sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Van Gogh e Johanna van Gogh-Bonger

A cunhada do pintor é finalmente reconhecida como a pessoa que abriu os olhos do mundo para sua genialidade

RUSSELL SHORTO, piaui, 22d e dezembro de 2021

Johanna van Gogh-Bonger na sua casa em Amsterdã, em algum ano após 1909: na parede, duas telas de Van Gogh, Vaso com Honestidade (o menor, à esq.) e Paisagem ao Crepúsculo (no alto)CRÉDITO: FUNDAÇÃO VINCENT VAN GOGH_CORTESIA DO MUSEU VAN GOGH_AMSTERDÃ

Tradução de Rogério Galindo

Em 1885, uma holandesa de 22 anos chamada Johanna Bonger conheceu Theo van Gogh, o irmão mais novo de Vincent van Gogh que na época vinha ganhando reputação como negociante de arte em Paris. A história vê em Theo o mais estável dos irmãos Van Gogh, a âncora emocional arquetípica, a pessoa que de maneira abnegada ajudou Vincent em seu caminho errático pela vida. Mas Theo também tinha sua cota de impetuosidade. Ele pediu a mão de Johanna Bonger depois de apenas dois encontros.

Jo, como ela chamava a si mesma, foi criada em uma discreta família de classe média. Seu pai, editor de um periódico sobre transporte marítimo que tratava de assuntos como o comércio de café e de especiarias orientais, impôs regras de conduta e um estilo reservado ao comportamento dos filhos. “O prego que se destaca leva a martelada” é um ditado holandês que a família Bonger parece ter transformado em evangelho. Jo havia iniciado uma carreira segura e pouco empolgante como professora de inglês em Amsterdã, e não tinha nenhuma tendência a ser impulsiva. Além disso, já estava namorando outra pessoa. Ela recusou o pedido de casamento.

Vaso com honestidade

Mas Theo insistiu. A atração que exercia tinha algo de comovente – ele era uma versão mais magra e mais pálida de seu irmão. Além disso, Jo tinha certo gosto por cultura, um desejo de estar na companhia de artistas e intelectuais que ele certamente poderia satisfazer. Com o tempo, ela cedeu. Em 1888, um ano e meio depois do pedido, concordou em se casar com Theo. Depois disso, uma nova vida se abriu para ela: a Paris da Belle Époque, com sua arte, seus teatros e intelectuais, as ruas da região de Pigalle – onde o casal foi morar –, tomada pelo burburinho dos cafés e dos bordéis.

Theo não era um simples negociante de arte. Ele estava na vanguarda, pois se especializara nas obras de jovens artistas que vinham desafiando o realismo inflexível imposto pela Academia de Belas-Artes de Paris. A maior parte dos negociantes não queria saber dos impressionistas, mas estes eram os clientes e os heróis de Theo van Gogh. E ali estavam eles, Gauguin, Pissarro e Toulouse-Lautrec, os jovens da vanguarda, atravessando a vida de Jo com a ferocidade exótica das criaturas de um zoológico.

Ela percebeu que estava no meio de um movimento, testemunhando uma mudança de rumos. Em casa, também se sentia cheia de vida. Na noite de núpcias, que ela descreveu como uma “noite de êxtase”, o marido a deixou arrepiada ao sussurrar em seu ouvido: “Você quer ter um bebê, meu bebê?” Ela estava tremendamente apaixonada – por Theo, por Paris, pela vida.

Theo falava sem parar – sobre o futuro deles e sobre coisas como pigmentos e cores e luz, estimulando sua mulher a desenvolver um novo modo de ver. Mas um tema era dominante. Desde o primeiro encontro, ele brindava Jo com histórias sobre o gênio torturado de seu irmão. O apartamento deles estava abarrotado de telas de Vincent, e novas caixas com quadros chegavam o tempo todo. Vincent, que passou grande parte de sua breve carreira em trânsito na França, Bélgica, Inglaterra e Holanda, vinha produzindo em um ritmo absurdo, às vezes uma tela por dia – oliveiras, campos de trigo, camponeses sob o Sol da Provence, céus amarelos, pessegueiros em flor, troncos nodosos, torrões de terra parecidos com cristas de ondas, álamos que lembravam labaredas – e enviava tudo para Theo, na esperança de que ele encontrasse mercado para suas obras. Theo não teve muito êxito com os compradores, mas as telas de Vincent, com aquelas camadas de tinta que lhes davam um denso aspecto tridimensional, tornaram-se a matéria-prima para a educação de Jo a respeito da arte moderna.

Crepúsculo

Pouco mais de nove meses depois da noite de núpcias, Jo deu à luz um menino e concordou em dar a ele o nome que Theo sugeriu: Vincent. Embora visse o irmão como um modelo, Theo também se preocupava sem parar com ele. O estado mental de Vincent já havia se deteriorado no momento em que Jo entrou em cena. O artista dormira ao ar livre no inverno para mortificar seu corpo, se empanturrara de álcool, café e tabaco em grandes quantidades para despertar seus sentidos entorpecidos, estava tomado pela gonorreia, parara de tomar banho, seus dentes estavam podres. Tinha também se distanciado de artistas e outras pessoas que poderiam ajudá-lo na carreira. 

Pouco antes do Natal de 1888, quando Theo e Jo anunciaram o noivado, Vincent amputou a própria orelha depois de uma série de brigas com Paul Gauguin, que dividia a casa com ele em Arles, no Sul da França.
Um dia, chegou para Theo uma tela de Vincent com um estilo diferente. O artista era fascinado pelo céu noturno em Arles. Ele tentou explicar isso para o irmão usando estas palavras: “No azul profundo as estrelas cintilavam, meio verdes, amarelas, brancas, rosa, mais brilhantes, mais esmeraldas, da cor de lápis-lazúlis, rubis, safiras.” Ele se fixou na ideia de pintar aquele céu. Leu Walt Whitman, cuja obra era especialmente popular na França, e na sua interpretação o poeta norte-americano havia equiparado “o grande firmamento estrelado” a “Deus e a eternidade”.

Vincent enviou o quadro concluído para Theo e Jo com um bilhete, explicando tratar-se de um “exagero”. Noite Estrelada deu continuidade a seu afastamento do realismo; as pinceladas eram como valas abertas por alguém que estivesse escavando em busca de algo maior. Theo achou a tela perturbadora – ele conseguia sentir o irmão se afastando e sabia que os compradores dificilmente entenderiam aquilo. E respondeu: “Acho que você é melhor fazendo coisas reais.” Mas mandou junto com a carta mais 150 francos para as despesas do irmão.

