouro são as 40 horas de gravações em fitas de áudio e vídeo feitas pelo cinegrafista e produtor Hal Tulchin, que, na tentativa de atrair algum interesse da indústria cultural americana pelo que tinha captado naqueles seis domingos, apelidou o festival de "black Woodstock". Em vão. O material ficou esquecido até a sua morte, em 2017, quando foi cair nas mãos de Questlove, que viu, entendeu a importância do que viu e decidiu produzir o documentário.
Detalhe do pôster do documentário 'Summer of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)', com registros inéditos de um festival feito para celebrar a música afro-americana – Reprodução
Ele caprichou na edição, que vai aos poucos construindo um retrato da tensão racial na sociedade americana naquele momento, em que jovens negros eram mandados para a Guerra do Vietnã em números muito maiores do que os brancos e muitos dos que ficavam eram perseguidos e mortos pela polícia.
A desconfiança da população negra com o establishment era tão grande que os organizadores do festival chamaram membros do partido político Panteras Negras para fazer a segurança. No Harlem, a pobreza e a epidemia de drogas eram os problemas que mais preocupavam seus moradores.
O documentário "Summer of Soul" tem um título bem maior, na verdade –é seguido por "(…Ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada)". A frase entre parênteses remete ao nome e ao refrão do poema musicado "The Revolution Will Not Be Televised", escrito por Gil Scott-Heron, músico americano considerado uma fonte de inspiração do rap e que se tornou um hino informal dos ativistas dos Estados Unidos no final dos anos 1960.
Esse filme marca a estreia na direção do músico e produtor americano líder da banda The Roots, que toca no programa "Late Night with Jimmy Fallon", na NBC, e que dirigiu a orquestra da última cerimônia do Oscar.
Foi um dos mais aclamados pela crítica do mundo todo no ano passado, quando foi lançado, e está sendo considerado um forte candidato a uma indicação ao Oscar de melhor filme do ano. Não de melhor documentário — mas filme, o prêmio mais importante da cerimônia, que neste ano acontece no dia 27 de março.
O fato de chegar ao Brasil só agora, discretamente e no canal de streaming do Telecine, que desde seu lançamento apresenta inúmeros problemas técnicos, é quase tão revelador quanto outro dado, ainda mais inacreditável. O festival de música negra que ele documenta aconteceu durante seis semanas no mesmo verão em que o homem chegou à Lua e que aconteceu o festival de Woodstock, mas foi completamente esquecido.
A chegada do homem à Lua foi vista ao vivo na TV por 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo. Durou menos de três horas. O festival de Woodstock aconteceu a duas horas de distância de Nova York, durou um final de semana chuvoso e ficou conhecido com um dos maiores eventos da música popular da história.
Enquanto isso, no Harlem, durante seis domingos no verão de 1969, aconteceram shows gratuitos de nomes como Stevie Wonder, Nina Simone, Sly and the Family Stone, Gladys Knight, Mahalia Jackson e B.B. King, entre muitos outros.
A única vez que a televisão local foi até lá foi justamente no dia seguinte à chegada de Neil Armstrong e Buzz Aldrin à Lua, em 20 de julho, para gravar a reação dos negros a esse marco histórico da conquista do espaço.
O que o repórter branco queria, e conseguiu, era um contraponto à exaltação do público em geral em relação ao grande feito da Nasa e do governo americano. As pessoas que lotavam o parque Mount Morris (hoje Marcus Garvey) na tarde do dia 21 de julho de 1969 não poderiam se importar menos com "o grande salto para a humanidade" dado pelo astronauta. Não porque não enxergaram a grandeza do "pequeno passo para o homem" de Neil Armstrong, mas porque no verão de 1969 as prioridades dos negros eram outras.
E porque eles estavam testemunhando um outro acontecimento histórico, um feito inacreditável do cantor e promotor Tony Lawrence, praticamente um desconhecido com um enorme poder de persuasão, que convenceu o departamento de parques de Nova York —com apoio do prefeito republicano John Lindsey e patrocínio da marca de café Maxwell House— a contratar alguns dos maiores nomes da música negra da época para se apresentar em uma série de shows.
O ano anterior tinha sido violento no bairro negro e latino de Nova York por causa do assassinato do pastor e ativista Martin Luther King, em Memphis, no estado americano do Tennessee. Ele foi o quarto homem assassinado naquela década que tinha uma posição política favorável à luta pelos direitos civis.
Primeiro tinha sido o presidente John Kennedy, em 1963. Depois, o ativista Malcolm X, em 1965. E, meses antes da morte de Martin Luther King, o irmão do presidente Kennedy, Bobby Kennedy, que estava concorrendo à presidência.
Em 1969, o clima do verão no bairro era de revolução, mas outro tipo de revolução. Que, para nossa sorte, agora pode ser televisionada.
Em tempo
Oscar 2022: Summer of soul, Winner Oscar Best Documentary Feature, Questlove , Joseph Patel , Robert Fyvolent , David Dinerstein
28/3/22
Spencer, 2021, Pablo Larrain
Spencer (2021): desconstrução da lady do povo
Denis Le Senechal Klimiuc
Ao retratar Diana como uma mãe repleta de afeto, Pablo Larraín não poupa sua protagonista de todas as cicatrizes por tanto tempo escondidas, mas que hoje a tornam ainda mais humana do que em seu tempo.
Pablo Larraín não é um diretor comum, pois o ordinário está em uma lacuna diferente em seu vocabulário. Ele conseguiu transformar, em filmes como “No”, “Jackie” e “Neruda”, diferentes personalidades públicas em seres humanos cujas camadas iam muito além do que normalmente é construído pela mídia. Suas escolhas, aliás, não são nada comuns, a começar pelo elenco, pois o cineasta chileno não está interessado na personificação de seus atores nas tais figuras, e sim na captação de suas essências através do que o roteiro escolhido propõe. Quando foi anunciado que Kristen Stewart faria ninguém menos que Lady Di, o mundo criou a cada vez mais costumeira expectativa ambígua à próxima obra de Larraín, chamada de “Spencer”.
Porém, a experiência trazida pelo cineasta não só comprova seu domínio narrativo, como também oferece um ponto de vista corajoso e pouco explorado sobre uma figura pública. Com o audacioso roteiro de Steven Knight em mãos, Larraín permite ao espectador mergulhar em tudo sobre a mulher chamada de princesa do povo, menos as questões relacionadas à realeza. Aqui, não faz diferença o título concedido por Elizabeth II (Stella Gonet), e sim o que a natureza deu: o de mãe. Não é à toa que a Diana de Stewart esteja tão conectada às suas raízes, pois é através dela, e do sobrenome de seu pai, que dá título ao filme, que ela se permitiu vislumbrar a felicidade de uma vida há muito perdida no tempo.
Com a narrativa ocorrendo em apenas um final de semana, Diana logo é apresentada como uma pessoa de extrema ansiedade, cujos princípios se misturam aos interesses, tendo em vista a quantidade de obrigações que precisaria cumprir naqueles curtos dias de Natal. Mas, na presença da família real, para quem sequer era vista como alguém digno de pertencimento, a jovem mãe escapava de cada tentativa de socialização, algo que os olhares de esguelha dos parentes não conseguiam esconder. Por isso, com a frieza de Elizabeth às custas de sua interpretação do que é o comportamento da rainha, Diana acaba por construir uma figura de rigidez ímpar, a qual se acostumou como consequência à convivência não com a mãe de seu marido e, portanto, sogra, e sim pelas regras (mais uma vez) reais. Por sua vez, o mesmo não pode ser dito de Charles (Jack Farthing)
A relação de ambos, inexistente, se tratava de mera formalidade para, literalmente, inglês ver. Porém, o tratamento frio e muitas vezes hostil de Charles, cujas consequências chegavam a traumatizar Diana, eram levados a tal ponto que, em uma missa de Natal, o príncipe não fazia questão de esconder a presença de Camilla (Emma Darwall-Smith), com quem se casaria após a morte de Lady Di. Ou seja, para pertencer à família, precisava cumprir as formalidades e todas as obrigações estabelecidas não só pela enorme equipe daquele palácio/castelo, mas também da própria rainha. Contudo, o grande destaque deste filme não é a apresentação do relacionamento que Diana tinha com seus entes, e sim com duas vertentes, as verdadeiras almas deste roteiro de Knight.
A primeira vem na figura do Major Alistar Gregory (Timothy Spall), chamado para aquele final de semana especialmente por conta da presença de Diana. Rígido com as regras e tradicionalista, ele não deixava um ponto sem nó por onde passava, e toda a equipe era controlada com rédeas curtas por sua simples presença. Porém, ao invés do autoritarismo forçado, a qualidade de Alistar era a sua diplomacia. Sempre formal e sereno, suas palavras podiam ter a força de um canhão ou o toque macio de penas de ganso, e o equilíbrio com o qual as utilizava fazia dele alguém sempre intrigante. Contudo, durante aquele fatídico Natal, era o seu contato com Diana que criava o embate e, portanto, grande conflito do roteiro. Mas a experiência do espectador neste inusitado relacionamento costura de maneira belíssima o que a frágil figura da mulher açoitada sentia com a força da mãe que passava por cima de tudo e todos por seus filhos.
E são eles o complemento da alma deste roteiro, William (Jack Nielen) e Harry (Freddie Spry). Diana, ao apresentar todos os sintomas de bulimia e de severo estado de ansiedade (sintomas que hoje poderiam denotar uma depressão grave, talvez), enxergava em sua conexão com os filhos a força que a fazia sobreviver àquele estado de pura angústia. Com o passado, sua ligação com o pai a levava às raízes, com a terra e a casa ao lado, e com a história que deixou para trás para se casar com Charles. Mas com os filhos era além disso; o futuro e a esperança de que as coisas pudessem melhorar, que ela pudesse se ver livre daquela prisão psicológica e, por fim, ser feliz enquanto a juventude ainda lhe acompanhava.
É claro que o espectador sabe o fim desta história, mas, para comprovar seu talento, Larraín optou por um recorte curto, porém preciso, de uma mãe e de uma mulher, e de nada mais além das cicatrizes vistas em tela. O que Kristen Stewart faz, então, é surpreendente do ponto de vista técnico e narrativo. Técnico porque a atriz se despe de quaisquer vestígios de sua vaidade como artista e se entrega àquela mulher cuja força era tão grande quanto suas dores. Narrativo, por sua vez, porque Diana enfrenta alguns obstáculos nesta história, e precisa superar todos para que seu arco pudesse ser cumprido, pois o roteiro é bem amarrado em seus três atos, mas depende inteiramente da interpretação de sua protagonista. Por isso, mais uma vez, ao invés de personificar Diana — como fez a extraordinária Emma Corrin na quarta temporada de “The Crown” —, Stewart pode ser enxergada através de seu papel, mas isso acontece somente nos primeiros minutos de projeção. No restante, outra mulher está ali, e é a princesa Diana, ou melhor, Diana Spencer, mãe de William e Harry.
Não é à toa que a atriz chamou a atenção desde que as primeiras sessões de “Spencer” foram feitas. Mas ela não está só: na simetria e ações cronometradas de toda a equipe da realeza britânica, Diana foi um borrão inesquecível do que é a vida quando se torna exceção. Ao fugir do dito, ela fazia barulho, mas, no final das contas, não passava de uma jovem idealista e sonhadora, cujos defeitos eram potencializados pelos urubus midiáticos, mas cujas ações se propagavam muito além das gracinhas em público. No fim das contas, se ao final de “Spencer” não houver um nó na garganta por aquela mãe, é bem provável que você esteja do lado “real” de toda a situação, e não do coração enxergado por Larraín.
Crítica: Spencer (2021, de Pablo Larraín)
Posted on5 de dezembro de 2021Autora: Natália Vieira
Eu não vou perder tempo tentando desmistificar o porque Kristen Stewart foi julgada erroneamente por um personagem que, diga-se de passagem, ela atuou perfeitamente, já que no livro a personagem era daquela forma. Enfim, assim como Robert Pattinson, o tempo passou e muita coisa mudou. Hoje vou tentar explicar porque Spencer é o melhor filme do ano até agora. Confira a crítica a seguir e cuidado! Pode haver alguns spoilers…
Se me pedissem para resumir o filme, eu diria que ele é caótico e sofrido, assim como a personificação de Diana no olhar de Larraín. Uma mulher quebrada por dentro e por fora, enquanto carrega o peso de ser a Princesa que todos amam, porém o amor é como algo ilusório em sua vida, já que, por trás das câmeras, ela passa a vida sendo julgada e tentando migalhas de um relacionamento que ela idealizava como perfeito, até descobrir que toda a beleza nada lhe servia, já que seu marido era apaixonado por outra, e ela entrou de cabeça num jogo que não sabia jogar.
O filme tem muitas ambiguidades e analogias, de fato o que em muitas críticas que li lembra uma história contada como uma fábula “narração de aventuras e de fatos (imaginários ou não); fabulação.” Ou seja, a narrativa pode ter sido muito bem hipotética do ponto de vista do diretor, ou pode ter sido exatamente daquele forma, do ponto de vista do telespectador, o fato é, jamais saberemos ao certo o que houve naqueles fatídicos dias que antecederam o natal da família real. Mas vamos começar pelo começo.
O chileno Larraín tem uma maneira forte e única de tentar mostrar os fatos de uma visão inteiramente interna. Assim como em Jackie, onde o diretor vai a fundo na mente da ex-primeira dama de JFK, mostrando os bastidores do dia da morte de Kennedy e como ela lidou com isso, narrando a história. Assim como em Spencer, o elenco coadjuvante é muito secundário, deixando pouco espaço para histórias paralelas e focando principalmente na atuação de Natalie Portman.
Aqui nesse filme, a princesa Diana está longe de ser representada como aquela princesa do povo, onde é amada e bem-quista, conhecemos uma mulher perturbada por seus fantasmas e ciúmes, que se atrasa para os mínimos detalhes quando o assunto é família real. A princípio o filme me passa uma certa insegurança da mulher mais amada da Inglaterra ao passo que ela se sente uma intrusa na família, sendo diversas vezes perturbada por inseguranças e incertezas, se humilhando por migalhas de atenção e amor de seu marido, quando este está deliberadamente apaixonado por outra e não faz questão de esconder. Toda a beleza se contrasta com o sofrimento e o caótico sentimento de frustração e claustrofobia que o castelo é retratado pelos olhos de Stewart.
Pequenos detalhes em determinados diálogos trazem toda uma reflexão sobre como Diana era representada, a mais notória de certo é a comparação dos faisões, aves belas mas consideradas “burras”. Sendo criadas exclusivamente para morrer na mão da realeza ou atropelada no caminho. Misturando os conflitos de sua mente e diversas alucinações, os poucos momentos de paz que vemos é quando ela está com os filhos.
Alucinações que não são por acaso, já que Ana Bolena, segundo o filme, era parente distante de Diana e, acabou morrendo por amor, de uma forma não tão romântica. Apenas três anos após o casamento que começou com tantas juras de amor, ela foi julgada e condenada por alta traição, adultério e incesto, acabou sendo decapitada, sem ter de fato, provas concretas de seus crimes. Talvez a comparação entre as duas se dê pelo fato de Diana ser retratada como uma pessoa difícil de lidar e cheia de vontades que, não são de acordo com o protocolo real. Segundo biografias, Ana era uma mulher complicada, que se casou com Henrique VIII já grávida, sendo sua segunda esposa. Era considerada arrogante e caprichosa, e não despertava interesse ou apoiadores dentro da corte.
