Unicef: Covid gerou 'erosão' do ensino no Brasil e retrocesso de uma década
Jamil Chade, 23/01/2022, UOL
Dez por cento dos alunos jamais voltarão à escola, estudantes aprenderam apenas um quarto do que teriam nas aulas presenciais e o progresso no ensino de matemática e português em certas séries regrediu em mais de uma década. Num informe que revela a dimensão do impacto da pandemia de covid-19, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) aponta que uma geração inteira será profundamente afetada pelo fechamento de escolas nos últimos dois anos no mundo e que as perdas são "quase irrecuperáveis".
O alerta, publicado hoje (23/01/2022), ainda destaca um cenário devastador na educação brasileira. Usando dados de instituições nacionais, o Unicef aponta uma "erosão" no ensino e um impacto "severo". "Um estudo de São Paulo mostra que, em média, os alunos aprenderam apenas 28% do que teriam nas aulas presenciais e o risco de desistência aumentou mais do que três vezes", disse o informe. Os exames estaduais de São Paulo em 2021 mostram perdas de aprendizado em todos os níveis, com os alunos pontuando abaixo das provas de 2019 em cada série, com maiores perdas para os alunos mais jovens.
Matemática e português
O Unicef destaca ainda como houve uma regressão de mais de uma década em algumas das principais matérias. No caso dos exames de matemática, os resultados foram equivalentes ao que existia há 14 anos. Nas provas de português, a regressão foi de dez anos. "Estes resultados são particularmente impressionantes, pois ilustram como o choque eliminou uma década ou mais de progresso constante no aprendizado", diz. Para chegar a essas conclusões, o Unicef usou estudos da Seduc-SP, Fundação Lemann, o Instituto Natura e o Datafolha.
Covid afeta leitura "Para além de São Paulo, em um grupo de estados brasileiros, a proporção de alunos da segunda série que estão fora do caminho para se tornarem leitores fluentes aumentou de 52% para 74%, apoiando a noção de que a crise de aprendizagem pré-pandêmica se agravou durante o fechamento de escolas", disse o Unicef. Ou seja, de cada quatro alunos, três estão abaixo de seus níveis no que se refere à leitura.
A entidade lembra como, com o apoio de organizações da sociedade civil, Secretarias de Educação de dez estados brasileiros decidiram participar de uma avaliação das habilidades fundamentais dos alunos da segunda série. O principal objetivo deste exercício foi definir a linha de base para a recuperação à medida que as escolas reabrem e usar essas informações para definir estratégias para mitigar as perdas de aprendizagem. "O estudo mostrou que 74% dos alunos da segunda série são pré-leitores (ou seja, só podem ler um máximo de 9 palavras por minuto); esta proporção é muito maior do que em 2019, onde 52% dos alunos da segunda série foram classificados como pré-leitores", disse.
Ao lado de México e Uganda, estudos também indicaram que no Brasil houve uma maior perda em matemática do que em leitura. "Uma razão potencial pode ser a menor exposição à matemática do que a leitura na vida diária fora da escola, outra pode ser que os cuidadores são menos capazes de apoiar os alunos em matemática do que em leitura", disse.
Também ficou constatado que qualquer reabertura das escolas é melhor do que fechamentos contínuos. "Evidências do Brasil sugerem que abrir escolas, mesmo que parcialmente, resultou em menor perda de aprendizado para os alunos do ensino fundamental e médio do que quando as escolas permaneceram totalmente fechadas", disse.
Impacto na participação de estudantes
Outra constatação do Unicef é que, no Brasil, o Enem teve o menor número de candidatos desde 2007. "Quatro milhões de estudantes se inscreveram para fazer o exame, em comparação com mais de seis milhões em 2020. O número de estudantes negros, pardos ou indígenas diminuiu como parte do número total de candidatos, correndo o risco de exacerbar as desigualdades existentes em admissões universitárias", apontou.
De forma geral, o Unicef ainda destaca estudos realizados no Brasil que mostram que o êxodo das escolas pode ter um impacto profundo. Enquanto as escolas estavam fechadas, um a cada dez estudantes entre 10 e 15 anos não planejavam voltar para as salas de aula quando a reabertura ocorresse.
635 milhões de crianças continuam fora das escolas
A crise do ensino não é uma exclusividade brasileira. No mundo, o Unicef estima que a escala de perda de educação é "quase intransponível". "Mais de 635 milhões de alunos continuam sendo afetados pelo fechamento total ou parcial de escolas", afirmou.
"Em março, marcaremos dois anos de interrupções da educação global relacionadas à covid -19. Estamos olhando para uma escala quase intransponível de perdas na escolaridade das crianças", disse Robert Jenkins, chefe de Educação do Unicef.
"Embora as interrupções no aprendizado devam terminar, não basta reabrir escolas. Os alunos precisam de apoio intensivo para recuperar a educação perdida. As escolas também devem ir além dos locais de aprendizagem para reconstruir a saúde mental e física, o desenvolvimento social e a nutrição das crianças", defendeu.
De acordo com a entidade, as crianças perderam as habilidades básicas de matemática e alfabetização. "Globalmente, a interrupção da educação significou que milhões de crianças perderam significativamente o aprendizado acadêmico que teriam adquirido se estivessem na sala de aula, com as crianças mais jovens e mais marginalizadas enfrentando a maior perda", estimou a agência.
"Em países de baixa e média renda, as perdas de aprendizado para o fechamento de escolas deixaram até 70% das crianças de 10 anos incapazes de ler ou entender um texto simples, acima dos 53% pré-pandêmicos", disse.
Além do exemplo brasileiro, o Unicef aponta para dados assustadores em diversas partes do mundo:
Na Etiópia, estima-se que as crianças da escola primária tenham aprendido entre 30% a 40% da matemática que teriam aprendido se tivesse sido um ano escolar normal.
Nos EUA, foram observadas perdas de aprendizagem em muitos estados, incluindo Texas, Califórnia, Colorado, Tennessee, Carolina do Norte, Ohio, Virgínia e Maryland. No Texas, por exemplo, dois terços das crianças da 3ª série foram testadas abaixo de seu nível escolar em matemática em 2021, em comparação com a metade das crianças em 2019.
Na África do Sul, as crianças em idade escolar estão entre 75% e um ano escolar completo atrás de onde deveriam estar. Entre março de 2020 e julho de 2021, cerca de 400.000 a 500.000 alunos abandonaram a escola.
Ansiedade e depressão
Mas os problemas vão muito além do currículo. "As consequências do fechamento das escolas estão aumentando. Além da perda de aprendizado, o fechamento de escolas tem afetado a saúde mental das crianças, reduzido seu acesso a uma fonte regular de nutrição e aumentado seu risco de abuso", aponta o Unicef. "Um conjunto crescente de evidências mostra que a covid-19 tem causado altos índices de ansiedade e depressão entre crianças e jovens, com alguns estudos descobrindo que meninas, adolescentes e aqueles que vivem em áreas rurais têm maior probabilidade de experimentar estes problemas", estima.
Além disso, mais de 370 milhões de crianças em todo o mundo perderam as refeições escolares durante o fechamento das escolas, o que era a única fonte confiável de alimentos e nutrição diária.
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