Então, na primavera de 1890, novidades: Vincent estava a caminho de Paris. Jo esperava encontrar uma pessoa debilitada e com transtorno mental. Em vez disso, deparou-se com a encarnação do espírito que animava as telas que cobriam as paredes de seu apartamento. “Diante de mim estava um homem forte, de ombros largos, com um saudável tom de pele, um olhar alegre e em cuja aparência havia algo que indicava grande determinação”, escreveu ela em seu diário. “‘Ele parece muito uma versão mais forte do Theo’, foi a primeira coisa que me veio à cabeça.” Vincent saía pela vizinhança para comprar as azeitonas que adorava e ao voltar insistia que os outros provassem. Postava-se diante das telas que tinha mandado para o casal e estudava cada uma com grande intensidade. Theo levou Vincent até o quarto em que o bebê estava dormindo, e Jo observou os irmãos olhando o berço. “Os dois tinham lágrimas nos olhos”, ela escreveu.

O que aconteceu em seguida foi como dois golpes de um martelo. Theo tinha providenciado para que Vincent ficasse no vilarejo de Auvers-sur-Oise, ao Norte de Paris, sob os cuidados do doutor Paul Gachet, o médico que ele esperava ser capaz de ajudar o irmão com seu tratamento homeopático. Semanas depois recebeu a notícia de que Vincent havia atirado em si mesmo (alguns biógrafos contestam a ideia de que o tiro tenha sido dado pelo próprio pintor). Theo chegou ao vilarejo a tempo de ver o irmão morrer, em 29 de julho de 1890. Ficou devastado. Ele o tinha apoiado financeira e emocionalmente durante sua breve carreira de dez anos, quando Vincent se esforçara para produzir, como certa vez escrevera para Theo, “algo sério, algo novo – algo com alma”, uma arte que se revelaria nada menos do que “aquilo que existe no coração de… um ninguém”. Menos de três meses depois da morte de Vincent, Theo sofreu um colapso físico completo – era o estágio final da sífilis que havia contraído em suas visitas a bordéis em outros tempos. Começou a alucinar. A agonia dele foi terrível e macabra. Morreu em 25 de janeiro de 1891.

Vinte e um meses depois de seu casamento, Jo estava sozinha, atordoada com a fecunda dose de vida que tinha experimentado e com o que havia restado daquela mesma vida: aproximadamente quatrocentas telas e centenas de desenhos feitos pelo cunhado.

A morte precoce dos irmãos, Vincent aos 37 e Theo aos 33 anos, sem que o pintor tivesse obtido algum renome – Theo só havia conseguido vender uns poucos quadros dele –, parecia destinar sua obra eternamente aos porões da obscuridade. Em vez disso, seu nome, sua história e sua arte se fundiram para formar a base de uma indústria que tomou de assalto o planeta, levando Vincent van Gogh a possivelmente superar a fama de qualquer outro artista na história. O que aconteceu em grande medida graças a Jo van Gogh-Bonger. Ela era baixinha e insegura, não tinha experiência com arte nem com negócios e deparou-se com um reduto exclusivamente masculino que era o mundo da arte. Só recentemente a história de Jo foi descoberta. Só agora sabemos como Van Gogh se tornou Van Gogh.

Muito antes da Covid-19, Hans Luijten tinha o hábito de comparar Vincent van Gogh a um vírus. “Se esse vírus entra na sua vida, nunca mais vai embora”, ele disse em seu apartamento bem iluminado e moderno em Amsterdã quando conversamos pela primeira vez em abril de 2020. E acrescentou, com certo tom de alerta na voz: “Não existe vacina contra isso.” Luijten é magro, tem 60 anos, usa óculos com armadura metálica, tem tufos esvoaçantes de cabelos grisalhos e uma forte inclinação pela música norte-americana de raiz: gospel, Dolly Parton, Justin Townes Earle. Ele nasceu no Sul da Holanda, perto da fronteira com a Bélgica. Tanto seu pai quanto sua mãe faziam sapatos para ganhar a vida – o pai em uma fábrica, a mãe com uma máquina de costura em casa –, o que o levou a respeitar o trabalho duro e ter olho clínico para calçados: “Toda vez que encontro alguém, não consigo deixar de olhar para os pés da pessoa.”

Apesar de não haver um livro sequer na casa da família, os pais incentivaram Luijten e seu irmão a seguir seus sonhos intelectuais, que acabaram sendo próximos. Ger Luijten, cinco anos mais velho do que Hans, estudou história da arte e hoje é diretor da Fundação Custodia, um museu em Paris. Hans se graduou em literatura holandesa e história da arte. Depois de concluir o doutorado, ele ouviu dizer que o Museu Van Gogh em Amsterdã queria fazer uma nova edição crítica das 902 cartas que compõem a correspondência de Vincent van Gogh, incluindo as que ele trocou com Theo. Em 1994, Hans foi contratado como pesquisador e passou os quinze anos seguintes realizando esse trabalho.
Nesse processo, Hans Luijten desenvolveu uma afinidade particular pelo artista. Ele discorre fluentemente sobre as telas, mas foi nas cartas de Vincent que encontrou um novo horizonte para seus insights. “Van Gogh trabalhava essas cartas com muito cuidado. Se você lê as cartas publicadas, pode encontrar uma frase como ‘O céu profundo e cinza…’ Mas, se olhar o manuscrito, vai notar que primeiro ele escreveu ‘cinza’ e só mais tarde adicionou ‘profundo’, como se estivesse acrescentando pinceladas. Dá para ver que tanto na arte quanto na escrita Vincent van Gogh via o mundo como se tudo estivesse vivo, como se tudo tivesse consciência. Ele tratava uma árvore do mesmo modo como tratava um ser humano.”

Luijten é um pesquisador obstinado, do tipo que sai à caça de pedaços de papéis que estão mofando em arquivos de Paris ou Nova York, que extrai sentido das palavras em um documento não apenas pelo que elas dizem, mas também pela maneira como foram escritas. “Dá para ver a emoção na caligrafia de Van Gogh: dúvida, raiva… Eu sei dizer quando ele tinha bebido, porque começava com letras imensas, que depois ficavam cada vez menores, à medida que ia chegando ao pé da página.”