O filme de fato é para poucos, com seu ritmo lento e angustiante, o roteiro se concentra principalmente na interação da princesa com os empregados do castelo e seus filhos, usando e abusando de closes das expressões de Kristen para demonstrar os sentimentos que sua personagem está passando em determinado momento ou seus pensamentos indo além da imaginação. Não existe futuro aqui, é tudo sobre como o passado mescla com o presente e suas consequências na saúde física e mental de uma mulher perturbada. Diferente do que li em diversas críticas, chamando o filme de “arrastado” ou “maçante”, acredito que ele está longe disso, de fato é um filme lento para compor a história de uma personagem, que se passa em três dias, mas que para ela, parece uma eternidade.
Quando finalmente ela está ‘livre’ das obrigações que tem que desempenhar e pode finalmente ir embora, o filme muda completamente, nos dez últimos minutos, a fotografia se torna ensolarada, com músicas dançantes e sorrisos, quando antes era acinzentada e fria. Presa em quatro paredes por regras, medos e empregados fiéis a coroa. Assim como a cena em que ela reencontra a casa onde cresceu, agora em frangalhos, contrastando com as suas memórias tão vívidas e alegres, se tornam um pesadelo, mas no fim, o sofrimento é o que dá forças a Diana.
30/3/22
Os Olhos de Tammy Faye, The Eyes of Tammy Faye, 2021, Michael Showalter
The Eyes of Tammy Faye – Os Olhos de Tammy Faye
Por Alessandra , Data do post 18 de abril de 2022
Um destes filmes baseados “em uma história real” que é relativamente datado ao mesmo tempo que, de forma assustadora, ainda fala do nosso tempo. The Eyes of Tammy Faye toca em temas bastante presentes, não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outros países. É um tema que vai mexer com muitos “brios” e, talvez, provocar polêmica por mexer em um vespeiro que poucos gostam de tratar. Não importa a ótica pela qual você encare esta história, ela deve lhe incomodar.
A HISTÓRIA
Começa com uma série de notícias da TV de algumas décadas atrás. O narrador comenta que Jim (Andrew Garfield) e Tammy Faye Bakker (Jessica Chastain) “foram o casal televangelista mais famoso dos Estados Unidos e, de longe, o mais próspero”. Outros narradores aparecem na sequência contando sobre este fenômeno religioso e midiático, que deu “encorajamento e esperança” para muitas pessoas e que lideravam a organização “religiosa multimilionária Clube Louvai ao Senhor (PTL)”. Até que eles caíram em “desgraça”. Essa é a história deste casal e, em especial, de Tammy Faye.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Eyes of Tammy Faye): Esse é um destes filmes sobre os quais eu tive um bocado de dificuldade de escrever sobre, eu admito. Acho que esta produção mexeu mais comigo do que eu gostaria – ou me deixou mais perplexa do que eu tinha imaginado inicialmente.
Antes de mais nada, preciso dizer que deve fazer duas semanas já que eu vi a The Eyes of Tammy Faye. Eu quis conferir esta produção porque ela ganhou duas estatuetas no Oscar e porque ela garantiu o primeiro Oscar para uma atriz que eu sempre achei muito interessante e acima da média: Jessica Chastain.
Mas, ainda que esta produção não trate de um tema sobrenatural ou típico de filmes de terror, devo dizer que o filme dirigido por Michael Showalter me deixou um pouco “perturbada”. Logo mais vou explicar as razões para isso. Como sempre, a experiência desta produção vai depender sobre como você encara o filme. Se The Eyes of Tammy Faye for apenas um entretenimento para você, tudo suave. Agora, se você levar a história um pouco a sério, não tem como não ficar um pouco “mexido(a)” com ela.
Vamos aos fatos. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme). Esta produção toca em diversos temas delicados. Vou começar pelo primeiro que a história nos apresenta: uma senhora que comenta que não pode deixar o rosto mais “limpo” porque tem o contorno dos olhos, as sobrancelhas e o contorno da boca delineados de forma permanente.
Claro que gosto é gosto, e não se discute. Mas o que leva alguém a mudar seu rosto de forma tão definitiva? E quando esse processo começou? Bem, a história que este filme nos revela começa em 1994, com esta “apresentação” da protagonista, e, em seguida, retrocede para 1952. Ali, começamos a ter contato com a história um tanto chocante de Tammy Faye Bakker.
Esta produção, com roteiro escrito por Abe Sylvia, baseada no documentário dirigido por Fenton Bailey e Randy Barbato com o mesmo nome e lançado no ano 2000, apresenta a origem da relação – se podemos chamar assim – de Tammy Faye com a religião. Que começo complexo! Acho que os psicólogos e psiquiatras podem discorrer melhor sobre aquele início, mas como a relação da protagonista desta história se revela um bocado “torta” e exagerada desde o início por questões familiares!
Como sempre, tudo passa por uma questão de aceitação – e, claro, da falta dela. Esta produção, baseada no documentário, explora muito bem a origem da personagem. Tammy Faye, criança (interpretada por Chandler Head), só tem a mãe como referência – sabemos que a mãe é divorciada, mas não sabemos nada do pai biológico. Claro que o padrasto não deixa a posição de pai totalmente vazia, mas fica perceptível, no começo desta produção, que existe um tratamento diferente entre Tammy e os irmãos que são filhos do padrasto.
Pois bem, então já temos uma carência em cena. Essa carência, que poderia ser trabalhada pela mãe de Tammy de outra forma, acaba sendo desprezada e colocada “embaixo do tapete”. Rachel Grover (Cherry Jones), mãe de Tammy, está mais preocupada em “seguir adiante” com a vida e em ser aceita na comunidade da qual o marido, Fred (Fredric Lehne), faz parte, do que em dar real atenção para a filha.
Assim, a garota desenvolve uma relação de certa “cobiça” com a igreja local, onde um pastor gosta de gritar e de mostrar toda sua eloquência. Tammy, inicialmente, não é levada para a igreja, onde Rachel toca o piano e o restante da família de Fred frequenta, porque ela sinalizaria que Rachel teve uma “vida pregressa” – ou seja, foi casada anteriormente. E, como acontece em muitas igrejas, especialmente naquela época, divorciados(as) não eram bem aceitos – ou não eram aceitos de forma alguma.
Então, para Rachel, tudo bem excluir a própria filha daquela realidade. Qual é o efeito prático disso para a garota? Bem, ela desenvolve um nível de carência que parece bem relevante, além de começar a desenvolver o hábito de falar consigo mesma através de um “alter ego” representado por uma boneca. Algum um tanto assustador, vamos admitir.
Não demora muito para a história avançar para a fase de Tammy adulta. Pulamos para 1960, quando Tammy conhece Jim Bakker, com quem ela iria se envolver e se casar. Esse é um outro momento decisivo na trajetória de Tammy e do próprio Jim. Achei assustador a linha de pensamento e de “pregação” de Jim, que defende que Deus não quer que as pessoas sejam pobres e sim que prosperem na “Terra Prometida”, que seria aqui mesmo.
Essa é outra parte assustadora do filme, para o meu gosto. Porque Jim e Tammy começam, naquele momento, a sinalizar todo uma “corrente” de igrejas que utilizam a Bíblia como desculpa para vender a ideia de riqueza e de fartura para seus fiéis e que, no fundo, querem apenas enriquecer no processo. Essa é a parte dolorida e que mexeu comigo neste filme.
Porque, apesar de contar uma história específica, esse The Eyes of Tammy Faye trata sobre diversos fatos que ocorrem em várias parte do mundo neste exato momento – por isso a história é tão atual.
Enfim, o que mais temos hoje, no Brasil e em outros países, incluindo os Estados Unidos, são os “vendilhões do templo”, os “falsos profetas” que usam um Livro Sagrado para os cristãos para encherem os próprios bolsos e mentir, corromper, enganar as pessoas. The Eyes of Tammy Faye nos conta uma destas histórias, mas apresentando o filme praticamente só com a versão da sua protagonista.
Há quem possa olhar para esta história embarcando na ótica de Tammy Faye e seu descolamento da realidade, mas há quem encare este filme com o olhar crítico e atento que esta história merece. Apesar de falar de forma mansa, alegre e muitas vezes infantilizada durante boa parte da produção, Tammy Faye é uma pessoa, a meu ver, com sérios problemas psicológicos, com diversas questões que deveriam ser tratadas em um consultório e em sessões de terapia.
Apesar de seu baixo contato com a realidade – pelo menos foi isso que eu vi nesta história -, Tammy Faye teve os seus acertos, é claro. Como quando, diferente do marido, ela nadou contra a corrente dos outros “pastores” televisivos para defender a ideia de que Deus é amor, essencialmente, e que por isso, todos devem ser amados e ninguém deve ser excluído das igrejas e da religião. Ela é corajosa ao fazer isso, especialmente naquele círculo de aproveitadores dos quais ela fazia parte.
Mas, fora este acerto, o quanto The Eyes of Tammy Faye trata a protagonista com a sinceridade que ela merecia? (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Da minha parte, acho que o roteiro de Abe Sylvia passa muito o pano para a personagem. No fim das contas, parece que o grande aproveitador foi Jim e que Tammy foi inocente ao seguir as ideias focadas em audiência e dinheiro que ele vendia.
O casal construiu um conglomerado a partir do trabalho de “evangelizadores” que desenvolveu, tendo a televisão como o seu principal canal de disseminação de ideias e de fonte de renda, mas ampliando essa ideia de monetização para parques “temáticos” também.
Além de ajudar Jim em tudo, Tammy se aproveitou muito bem do enriquecimento do casal. Então como ela não foi presa como ele? Essa questão não é respondida pelo filme, o que eu vejo como um problema importante da narrativa.
Afinal, ainda que Tammy não soubesse das traições e do desvio de dinheiro feito por Jim – se quisermos realmente acreditar nisso -, ela usufrui de tudo aquilo por diversos anos, não é mesmo? Ela não sabia a origem do dinheiro? Ou considerava normal o público que conferia ela e o marido na televisão pagar por todas suas contas e luxos ao invés dos recursos serem usados para a evangelização ou para ajudar quem precisava?
Enfim, não vejo a protagonista desta história como nenhuma heroína. Na verdade, sua condição “deslocada da realidade” me incomodou praticamente durante toda a narrativa, assim como a cara de pau dela e do marido em usar a religião daquela forma, para benefício próprio sem a menor dúvida. Este é o lado perturbador desta produção.
O outro lado do filme, que nos faz pensar – ou deveria, ao menos -, envolve a realidade em que vivemos. Quantos “pastores” ou “religiosos” fazem exatamente o que vemos nesta produção? Quantas pessoas dão dinheiro para “igrejas” e “crenças” que não utilizam estes recursos para obras que farão diferença para quem precisa, apenas servem para o enriquecimento desta gente sem escrúpulos?
E o pior de tudo: essas “igrejas” que utilizam os recursos dos fiéis cegos e crentes para corromper, comprar políticos, fazer campanha política e chegar até cargos públicos para desviarem dinheiro e retroalimentarem essa roda de enriquecimento egoísta e absurdo.
Enfim, todas as temáticas que este filme trata e toca são perturbadoras. Seja pela análise familiar, psicológica da protagonista, seja pela questão da manipulação de pessoas crente por gente mal intencionada e que vai contra tudo que Jesus ensinou no seu tempo.
Por trata de todos estes temas, achei The Eyes of Tammy Faye interessante. Mas me incomodou um pouco como o filme deixa algumas pontas soltas no final e acaba seguindo uma linha/tendência de “defesa” da protagonista. Alguns podem realmente embarcar na teoria que ela foi uma vítima de tudo que aconteceu.
Mas, apesar do acerto comentado antes, de ir contra a corrente do círculo de religiosos do qual fazia parte, ela participou de toda aquela manipulação e enriquecimento tendo a crença das pessoas como fonte de recurso. Só acho que o roteiro desta produção não explora esta questão tão bem quanto deveria, assim como não deixa claro porque apenas Jim foi culpado dos crimes e Tammy, aparentemente, saiu ilesa das acusações.
NOTA 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
Tem um outro aspecto importante deste filme, que está nas entrelinhas, e que também incomoda. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Na sequência em que Tammy e Jim conversam com os “poderosos” da “igreja televisionada”, Jerry Falwell (Vincent D’Onofrio) e Pat Robertson (Gabriel Olds), algumas falas de Falwell deixam claras as relações entre estes “religiosos” farejadores de dinheiro e algumas ideias defendidas por “políticos de direita (ou extrema direita)”. Falwell comenta, na ocasião, que eles devem lutar contra as agendas das “feministas e dos homossexuais” porque devem lutar contra os pecadores. Uma linha de pensamento que exclui as pessoas e que vai contra o Evangelho, claramente, com finalidades políticas, de poder e de riqueza. Discursos muito “atuais”, o que torna a narrativa ainda mais assustadora.
Escrevi mais sobre esta produção do que eu gostaria. Mas o filme tem muitas camadas e muitos temas relacionados e entrecruzados, realmente. Não dá para evitar de falar de alguns destes pontos.
Gostei da direção de Michael Showalter. Apesar de não apresentar nada muito diferenciado, em termos de direção, considero que ele faz um belo trabalho por valorizar muito bem o trabalho dos atores. Os protagonistas fazem um belo trabalho, assim como os coadjuvantes, ainda que eu achei a interpretação de Jessica Chastain e de Andrew Garfield um pouco exageradas. Verdade que parece que as pessoas “homenageadas” pela interpretação deles também tinham esse “quê” exagerado, mas, ainda assim, achei o tom dos dois um pouco acima da média.
O roteiro escrito por Abe Sylvia é bom, resumindo bem a trajetória de Tammy Faye. Mas, como comentei antes, acho que o texto dela deixa algumas pontas soltas – especialmente sobre o “fim” da protagonista e sobre os desdobramentos que ocorrem com ela após a prisão de Jim. Assim, considero este roteiro bom, mas nada acima da média.
Gosto muito da Jessica Chastain. Acho que ela merece o Oscar, sem dúvidas. Mas, como muitas vezes acontece com o prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, nem sempre a pessoa que merece a estatueta dourada ganha o prêmio no momento mais preciso. Muitas vezes a atriz ou o ator ganham o Oscar anos depois e por trabalho diferente daquele no qual eles realmente se destacaram. Vejo isso acontecendo com Jessica Chastain. Ela recebeu o Oscar bom um trabalho, mas um pouco exagerado. Merecia ter recebido antes, em 2013, por Zero Dark Thirty (comentado por aqui).
Como o nome mesmo sugere, esta produção é conduzida pela narrativa da personagem de Jessica Chastain. Então ela é o destaque da produção, claro. Mas Andrew Garfield também tem um papel relevante no filme. Como sua companheira de cena, acho que Garfield exagera um pouco na interpretação. Ok que os personagens eram “forçados”, mas realmente eles precisavam estar dois tons acima do normal o tempo todo? Acho que não.
Além de Jessica Chastain e de Andrew Garfield, alguns outros atores ganham destaque na produção pela relevância de seus papéis. Apesar de serem coadjuvantes, eles tem presença com peso na narrativa. São eles: Cherry Jones como Rachel Grover, mão de Tammy; Fredric Lehne como Fred Grover, segundo marido e padrasto de Tammy; Vincent D’Onofrio como Jerry Falwell, o reverendo poderoso que começa dando espaço na TV para os Bakker e acaba sendo ultrapassado por eles com larga vantagem em termos de audiência; Gabriel Olds como Pat Robertson, outro reverendo que fazia sucesso na TV antes do casal Bakker aparecer; Louis Cancelmi como Richard Fletcher, “braço direito” de Jim e um de seus “casos”; e Sam Jaeger como Roe Messner, investidor convidado por Jim Bakker para fazer parte do empreendimento dos parques criados por ele e pela esposa.