O resultado desse projeto exaustivo de pesquisa, que durou bem mais do que o tempo de carreira do artista, é Vincent van Gogh: The Letters. A coleção de cartas tem seis volumes, com mais de 2 mil páginas, e foi publicada em 2009. Uma edição online conta com o original em holandês ou francês, acompanhado da tradução para o inglês, de anotações, fac-símiles das cartas originais e imagens das obras de arte discutidas. Leo Jansen, que trabalhou ao lado de Luijten durante esses quinze anos e hoje está no Instituto Huygens para a História da Holanda, me disse que, quando o projeto Van Gogh estava chegando ao fim, ele viu que Luijten começava a formular uma nova ideia. “Acho que Hans percebeu que, embora estivéssemos entregando as cartas, aquele projeto era só um começo, porque Vincent nem sequer era conhecido no fim de sua vida.”

O que levantava uma questão que jamais foi completamente respondida: como exatamente o gênio torturado, que afastava negociantes de arte e viu suas ambições serem frustradas tantas vezes ao longo de sua carreira, se transformou em um astro? E não só um astro, mas uma das figuras mais amadas da história da arte?

Já se sabia que Jo van Gogh-Bonger tinha desempenhado um papel na construção da reputação do pintor, porém acreditava-se que esse papel era modesto – uma premissa aparentemente fundada numa combinação de sexismo e senso comum, uma vez que ela não tinha experiência no mercado de arte. Mas havia indícios intrigantes para quem tivesse interesse em procurar.
 Em 2003, o escritor holandês Bas Heijne se viu na biblioteca do Museu Van Gogh e esbarrou em algumas cartas que o levaram a escrever uma peça sobre Jo. “Eu só pensei: a vida dessa mulher é uma história e tanto”, disse ele. Luijten, igualmente, me disse que as cartas trocadas entre os irmãos, bem como a correspondência com outros artistas e negociantes de arte, estavam cheias de pistas. Ele pesquisou na biblioteca do museu e nos arquivos e encontrou fotografias e livros de contabilidade que continham mais indícios. Também se correspondeu com arquivos na França, na Dinamarca e nos Estados Unidos. Luijten formulou uma tese: “Comecei a ver que Jo era a aranha na teia. Ela tinha uma estratégia.”

Havia outra fonte, com chances de ser o Santo Graal, que ele acreditava poder ajudar em sua tese, mas à qual os pesquisadores não tinham acesso. Luijten sabia que Jo manteve um diário. O interesse dele foi estimulado em parte pelo próprio fato de não ter conseguido ler esse documento – a família Van Gogh guardava o diário a sete chaves desde a morte de Jo, em 1925. “Não acho que eles estivessem tentando esconder o papel que ela teve”, me disse Luijten. “Acho que era só pudor mesmo.” Vincent, o filho de Jo, não queria que o mundo ficasse sabendo do relacionamento de sua mãe, após a morte de Theo, com um pintor holandês, não queria que a privacidade dela fosse violada. O embargo ao diário vigorou até 2009, quando Luijten perguntou a Johan van Gogh, neto de Jo, se poderia ver o que havia ali, e obteve permissão. (Os diários de Jo e outros materiais estão hoje disponíveis no site e na biblioteca do Museu Van Gogh.)

A primeira entrada do diário – uma coleção de cadernos pautados simples, daqueles usados por crianças na escola – já deixou Luijten intrigado. Jo começou o diário aos 17 anos, ou seja, cinco anos antes de conhecer Theo. Uma moça daquela época tinha poucas opções na vida e, no entanto, ela escreveu ali: “Eu acharia terrível ter de dizer no fim da minha existência: ‘Na verdade vivi à toa, não realizei nada que fosse grandioso ou nobre.’” “Aquilo, para mim, foi muito empolgante”, disse Luijten. Era uma pista: no fim das contas, ela não ia se contentar em seguir aquela máxima da família sobre as marteladas atingirem primeiro o prego que se destaca dos outros.

Em 2009, Luijten começou a escrever a biografia de Jo, trabalhando em um escritório situado numa antiga escola de frente para o gramado da Praça dos Museus, em Amsterdã. Ele passou dez anos nesse trabalho. No total, dedicou 25 anos, ou toda a sua carreira, às vidas destas três pessoas: Vincent, Theo e Jo. Seu livro Alles voor Vincent (Tudo por Vincent) foi publicado em 2019. Como a edição disponível é em holandês, só agora começa a ser conhecida pelos estudiosos da arte. “É um livro tremendamente importante”, disse Steven Naifeh, coautor (com Gregory White Smith) da biografia Van Gogh: A Vida, que se tornou best-seller em 2011, e autor de Van Gogh and the Artists He Loved (Van Gogh e os artistas que ele amava), lançado em novembro passado nos Estados Unidos. “O livro de Luijten mostra que, sem Jo, não haveria Van Gogh.”

Historiadores da arte dizem que a biografia de Luijten dá um grande passo em uma reavaliação que está em curso – da origem não apenas da fama de Van Gogh, mas também da noção moderna do que é um artista. Pois esta é outra coisa que Jo ajudou a inventar.

Jo ficou sem saber o que fazer depois da morte de Theo. Quando um amigo que vivia no elegante vilarejo de Bussum, no sudeste da Holanda, sugeriu que ela fosse para lá e abrisse uma pousada, a ideia pareceu reconfortante. Ela estaria de volta à sua região natal, mas a uma cômoda distância de sua família, o que era conveniente para ela, que dava valor à sua independência. Bussum, apesar da serenidade campestre, tinha uma cena cultural ativa. E contar com a receita proveniente dos hóspedes seria importante, pois ela poderia sustentar a si mesma e ao filho.

Antes de deixar Paris, Jo trocou cartas com o artista Émile Bernard, um dos poucos pintores com quem Vincent mantivera uma relação ao mesmo tempo íntima e livre de discórdias, para ver se ele teria como organizar uma exposição na capital francesa das telas de seu falecido cunhado. Bernard disse que o ideal seria que ela deixasse as obras de Vincent em Paris, supondo que a cidade serviria melhor como base para a venda dos quadros. Fazia sentido. Embora Vincent não tivesse angariado admiradores suficientes para garantir uma exposição individual, ele havia exposto em algumas mostras coletivas pouco antes de morrer. Talvez Bernard conseguisse, com o passar do tempo, vender alguns trabalhos dele.

Caso isso tivesse acontecido, Vincent poderia ter conquistado algum renome. Poderia ter se tornado, digamos, um Émile Bernard. Mas o instinto de Jo mandou que ela ficasse com os quadros – e a oferta foi recusada. Isso, em si mesmo, era algo notável, porque várias vezes as entradas do diário mostram que ela tinha grande insegurança e muitas incertezas sobre o que deveria fazer em sua vida: “Sou uma pessoa péssima – mesmo feia como sou, ainda sou vaidosa”; “Minha perspectiva da vida está total e completamente equivocada no momento”; “A vida é tão difícil e tão cheia de tristeza à minha volta, e tenho tão pouca coragem!”.