Entre os aspectos técnicos desta produção, destaque para o Departamento de Maquiagem, formado por 39 profissionais que ajudam Jessica Chastain a perder um pouco o seu visual e a se parecer um pouco mais com Tammy Faye – honestamente, não achei o trabalho tãoooo marcante assim, mas sim, eles atuam em um aspecto importante do filme. Além da Maquiagem, vale citar o design de produção de Laura Fox; a direção de arte de Charles Varga; a decoração de set de Barbee S. Livingston e os figurinos de Mitchell Travers. Todos esses aspectos ajudam a nos ambientar nas décadas nas quais a história se passa.
Para quem gosta de saber os nomes por trás de outros aspectos técnicos importantes, vou citar na trilha sonora o trabalho de Theodore Shapiro; na direção de fotografia, o trabalho de Mike Gioulakis; e a edição de Mary Jo Markey e de Andrew Weisblum. Eles fazem um trabalho ok, mas sem um grande destaque ou mesmo acima da média.
The Eyes of Tammy Faye estreou em setembro de 2021 nos cinemas da Alemanha e, no dia 12, no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Depois, até novembro de 2021, o filme participaria, ainda, de outros 12 festivais em diferentes países, incluindo os festivais de cinema de San Sabastián, de Helsinki, de Roma e de Tóquio.
Em sua trajetória em festivais e premiações de diversos países, The Eyes of Tammy Faye ganhou 23 prêmios, incluindo o Oscar nas categorias Melhor Maquiagem e Cabelo e Melhor Atriz para Jessica Chastain; Melhor Maquiagem e Cabelo no Prêmio BAFTA; Melhor Atriz para Jessica Chastain no Screen Actors Guild Awards; e Melhor Atriz no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián. Jessica Chastain concorreu na categoria Melhor Atriz – Drama no Globo de Ouro, mas perdeu o prêmio para Nicole Kidman, pelo filme Being the Ricardos.
Vale citar algumas curiosidades sobre esta produção. Segundo as notas dos produtores, a atriz Jessica Chastain fez suas próprias versões das músicas originais de Tammy Faye. Aliás, esta produção virou um projeto pessoal da atriz. Jessica Chastain viu o documentário sobre Tammy Faye em 2012 e, desde então, alimentou a vontade de contar a história desta personagem. A atriz adquiriu os direitos para produzir um filme biográfico sobra Tammy Faye Bakker e encarou o difícil papel também como atriz.
Em The Eyes of Tammy Faye, fica apenas sugerida uma certa “atração” entre Tammy e Roe Messner, que aparece na mansão dela e de Jim como um possível investidor dos parques que o casal quer criar. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Mas a verdade é que Tammy e Roe se casaram depois que Jim foi preso e que ela se divorciou dele. O filme não aborda esta questão, mas Roe também foi indiciado por desvios da igreja fundada por Tammy e Jim e foi condenado a 27 meses de prisão federal.
Nos créditos finais do filme, vemos algumas imagens dos atores e dos personagens reais nos quais eles foram inspirados. Mas parte da história de Jim Bakker não é contada ali. Depois de ficar preso, Bakker casou-se novamente em 2003 e voltou a “evangelizar” pela TV. Entre outras polêmicas, ele se envolveu na venda de suprimentos para o “juízo final”, que incluía alimentação e, em 2020, em uma “solução de prata” que curaria todo tipo de doença, inclusive a Covid-19, segundo esse charlatão-mor. Em junho de 2021, um tribunal do Missouri ordenou que Bakker pagasse uma restituição de US$ 156 mil para resolver o processo envolvendo a “solução” e para reembolsar quem tivesse comprado o produto.
Para quem quer saber o que existe de real nesta produção, achei alguns textos que fazem esta leitura. Entre outros, sugiro este conteúdo do site History vs. Hollywood e este texto do site Slate.
Esse é o primeiro filme do diretor Michael Showalter que eu assisto. Ele estreou como diretor de longas em 2005 com o filme The Baxter. A maior experiência dele foi dirigindo filmes e séries para a TV. Além de The Baxter, para o cinema ele dirigiu Hello, My Name is Doris, em 2015; The Big Sick, em 2017; e The Lovebirds, em 2020, antes deste The Eyes of Tammy Faye.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,6 para The Eyes of Tammy Faye, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 162 críticas positivas e 73 negativas para essa produção, o que significa 69% de aprovação e uma nota média de 6,5.
O site Metacritic apresenta o “metascore” 69 para The Eyes of Tammy Faye, fruto de 26 críticas positivas, duas medianas e de uma negativa coletadas pelo site de críticos que escrevem em outros locais.
Segundo o site Box Office Mojo, The Eyes of Tammy Faye arrecadou pouco mais de US$ 2,4 milhões nas bilheterias dos cinemas dos Estados Unidos, enquanto que em outros países o filme fez cerca de US$ 280 mil nas bilheterias.
The Eyes of Tammy Faye é uma produção 100% made in Estados Unidos, o que faz esse filme figurar na lista de produções que atendem a uma votação feita há tempos por aqui.
CONCLUSÃO
Um filme que, aparentemente, foca em uma história específica e em um tema. Mas, na verdade, The Eyes of Tammy Faye é uma produção cheia de camadas e aborda diversas temáticas. Apesar de ser “baseado em uma história real” – mesmo esta frase não aparecendo no início do filme -, esta produção nos faz refletir sobre diversos temas muito atuais e nada datados. Um filme assustador, em alguns aspectos, e um pouco cômodo em outros. Interessante, mas nem perto de ser realmente marcante.
27/3/22
No Ritmo do Coração, CODA, 2021, Sian Heder
No ritmo do coração: Oscar para 'No Ritmo do Coração' é das maiores vergonhas do prêmio. Filme empilha clichês, confunde cinema com ato de caridade e cai na ladainha do assistencialismo
28/3/22
A Sereia dos Mares do Sul, Pearl of the South Pacific,1955, Allan Dwan
Dois homens se juntam com uma mulher chamada Rita na busca por pérolas negras em uma secreta e misteriosa ilha.
29/3/22
Que Assim Seja, Trinity, Si può fare... amigo, 1972, Maurizio Lucidi
O filme no iutubi aqui
29/3/22
Rio Acima, Up the River, 1930, John Ford
Filme no iutubi
aqui 31/3/22
Punhos de Campeão, The Set-Up, 1949, Robert Wise
Punhos de Campeão
por Michel Gutwilen em 20 de maio de 2020
A primeira cena de Punhos de Campeão mostra um jovem vendedor de jornal tomando o ponto de venda de um comerciante mais velho na frente de uma arena de boxe. Desde já, um sutil anúncio sobre a principal temática da obra de Robert Wise. Chegando aos seus 35 anos, o boxeador Stoker (Robert Ryan), que só perdeu durante toda sua carreira, sabe que há uma corrida contra o tempo para vencer, pelo menos uma vez, antes que chegue a hora de se aposentar. Porém, o que ele não sabia era que seu treinador, sem avisá-lo (já que confiava tanto em sua derrota), havia combinado com a máfia que, naquela noite, ele perderia. Enquanto isso, sua esposa, Julie (Audrey Totter), não aguenta mais assisti-lo apanhar e afirma que não irá ao evento.
Hal Baylor and Robert Ryan in The Set-Up (1949)
Curioso (mas não sem propósito) é o fato de Stoker e Julie estarem hospedados em um hotel que se separa da arena por apenas uma rua. Esta curta distância é algo que Wise faz questão de estabelecer, seja pelo movimento de câmera que sai de uma localização para a outra, ou no plano que acompanha o protagonista indo do hotel para a arena. Até na cena que se passa no quarto, é possível ver a frente da arena pela janela, em uma decupagem extremamente calculada. Além do maniqueísmo óbvio — a escolha entre o seu sonho profissional e o amor de sua vida — representada pela saída de um ambiente para o outro, o que parece acontecer é que, ao longo do filme, a distância entre a arena e o hotel se torna cada vez maior no campo psicológico do protagonista, simbolizando a briga entre o casal.
Assim, Wise parece estar preocupado em estender, ao máximo, o momento que precede a luta, criando um drama psicológico em tempo real para Stoker no vestiário. Cada vez que a luta se aproxima, o semblante de Robert Ryan vai ficando mais preocupado ao ver os lutadores anteriores voltando machucados e pensar que ele pode ser o próximo. De mesmo modo, todos os diálogos trocados no vestiário parecem ganhar um peso maior, refletindo sobre temas como a religiosidade, morte e juventude, todos esses que lhe afetam de alguma forma. Enclausurado naquele ambiente e certo de seu destino, o máximo que o boxeador consegue ver do mundo lá fora, através de uma frecha da janela, é justamente aquele hotel, que representa sua amada — tão perto, mas tão distante. Stoker sabe que suas chances de não voltar daquela luta são grandes, mas seu senso de honra e orgulho próprio parecem levá-lo para frente em busca de uma última chance. Por outro lado, Wise se preocupa em trazer momentos melancólicos de Julie vagando pela cidade, mas tudo a sua volta parece lembrá-la daquilo que ela quer esquecer. Logo, esses elementos vão encaminhando Punhos de Campeão dramaticamente em direção ao seu grande evento.
Quando a luta começa, o que mais chama atenção não é nem o realismo daquela sua coreografia de socos, mas como Wise também se volta para a platéia, por meio de close-ups que buscam captar toda a pulsação do povo com o esporte. O diretor explora esse aspecto da luta como um espetáculo, mais focado no contra-plano do que no plano, nessa alternância entre a felicidade e o descontamento que diz muito mais do que os socos em si. Inclusive, pode-se dizer que muitos dos planos escolhidos para mostrar os lutadores criam uma própria moldura interna, com os ambos dentro de duas cordas do ringue, reforçando mais uma vez essa atmosfera claustrofóbica que vai tomando cada vez mais.
Desse modo, temos duas metades que contrastam de maneira muito forte. Obviamente, Punhos de Campeão. não está condenando os consumidores do esporte, mas evidenciando a diferença entre mundos. Enquanto o público se diverte e vai embora do espetáculo sem sofrer consequências, boxeador e sua mulher sofrem. Ao fim da luta, a arena vira literalmente uma prisão para Stoker, na qual ele deve escapar para conseguir chegar do outro lado da rua, retornado a essa lógica que parece aumentar as distâncias.
Porém, tudo isso é quebrado no exato momento final, em que a câmera faz seu último movimento, em um zoom out, que volta a enquadrar a arena e o hotel, símbolos daqueles dois mundos (e pessoas) antes tão distantes, que agora foram unidos novamente. Não mais Stoker e Julie ficarão separados, ainda que Punhos de Campeão tenha dado muita porrada em seus protagonistas antes de permitir que isso aconteça.
Punhos de Campeão (The Set-Up) – EUA, 1949.
Direção: Robert Wise
Roteiro: Art Cohn (baseado no poema de Joseph Moncure March)
Elenco: Robert Ryan, Audrey Totter, George Tobias, Alan Baxter, Wallace Ford, Percy Helton, Hal Baylor, Darryl Hickman, Kevin O’Morrison
Duração: 73 mins
Em tempo: filme em tempo real. Como em Matar e morrer
31/3/22
O Mundo os Condenou, The Damned, 1963, Joseph Losey
O filme no iutubi aqui
Um casal tenta escapar de uma gangue de delinquentes quando se depara com cientistas trabalhando num projeto secreto do governo, um experimento com um grupo de crianças com estranhos poderes.
1/4/22
O Homem solitário, The Solitaire Man, 1933, Jack Conway
O filme no iutubi aqui
Oliver Lane é "The Solitaire Man", um famoso ladrão de jóias que está pronto para se aposentar e se casar com Helen, sua parceira no crime e seu único amor verdadeiro. Seus planos são destruídos quando outro membro de sua gangue, Bascom, entra com um colar roubado. Helen não vai se casar com Oliver até que o colar seja devolvido. A tentativa de Oliver de devolver as jóias mais tarde coloca toda a gangue sob suspeita pelo roubo e pelo assassinato de um inspetor da Scotland Yard.
2/4/22
O Dia da Desforra, La resa dei conti, 1966, Sergio Sollima
O filme no iutubi aqui
La Resa dei Conti
de Sergio Sollima (1966, 35mm, 107 min, Itália/Espanha, 14 anos)
Jonathan Corbett (Lee Van Cleef) é o mais impecável dos caçadores de recompensas. Ele é tão capaz na caça aos criminosos que sua popularidade na região faz com que um milionário resolva financiar sua candidatura ao senado. Antes disso, porém, Corbett se coloca a caçar Cuchillo (Tomas Millian), jovem mexicano acusado de estuprar e matar uma menina de doze anos. O jogo de gato e rato entre Corbett e Cuchillo, porém, vai aos pouco desfazendo as boas maneiras do cada vez mais exasperado caçador de recompensas, assim como criando questões sobre a verdadeira culpa do fugitivo. Entre os realizadores que se dedicaram ao faroeste político, nenhum filmou de forma mais incisiva do que o grande Sergio Sollima. O Dia da Desforra parte de uma premissa farsesca, uma série de encontros e perseguições em que o grande homem da lei segue incapaz de capturar a sua presa. Mas, aos poucos, Corbett vai realizando que este não é um trabalho como qualquer outro, e que a determinação de Cuchillo em não ser capturado esconde algo maior. Da mesma forma, O Dia da Desforra está mais interessado em questionar o verdadeiro sentido da justiça. Sollima transformaria o grande sucesso de O Dia da Desforra em uma série de outros filmes ainda mais incisivos, incluindo uma seqüência – Corre, Homem, Corre – em que Cuchillo é reimaginado como um revolucionário. Por Filipe Furtado
2/4/22
Segredos de Alcova, Diary of a Chambermaid, 1946, Jean Renoir
O filme no iutubi aqui ou aqui
Segredos de Alcova e O Diário de uma Camareira
Ao longo de sua História, o cinema se mostrou encantado com Le Journal d’une Femme de Chambre, o romance do francês Octave Mirbeau publicado em 1900. A história foi filmada quatro vezes, em 1916, 1946, 1964 e 2015 – duas delas por diretores que estão entre os melhores, mais importantes de todos.
As indicações, no entanto, são de que as versões cinematográficas estão muito, muito distante e aquém do romance.
Não estou fazendo uma afirmação peremptória, de forma alguma – é apenas uma dedução, uma inferência. Não li o livro – apenas um longo, cuidadoso resumo em um site especializado nisso –, e nunca tinha tido interesse e/ou oportunidade de ir atrás dos filmes, até agora, quando vi a versão mais recente, de Benoït Jacquot, de 2015, a primeira em cores, uma caprichada co-produção França-Bélgica, e logo em seguida a segunda, a de 1946, de Jean Renoir. Não consegui encontrar a versão de 1964, a de Luís Buñuel – foi lançado em DVD, mas não está mais em catálogo, não está disponível nas lojas, e também não existe no território livre e doido da internet. A primeira das quatro adaptações do livro para o cinema, essa é mesmo inalcançável, inatingível – é uma produção da Rússia imperial, pré-Revolução Comunista, de 1916, dirigida por M. Martov.
Então, repito, insisto: não tenho condições de fazer uma afirmação peremptória. Mas, pelos filmes de 1946 e 2015, pelos trechos disponíveis da versão de Buñuel, pelo que se informa sobre ela e sobre o romance, dá para deduzir, inferir que o cinema ainda não conseguiu fazer um filme à altura do livro, ou bastante fiel a ele.
O romance de Octave Mirbeau (1848-1917) é um catatau de mais de 500 páginas. Foi publicado originalmente como um folhetim, no jornal L’Écho de Paris, entre outubro de 1891 e abril de1892, e, depois de bastante reescrito, saiu como romance em 1900. Chordelos de Laclos havia escrito seu extraordinário romance As Ligações Perigosas em forma de cartas trocadas entre os personagens centrais; Le Journal d’une Femme de Chambre foi escrito exatamente como um journal, um diário – são as anotações de Célestine, a camareira, a empregada doméstica, ao longo dos meses em que trabalha na casa de uma família da província – os Lanlaire, na França do final do século XIX, ali por volta de 1885.
Ao mesmo tempo em que descreve seu dia-a-dia na propriedade dos Lanlaire e nas idas à cidadezinha, à casa vizinha, Célestine anota sobre as lembranças que tem da sua vida nos empregos pelos quais passou. E foram muitos – ela nunca ficou mais de meio ano em cada uma das casas.
Célestine não gosta nada de seus novos patrões. Madame Lanlaire é desagradável, exige muito dela, cobra sua demora ao voltar da missa aos domingos, e está sempre a pedir que tome cuidado com cada uma das peças que há na casa. Quanto ao patrão, esse, como tantos outros que já haviam passado pela vida de Célestine, dá em cima dela, tenta obter dela os favores sexuais que a esposa não parece apreciar.
O vizinho dos Lanlaire, o capitão Mauger, detesta o casal que vive ao lado. A empregada dele, Rose, por sua vez, se aproxima de Célestine, conta para ela as fofocas do lugar.
“A missa do interior é para Célestine um tédio mortal: não há qualquer vestido belo que possa ser admirado para que o tempo passe”, diz o longo resumo do site Etudier.com, que, me parece, dá bem o tom do livro. “Após a missa, mademoiselle Rose a leva à mercearia, onde as fofocas são postas em dia. Ao sair, Célestine fica sabendo que é ali que ela pode procurar ajuda se Monsieur a engravidar, para se desembaraçar da criança com toda discrição. De volta à casa, Madame a repreende por ter demorado muito tempo a voltar da igreja.”
Na casa dos Lanlaire trabalham também uma cozinheira, Marianne, que conta para Célestine seus pequenos furtos – mais tarde Monsieur a deixará grávida –, e Joseph, o faz-tudo, um homem fechado, que fala pouco, e quando fala se demonstra um anti-semita pavoroso, nojento. O que não é gratuito – vivia-se a época do caso Dreyfuss, que comoveu toda a França, tema do filme de 2019 de Roman Polanski, O Oficial e o Espião/J’Accuse.
Um fato extraordinário rompe a rotina interiorana, provinciana: uma garota de 12 anos, Claire, é encontrada num bosque próximo, estuprada e assassinada.
Célestine passa a desconfiar que Joseph possa ser o criminoso. Ao mesmo tempo, Joseph começa a se abrir para ela; conta que está economizando há anos e pretende comprar um café na cidade portuária de Cherbourg. Gostaria de casar com ela, e levá-la para administrar com ele o seu negócio.
Falar mal dos burgueses é uma atração fatal
Falar mal dos burgueses, criticar seus modos, sua pequenez moral, expô-los ao ridículo parece ser uma atração fatal, um dos grandes prazeres dos artistas franceses, na literatura, no teatro, no cinema. E o livro de Octave Mirbeau é um prato cheio. Desde que foi lançado, Le Journal d’une Femme de Chambre tem sido saudado como “subversivo”, de uma narrativa desmistificadora, “uma maneira de explorar pedagogicamente o inferno social, em que reina a lei do mais forte”, uma denúncia dessa “forma moderna de escravatura”, feita por uma camareira a quem o autor dotou de “uma lucidez impiedosa”.
Já em 1900, numa publicação chamada La Revue Blanche, um tal Josef Rippl-Ronaï escrevia a propósito da obra de Mirbeau o que qualquer crítico de cinema poderia ter escrito a propósito de Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert: “Pretende-se que não haja mais escravidão… Ah! Eis aí uma boa piada… E as domésticas, que são elas, então, senão escravas? Escravas de fato, com tudo aquilo que a escravidão comporta de vileza moral, de inevitável corrupção, de revolta que engendra ódios.”
Léa Seydoux faz uma Célestine muito cheia de si
A versão cinematográfica recente, a de Benoît Jacquot, parece muitíssimo mais fiel à obra de Octave Mirbeau que a do mestre Jean Renoir – embora a Célestine interpretada pela bela Léa Seydoux seja um tanto jovem demais para já ter vivido tantas experiências, em tantas diferentes casas, com tantos diferentes patrões e patroas. A moça que levou o prêmio de melhor atriz em Cannes por Azul é a Cor Mais Quente (2013) estava com 30 anos no lançamento do filme.
Léa Seydoux compõe uma Célestine absolutamente cheia de si, segura, que vê o mundo como se estivesse acima das demais pessoas. Diante da patroa e do patrão, demonstra profundo enfado – e os xinga, e xinga o mundo, assim que fica a mais de um metro de qualquer um deles.
Madame Lanlaire (Clotilde Mollet) é mostrada como uma criatura sem dúvida alguma desprezível. Há uma sequência que a mostra especialmente irritante, quando ela, sentada na sala no térreo, pede à empregada que vá pegar no quarto, no primeiro andar, uma agulha, e, assim que recebe a agulha, pede uma linha, e depois que Célestine sobe e desce as escadas mais uma vez, pede uma tesoura – e assim por diante.
Quanto a Monsieur Lanlaire (Hervé Pierre), é um absoluto babaca, que só pensa em cantar Célestine, da forma mais abjeta possível.
Célestine demonstra desprezo pela cozinheira Marianne (Mélodie Valemberg), mulher ampla, gorda, que dá a impressão de ser pouco asseada. E, por Joseph, o jardineiro e de resto faz-tudo da casa (mais uma ótima interpretação de Vincent Lindon, na foto abaixo), demonstra sentir ao mesmo tempo um certo medo e uma grande curiosidade.
O roteiro – escrito pelo próprio Benoît Jacquot e Hélène Zimmer – segue o esquema criado por Mirbeau no livro de trazer para o meio da narrativa do cotidiano de Célestine histórias do passado, experiências que ela viveu nas casas de outros patrões. Um dos flashbacks – eles surgem sempre repentinamente, inopidadamente – mostra uma patroa que carrega em uma pequena mala um grande pênis de louça, um avô dos vibradores. É uma sequência estranha, insólita.
É bastante insólito também o desfecho da relação entre Célestine e o neto tuberculoso de uma das patroas – mas é a recriação fiel de uma das passagens do romance. É uma das boas recordações que Célestine tem; ela havia sido contratada por uma velha senhora distinta (o papel de Joséphine Derenne), para cuidar da sua casa à beira-mar e, sobretudo, de seu neto Georges (Vincent Lacoste, na foto acima). A moça acompanhava o rapaz nos passeios pela praia – e frequentava a cama dele.
O roteiro parece ter sido fiel, também, ao descrever como Joseph vai se aproximando de Célestine – mas interrompe a narrativa antes dos acontecimentos que o romance mostrará no fim.
O filme de Renoir se afasta muitíssimo do livro
A versão que Jean Renoir dirigiu é muito, muito distante do romance. E é prejudicada pelo fato de que é uma produção americana: em 1946, Renoir ainda estava nos Estados Unidos, país que o acolheu ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial – assim como recebeu dezenas e dezenas de outros realizadores e atores europeus que fugiam do nazismo. Assim, seu Journal d’une Femme de Chambre tem o título original de The Diary of a Chambermaid – e, no Brasil, ganhou o título de Segredos de Alcova. E Célestine, Monsieur e Madame Lanlaire, o vizinho capitão Mauger e sua empregada Rose, todos falam em inglês.
Célestine é interpretada por Paulette Goddard, e é impressionante como a ex-senhora Charlie Chaplin parecia mais velha do que Léa Seydoux no mesmo papel, muito embora tivesse apenas 6 anos mais que a francesa – nascida em 1910, estava com 36 anos.
Monsieur Lanlaire é interpretado por Hurd Hatfield (na foto abaixo), e Madame Lanlaire por Judith Anderson – que, seis anos antes, havia interpretado a governanta-bruxa em Rebecca, de Alfred Hitchcock.
O capitão Mauger, o vizinho dos patrões, foi o papel do grande Burgess Meredith, que na época estava casado com a estrela Paulette Goddard. E foi Burguess Meredith que assinou o roteiro do filme, com base numa peça teatraç que já era a adaptação do romance, assinada por André Heuzé e André de Lorde.
O roteiro mexeu profundamente na história. Transformou Georges, o jovem tuberculoso, neto de uma das patroas de Célestine no passado, no filho adulto do próprio casal Lanlaire. Colocou a moça no meio de uma corte cerrada feita tanto pelo patrão quanto pelo vizinho capitão Mauger e por Joseph. Aumentou a carga criminosa de Joseph transformando-o em assassino a sangue frio.
Sobretudo, o roteiro de Meredith, a direção do mestre Renoir, a interpretação dos atores, a trilha sonora Michel Michelet – tudo conspirou para dar um toque de ironia, sarcasmo, à história, que resvalou para um tom de comédia que a meu ver não tem nada, absolutamente nada a ver com a sátira social que a obra de Octave Mirbeau faz.
Atenção: spoiler. Melhor pular para o próximo intertítulo
Mas o principal ponto, me parece, em que os dois filmes se distanciam do livro, tanto o de 1946 quanto o de 2015, é o fato de que eles não vão até onde a história vai no romance.
Vai aqui o aviso: a frase a seguir é um spoiler.
No livro, Célestine se casa, sim, com Joseph – e se transforma, ela mesma, numa patroa, não muito diferente das patroas que a trataram mal quando ela era uma bonne, uma domestique, uma empregada.
Para Mirbeau, quem é burguês é ruim – mesmo que venha das gloriosas, imaculadas, abençoadas classes trabalhadoras.
Nem Renoir nem Jacquot quiseram assinar embaixo dessa moral triste.
Com o tempo, a crítica passou a elogiar o filme de Renoir
Leonard Maltin deu ao filme de Jean Renoir 2 estrelas em 4: “Desconfortável tentativa de melodrama romântico ao estilo europeu, com a loura Goddard como uma empregada que atiça todos os tipos de emoção. Esforça-se bastante, mas nunca está realmente certo do que pretende ser. Meredith como o vizinho meio louco e Ryan como a copeira fazem o possível para avivar as coisas; Meredith também co-produziu e escreveu o roteiro. Refeito em 1964.”
A Ryan que Maltin elogia é Irene Ryan, que interpreta Louise, uma moça tímida, feiosa, sem graça, que Célestine – num gesto generoso, atruísta, que não combina com sua personalidade egocêntrica – defende e protege.
“Refeito em 1964.” Não dá para deixar de registrar aqui que a versão de 1964, assinada por outro grande mestre, o espanhol Luís Buñuel, o cineasta da rebeldia, do absoluto inconformismo, cuja religião era ser anti-religioso, iconoclasta, irreverente, tem Jeanne Moreau no auge da beleza e da sensualidade no papel central. As indicações todas são de que, no Journal d’une Femme de Chambre de Buñuel, a sensualidade, o erotismo e os fetiches – elementos que já estavam no livro – são elevados à enésima potência.
Do verbete sobre o filme do livro de Pauline Kael (5001 Nights at the Movies, no Brasil reduzido a 1001 Noites no Cinema), transcrevo duas frases: “Jean Renoir parodia os romances históricos neste divertissement escancaradamente inverossímil. (…) O filme é meio maluco, mas muitíssimo divertido.”
Diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Mal acolhido no seu lançamento, o filme passou por uma revisão, com o tempo, e alguns chegam mesmo a colocá-lo no mesmo plano de A Regra do Jogo. Ainda que rodado nos Estados Unidos, ele parece mesmo superior à versão de Buñuel aos olhos de certos críticos.”
“Léa Seydoux carrega no seu rosto os sinais da exaustão”
Le Monde afirma que Benoït Jacquot “adapta com elegância o livro cruel de Octave Mirbeau”. O texto assinado por Thomas Sotinel é mais uma das quase incontáveis provas de que os franceses não apenas inventaram o cinema como são também os que melhor escrevem sobre ele.
“Célestine encontrou um novo mestre. Depois de ter servido aos senhores Mirbeau, romancista, Renoir e Buñuel, cineastas, eis a bela doméstica bretã colocada nos domínios do senhor Jacquot. Não é de se espantar qie o autor de La Fille Seule (Uma Garota Solitária, 1995), que era também uma empregada, tenha se interessado por essa outra figura da solidão feminina.
“É, de todos os traços dessa personagem imaginada por Octave Mirbeau em 1900, a que mais fascina Benoît Jacquot. Esse Journal d’une Femme de Chambre manteve do texto original a cólera e o humor macabro, mas é também uma exploração insistente do desejo feminino. E, talvez porque se aventure à sombra de dois gigantes, o realizador leva aqui quase à incandescência sua habitual elegância.
“Como Paulette Goddard e Jeanne Moreau que precederam Léa Seydoux no papel de Célestine, a atriz não tem nada de servil. (…) Léa Seydoux carrega no seu rosto os sinais da exaustão, nascida de um combate sem trevas, sempre perdido, sempre reiniciado, contra sua condição e aqueles que a mantêm.”
E por aí vai. O texto do crítico do Monde – Benoît Jacquot que me perdõe – é melhor do que o filme.
2/4/22
O Homem do Rifle, The Rifleman, Série TV 1958 – 1963
O filme no iutubi aqui
Consta:
The angry gun, 1968, David Swift (Vic Morrow)
The Marshaw, 1968, Sam Peckinpah (Warren Oates)
Duel of honor, 1968, Joseph H. Lewis (Jack Elam)
Chuck Connors and Johnny Crawford at 20th Century Fox Ranch (now known as Malibu Creek State Park) in 1958.
Sinopse & Info
Após a morte da esposa, o veterano da Guerra Civil Lucas McCain (Chuck Connors) decide recomeçar, indo morar com o filho Mark (Johnny Crawford), em North Fork, no estado americano do Novo México. Enquanto tenta educar o filho, McCain acaba se envolvendo nos problemas dos moradores do povoado, ajudando-os com seu manejo inigualável de um rifle Winchester.
5 Temporadas, 168 Episódios (Adorocinema)
3/4/22
O Morto Desaparecido, Murder Is My Beat, 1955, Edgar G. Ulmer
O filme no iutubi aqui
Um detetive da polícia ajuda uma cantora que está para ir a prisão pelo assassinato de um homem que ela afirma ainda estar vivo
Murder Is My Beat is a 1955 film noir mystery film directed by Edgar G.