Nas semanas seguintes, vestida de preto em sinal de luto, Jo se mudou para a casa nova em Bussum. Desfez as malas com a roupa de cama e os talheres, conheceu os vizinhos e preparou a pousada para receber os hóspedes, sem descuidar, durante tudo isso, de seu filho, o pequeno Vincent. Ela parece ter passado a maior parte do tempo que levou para se instalar na nova casa – meses, na verdade – decidindo exatamente onde pendurar as telas do cunhado. No final do processo, praticamente cada centímetro das paredes estava coberto pelos quadros. Os Comedores de Batata, o grande estudo sobre camponeses durante uma humilde refeição, feito quase todo ele em tons de marrom, trabalho que os estudiosos consideram a primeira obra-prima de Vincent, foi pendurado em cima da lareira. Ela enfeitou seu quarto com três telas que mostravam pomares em vibrante floração. Um dos hóspedes mais tarde observou que “a casa toda estava cheia de Vincents”.

 
Comedores de batata

Depois que tudo estava mais ou menos do jeito que ela queria, Jo pegou os cadernos pautados e voltou ao diário que tinha começado na adolescência. Ela havia abandonado os registros no momento em que iniciou sua vida com Theo. A última entrada, de quase três anos antes, começava dizendo: “Terça de manhã vou para Paris!” Durante todo o louco período que se seguiu, ela esteve ocupada demais para manter um diário, fascinada demais por sua nova vida. Agora, estava de volta. “Tudo não passa de um sonho!”, ela escreveu em sua pousada. “O que ficou para trás – minha breve e imensa felicidade conjugal –, isso também foi um sonho! Durante um ano e meio, eu fui a mulher mais feliz do mundo.”
Então, de maneira prática, ela identificou as duas responsabilidades que Theo lhe havia deixado. “Além da criança”, escreveu, “ele me deixou outra tarefa – a obra de Vincent –, fazer com que ela seja vista e apreciada ao máximo.”

Não tendo treinamento para saber como conseguir isso, Jo começou com o que tinha à mão. Além das telas de Vincent, ela herdou o enorme tesouro das cartas que os irmãos haviam trocado. Em Bussum, à noite, depois de ter cuidado de seus hóspedes e colocado o bebê para dormir, ela meditava sobre essa correspondência. Quase todas as cartas, no fim das contas, eram do cunhado – Theo guardou cuidadosamente as cartas de Vincent, que não foi tão cuidadoso com a correspondência enviada pelo irmão. Detalhes da vida cotidiana do artista e de suas tribulações – a insônia, a pobreza, a insegurança – estavam misturados a relatos sobre as telas em que ele estava trabalhando, as técnicas que vinha experimentando, o que estava lendo, descrições de telas de outros artistas de onde tirava inspiração. 

Ele frequentemente sentia a necessidade de colocar em palavras aquilo que tentava fazer com as cores: “Cidade violeta, estrela amarela, céu azul-verde; os campos de trigo têm todos os tons: ouro velho, cobre, ouro verde, ouro vermelho, ouro amarelo, verde, vermelho e bronze amarelo.”
Repetidamente, Vincent tentava explicar seu objetivo ao capturar o que estava vendo: “Tentei reconstruir a coisa como ela poderia ter sido, por meio de uma simplificação e acentuando a natureza orgulhosa, imutável dos pinheiros e dos arbustos de cedro contra o azul.” Ele descrevia seus lancinantes colapsos mentais e seus medos de futuras crises – o temor de que “uma crise mais violenta possa destruir para sempre a minha capacidade de pintar” – e a ideia que tinha de que, caso viesse a passar por outra crise, poderia “ir para um asilo ou mesmo para a prisão da cidade, onde normalmente tem uma cela de isolamento”.

Jo também leu muitas coisas além das cartas, fazendo o equivalente a um curso autodidata de crítica de arte. Lia a revista belga L’Art Moderne, que defendia a ideia de que a arte deveria estar a serviço de causas políticas progressistas, e fazia anotações. Leu um livro de críticas do romancista irlandês George Moore, anotando uma citação que lhe pareceu pertinente: “O destino dos críticos é serem lembrados por aquilo que eles não foram capazes de compreender.” Como se estivesse se preparando para a tarefa que tinha pela frente, ela também leu a biografia de uma de suas heroínas, Mary Ann Evans, a protofeminista e crítica social inglesa que escreveu romances sob o pseudônimo de George Eliot. Em seu diário, Jo descreveu Evans como “aquela mulher grandiosa, corajosa e inteligente que amei e reverenciei praticamente desde a infância”, e observou que “lembrar dela é sempre um incentivo para se tornar melhor”.

Ela começou a circular na sociedade. Algumas das pessoas que conhecia faziam parte de uma comunidade de artistas, poetas e intelectuais que tinham fundado uma revista de artes chamada De Nieuwe Gids (O novo guia). O grupo estava processando a resposta que a arte daria para tudo que fora fermentado pela industrialização de fins da década de 1880 e começo da de 1890, como o movimento anarquista e os crescentes nacionalismos. O diário de Jo dá a impressão de que ela frequentava os encontros menos para participar das conversas do que para ouvir os intelectuais dizerem o que havia de errado com a arte da tradição clássica, que seguia regras predefinidas e preferia a ideia à emoção, e a linha à cor. Críticos como Joseph Alberdingk Thijm, professor de estética e história da arte na Academia Nacional de Belas-Artes de Amsterdã, defendiam que os artistas tinham o dever moral de apoiar os ideais cristãos que eram a base da sociedade e de realçar a “representação da natureza” de uma maneira “firme, clara, purificada”.

Depois de um ano em que viveu praticamente sozinha com as telas de Vincent e as palavras dele, lendo a fundo, mergulhando de tempos em tempos naquelas reuniões, Jo teve uma espécie de epifania: as cartas de Van Gogh eram parte integrante da arte. Elas eram a chave para o entendimento das telas. As cartas reuniam num único pacote a arte e a vida trágica e intensa do pintor. Jo deve ter gostado da visão dos impressionistas que ela conheceu em Paris de que seguir regras na pintura era uma ideia que tinha perdido toda autenticidade, que em um mundo sem autoridade central o artista deveria agora olhar para dentro de si mesmo em busca de um caminho. Foi isso que Monet, Gauguin e os demais impressionistas fizeram, e era possível ver o resultado em suas telas. Incluir a biografia de um artista nesse conjunto era simplesmente dar outro passo na mesma direção.