Ulmer starring Paul Langton, Barbara Payton and Robert Shayne
Businessman Fred Deane is found dead with his face and hands burned beyond recognition. Detective Patrick (Langton) pursues and arrests Deane's girlfriend, nightclub-singer Eden Lane (Payton). She makes little effort to deny her involvement in the death and is convicted of the crime. On the way to prison, accompanied by Patrick, Eden sees a man through the train window whom she identifies as the murdered man. Patrick, who has developed a romantic interest in the woman, believes her; he and Eden jump from the train to search for the man. They agree to allow themselves one week to solve this mystery or Eden will submit to her prison sentence. The situation has, naturally, put Patrick in legal jeopardy as well and he is eventually tracked down by his friend and superior, Detective Rawley (Shayne). Eden, in the meantime, convinced that the truth cannot be unveiled, furtively leaves Patrick and turns herself in. Rawley allows himself and Patrick twenty-four hours to try to bring together information and clues Patrick has turned up. Wik
4/4/22
O Preço do Poder, Il prezzo del potere, 1969, Tonino Valerii
O filme no iutubi aqui
O Presidente James Garfield chega em seu trem ao estado do Texas onde irá debater suas reformas políticas. Sua posição antiescravatura é extremamente impopular com os locais, particularmente a Jefferson, o xerife corrupto e Pinkerton o banqueiro. Secretamente eles planejam matar o presidente, pois sabem que seu sucessor poderá ser comprado. Ben Willer descobre que seu pai foi assassinado pelo xerife, pois sabia dos planos contra o presidente. Mas, apesar de seus esforços o assassinato tem sucesso, e um negro leal à causa do presidente é acusado e aprisionado. Agora, ajudado por Arthur McDonald o assistente do presidente, cabe a Willer fazer justiça, custe o que custar... Filmow
Comentários
marcus christian 6 meses atrás
e apesar de vulgo para algumas mentes humanas, juntando a estas, a dos completos analfabetos não funcionais, que por obstante caso lhe interpelem sobre o que vulgo trata se o tratado de tordesilhas, estes diriam ser uma pizza tratada com lentilhas em sua massa junto a cidade espanhola de tordesilhas, que contudo para de fato decifrar se nao apenas o preço, mas sim as consequencias de possuir se o mesmo junto a proporções amplamente desequilibradas em se tratando de como utiliza lo junto a sociedade o qual pertença, exemplo claro do que digamos aqui criatura serena contra o " sistema " inescrupuloso a epoca giuliano gemma, e seus esforços afins de trazer união ao grupamento social yanke, ao inves do estimulo de muitos nada polidos mentalmente falando, por continuarem no momento a dividi lo ha exatos 52 anos, o segredo denota se simples, suas motivações e não propiamente beneficios amplos a contento, resumindo a quem interessar ou não possa, sem duvida um passado nebuloso do hoje ate certo ponto não tão sectario como um dia o foi no passado, apesar de continuar a se lo dentro de uma nova realidade, que no entanto bem ? antes para fins comparativos alem de DANEM SE opiniões divergentes, o MENOS pior de hoje, do que o amplamente ainda MAIS de ontem, e fim de papo, se e´que porventura me entendem. BOM FILME. " Precisticamente" NOTA 9.0
Alma Torturada 1 ano atrás
Um filme interessante que tem como tema principal o racismo, o que é bem legal, pq filmes italianos de faroeste normalmente são mais aventurescos e caricatas, mas esse tem uma parte dramática e chega bem perto do mundo real.
ROBERTO 1 ano atrás
e a outrora civilidade no tocante ao tratamento para com o alheio homo sapiens, ainda digamos muito a anos luz do que logico algum avanço o houve em relação ao direito basico seja de ir e vir, assim como demais gestos de cidadania a coletividade yanke a contento junto a epocas atuais, que contudo em meio a divisoria alem de sectaria guerra civil americana, ou mais precisamente a exatos 51 anos cinefilos, tanto a segregação aliada ao já ambiente inospito do velho oeste, vulgo ainda iria contribuir por muito tempo para que poucos incluindo giuliano gemma e demais reles gatos pingados, tentassem trazer ao mundo um pouco mais de razoabilidade ao inves do sentimento imergido a escravizadores com direitos e dominancia, num lamentavel contraste a escravizados os quais se possuiam algum bem ? este o seria no de burro de carga afins de progresso alheio ate a morte e nada mais, tão pouco menos que isto, sem duvida tai aqui uma boa mescla entre fatos historicos incontestaveis, junto ao sempre convincente genero western prezados, afinal de contas em tese procuramos sim primeiramente o entretenimento, agora se puder agregar outros fatores ao mesmo, como com certeza tal longa o agregou? MELHOR AINDA a priori. e fim de papo. BOM FILME. " escravatoristicamente" NOTA 9.0
Marcos Soares 3 anos atrás
Pela década do filme, fica claro a relação dele com o assassinato de JFK.
O Gemma tá bom como sempre, mas não considero este como um dos melhores filmes dele. O Tonino Valerii voltou a trabalhar com o astro logo após o filmaço ''O Dia da Ira'', esse sim uma obra-prima que está entre as melhores do gênero.
Eu queria saber se o sobrenome ''Willer'' é em homenagem aos quadrinhos do Tex Willer. Pode muito bem ser, nesta época Tex fazia-se um grande sucesso na Itália, e como o filme e o diretor são de lá, seria natural que tenha sido mesmo dessa forma. Curioso que o Gemma encarnaria no papel do ranger muitos anos depois, quando tardiamente o HQ ganhou um filme.
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Wesley 3 anos atrás
Um dos grandes clássicos como sempre de Giuliano Gemma. Filme de 1968 ou 69 se não me engano, e que pegou o caso do assassinato do presidente Kennedy para desenvolver a trama. É um faroeste espaguete que traz um cenário e um clima semelhante a 'Era uma vez no Oeste' e 'Meu Nome é Ninguém'. Traz temas políticos, conta com trilha sonora de Luis Bacalov (o mesmo que compôs a trilha de Django, 1966). A música é belíssima como uma verdadeira orquestra. Boas cenas de ação e lutas. Destaque para aquela em que Gemma e Benito Stefanelli trocam tiroteio no escuro.
5/4/22
As meninas, 1995, Emiliano Ribeiro
O filme no iutubi aqui
As Meninas é um filme brasileiro de 1995, um drama dirigido por Emiliano Ribeiro. Com roteiro baseado na obra homônima da escritora Lygia Fagundes Telles, teve Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz nos principais papéis.
O filme garantiu ao trio de protagonistas o prêmio compartilhado de Melhor Atriz no Festival Internacional de Cinema de Cartagena, na Colômbia. [carece de fontes] Também rendeu à Cláudia Liz o prêmio na mesma categoria do Festival de Cinema Latino-Americano de Cuba.
Durante a ditadura militar no Brasil, Lorena, Lia e Ana Clara, três universitárias de condição social e origens diversificadas, se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo. Apesar das diferenças de valores e personalidades, tornam-se muito amigas, compartilham seus dramas e sonhos e ajudam-se, até o dia em que têm de se separar definitivamente. Wik
Roda Viva | Lygia Fagundes Telles
Você Escolheu #32: As Meninas (Lygia Fagundes Telles) | Tatiana Feltrin
8/4/22
Hans Staden, 1999, Luís Alberto Pereira
MARCELO COELHO São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2000
Neutralidade é qualidade em "Hans Staden"
Noto uma certa prevenção contra o filme de Luiz Alberto Pereira, "Hans Staden", em cartaz no Espaço Unibanco. Fui ver o filme porque as críticas, em geral, tinham um tom desfavorável.
Do meu ponto de vista, filmes ruins inspiram mais artigos do que filmes bons. É mais interessante perceber erros e contradições do que extasiar-se diante de uma obra-prima.
Minha dupla expectativa -a de ver um filme ruim e a de escrever um artigo interessante- foi contrariada. "Hans Staden" não é, nem de longe, um filme ruim. Tento escrever um artigo apesar disso.
A história do filme é conhecida: um aventureiro alemão, a serviço dos portugueses, é aprisionado por índios amigos dos franceses. Os índios ameaçam devorar o rapaz. Ele sobrevive, não sem antes presenciar um ritual de canibalismo.
Como sobrevive? No filme, vemos que alguns lances de sorte o beneficiam; que o tempo ritual, exigido antes que se dê a devoração, corre a favor da vítima; e que mesmo milagres acontecem.
Pouco importa. "Hans Staden" é um filme que joga, que oscila entre a verossimilhança e a implausibilidade. Nada mais real, nada mais perfeito, do que o retrato que faz dos costumes indígenas. Nada mais estranho do que o fato de Hans Staden sair são e salvo da aventura.
Tudo se mostra resultado do acaso. Eis a maior virtude, e o maior defeito, do filme.
É claro que todo espectador, ou pelo menos todo crítico de cinema, espera de "Hans Staden" alguma densidade simbólica. Num momento em que se comemoram os 500 anos do Descobrimento do Brasil, seria inevitável ver no caso de Hans Staden uma metáfora, uma alegoria do encontro entre índios e brancos; uma "releitura", como se diz, da antropofagia oswaldiana.
O problema é que "Hans Staden" nada oferece nesse nível de interpretação. Não é alegórico. Não indica as intenções do autor. O filme é neutro. Conta o que aconteceu, nada mais.
Desconfio que seja esta a razão de seu malogro junto à crítica. "Hans Staden" limita-se ao relato factual. Em nenhum momento percebemos as "intenções" do diretor. O crítico de cinema fica atônito diante de obra tão dura, tão objetiva, tão parca em significados e intenções de autor.
Mesmo o desempenho de Carlos Evelyn, no papel-título, foi mal interpretado. Ele não sugere nenhuma indicação ao Oscar, exatamente porque seu papel, como protagonista do filme, não é o de um herói. Nem mesmo o de uma vítima. Ele é antes um objeto ritual.
Condenado ao ritual antropofágico, Hans Staden se vê destituído de subjetividade. Não é o homem branco enfrentando a barbárie nem o bárbaro ocidental punido pela autenticidade vitimada dos índios. O filme é neutro; Carlos Evelyn é um mero objeto de sua situação, à qual reage de forma imitativa. É tão estranho quanto um índio.
Essa, no fundo, é a originalidade de "Hans Staden". Os atores falam em tupinambá, em francês, em alemão... Há legendas o tempo todo. Os índios não são bons nem maus: são simplesmente estranhos. Riem e choram na hora errada.
O que "Hans Staden" projeta, na sua cuidadosa antropologia, em sua excelente produção, é uma frieza que tem tudo para afastar o espectador das salas de cinema. Narra um episódio, simplesmente. O episódio está tão distante das habituais "interpretações do Brasil", furta-se tanto à miragem do "significado", que é natural a rejeição de críticos e espectadores à obra filmada.
Ao contrário, fico pensando no seguinte. O auê em torno dos 500 anos do Descobrimento tem sido um pretexto para indagarmos sobre a questão de nossas origens, dos padrões de continuidade que se estabeleceram a partir da herança colonial.
O grande mérito de "Hans Staden" é o de se esquivar de qualquer reconhecimento, de negar qualquer padrão de continuidade entre o que ocorria em 1560 e o que acontece agora. É um filme sem metáforas. Nesse sentido, é progressista e realista.
Não incorre no vício elegíaco e autoflagelante de uma "essência brasílica" deturpada pela civilização européia. Não tem heróis. Hans Staden é tão índio quanto os índios. Os índios são mais estranhos do que supomos, os europeus também.
O que o filme faz é marcar a distância, enorme, entre 1560 e 2000. Essa distância dói no espectador, no crítico, predisposto a ilações de continuidade e a raciocínios antropologizantes.
Não, "Hans Staden" se recusa a qualquer intuito de identificação. Mesmo porque a questão da identidade nacional se dissolve na trama do filme: Hans Staden nega ser português, passa por ser súdito do rei de França, no fundo é alemão, no fundo é tupi.
É como se "Hans Staden" recusasse todos os raciocínios celebratórios em torno do Brasil. Diz apenas: "Foi desse jeito".
Seu objetivismo conduz à falta de empatia. O filme é interessante, mas não emociona. Recusa-se a todo raciocínio fácil em torno da questão "o que é o Brasil". Talvez isso seja um sinal de maturidade.
Estamos tão entupidos, neste ano 2000, de interpretações, de visões retrospectivas, de culpabilizações históricas, de raciocínios a respeito do Brasil, que é sinal positivo dessa overdose a existência de um filme neutro, distante, frio, como "Hans Staden". Libera-nos de nosso passado. Nada pior do que cultuá-lo: mesmo o espírito crítico assume ares de exaltação nestes dias de exaltação. O filme aposta mais em Kafka do que em Oswald de Andrade. Já é um progresso.
Hans Staden (Hans Staden)
Como era gostoso o meu alemão
Hans Staden, por Luiz Alberto Pereira
Hans Staden wiki
10/4/22
Quelé do Pajeú, 1970, Ansemo Duarte
O filme no iutubi aqui
Quelé do Pajeú, all’ italiana
Luiz Carlos Merten , 03 de dezembro de 2020
No livro com a entrevista que me deu para o livro da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial, Anselmo Duarte falou muito bem de Quelé do Pajeú. Gostava do filme que fez a partir do roteiro de Lima Barreto, o cineasta, contando a história de Quelemente e de sua vingança contra o homem que estuprou sua irmã. Crimes de honra fazem parte da dramaturgia nordestina – brasileira.
Por problema de custo, Anselmo filmou perto da região de Salto, onde vivia, simulando a paisagem do Nordeste, o que o próprio Lima já havia feito, filmando O Cangaceiro no interior de São Paulo, nos anos 1950. Quelé põe o pé na estrada e Anselmo conceitualizava sua mise-en-scène. Filmou com uma teleobjetiva de 250 mm e a lente zoom para dar essa impressão de que Quelé anda, anda sem sair do lugar, preso a uma estrutura social que o paralisa.
Por que estou exumando Quelé do Pajeú? Porque, no outro dia, assistia a The Musketeers na TV Brasil e entrou um horário retrô de cinema nacional, justamente com o filme do Anselmo. O curioso é que um letreiro informava de cara a dificuldade da produção para encontrar cópias razoáveis do filme, permitindo seu restauro. A melhor cópia, que a TV Brasil apresentava, veio da Itália, com legendas em italiano, o que terminou sendo uma experiência inesperada. Tarcísio Meira, Rossana Ghessa, Jece Valadão, todos legendados em italiano. Com o acréscimo da zoom, a sensação era de assistir a um spaghetti western. Elisângela, bem novinha, faz a irmã deflorada. Bastou zapear para viajar no tempo e reencontrar Elisângela como a mãe de Juliana Paes em A Força do Querer. François Truffaut adorava essas coincidências. Elisângela pariu Juliana como a filha de Jece? As datas não coincidem, nem na ficção. Quelé é de 1969, Juliana nasceu dez anos depois.
QUELÉ DO PAJEÚ -Brasil, 1970
Direção Anselmo Duarte – elenco: Tarcísio Meira, Rossana Ghessa, Jece Valadão, Sérgio Hingst, Elizangela, Guy Loup, Luiz Alberto Meirelles, Jorge Karam, Anita Esbano, Simplício, Ravina, Maurício Gracco, Nhô Juca, Regina D. Paris, Reginaldo Vieira, Geraldo Vandré – 115 minutos
Apoiado num esquema de produção de categoria internacional, a narrativa caminha em linha reta num trabalho artesanal seguro e atraente. (Jornal do Brasil)
Domingo, 22 de outubro de 2017, Atila Francis
Um excelente filme, com grande atuação do protagonista Quelé (interpretado por Tarcísio Meira) e de todo o elenco, em especial do antagonista Cecílio (caracterização de Jece Valadão). Essa obra produzida em 1970 mostra, além do "caminho do herói" Quelé, todo um contexto do sertão brasileiro da primeira metade do século XX. A trama é bastante movimentada e interessante - prende a atenção do espectador, e o deixa motivado a saber o desfecho da trajetória do herói.
Mostra também o clima do sertão nordestino, a aridez, o sofrimento da vida do sertanejo, a pobreza e as mazelas sociais pelas quais sofrem desde os tempos mais antigos. Quelé tem uma trajetória tensa, tortuosa, cheia de desatinos e infelicidades. Ele se depara com todo tipo de figura em sua jornada para fazer justiça após a maldade desonrosa cometida por Cecílio contra sua Irmã caçula: Marizolina. Ele se vê envolvido com bandidos, miseráveis, policiais, cangaceiros etc. No elenco a presença marcante de Rossana Ghessa, que faz Maria do Carmo, o amor da vida de Quelé. O final tem um caráter épico com o protagonista encerrando a sua "jornada do Herói" lutando contra tudo e todos de maneira emblemática. E propõe que o caminho do protagonista seja não apenas um caminho individual, mas um caminho de insurreição coletiva.
Guy Loup e Tarcísio Meira em Quelé do Pajeú (1970)
Lima Barreto, o cineasta, era também escritor e um de seus livros foi exatamente “Quelé do Pajeú”, que ele tencionou levar ao cinema. Excêntrico e de temperamento difícil, o que se refletiu em dificuldades de produção em todos seus projetos inclusive no bem sucedido artística e comercialmente “O Cangaceiro” (1953), Lima Barreto viu fracassar a tentativa de transformar “Quelé do Pajeú” em filme. Escreveu o roteiro e com ele debaixo do braço saiu em busca de financiamento, mas aos 63 anos de idade e cada vez mais irascível, viu todas as portas se fecharem.
O roteiro de Lima Barreto chegou às mãos de Anselmo Duarte que leu e imediatamente se interessou em filmá-lo, impondo a condição de fazer algumas alterações na história, com o que a princípio Lima concordou. O terceiro filme de Anselmo Duarte, “Veredas da Salvação” (1965) não havia repetido o êxito comercial de “O Pagador de Promessas” (1962), mas mesmo assim Anselmo conseguiu apoio financeiro de pessoas físicas e jurídicas. Além do Instituto Nacional do Cinema (INC), nada menos que sete bancos decidiram investir no projeto, assim como gente conhecida como o colunista social Ibrahim Sued e o crítico carioca Carlos Fonseca. Com um bilhão de cruzeiros para seu novo projeto, Anselmo Duarte não teve dificuldades em contratar Tarcísio Meira, já então o mais famoso galã da televisão e a atriz Izabel Cristina (que mudou o nome para Guy Loup) igualmente conhecida, além de Jece Valadão e Rossana Ghessa para os principais papéis. Lima Barreto pretendia filmar “Quelé do Pajeú” no sertão pernambucano buscando maior autenticidade, mas Anselmo levou a equipe para a sua cidade natal, Salto de Itú, uma espécie de Alabama Hills cabocla, onde o filme foi quase inteiramente rodado.
Rossana Ghessa, Sérgio Hingst, Tarcísio Meira e Jece Valadão em Quelé do Pajeú (1970)
O filme estava considerado irremediavelmente perdido. Até que uma cópia foi encontrada na Itália. Rever o filme quase 50 anos depois de sua realização, permite ao espectador preencher mais uma peça do enorme quebra-cabeça que é o cinema brasileiro, e permite também reavaliar a produção de cinema dos anos 1960, esse turbilhão, especialmente na relação entre o “cinema novo” e um cinema de matiz mais comercial. Anselmo Duarte, o diretor, por muito tempo permaneceu entre “a cruz e a espada” no cinema brasileiro, entre “o céu e o inferno” e entre “Deus e o Diabo”, desde que filmou “O Pagador de Promessas” (1962). Todos esses termos são usados como analogia não apenas à posição do Anselmo na trajetória do cinema brasileiro, mas aos temas colocados por alguns de seus próprios filmes.
Aclamado como uma obra surpreendente, misteriosa e atemporal, “Quelé do Pajeú” é um filme comparado a alguns westerns de Anthony Mann e Sergio Corbucci. O espaço é o amplo sertão nordestino, a peregrinação é um deslocamento físico entre inclusive diversos estados, entre Alagoas e Pernambuco. Um dos conflitos na história é entre o verde e a seca: a vegetação é um dos mais formidáveis elementos de “mise en scene” desse notável filme, que usa a base do cinema clássico, com uma enorme produção em termos financeiros, finalizada em 70 mm. Usa a base do cinema de gênero (o western, o “filme de cangaço”), e claramente dialoga com o cinema italiano (o western italiano), semelhança aumentada pela coincidência do destino de a cópia recuperada ser legendada em italiano. É um filme absolutamente importante sob muitos aspectos. A “historiografia clássica” do cinema brasileiro está sendo redescoberta e reavaliada por toda uma geração nos últimos anos e “Quelé do Pajeú” certamente é uma dessas obras valiosas.
Uma aventura narrada em linguagem simples e universal, capaz de prender o espectador na poltrona da primeira à última cena. (Jornal Última Hora)
10/4/22
Por uma Mulher Má, The Man Who Cheated Himself, 1950,
O filme no iutubi aqui
O Tenente Ed Cullen testemunhou sua amante assassinar seu marido. Diante da situação, Ed se vê forçado a ocultar o crime. Mas as coisas acabam não sendo tão simples e fáceis como ele queria que fossem.
Instagram Sylvio Gonçalves
11/4/22
Ruptura, Severance, Série de TV, 2022, Bem Stiller e Aoife McArdle
Crítica | Ruptura – 1ª Temporada
Ratos de escritório.
por Kevin Rick em 10 de abril de 2022
Ruptura é uma série conceitualmente fascinante, partindo de uma premissa em que Mark (Adam Scott), concorda com um programa pelo qual suas memórias são divididas entre sua vida no trabalho e sua vida doméstica, basicamente criando duas versões da mesma pessoa. Em miúdos, temos um Mark que perde 8 horas diárias da sua vida para lidar da maneira menos saudável possível com a morte de sua esposa, e também temos outro Mark que passa cada minuto da sua existência trabalhando. A base de ficção científica tem traçado muitas comparações com Black Mirror, e, apesar de entender a conexão das obras, acredito que Ruptura é menos uma crítica à tecnologia e nossas dinâmicas com ela, e bem mais uma alegoria em forma de metáfora para a prisão corporativista e a rotina exaustiva que grande parte das pessoas vivenciam.
A obra dispõe de uma linguagem visual engenhosa para enfatizar a proposta temática. O design de produção cria o ambiente asséptico e desprovido de vida na empresa Lumon, com corredores brancos que passam a impressão de que os personagens são ratos de laboratório num labirinto interminável e também a forma claustrofóbica de alguns cenários, desde os cubículos estreitos até o elevador apertado, assim como temos grandes espaços em vácuo nos departamentos que dão uma sensação enervante de vazio. Também acho interessante a escolha por uma arquitetura meio moderna, até meio futurística eu diria, misturada com elementos de escritório dos anos 60, 70 e 80 (os computadores de caixotes, o alto-falante do conselho) que dão ao ambiente um aspecto diegético fora do tempo e com linhas de fantasia realista, além de alguns momentos levemente embebidos de um suspense macabro/surrealista como na “Sala de Descanso”, na obsessão visual por pinturas, na iluminação por sensor de alguns corredores e, claro, num departamento que cria cabras.
Existe um cuidado visual e textual fora do comum para criar em Lumon uma prisão alegórica, mas é a direção de Aoife McArdle e principalmente Ben Stiller que criam a atmosfera ao redor do ambiente. O primeiro episódio dirigido por Stiller é formalmente primoroso, ditando o tom do restante da temporada. A direção foca num certo desconforto do escritório em sua simetria inquietante, planos uniformes e propositalmente tediosos (como os dos personagens eternamente percorrendo os corredores), e uma separação distinta de tons entre o aspecto superficialmente perfeito, brilhantemente branco e quase intocado dentro de Lumon contrastando com o mundo escuro e planos disformes fora das paredes. Também há de se elogiar a fotografia, figurino e a paleta de cores da produção, que trazem uma “desestilização” da Lumon em seu estilo mudo e sem vida (como escritórios normalmente são), que deixa a audiência numa percepção imersiva de labuta e rotina. Tudo isso acompanhado por uma trilha sonora de melodia simples, mas incrivelmente sinistra.
Estou focando bastante em aspectos mais técnicos, pois fiquei deslumbrado em como Ruptura cria uma forma de mitologia e uma história quase ritualística em torno do escritório, desenvolvendo a cultura de Lumon como um universo próprio. Todo o lance com o criador Kier, o manual e as diferentes punições funcionam como uma espécie de doutrinação diluída em alfinetadas e reflexões sobre a divisão de vida pessoal/laboral e as práticas infernais do corporativismo e a hierarquia do mercado de trabalho que lentamente sugam as pessoas. Essas escolhas visuais são consequências diretas do roteiro ácido, satírico e ambíguo do criador Dan Erickson, bastante interessado em nos situar no cotidiano absurdo na Lumon (notem o tom paciente e a queima lenta da narrativa) e na construção de um microcosmo para tocar de maneira profunda em temas como luto, identidade, cotidiano e moralidade.
Também é notável a versatilidade e domínio geral da história de Erickson e sua equipe de roteiristas. De forma mais ampla, o autor envolve a ficção científica para fazer um estudo psicológico dos personagens e também de dinâmicas sociais, e, como já disse, a proposta da série também se concentra na cultura do ambiente. Nesse sentido, podemos ver o tratamento cômico da obra, como nas interações constrangedoras e no humor ácido em Lumon (a festa do Dylan é um exemplar fantástico disso), e também no cerne absurdista da situação toda. Mas é especialmente formidável como Erickson gradualmente molda a narrativa num enredo de conspiração, inserindo elementos de thriller e suspense com reviravoltas bem compostas e orgânicas, mistérios calmamente expostos e até um processo investigativo engajante, segmentado entre as descobertas dos diferentes mundos de Mark e companhia.
Sem dúvidas, Ruptura é uma das melhores séries que assisti nos últimos anos. Desde o cuidado técnico para nos investir na alegoria e no mistério, do subtexto crítico e filosófico em torno de temas profundamente realistas, até os arcos dos personagens empáticos, a obra gira muitas ideias e aborda muitos elementos para oferecer uma experiência fascinante. No meio de tanta qualidade na produção, acabei deixando de falar das ótimas atuações, em especial de Adam Scott, que transita de maneira soberba entre as diferentes “versões” de Mark, mudando postura e leves nuances para nos identificarmos com seus diferentes conflitos. Um universo sedutor, dramas reflexivos e uma narrativa compulsiva, Ruptura entra no cenário de melhores obras da telinha na atualidade.
Ruptura (Severance) – 1ª Temporada — EUA, 2022
Criação: Dan Erickson
Direção: Aoife McArdle, Ben Stiller
Roteiro: Dan Erickson, Andrew Colville, Kari Drake, Anna Ouyang Moench, Amanda Overton, Helen Leigh, Chris Black
Elenco: Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Jen Tullock, Dichen Lachman, Michael Chernus, John Turturro, Christopher Walken, Patricia Arquette
Duração: 09 episódios de aprox. 40-60 min.
CERTEZA QUE VOCÊ NÃO VIU A MELHOR SÉRIE DO ANO! | Ruptura (Severance, 2022) 1ª Temporada
RUPTURA (Severance): Sucesso do momento! | Crítica - Temporada 1
13/4/22
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972, Rainer Werner Fassibinder
O filme no iutubi aqui
Crítica | As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972)
por Luiz Santiago em 24 de novembro de 2014
Se o cinema de R.W. Fassbinder vinha sendo acusado de misoginia desde a sua maior projeção no cenário europeu, no início dos anos 1970 — as obras-alvo eram Os Deuses da Peste (1970), Pioneiros em Ingolstadt (1971), Whity (1971) e Precauções Diante de uma Prostituta Santa (1971) — depois do lançamento de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant no Festival de Berlim, em junho de 1972, essa acusação virou motivo de discussão recorrente para uma porção de críticos, estudiosos das mais diversas áreas, feministas e entusiastas da representação da mulher ou da (homo)sexualidade feminina no cinema.
Foi a partir de Petra Von Kant que Fassbinder se entregou de corpo e alma aos roteiros que mostravam quase exclusivamente personagens femininas em conflito com os mais diversos ambientes dramáticos, fase de sua carreira marcada pela influência dos melodramas de Douglas Sirk que já havia, inclusive, pautado o seu filme anterior, o fantástico Comerciante das Quatro Estações (1971).
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Personificação da Amargura
Em Petra Von Kant temos o primeiro grande exercício estético e cênico de Fassbinder, que adapta com louvor a própria peça para as telonas, quase sem mudar o texto original. Na trama, Petra é uma estilista viúva e divorciada que tem uma filha em um colégio interno e uma auxiliar/serva com um comportamento emocional masoquista. Quando uma desconhecida chamada Karin entra em cena, Petra se apaixona perdidamente e isso será a sua ruína, situação deplorável que é assistida pelas outras mulheres que a rodeiam: sua serva muda Marlene, a filha Gabriele, a mãe Valerie e aquela que parece ser sua única amiga, Sidonie von Grasenabb (uma personagem-homenagem do diretor para a obra literária que ele filmaria em 1974, com o nome de Amor e Preconceito).
O ambiente em que a trama ocorre é a casa de Petra, cenário minuciosamente explorado e que cobra do elenco marcações precisas. O mesmo vale para a câmera de Michael Ballhaus, que adota aqui uma linha de movimentos econômicos, quase inacreditáveis se considerarmos o ambiente relativamente pequeno e a elegância e engenhosidade com que são executados, sempre deixando antever um cômodo adiante, um espelho ou o contraponto do diálogo em andamento… tudo isso sem quebrar a imagem-símbolo permanente da obra: uma mulher em cena ou a caminho do enquadramento que destacará o seu tormento.
No início do filme o ritmo é reticente e pouco agradável, mas felizmente essa construção se dissipa cedo e a obra só evolui a partir daí. Após a primeira entrada de Sidonie, o texto ganha força e aborda de diversas maneiras a opressão amorosa, a condição de dependência financeira e emocional e tênues relações entre as pessoas, marcadas mais pelo compromisso social do que por um verdadeiro sentimento fraterno — lembremos que o cinema de Fassbinder, desde seu curta O Pequeno Caos (1966), foi pontuado pelo pessimismo, pelo desamor e pela incapacidade das pessoas em manterem relações sem segundas intenções (para dizer o mínimo). Tudo isso cercado por um ambiente histórico em constante mudança e moralmente questionável, proposta firmada com corpo crítico já em seu primeiro longa, O Amor é Mais Frio que a Morte (1969) e que se arrastou no campo histórico/social/político até O Desespero de Veronika Voss (1982) e no campo exclusivamente humano/sexual até seu último filme, Querelle (1982).
A insatisfação com a vida e a repressão sexual estão entre os sentimentos imperativos em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, sentimentos que vemos agonizar na tentativa patética das personagens, especialmente Petra, em chegar a um cenário onde possam conseguir ou fingir algum prazer. As personagens buscam algo ou chegam a algum lugar trilhando um caminho cheio de amargura e sofrimentos para si e para os que estão ao seu redor, como podemos comprovar na ciranda de sublimações e dores a seguir: Karin usa Petra para se lançar no mundo da moda e volta para o marido assim que ele chega à cidade. Sidonie vive em um casamento baseado no jogo d’A Megera Domada. Gabriele tenta de todas as maneiras conseguir a atenção e o amor da mãe. Valerie fica horrorizada ao saber que a filha se apaixonou por alguém do mesmo sexo e bloqueia suas frases ácidas e gritos histéricos.