As cartas também indicavam qual era o público que Vincent pretendia atingir. Ele, que a certa altura tentou a carreira de pastor e viveu em meio aos camponeses para se fazer humilde, tinha desejado desesperadamente produzir arte que não se restringisse aos experts e que falasse diretamente ao coração das pessoas comuns. “Nenhum resultado do meu trabalho me seria mais agradável”, ele escreveu a Theo, citando outro artista, “do que ver o trabalhador comum pendurar essas reproduções em seu quarto ou em seu local de trabalho.” As cartas e pinturas de Vincent pareciam reforçar as convicções de longa data de Jo sobre justiça social.

Quando menina, influenciada pelos sermões dominicais, ela desejava uma vida que tivesse um propósito. Pouco antes de aceitar se casar com Theo, visitou a Bélgica, e o pastor da família com quem estava hospedada a levou para ver como viviam os trabalhadores em uma mina de carvão ali perto. A experiência abalou Jo e a levou a se dedicar por toda a vida às causas sociais, desde os direitos dos trabalhadores até o voto feminino. Ela se incluía entre as pessoas “comuns” sobre as quais Vincent tinha escrito, e sabia que ele também se considerava uma dessas pessoas. Depois de ler as palavras do angustiado cunhado, sozinha em sua pousada, em uma noite em que os ventos uivavam lá fora, ela escreveu em uma carta: “Me senti tão desolada – que pela primeira vez entendi o que ele deve ter sentido, naqueles momentos em que todos davam as costas para ele.”

Agora ela estava pronta para atuar como agente de Vincent van Gogh. Um de seus primeiros passos foi se aproximar de um crítico de arte chamado Jan Veth, que além de ser marido de uma amiga estava à frente do círculo da revista De Nieuwe Gids.

Jan Veth falava sem rodeios de sua rejeição à arte acadêmica e promovia a expressão artística individual. De início, entretanto, ele desdenhou abertamente do trabalho de Vincent e desmereceu os esforços de Jo. Mais tarde, admitiria que de início sentiu “repulsa pela violência crua de alguns Van Goghs” e achou as pinturas “quase vulgares”. A reação dele, apesar do compromisso que tinha com o novo, dá uma ideia do choque que as telas de Vincent causavam à primeira vista. Outro crítico daqueles tempos achou as paisagens do pintor “sem profundidade, sem atmosfera, sem luz, as cores que não se misturavam, colocadas uma ao lado da outra, sem se harmonizarem entre si”, e reclamou que Van Gogh pintara movido por um desejo de ser “moderno, bizarro, infantil”.

Jo ficou desapontada com a reação convencional de Veth. Ele também deve ter dito algo depreciativo sobre uma mulher querer entrar no mundo das artes, porque ela reclamou em seu diário, depois de uma reunião com ele: “Nós, mulheres, somos em grande medida o que os homens desejam que nós sejamos.” Mas, sabendo da importância que Veth tinha como crítico e acreditando que a abertura dele a novas ideias podia levá-lo a gostar das pinturas, Jo escreveu em seu diário: “Não vou desistir até que ele goste das telas.”

Ela levou para Veth um envelope cheio de cartas de Vincent, incentivando-o a buscar nas palavras do pintor elementos que lançassem luz sobre as telas.  Jo não tentou se passar por crítica de arte, em vez disso abriu seu coração para Veth, buscando guiá-lo nessa mudança de pensamento que ela sentia ser necessária para perceber um novo modo de expressão artística. Ela explicou a Veth que tinha começado a ler a correspondência entre os irmãos para ficar próxima do falecido marido, mas que acabou se ligando a Vincent. “Eu li as cartas – não apenas com a minha mente –, fiquei profundamente envolvida nelas com a minha alma”, ela escreveu a Veth. “Li as cartas e depois reli até ter bem clara diante de mim a imagem completa de Vincent.” Jo disse para Veth que desejava ser capaz de fazer com que ele sentisse a influência que Vincent tivera sobre a sua vida. “Eu encontrei a serenidade.”

O momento era oportuno. O historiador holandês Johan Huizinga mais tarde caracterizaria a “mudança no espírito que começou a ser sentido nas artes e na literatura por volta de 1890” como um turbilhão de ideias que se aglomeravam em torno de dois polos: “O polo do socialismo e o polo do misticismo.” Jo viu que a arte de Vincent tinha a ver com ambas as coisas. Veth estava entre aqueles que tentavam levar o impressionismo rumo a algo novo, uma arte que aplicasse o individualismo a questões sociais e mesmo espirituais. Ele ouviu Jo e mudou de ideia. Escreveu uma das primeiras críticas sobre Vincent van Gogh, dizendo que agora via “a impressionante clarividência que existe na grande humildade” e o caracterizou como um artista que “busca a raiz bruta das coisas”. O esforço de Jo para fazer com que a vida do cunhado servisse de apoio à arte feita por ele pareceu ter funcionado com Veth. “Depois de ter compreendido sua beleza, consigo aceitar o homem como um todo”, escreveu o crítico.

Algo semelhante aconteceu quando Jo abordou um artista influente chamado Richard Roland Holst para pedir que ele ajudasse a promover Vincent. Ela deve ter atormentado o sujeito sem parar, pois Holst escreveu para um amigo: “A senhora Van Gogh é uma mulher encantadora, mas me irrita quando alguém delira como um fanático sobre algo que não compreende.” Mas ele também mudou de ideia, e ajudou Jo em uma das primeiras exposições individuais de Vincent, em dezembro de 1892, em Amsterdã.

Veth e Holst reclamaram de início do entusiasmo amador de Jo. Ambos acharam que era algo pouco profissional olhar as telas tendo em mente a história do artista. Essa abordagem, resmungava Holst, “simplesmente não é parte da natureza da crítica de arte”. Os diários não deixam claro até que ponto Jo usou conscientemente a situação de leiga e a posição como mulher em benefício próprio ao lidar com esses homens poderosos, mas de algum jeito ela conseguiu que eles baixassem a guarda e apenas se permitissem olhar e sentir junto com ela. Quando Jo pediu a Holst que fizesse uma ilustração para a capa do catálogo da primeira exposição de Vincent, ele produziu uma litogravura de um girassol murcho contra um fundo negro, com a palavra “Vincent” embaixo e uma auréola em cima do girassol: uma canonização estética. Pouco depois, os organizadores de outra exposição puseram uma coroa de espinhos sobre um retrato de Vincent. Várias vezes seguidas os críticos começavam resistindo à ideia de olhar a vida e a obra de Vincent como uma coisa só, e depois acabavam cedendo. Quando olhavam para as telas, eles viam não apenas a arte, mas o próprio Vincent, trabalhando e sofrendo, amputando sua orelha, se agarrando ao ato de criação. Eles fundiram a arte e o artista. E viram o que Jo van Gogh-Bonger queria que eles vissem.

Jo trabalhou com perseverança para ir além de seus primeiros bons resultados com os críticos. Também fez muitas outras coisas em sua vida, é claro. Criou seu filho. Apaixonou-se pelo pintor Isaac Israëls e depois rompeu a relação, ao perceber que ele não estava interessado em casamento. Jo acabou se casando de novo, com outro pintor holandês, Johan Cohen Gosschalk. Ela se filiou ao Partido Trabalhista Social-democrata e foi cofundadora de uma organização dedicada a questões trabalhistas e aos direitos das mulheres. Mas todas essas atividades se entrelaçavam com a tarefa de gerir a carreira post-mortem de seu cunhado. “Dá para ver ela pensando em voz alta”, me disse Hans Luijten. Nos primeiros tempos, ele afirmou, Jo era tão modesta quanto se possa imaginar. “Ela identifica uma galeria importante em Amsterdã e vai até lá: uma mulher de 30 anos, com um garotinho do lado e uma tela debaixo do braço. Ela escreve para gente de toda a Europa.”

As habilidades que Jo adquiriu como professora de línguas – ela falava francês, alemão e inglês – foram especialmente úteis à medida que expandia sua área de atuação e atraía o interesse de galerias e museus em Berlim, Paris, Copenhague. Em 1895, quando Jo tinha 33 anos, o negociante de arte francês Ambroise Vollard incluiu vinte Van Goghs em uma exposição. A abordagem de Vincent, intensamente pessoal e emocional, estava à frente de sua época, mas o tempo continuava passando e diminuía essa distância; em Antuérpia, um grupo de jovens artistas que considerava Van Gogh um pioneiro pediu várias telas emprestadas para expor ao lado de seus próprios trabalhos.

Jo aprendeu os truques da profissão – por exemplo, manter em suas mãos os melhores trabalhos, mas incluí-los como “empréstimos” em exposições, para serem expostos ao lado de pinturas que estavam à venda. “Ela sabia que, caso você expusesse algumas telas de primeira linha, as pessoas se sentiriam estimuladas a comprar os quadros que estavam ao lado delas”, disse Luijten. “Ela fez isso em toda a Europa, em mais de cem exposições.” Uma chave para o sucesso de Jo, disse Martin Bailey, autor de diversos livros sobre o artista, incluindo Starry Night: Van Gogh at the Asylum (Noite Estrelada: Van Gogh no asilo), foi o fato de ela “vender os trabalhos de uma maneira controlada, apresentando Van Gogh gradualmente ao público”. Para uma exposição em Paris em 1908, por exemplo, ela enviou cem trabalhos, mas estipulou que um quarto deles não estaria à venda. O negociante implorou que ela reconsiderasse, mas Jo se manteve firme. Resistindo à sua insegurança, ela agiu de maneira metódica e inflexível, como um general que estivesse conquistando um território.

Em 1905, Jo organizou uma grande mostra no Stedelijk Museum, o mais importante local de exposições de arte moderna em Amsterdã. Ela reconheceu que era hora de um gesto imponente. O sucesso que havia obtido na promoção da arte do cunhado aumentara sua autoconfiança. À medida que cada vez mais pessoas do mundo da arte passavam a concordar com a avaliação que ela fazia de Vincent, Jo deixou sua hesitação juvenil de lado. Em vez de delegar para outros a tarefa de organizar a exposição, insistiu em fazer tudo sozinha. Alugou as galerias, imprimiu os cartazes, reuniu convidados importantes, chegou a comprar as gravatas-borboletas usadas pelos funcionários. O filho dela, Vincent, então com 15 anos, escreveu os convites. O resultado foi – e continua sendo – a maior exposição já realizada das obras de Van Gogh em todos os tempos, com 484 trabalhos.

Críticos de toda a Europa compareceram. O difícil trabalho de traduzir a visão do artista em vernáculo a essa altura estava praticamente feito. Catorze anos depois de ela ter a epifania de vender em um mesmo pacote a arte e o artista, e assumir essa tarefa, todos no mundo da arte agora pareciam conhecer Vincent van Gogh e sua trágica luta durante toda a vida para encontrar e transmitir beleza e sentido. A exposição consolidou a reputação do artista como uma das grandes figuras da era moderna. Os preços das pinturas subiram de duas a três vezes nos meses seguintes.

Havia um senão. As obras do último período de Vincent, aquele que se inicia no momento em ele vai para um asilo no Sul da França – fase de seu trabalho que hoje é provavelmente a mais amada pelas pessoas – deixava alguns dos primeiros críticos desconfortáveis. Para eles, essas pinturas pareciam ser claramente o resultado de uma doença mental. A intensidade desenfreada com que Vincent dotava uma amoreira solitária, ou um grupo de ciprestes, ou um campo de trigo sob o Sol abrasador, era desconcertante. Como escreveu um crítico sobre uma exposição em Amsterdã, faltava a Vincent “a calma característica que é inerente às obras dos pintores realmente grandes. Ele sempre vai ser uma tempestade”.

Uma tela em particular, Noite Estrelada, que hoje muitos consideram um dos trabalhos mais emblemáticos de Vincent, era alvo de críticas. O desconforto com suas distorções começou com Theo, depois que Vincent enviou, da região de Saint-Rémy-de-Provence, a pintura para ele e sua mulher. De início, Jo pode ter compartilhado da inquietação do marido. Ela não incluiu Noite Estrelada em nenhuma das primeiras exposições que organizou e acabou vendendo a tela. Durante toda a vida, ela manteve em suas mãos principalmente os trabalhos que considerava os melhores de Vincent. Mas conseguiu que o proprietário o emprestasse para a exposição de Amsterdã, o que sugere que ela possa ter passado a gostar da intensidade do quadro.