Essa temática do vampirismo social se tornará bastante complexa após a quebra do relacionamento entre Karin e Petra, não só quando a analisamos pelo viés da pulsão sexual mas também quando trazemos à tona o fator emotivo. Petra, que se mostrava um algoz para Marlene — a serva que gostava de ser maltratada — acaba amadurecendo, passa a ver o mundo e as pessoas (a primeira delas, Marlene) de uma outra forma. Mesmo que sua independência emotiva em relação a Karin não exista, um outro aspecto de sua vida foi completamente transformado. Petra enfim conheceu o seu lado humano. E como era de se esperar, sofreu por isso.
É aí que a pontualíssima música incidental entra: como um marcador dos momentos de transformação, um verdadeiro divisor de atos representados visualmente por fades pretos.
Na abertura, Smoke Gets Into Your Eyes (The Platters) introduz o quase-abandono de Petra, mas deixa em aberto a possibilidade de mudança para melhor, afinal, o pessimismo da estilista é, nesse início, apenas uma imponente máscara, uma pintura como a de Midas e Dionísio, de Nicolas Poussin, que toma conta da parede de sua casa. Sua feição e tristeza iniciais são apenas a pose fixa de velhos tempos, de uma alma marcada por uma viuvez e um divórcio, de uma vida de obrigações pouco importantes para com a família, esnobismo em relação a amigos e colegas e certo desprezo por si mesma.
Na sequência temos In My Room (The Walker Brothers), uma espécie de continuação temática do sentimento imperante no “ato” anterior. Aqui há um longo diálogo entre Petra e Karin onde o flerte se estabelece, uma precoce declaração de amor vem à tona e a câmera brinca destacando os manequins da sala — ironia fassbinderiana –, outro iingrediente simbólico a fazer par com a grande pintura de Poussin.
Quando a tragédia vem à tona e Petra encontra o seu mais baixo ponto emocional, ouvimos explodir de maneira dolorosamente irônica a ária Un dì Felice, Eterea (Giuseppe Verdi), da ópera La Traviata. Neste ponto, a direção de Fassbinder alcança o seu auge, mostrando extremo domínio do claustrofóbico espaço que tem para trabalhar e a relação operística que consegue imprimir ali. A cena expõe de maneira definitiva os closes silenciosos em Marlene através do deslocamento cuidadoso da câmera, obrigando algumas atrizes a se deslocarem estrategicamente para certos pontos do cenário e em seguida obrigando-as a se mudarem novamente (isso é que é mise-en-scène!), mas fixando Petra em um único ponto, obrigando a câmera a rodeá-la e observá-la por longos planos em ângulos diferentes.
Como no caso anterior, onde a segunda canção-ato seguia dramaticamente a primeira, temos The Great Pretender (The Platters), que fecha a saga deixando Petra sozinha, no escuro, possivelmente pronta para fingir que está tudo bem após o conflito com mãe, filha e amiga; após o rompimento com a amante Karin e após a partida definitiva de Marlene, que de maneira muito curiosa, leva embora a “boneca-amante” que Petra recebera de aniversário.
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Outono Sentimental
À medida que os “atos” passam, vemos um destaque maior ou menor para algumas cores na tela, mas existe uma paleta outonal imperante no filme, inspirada em Tudo o que o Céu Permite, que se destaca com grande beleza durante toda a projeção. Nesta paleta temos como essenciais as cores laranja, amarelo (geralmente em tons de ouro) marrom, preto e branco – com alguns rompantes de vermelho. O curioso é que enquanto o cenário marca de maneira mais ou menos sutil o avanço dos sentimentos, os figurinos de todo o elenco e as perucas que Petra usa em cada um dos quatro “atos” servem como uma espécie de contraste de personalidades. Dentre esses blocos, o mais chocante e esteticamente admirável é o da longa sequência final, com o desespero de Petra ao som de Un dì Felice, Eterea.
As visitas que chegam uma atrás da outra usam um figurino de cores contrastantes entre si e com a atmosfera da casa, criando uma pequena variação de personalidades através de mini-paletas, correspondendo também aos sentimentos de cada um. Perceba o comportamento anacronicamente infantil de Gabriele e a roupa de estilo cartoon que ela está usando, um colete amarelo com gravata roxa, o verdadeiro símbolo da ingenuidade.
Existem apenas duas figuras masculinas em meio às mulheres no set de Petra Von Kant. A primeira é o deus Dionísio (o deus que representa o lado intoxicado do homem, o seu lado destruidor, desrespeitoso, bêbado), sempre com o sexo nu e em destaque na pintura de Poussin. A segunda, do próprio Fassbinder, que brinca com o feito de Alfred Hitchcock em Um Barco e Nove Destinos (1944) e se coloca num cameo fotográfico no jornal que Petra recebe pela manhã.
Também no campo das homenagens vale citar a declarada indicação ao longa A Malvada (1950), de Joseph Mankiewicz, que aparece como um personagem fictício, amigo de Petra, para quem Marlene datilografa uma carta lamentando um empréstimo que demoraria ser pago. E para finalizar, a belíssima homenagem feita a Persona (1966) de Ingmar Bergman, no momento em que as cabeças de Petra e Karin se cruzam como se fossem misturar-se uma com a outra e tornar-se a de uma única mulher.
Contando com um elenco de altíssima qualidade que faz um trabalho cênico para se aplaudir de pé — destaque absoluto para Margit Carstensen no papel principal – Fassbinder realiza em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant um filme sobre desejo, poder e amor no seio da elite (ele abordaria o mesmo tema em outro espaço social no longa O Direito do Mais Forte é a Liberdade, em 1975), onde alguma coisa urgente e negativa sempre parece que está para acontecer no espaço barroco e aparentemente calmo que é a casa da personagem-título.
Essa urgência nos é apresentada pelo aborrecimento e possivelmente premeditação da tragédia vinda através do datilografar constante de Marlene (que substitui os tambores messiânicos ouvidos em A Viagem de Niklashauser). A própria personagem serve como ponto final desta fase da vida de Petra, abandonando a máquina de escrever e a presença muda em cena, deixando a patroa que antes a dominava e que de repente resolveu deixar o poder sobre ela de lado, entregue à escuridão de suas lágrimas amargas. A busca por uma nova “senhora”, para todas as personagens do longa, começa quando a luz se apaga.
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant) – Alemanha Ocidental, 1972
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder (adaptado de sua própria peça)
Elenco: Margit Carstensen, Hanna Schygulla, Katrin Schaake, Eva Mattes, Gisela Fackeldey, Irm Hermann
Duração: 124 min.
Rainer Werner Fassbinder (1945–1982) - tradução livre
Acima de tudo, Rainer Werner Fassbinder era um rebelde cuja vida e arte eram marcadas por grosseira contradição. Abertamente homossexual, ele se casou duas vezes; uma de suas esposas atuou em seus filmes e a outra serviu como seu editor. Acusado de vários detratores de serem anticomunistas, machistas, antissemitas e até antigos, ele completou 44 projetos entre 1966 e 1982, a maioria dos quais pode ser caracterizado como melodramas sociais altamente inteligentes. Sua prodigiosa produção foi comparada por uma libertinagem selvagem e autodestrutiva que lhe rendeu uma reputação como o terrível enfant do Novo Cinema Alemão (assim como sua figura central.) Conhecido por sua marca registrada jaqueta de couro e aparência grunhido, Fassbinder cruzou a cena do bar à noite, procurando sexo e drogas, mas ele manteve uma ética de trabalho impecável durante o dia. Atores e atrizes relatam histórias perturbadoras de sua brutalidade em relação a eles, mas suas imagens demonstram sua profunda sensibilidade aos desajustados sociais e seu ódio à violência institucionalizada.
Alguns acham seu cinema desnecessariamente controverso e vanguardista; outros o acusam de se render ao ethos hollywoodiano. É melhor dizer que ele arrancou fortes reações emocionais de tudo o que encontrou, tanto em sua vida pessoal quanto profissional, e essa natureza provocativa pode ser experimentada postumamente através da revisão de seu legado artístico. (...)
15/4/22
O Traidor, Il traditore, 2019, Marco Bellocchio
'O Traidor' de Bellocchio é implacável com a sina de Tommaso Buscetta
Grande cineasta italiano relembra mafioso que se exilou no Rio de Janeiro e ousou romper com a 'famiglia'
Inácio Araujo, FSP, 14/4/22
Um mafioso é alguém que sabe onde pisa. O que ele não sabe é como será seu próximo passo. Será sobre uma mina deixada pelo inimigo ou sobre uma mina de dinheiro? Sobre um abismo? Essa imprevisibilidade já aparece na primeira entrada de Tommaso Buscetta —a pronúncia é algo como "busxeta", e não "busqueta", como queria a Rede Globo, para evitar algum constrangimento em seus jornais.
Enfim, Buscetta está um pouco à margem numa reunião-festa da Cosa Nostra siciliana. É uma reunião onde se tenta acomodar os interesses de dois grupos rivais, e uma festa porque do lado de fora estão as mulheres, as famílias, os mafiosos sem posto de chefia.
Tommaso contempla tudo aquilo com certa inquietação, volta-se e topa com árabes decorativos que cercam a festa. Abre a vestimenta de um deles e encontra uma arma pouco animadora —o segurança da festa seria o segurança de quem, afinal?
A máfia pode ser segura para os mafiosos. Ele faz um juramento de fidelidade ainda jovem e deve seguir assim a vida inteira. Trata-se, portanto, de uma segurança bem insegura.
Buscetta, que se tornou bem conhecido dos brasileiros nos anos 1980, por ter sido preso no Rio de Janeiro, encontrava-se numa espécie de exílio entre nós. Sentiu o cheiro de queimado após a última conciliação entre os grupos rivais. Além do mais, sua mulher era brasileira e ele era um especialista em relações internacionais mafiosas —digamos assim.
Estar no Brasil podia protegê-lo, mas não ao seu grupo, que começou a ser dizimado pelo grupo de Totó Riina. Os massacres sofridos pela gente do "capo" Stefano Bontate nessa disputa incluíam, entre outros, os filhos de Buscetta que haviam ficado na Itália.
Preso no Brasil, torturado barbaramente, conforme o hábito nacional, Buscetta termina deportado e, na Itália, decide falar sobre a máfia. Ou seja, ele rompe a longa tradição de silêncio solidário entre os membros da organização.
Não é muito crível sua alegação de que o fez porque a Cosa Nostra passou a negociar com heroína. É mais plausível acreditar que Tommaso tenha querido contar sua história ao juiz Falcone. Por sentir confiança nele, talvez.
Não importa —era necessário que dissesse o que é pertencer à Cosa Nostra, ser um mafioso, seus direitos, riscos e deveres (deveres, sobretudo), dores e prazeres. O que significam a "famiglia" e a família.
Esse é também o ponto central de Marco Bellocchio em "O Traidor". Não se trata de investigar a máfia, o que faz ou deixa de fazer, mas as repercussões de seu modo de ser (tipo sociedade secreta) sobre seus membros. Em que é afetada a vida de um homem que, por exemplo, recebe a missão de matar outro homem e deve executá-la mesmo que para isso leve 20 ou 30 anos. Ou que vê sua descendência ameaçada de extinção pelo simples fato de ser sua descendência.
O que significa no caso de um delator como Buscetta evadir-se, fugir de uma organização que, sabe, o perseguirá onde quer que esteja. Entre as cenas mais notáveis do filme está aquela em que, num canto escondido dos EUA, Buscetta topa ir a um restaurante com a família, mas quando um cantor se aproxima entoando uma canção, uma música italiana, ele se retira imediatamente —aquilo não soa como música, mas como ameaça.
A arte de Bellocchio, salvo erro o último representante vivo da última grande geração de cineastas italianos, consiste aqui em encontrar, isolar e desenvolver os pontos básicos de uma atividade secreta, que conhecíamos do cinema seja na versão romântica ("O Poderoso Chefão"), seja na prosaica ("Os Bons Companheiros").
Desta vez não são os criminosos bem-intencionados de Coppola nem os boçais de Scorsese que dão as tintas. Isso parece interessar a Bellocchio tão pouco quanto a necessidade que levou à criação da Cosa Nostra. É o seu funcionamento e o de seus participantes, tal como se apresenta em determinado momento; e não qualquer momento.
Aliás, talvez o essencial do filme nem esteja nas disputas, delações ou mortes entre os mafiosos, mas nos dois fugazes encontros entre Buscetta e o primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti. No primeiro, cena antológica, encontram-se, de cuecas ambos, na oficina de um alfaiate. Na segunda, num tribunal.
Qual seria o envolvimento possível de um político importantíssimo com a máfia? Foi vítima de chantagem ou ameaça? Seu silêncio absoluto é eloquente: ele não tem o que dizer, seja qual for o motivo. É difícil saber o que é um homem que não pode falar. Tudo que "O Traidor" pode mostrar é o que acontece quando a exceção, Tommaso Buscetta, fala. E ele fala do contágio de Roma pela Cosa Nostra, da Itália pela máfia.
É ao menos o que Bellocchio mostra com clareza implacável.
O traidor Papo de cinema
“Tommaso Buscetta foi um dos mais importantes membros da Cosa Nostra, a máfia siciliana. Foi um ‘arrependido’, ou seja, colaborou com a Justiça delatando companheiros e informando o juiz Giovanni Falcone sobre as estruturas da organização e seus esquemas de corrupção de políticos”. Se essas frases parecem cordatas demais, como que extraídas da Wikipedia, a impressão é correta. E assim se dá, pois também a impressão que se tem em grande parte do desenrolar dos acontecimentos de O Traidor, longa escrito e dirigido por Marco Bellocchio, um dos grandes nomes do cinema italiano ainda em atividade. Essa sensação, presente principalmente na parte inicial da trama, felizmente se dissipa com mais intensidade na metade final, quando a história passa a se concentrar não no que o protagonista fez, mas nas consequências dos seus atos. É quando o espectador é colocado diante de um palco atraente até mesmo para aqueles não familiarizados com os eventos descritos. E é por isso, também, que o filme consegue se sobressair de uma mediocridade anunciada, indo além da mera descrição narrativa de acontecimentos que parecem há muito terem ficado no passado, mas que até hoje provocam repercussões.
A calmaria que antecede a tempestade. Quando O Traidor começa, estamos em uma festa familiar, com o protagonista rodeado de amigos, parentes e conhecidos. É momento de comemoração, mas também de rígidas regras: quando um dos filhos sai da linha, por exemplo, a reprimenda paterna vem sem meias palavras. No final, entretanto, o que importa é estarem todos juntos, e o registro fotográfico ao término da reunião deixa isso claro. A imagem eternizada, porém, diz mais a respeito do amanhã para todas essas pessoas do que tudo o que viveram até aquele instante. Pois será a última vez que serão vistas num mesmo ambiente, ainda mais em clima de confraternização. Buscetta está de partida. Aquele mundo ficou para trás, e ele busca de uma nova vida. Ao lado da esposa, a brasileira Maria Cristina, partem com os filhos menores para o Rio de Janeiro. Uma existência de contravenções e atividades ilegais parece ter ficado para trás. Obviamente, não será bem assim.
O Tommaso Buscetta que é apresentado ao espectador é um homem determinado, sem medo para enfrentar seus inimigos, disposto a enfrentar de frente seus erros e as implicações geradas por estes atos. Está em fuga, cansado de tudo aquilo, mas também pronto para olhar para frente. Quando é preso, enfim, essa visão que persegue passa a se manifestar. Ele não foi embora por medo ou insegurança. Foi por discordância. A máfia que conhecia, e teria ajudado a criar, não mais existia. Tudo havia se modificado. E não queria mais fazer parte daquilo. Tanto que, quando aceita um acordo com a polícia para revelar a verdade escondida nos bastidores, não o faz por covardia ou por lhe faltar a palavra. Assim decide proceder por não concordar com os rumos tomados por aqueles responsáveis por continuidade aos seus esforços. É quando, portanto, a verdadeira pergunta se manifesta: quem seria o real traidor? Ele, ou os que o precederam, obrigando-o a se afastar da própria casa?