 
 Noite estrelada

Um crítico – que falou mal da exposição como um todo, chamando-a de “um escândalo” e considerando-a mais apropriada “aos que se interessam por psicologia do que aos amantes da arte” – atacou Noite Estrelada, comparando as estrelas na tela aos oliebollen, os bolinhos fritos que os holandeses comem na véspera de Ano-Novo. Esse tipo de crítica, no entanto, parecia só atrair mais atenção para a pintura e, em última instância, validar ainda mais a ideia da arte como uma janela para a mente e a vida do artista. Isso também pode ter levado Jo a reavaliar o trabalho mais estilizado de Vincent. Ela comprou a tela de volta no ano seguinte. O quadro acabaria no Museu de Arte Moderna (MoMA), tornando-se o primeiro Van Gogh na coleção de um museu de Nova York.

Quando Emilie Gordenker, uma historiadora da arte holandesa-americana assumiu como diretora do Museu Van Gogh no começo de 2020, a equipe deu a ela um exemplar da biografia de Jo van Gogh-Bonger escrita por Hans Luijten. Gordenker trabalhava com a arte holandesa e flamenga do século XVII, e desde 2008 dirigia o museu Mauritshuis, em Haia, o lendário lar de muitos Vermeers e Rembrandts. Ela sabia que tinha de se atualizar sobre Van Gogh, e por isso leu o livro imediatamente.

Gordenker disse que se pegou reagindo à história de Jo como uma mulher. “Embora eu não seja nem de longe uma pioneira como Jo, consigo ter empatia com algumas das dificuldades que ela teve de enfrentar”, afirmou. “Por exemplo, quando tomo uma decisão, às vezes acontece de dizerem o que eu sou: ‘Você é mulher, por isso faz as coisas de um jeito diferente.’ Você quer ser avaliada por suas ideias, mas às vezes é rotulada. Claro, foi muito pior para ela, que tinha que ouvir que não podia fazer aquilo por ser mulher.”

A historiadora conta ter ficado impressionada com o autodidatismo de Jo a respeito do mercado de arte. “Ela precisou ir aprendendo à medida que as coisas aconteciam”, afirmou. “Jo não tinha nenhuma experiência com isso. Mas foi decidida e direta, e ao mesmo tempo era muito insegura. Essa é uma combinação de características muito produtiva.” Gordenker disse acreditar que foi um simples instinto visceral que conduziu Jo à sua epifania. “Isso levou à decisão que ela tomou de colocar a pessoa e a obra no mesmo pacote. Claro que ela só conseguiu fazer isso por causa das cartas. Jo achou que aquelas cartas eram um argumento de negociação sem igual. Ela vendeu o pacote para os críticos, e eles compraram.”

Gordenker ressaltou que a abordagem de Jo deu certo porque era apropriada para a época. “Foi um momento em que tudo se uniu. Houve um retorno ao romantismo nas artes e na literatura. As pessoas estavam abertas a isso. E o sucesso dela molda até hoje a imagem do que um artista deveria fazer: ser um indivíduo singular, e sofrer pela arte, se for o caso.” É preciso algum esforço hoje para perceber que nem sempre as pessoas entenderam os artistas dessa forma. “Quando eu estava estudando história da arte, disseram que eu devia me desfazer dessa ideia do artista que passa fome em um sótão”, disse Gordenker. “Ela não funciona para o início da era moderna, quando alguém como Rembrandt era um mestre que trabalhava com aprendizes e tinha muitos clientes ricos. Em certo sentido, Jo ajudou a moldar a imagem que ainda está conosco.”

Jo também criou um legado familiar para que o trabalho dela fosse levado adiante. Gordenker me colocou em contato com o bisneto de Jo, Vincent Willem van Gogh. Aos 67 anos, ele tem um jeito elegantemente tranquilo e fala com carinho de seu avô Vincent, o filho de Jo e Theo. Segundo me disse, tanto ele quanto o avô tentaram se distanciar do fardo que é o legado de seus ancestrais (e, por extensão, a obsessão de Jo): seu avô, ao se formar engenheiro; ele, ao se tornar advogado (e decidir ser chamado pelo nome do meio, Willem). Mas, por fim, os dois acabaram mudando de ideia e aceitaram seu papel como guardiões daquilo que Jo começou.

O bisneto de Theo e Jo contou que ainda se lembra dos verões que passou na casa do avô em Laren, no interior da Holanda. Depois da morte de Jo, o Engenheiro (como o avô é chamado na família para diferenciá-lo dos outros Vincents) tornou o local o lar temporário da coleção, composta de 220 telas e centenas de desenhos de Van Gogh que Jo, mesmo depois de vender várias obras do cunhado, mantivera consigo e deixou para o filho.

O xará do artista me disse que passou muitos feriados naquela casa quando criança. Ele se recordava de um Girassóis pendurado na sala de estar (um dos cinco maiores quadros que Vincent pintou sobre o tema) e, no final de um corredor, de uma pequena tela de um ramo de amendoeira em flor em um vaso. O avô deixava a sua tela preferida, uma vista de Arles, sobre a escrivaninha, encostada em uma pilha de livros. Mas somente uma fração da coleção era exibida na casa. “Havia um closet em um quarto no andar de cima”, ele contou. Toda a arte estava lá, tudo que Jo não tinha vendido, trabalhos que hoje certamente seriam avaliados em dezenas de bilhões de dólares. “Eu me lembro de ajudar meu avô a se preparar para uma exposição, talvez no MoMA ou no Museu de l’Orangerie, em Paris. Ele estava procurando pinturas de flores. A gente olhava no closet. Eu encontrava alguma coisa e dizia: ‘Será esse, vô?’” O ex-advogado, hoje membro do conselho do Museu Van Gogh, dá uma risadinha ao lembrar: “Hoje isso seria impossível.”

Mas o filho de Jo não planejava manter os trabalhos em seu closet para sempre. Em 1959, ele entrou em negociação com o governo holandês para criar um lar permanente para a coleção. Toda a arte que Jo manteve em suas mãos foi transferida para a Fundação Vincent Van Gogh. Os três descendentes vivos do único filho de Jo e Theo têm assento no conselho da fundação; o quarto membro é uma autoridade do Ministério da Cultura holandês. O governo construiu o Museu Van Gogh exclusivamente para abrigar a obra e assumiu a responsabilidade de torná-la pública. “Hoje não há uma única pintura ou um único desenho de Vincent que esteja com a família”, me disse o bisneto de Jo, com certo orgulho. “Graças a Jo, e ao filho dela, isso não pertence mais a nós. Está disponível para todo mundo.”

Dessa forma, o museu é mais um produto dos esforços que Jo van Gogh-Bonger fez para viabilizar a ambição de Vincent de democratizar a sua arte. Os números por si mostram que o êxito foi espetacular. Quando o museu abriu, em 1973, a expectativa era receber 60 mil visitantes por ano. Em 2019, antes da pandemia, mais de 2,1 milhões de pessoas se acotovelaram para ter a chance de passar uns poucos instantes diante de cada uma das telas do mestre.

Em 1916, aos 54 anos, Jo se deparou com o desafio mais formidável de sua campanha para levar Vincent para o mundo. Apesar de todo o sucesso que ela obteve na Europa, nos Estados Unidos, com sua sociedade conservadora e puritana, a valorização do artista demorou. Ela partiu da Europa – deixou seu mundo inteiro para trás – e se mudou para Nova York, com o objetivo de mudar essa situação. Passou quase três anos nos Estados Unidos, morando por um tempo no Upper West Side e depois no Queens, fazendo contatos, explicando a visão do artista e, no tempo livre, traduzindo as cartas de Vincent para o inglês.

No começo, achou a tarefa bastante árdua. “Eu imaginava que o gosto dos norte-americanos pela arte era avançado o suficiente para admirar Van Gogh plenamente, mas eu estava enganada”, ela lamentou a certa altura, em uma carta para o promotor de arte Newman Emerson Montross. Mas a mudança aconteceu. Jo acabou organizando uma exposição na galeria de Montross, na Quinta Avenida. Pouco depois, o Museu Metropolitan apresentou uma exposição de pinturas impressionistas e pós-impressionistas, para a qual Jo contribuiu com quatro telas.

Mais ou menos na mesma época, um professor da Universidade Columbia fez uma palestra pública em que tentou interpretar as obras de Vincent van Gogh, que para o gosto norte-americano pareciam lúgubres e lembravam histórias em quadrinhos. O New York Times cobriu a palestra e aprofundou a explicação, afirmando que as cores exageradas do artista remetiam a uma “linguagem simbólica primitiva”.

Jo, enquanto isso, continuou a acreditar que as cartas para Theo – em que Vincent surgia como uma figura romântica e trágica – abriria a alma dele para os norte-americanos e para o mundo. Fazer com que as cartas fossem publicadas em inglês foi o seu último grande projeto.

Isso acabou sendo uma corrida contra o tempo. A saúde de Jo estava se deteriorando – ela tinha mal de Parkinson –, e o editor com quem fechara um contrato, Alfred Knopf, queria fazer apenas uma versão resumida, com o que ela não concordava. Jo voltou para a Europa e viveu seus últimos anos num amplo apartamento na imponente Rua Koninginneweg, em Amsterdã, e numa casa de campo em Laren. Seu filho, Vincent, e a esposa dele, Josina, se mudaram para perto de Jo, que encontrou sua felicidade no convívio com os netos. Fora isso, ela se mantinha extraordinariamente concentrada na missão de sua vida: enviar telas para exposições, uma após outra, e discutir com o editor das cartas, enquanto lidava com a dor e os demais sintomas de sua doença.

Na verdade, Jo parece ter se tornado mais obstinada à medida que sua vida se aproximou do fim. A disputa em torno de uma quantia irrisória levou com que encerrasse sua amizade com Paul Cassirer, um negociante de arte alemão com quem ela trabalhara para promover Van Gogh. Quando um romance fantasioso sobre os irmãos Van Gogh foi publicado na Alemanha em 1921, ela considerou as liberdades factuais que o autor tomou profundamente perturbadoras. Pedidos de telas para possíveis exposições continuavam chegando num ritmo furioso – de Paris, Frankfurt, Londres, Cleveland, Detroit –, e Jo continuou envolvida bem de perto com as negociações, até se tornar incapacitada para tanto. Morreu em 1925, aos 63 anos.

A primeira edição das cartas em língua inglesa, publicada na Inglaterra pela Constable & Company e nos Estados Unidos pela Houghton Mifflin, apareceu dois anos depois, em 1927. O volume trazia uma introdução escrita por Jo, na qual ela aprofundava o mito do artista sofredor e ressaltava o papel do marido na apreciação da obra de Vincent: “Theo sempre foi o único que o entendeu e o apoiou.” Sete anos depois, Irving Stone publicou seu romance best-seller Sede de Viver, sobre o relacionamento entre os irmãos Van Gogh, baseado em grande medida nas cartas. O livro, por sua vez, foi a matéria-prima para o filme homônimo de 1956, dirigido por Vincente Minnelli, com Kirk Douglas no papel do pintor. A essa altura, o mito estava enraizado. Ninguém menos do que Pablo Picasso se referiu à vida de Van Gogh – “essencialmente solitária e trágica” – como “o arquétipo de nosso tempo”.

Houve mais uma homenagem que Jo prestou a seu cunhado e ao marido, possivelmente a mais notável de todas. Num período tardio de sua vida, enquanto traduzia as cartas para o inglês, ela providenciou que os restos mortais de Theo fossem exumados do cemitério holandês onde estavam e sepultados ao lado do túmulo de Vincent, em Auvers-sur-Oise, na França. Como ocorrera com a exposição em Amsterdã, ela cuidou da operação de traslado como um general, supervisionando todos os detalhes, entre eles a encomenda de lápides iguais para os dois irmãos. Hans Luijten me disse que considera essa decisão uma manifestação impressionante da obstinada dedicação de Jo. “Ela queria que os dois ficassem um ao lado do outro, para sempre.”

Uma esposa que manda exumar os restos mortais do marido é uma imagem tão surpreendente que nos leva de volta à questão central da vida de Jo: sua motivação. Por que, afinal, ela aderiu a essa causa e a levou adiante durante toda a sua vida? Certamente a crença que tinha na genialidade de Vincent e o desejo de honrar os desejos de Theo foram fortes motivos. Luijten observou que, além disso, ao promover a arte de Van Gogh, ela acreditava estar aprofundando suas próprias convicções políticas socialistas.

Mas as pessoas também agem levadas por motivações menores, mais simples. Os 21 meses de Jo ao lado de Theo foram os mais intensos de sua vida. Ela experimentou Paris, a alegria, uma revolução na cor e na cultura. Com a ajuda de Theo, ela deixou seu mundo prudente, convencional e se entregou à paixão. Andando pelo museu em Amsterdã que abriga todas as telas das quais Jo não teve coragem de se separar, surge uma outra ideia: a de que, ao se dedicar completamente a Vincent van Gogh, ao vendê-lo para o mundo, ela estava mantendo vivo aquele momento de sua juventude, e permitindo que todos nós também o sentíssemos.

Russell Shorto
Colaborador do New York Times, é autor de Smalltime: A Story of My Family and the Mob (W. W. Norton & Company)

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