Não há preparação para o que está por vir. Assim como o mundo literalmente desaba sobre Buscetta e sua família, e também sobre os mafiosos que por ele foram delatados, o mesmo se dá com a audiência. Bellocchio não se preocupa em amenizar esse processo. A contagem de mortos só aumenta, e os casos vão ficando cada vez mais assustadores – e impiedosos. Da mesma forma, os letreiros se acumulam na tela, com nomes, datas e lugares. As informações são em quantidade absurda, e qualquer um mais desatento irá se perder no meio de tanto a ser aprendido, decorado e inserido. Tudo isso pode tornar o desenrolar da trama um tanto confusa. E assim se dá, de fato. Idas e vindas ao Brasil, uma temporada nos Estados Unidos, as passagens pela Itália. As mudanças geográficas só não são mais intensas do que as alterações temporais, idas e vindas em flashbacks que nem sempre se ocupam em deixar claro como se posicionam no frigir dos fatos. Há didatismo, sim, mas em meio a um caos que nem todos conseguirão apreender de forma eficiente. O filme é resultado de um trabalho monumental, e isso às vezes pode escapar, devido à magnitude de tudo que se propõe a compreender.
Para tanto, há um ator em estado pleno de excelência à frente do elenco: Pierfrancesco Favino. Conhecido por produções hollywoodianas, como Anjos e Demônios (2009) e Guerra Mundial Z (2013), ele mostra em cena que é muito mais do que um coadjuvante de luxo, exibindo determinação, simpatia e até mesmo frustração com os rumos das suas decisões, criando um personagem complexo, mas não desprovido de intensidade. Ao seu lado, Maria Fernanda Cândido cumpre bem o papel de “Sophia Loren brasileira”, mas o filme não está interessado nela, e por isso lhe reserva poucos momentos de brilho. No mais, o espetáculo é mesmo de Bellocchio, seja nas sequências nos tribunais italianos – quando demonstra a sua genialidade, como um maestro diante de uma afinada orquestra – ou mesmo nas cenas mais íntimas, nas quais o homem por trás – e à frente – de tudo isso, enfim, se revela em todas as suas cores. O Traidor é uma obra à antiga, e como tal deve ser percebida. De difícil digestão, mas não teria como ser diferente, diante do tema que decide abordar. E por essa coragem, é digna de atenção e reconhecimento por muitos dos seus evidentes méritos.
Robledo Milani
16/4/22
O Casamento de Maria Braun, Die Ehe der Maria Braun, 1979, Rainer Werner Fassbinder
https://www.imdb.com/title/tt0079095/
O filme no iutubi aqui
Crítica | O Casamento de Maria Braun
por Luiz Santiago em 11 de julho de 2015
É possível que O Casamento de Maria Braun (1979) seja o filme mais conhecido de R. W. Fassbinder. Famoso por iniciar a Trilogia da Alemanha Ocidental*, Maria Braun acompanha a personagem-título de 1945 a 1954 – e nós sabemos exatamente o ano por causa da transmissão radiofônica da Copa do Mundo daquele ano, quando a Alemanha Ocidental foi campeã, em cima da Hungria.
A protagonista do longa é interpretada por Hanna Schygulla, que não filmava com Fassbinder desde Amor e Preconceito (1974), uma pausa feita após desentendimentos artísticos entre os dois, segundo Fassbinder, por uma “crise de estrelismo” da atriz, algo que a amizade que tinham há anos conseguiu superar, fazendo-os retomar a parceria que duraria até Lili Marlene (1981), realizado um ano antes da morte do cineasta.
Quando falamos em Trilogia da Alemanha Ocidental, falamos de filmes que não possuem uma história contínua, mas sim um tema contínuo. Os longas que formam a tríade tem protagonistas diferentes vividas por diferentes atrizes – Hanna Schygulla como Maria Braun; Barbara Sukowa como Lola e Rosel Zech como Veronika Voss –, mas todas elas são ambientadas na Alemanha pós-Guerra, onde vemos mulheres lutando para sobreviver, uma jornada que começa mais ou menos sutil aqui em Maria Braun e termina em total desesperança e agonia em Veronika Voss.
A ideia geral para o filme surgiu da parceria de Fassbiner com Alexander Kluge em Alemanha no Outono (1978), e inicialmente não possuía foco em uma personagem feminina, abordagem modificada quando o primeiro tratamento do roteiro foi apresentado aos produtores. Além da personagem feminina, havia uma forte presença histórica, a crítica ferrenha de Fassbinder ao “milagre econômico” da Alemanha nos anos 1950, que ele trata em paralelismo com a vida de Maria Braun, que passa de uma mulher que depende da figura masculina para existir (a procura patética dela no início da fita) a notável mulher bem sucedida, ecoando características da personagem de Margit Carstensen em A Liberdade de Bremer (1972).
É através dessa via política que o espectador deverá entender o filme. A relação entre os personagens, a citação dos sindicatos e seus acordos com os empresários, a presença dos militares americanos na Alemanha ocupada, todas essas iscas socioeconômicas se unem para formar um panorama de mudanças. Assim como a vida de Maria Braun, a Alemanha estava em desenvolvimento, como se tivesse nascido nos momentos iniciais do filme. Ela é o choro do bebê que ouvimos durante os créditos de abertura e cresce rapidamente à medida que alguns de seus habitantes também crescem e morrem.
Maria Braun escala camadas sociais como se fosse a única coisa capaz de mantê-la viva, a motivação que precisava para viver. Seus desejos como mulher, como pessoa, nunca foram plenamente realizados (vide o tempo que ela passa casada e a ironia do título do filme), e essa esfera profissional de sua vida parece ser uma escapatória capaz de fazê-la parcialmente feliz.
Em meio ao humor negro e negativos de fotografias dos líderes políticos da Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra (Konrad Adenauer, Ludwig Erhard, Kurt Georg Kiesinger e Helmut Schmidt, o único com fotografia positiva por ser o o Chanceler em exercício no momento em que o filme foi feito) Fassbinder revisita o universo estético de Douglas Sirk, utilizando majoritariamente câmera através de objetos e compondo planos milimetricamente ajustados em seu interior, porém, com menor impacto geral, modelo cujo objetivo era destacar unicamente as ações através de uma falsa crueza (o filme pode parecer simples a olhos pouco atentos) uma mudança em relação às obras imediatamente anteriores, Em Um Ano de 13 Luas (1978) e Despair – Uma Viagem Para a Luz (1978).
O espectador ainda pode observar claras referências a O Anjo Azul (1930) e Alma em Suplício (1945), entrecortadas a canções icônicas de Glenn Miller como Moonlight Serenade e In The Mood. O humor ácido e trágico do final é a coroação da obra e a forma que o diretor encontrou para contornar uma pequena barreira expressa pelos produtores no primeiro tratamento do roteiro, onde o suicídio de Maria Braun era evidente. Na versão filmada, porém, há a abertura para esta conclusão ou para um fatídico acidente, ocorrido por conta de um “esquecimento”. Todavia, se o espectador prestar atenção no desenvolvimento da personagem e naquele momento exato de sua vida, encontrará uma resposta que se encaixe perfeitamente.
Apesar de ter um período conturbado de filmagens e constante aumento do valor do orçamento (dizem que Fassbinder gastava muito dinheiro com consumo de cocaína, uma saída para o stress e o sono constantes, porque ele filmava Maria Braun durante o dia e escrevia o roteiro da série Berlin Alexanderplatz à noite), O Casamento de Maria Braun foi um grande sucesso de crítica e bilheteria, abrindo mais facilmente as portas para Fassbinder realizar seus filmes seguintes. Com este filme e A Terceira Geração, realizado no mesmo ano, o diretor finalizava uma década extremamente produtiva — foram nada menos que 33 trabalhos entre 1970 e 1979, e nenhum foi curta-metragem! — e adentrava na fase final de sua carreira. O Casamento de Maria Braun certamente foi um divisor de águas. Os filmes seguintes de Fassbinder seriam mais apegados à mulher e à história, à política, formando o coração dessa fase histórica que se iniciara com Bolwieser – A Mulher do Chefe de Estação (1977) e que em seu último filme, Querelle (1982), apesar do contexto, já apontava para um novo momento, que infelizmente não tivemos a oportunidade de conhecer, devido à morte precoce do diretor.
* A Trilogia da Alemanha Ocidental é composta pelos filmes O Casamento de Maria Braun (1979), Lola (1981) e O Desespero de Veronika Voss (1982). Muitas vezes a trilogia é divulgada pela sigla BRD, de Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha).
O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun) — Alemanha Ocidental, 1979
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, Pea Fröhlich, Peter Märthesheimer, Kurt Raab
Elenco: Hanna Schygulla, Klaus Löwitsch, Ivan Desny, Gisela Uhlen, Elisabeth Trissenaar, Gottfried John, Hark Bohm, George Eagles, Claus Holm, Günter Lamprecht, Anton Schiersner, Lilo Pempeit, Sonja Neudorfer, Volker Spengler
Duração: 120 min.
Nora Helmer - Fassbinder/Ibsen (A Doll's House)
18/4/22
Lili Marlene, Lili Marleen, 1981, Rainer Werner Fassbinder
CRÍTICA | LILI MARLENE (1981)
por LUIZ SANTIAGO em 14 de janeiro de 2016
Filmado em inglês para atender à demanda de distribuição nos Estados Unidos (o longa chegou a ser submetido à Academia, mas não foi indicado ao Oscar) e posteriormente dublado em alemão, Lili Marlene (1981) é considerado o mais “frio e impessoal” olhar de Fassbinder para a Alemanha no período da II Guerra Mundial. Por focar-se basicamente no andamento da guerra, a película é apartada, em conceito narrativo, da Trilogia da Alemanha Ocidental, com quem possui grandiosas semelhanças, apesar de se passar no período histórico anterior.
Baseado na autobiografia de Lale Andersen, a verdadeira Lili Marlene, o filme tem as características centrais das mulheres retratadas por Fassbinder em Maria Braun, Lola e Veronika Voss e traz uma grande mudança estética, vinda com a entrada de Xaver Schwarzenberger para o time do diretor, realizando a direção de fotografia com suas características principais: pontos de luz que cintilam, forte contraste de cores, diversidade emocional para as paletas predominantes — padrão oposto à diversidade dramática de Michael Ballhaus, o fotógrafo anterior e recorrente de Fassbinder, que até chegou trabalhar em algumas cenas de Lili Marlene — e filtros de suavização.
Juntas, essas similaridades de Lili Marlene com os filmes da Trilogia BRD* mais a série Berlin Alexanderplatz (1980) e um “novo modelo” visual transformam a obra em um ponto de ruptura dentro da própria Fase Histórica do cineasta. Percebam que a abordagem para a sociedade germânica e a representação da Alemanha na pele de uma mulher — Hanna Schygulla, mais uma vez excelente — é pontuada por um afastamento emocional do diretor no roteiro, a despeito de toda a carga emotiva vinda com o romance entre Lili “Willie” Marlene e o judeu-suíço Robert Mendelsson (Giancarlo Giannini). O tema é denso, recorrente na cinematografia do diretor desde Bolwieser – A Mulher do Chefe de Estação (1977), mas o tratamento é outro.
Há aqui algumas falhas no roteiro, mas isso não se aplica necessariamente à abordagem para o tema da guerra. O filme não é “menor” por ser frio. Fica clara a intenção de Fassbinder em se colocar à distância dos acontecimentos, algo que ele não faz na BRD. A ação dos judeus e até mesmo uma parte do tratamento dado ao sistema cultural nazista apresenta falhas de construção, mas nada muito absurdo. O que realmente incomoda no filme é a direção e montagem (em conjunto) da a sequência do front polonês, onde os soldados estão festejando em um cabaré após uma apresentação de Lili. A repetição anárquica dos planos, a não alteração do ângulo da câmera para além de um pseudo-plano/contra-plano e, para piorar, o fato da sequência ser demasiadamente longa são os principais erros de Fassbinder e os principais motivos para o filme não ser bem fechado.
Diante dos pontos apresentados, a ideia de que Lili Marlene é um “filme menor” até pode ser legítima para uma parte do público. E isso não é problema algum, afinal de contas, é uma interpretação da obra, mas o que não deve acontecer é dar máxima atenção esse aspecto pontual e se esquecer da elegância no recurso de ‘música-luxo-destruição’; da abordagem do romance em meio à guerra e os momentos anteriores e posteriores a ela; da forma como a mulher-Alemanha é representada e, principalmente, da exploração do domínio ideológico totalitarista que em termos culturais não era exatamente coeso, mas tinha uma colossal dominação sobre os cidadãos, tanto em vigilância quanto em controle e arregimentação.
A ideia de que “não fazer parte não era uma opção” é marcante no texto.
Lili Marlene é o “elo perdido” entre Berlin Alexanderplatz e os filmes finais da Trilogia da Alemanha Ocidental. É um longa de bastidores, um olhar para a cultura de espetáculos nazista sem ter Goebbels em cena; um filme que mostra que uma música pode ser utilizada como enlevo de um regime e, ao mesmo tempo, ser considerada degradante pelo mesmo grupo; ou como uma mesma canção pode ser ouvida como memória positiva de um amor e também objeto de tortura. Duvido que alguém termine a sessão sem cantarolar os versos de Lili Marlene mentalmente.
* BRD: Bundesrepublik Deutschland (Alemanha Ocidental).
The Story of Lili Marlene - Short Documentary
Lili Marlene Versão Brasil uma Homenagem aos Herois da Segunda Guerra Mundial os Pracinhas
Lili Marlene .... ( Lili Marleen )..... Francisco Alves
Lili Marlene Canção alemã Autores ; N Schultze letra brasileira Ghiaroni Interprete : Francisco Alves com Orquestra da Rádio nacional
Lili Marleen wiki
1939 Lale Andersen - Lili Marlene (original German version)
Lili Marlene (English Version) Marlene Dietrich.mpg
Carly Simon performing 'Lili Marlene' 1997
Artista
Marlene Dietrich
Álbum
Lili Marlene
Compositores
Norbert Schultze, Hans Leip
Lili Marleen - tradução
Em frente ao quartel
Diante do portão
Havia um poste com um lampião
E se ele ainda estiver lá
Lá desejamos nos reencontrar
Queremos junto ao lampião ficar
Como outrora, Lili Marlene.(2x)
Nossas duas sombras
Pareciam uma só
Tinhamos tanto amor
Que todos logo percebiam
E toda a gente ficava a contemplar
Quando estávamos junto ao lampião
Como outrora, Lili Marlene. (2x)
Gritou o sentinela
Que soaram o toque de recolher
(Um atraso) pode te custar três dias
Companheiro, já estou indo
E então dissemos adeus
Como gostaria de ir contigo
Contigo, Lili Marlene (2x)
O lampião conhece teus passos
Teu lindo caminhar
Todas as noites ele queima
Mas há tempos se esqueceu de mim
E, caso algo ruim me aconteça
Quem vai estar junto ao lampião
Com você, Lili Marlene ? (2x)
Do tranquilo céu
Das profundezas da terra
Me surge como em sonho
Teu rosto amado
Envolto na névoa da noite
Será que voltarei para nosso lampião
Como outrora, Lili Marlene. (2x)